quarta-feira, 15 de julho de 2015

Todo familiar beneficiado por trabalho de doméstica é empregador



O familiar que se beneficia do serviço prestado por trabalhador doméstico também é considerado empregador. Foi o que decidiu a 10ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (RJ) ao julgar recurso interposto por um homem que alegava que a mulher que trabalhava em sua casa havia sido contratada apenas pela mãe dele. A decisão o condenou a indenizar a trabalhadora por danos morais no valor R$ 15 mil por dispensa de forma abrupta, além de reconhecer o vínculo empregatício, obrigando o pagamento de verbas trabalhistas.

No recurso, o familiar alegou que a trabalhadora prestou serviços para ele como diarista e não como empregada doméstica, apenas em 2011, dois anos após a morte da sua mãe — razão pela qual ele não teria dado continuidade à relação de emprego que existia. Ele alegou que, durante o período em que a doméstica trabalhou para sua mãe (de 1993 a 2009), nunca dirigiu os serviços dela e apenas passou um tempo na casa da mãe para cuidar da saúde, não tendo feito parte do núcleo familiar. Dessa forma, argumentou que não poderia ser considerado empregador.

Para o desembargador Flávio Ernesto Rodrigues Silva, que relatou o caso, a parte não provou que contratara a doméstica apenas em 2011 e como diarista. O relator também destacou o artigo 1º da Lei 5.859/72, que considera a pessoa ou a família dentro do ambiente residencial como empregador do trabalhador doméstico.

“Nesse sentido, foi também o recorrente (familiar) empregador pelo tempo em que morou na casa de seus pais. Ainda que não dirigisse o serviço da autora (doméstica), dele por certo se beneficiava. Além disso, há provas nos autos no sentido de ter o reclamado (familiar) morado com a sua mãe por todo o tempo em que a reclamante exerceu a função de doméstica”, escreveu.

Segundo o relator, só pelo fato de o familiar ser sucessor da antiga empregadora, já deveria responder pelos débitos trabalhistas contraídos pela mãe. Com relação aos danos morais, o desembargador decidiu manter a condenação, porque ou autor não negou a existência dos fatos alegados pela empregada, que afirmou ter sido dispensada de forma inesperada quando pleiteou pelo recebimento das férias, as quais havia solicitado tirar, pela primeira vez, ao longo de 20 anos de serviços prestados. Cabe recurso. Com informações da Assessoria de Imprensa do TRT-1. 

Clique aqui para ler a decisão. 



Revista Consultor Jurídico, 14 de julho de 2015, 15h58

terça-feira, 14 de julho de 2015


Liberação do casamento igualitário abre debate sobre Direito Civil infralegal



A Suprema Corte dos Estados Unidos julgou no dia 26 de junho a inconstitucionalidade de leis estaduais que proíbem o casamento de pessoas do mesmo sexo naquele país. Reconheceu-se não ser possível essa restrição, porque a instituição jurídica do casamento deve ser permitida a todas as pessoas, independentemente de sua orientação sexual, além de se tratar de um direito fundamental, importante para a ordem social, cuja celebração decorre da autonomia individual e que visa ao estabelecimento de vínculos de comprometimento entre as pessoas.

A proibição desse direito a homossexuais implica mantê-los estigmatizados, como se fossem pessoas de condição inferior à dos heterossexuais.[1] Com essa decisão nos Estados Unidos, milhares de pessoas alteraram suas fotos de perfil no Facebook em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, como forma de comemorar essa conquista.

Parece que, na visão do leigo, o reconhecimento jurídico do casamento homoafetivo ocorreu somente com a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos, como se a jurisdição de lá também tivesse efeitos aqui, e que somente agora se dá essa oportunidade a casais homossexuais no Brasil. Isso porque não houve reação dessa magnitude, quando, em 2013, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência, validade e eficácia da união estável entre pessoas do mesmo sexo,[2] ainda que, há bastante tempo, a jurisprudência viesse reconhecendo direitos a companheiros homossexuais.

Em seus votos, os ministros do Supremo Tribunal Federal, de forma irrepreensível, destacaram a necessidade de reconhecimento jurídico das relações de direito privado entre pessoas do mesmo sexo, porque todos são iguais perante a lei e têm direito ao livre desenvolvimento da personalidade por meio da garantia da autonomia e privacidade no exercício da sexualidade. Apontaram, ainda, que a homossexualidade é um fato da vida e que pessoas homossexuais somente são felizes e realizadas quando são reconhecidas em suas verdadeiras identidades pessoais; a família, base da sociedade, protegida pelo art. 226, caput, da Constituição Federal, não pode mais ser entendida como aquela constituída somente por casais heterossexuais.

Todavia, foi necessário evitar-se ao máximo as referências ao art. 226, § 3º, da Constituição Federal, no qual consta intencional e expressamente as palavras “homem e mulher” por vontade da Assembleia Constituinte — conforme destacado pelo ministro Ricardo Lewandowski ao resgatar transcrição do debate outrora ocorrido — para que prevalecessem os arts. 1º, IV, 3º, IV e 5º, II, X e § 2º da Constituição Federal, mesmo ao se ter afirmado que “(...) o sexo das pessoas, salvo expressa disposição constitucional em contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica”.

Dessa forma, há no texto constitucional uma norma que resulta na discriminação das pessoas! Inclusive, no passado, esse mesmo art. 226, § 3º, foi usado por alguns para sustentar a inconstitucionalidade da Lei 9.278/96, que tratava da união estável antes do Código Civil de 2002, porque a Constituição Federal estaria ordenando a conversão da união estável em casamento, não a sua manutenção.

Além disso, se esse art. 226, § 3º, não fosse discriminatório, teria sido desnecessária a provocação do Supremo para que se manifestasse acerca dessa matéria. A melhor solução seria o Congresso Nacional rediscutir a conveniência ou não de manter-se o art. 226, § 3º, tal como se fez em 1977 com o fim da proibição do divórcio e, mais recentemente, em 2010, com a alteração do art. 226, § 6º, da Constituição Federal, para não mais estabelecer prazo mínimo para a sua decretação.

Não há como negar que o reconhecimento do direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo deu-se por meio da Resolução 175 do Conselho Nacional de Justiça,[3] tornando dispensável o reconhecimento da união estável homoafetiva para conversão subsequente em casamento homoafetivo. Dessa forma, no Brasil, há um dúplice regime: o casamento entre pessoas heterossexuais, disciplinado pelo Código Civil de 2002, em cujos enunciados se registram as palavras “homem e mulher” (arts. 1.514, 1.517 e 1.535), e o casamento entre pessoas do mesmo sexo, disciplinado por meio da Resolução CNJ 175, portanto, uma norma infralegal.

Estamos diante de uma situação curiosa: em vez de a Constituição Federal ter modificado o direito civil em matéria de casamento, essa transformação deu-se por meio de resolução do Conselho Nacional de Justiça. Logo, por que não se afirmar, a partir desse exemplo, a existência de um Direito Civil infralegal, que também irradia seus valores na interpretação do Código Civil? Afinal, fenômeno similar ocorre com as resoluções das agências reguladoras e superintendências em matéria de contratos, em especial, os de transporte e seguros, além dos planos de saúde. Fatos como esses permitem a reflexão acerca da função das normas hierarquicamente superiores – e agora também aquelas inferiores – na criação de novos direitos.

Em minha opinião, novos direitos, sobretudo aqueles decorrentes de muita luta, raramente são conquistados a partir da lógica do sistema. Basta lembrar que, no século XIX, os códigos foram apresentados como a grande novidade em termos de legislação e deveriam prevalecer em face da tradição do direito medieval, por serem a concretização das liberdades entre indivíduos. No século XX, essa novidade foi atribuída às Constituições, usadas não só como suportes argumentativos para a oxigenação dos códigos, mas também pela aplicação direta de normas nelas positivadas, com o intuito de tornar ineficazes normas contidas em leis ordinárias, ou ao atribuir-lhes novos significados.

Tornou-se mais agradável e convincente argumentar que os elementos nucleares do Direito Civil deveriam ser encontrados no Direito Constitucional, restando ao Código Civil, por exemplo, apenas especificar o que estaria previsto na Constituição Federal, em vez de reconhecer-se a aptidão do direito civil, por si mesmo, para concretizar esses valores sociais.

Mas, quando a própria Constituição Federal tem em seu texto uma norma segundo a qual união estável é entre homem e mulher — em flagrante antinomia entre os arts. 1º, IV, 3º, IV e 5º, II, X e §2º, em face do art. 226 —, e silencia-se quanto ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, torna-se necessário o emprego de uma norma infralegal no reconhecimento de novos direitos.

Foi magnífica a importância da Constituição Federal na proteção dos direitos da personalidade, tais como a honra, imagem e vida privada, além do reconhecimento da indenização por dano moral e, sobretudo, ao ter, de fato, absorvido o direito de família por meio dos arts. 226 e 227, até o advento do Código Civil de 2002.

Entretanto, o atual Código Civil também traz em suas normas valores socialmente importantes e condizentes com a sociedade contemporânea. Tanto que a atribuição de personalidade jurídica, ou a sua desconsideração, a autonomia privada, a análise da função social de um contrato ou da conduta de uma pessoa à luz da boa-fé, entre outros, independem de “homologação” por normas de estrato superior.

É forçoso reconhecer que o legislador, na elaboração do Código Civil de 2002 poderia ter sido mais detalhista na disciplina jurídica de diversos institutos, como já acontece em códigos civis de outros países, e deveria atualizá-lo com mais frequência, tal como ocorre com a própria Constituição Federal, a qual, em menos de 27 anos, já sofreu 88 emendas, de modo que as soluções para os problemas fossem dadas por meio de regras claras, em vez de invocar-se excessivamente o conceito de dignidade da pessoa humana, por exemplo.

Portanto, não é exato sustentar, pela lógica do sistema jurídico, que a Constituição Federal é infalivelmente o único e verdadeiro manancial axiológico do Direito brasileiro — porque, no caso do art. 226, § 3º, trata-se de valor não mais aceito por parcela da sociedade — ou argumentar que estaríamos caminhando para o reconhecimento da existência de um direito civil infralegal.

Normas constitucionais ou infralegais devem ser usadas como argumentos adicionais, complementares, jamais como requisitos obrigatórios de todo e qualquer discurso dentro do Direito Civil, para que não se desequilibre a estrutura do ordenamento jurídico, sobrecarregando a Constituição Federal ou uma resolução, enfraquecendo-se o Código Civil.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF e UFC).



[1] SUPREME COURT OF THE UNITED STATES. Obergefell et al. v. Hodges , Director Ohio Department of Health et al. Nº 14-556. Argued April, 28, 2015. Decided June, 26, 2015. Disponível em: <http://www.supremecourt.gov/opinions/14pdf/14-556_3204.pdf>. Acesso em: 3.jul.2015


[2] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277. Rel. Min. Ayres Brito. Requerente: Procurador-Geral da República; Requerido: Presidente da República, Congresso Nacional. Resultado Final: Procedente.


[3] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 175, de 14 de maio de 2013. Dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas do mesmo sexo. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/resolução_n_175.pdf>. Acesso em: 3.jul.2015


Eduardo Tomasevicius Filho é Professor Doutor do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP.

Revista Consultor Jurídico, 13 de julho de 2015, 8h00

Trabalhadora que deixou de ser contratada por estar acima do peso consegue indenização por dano moral


Toda empresa tem o direito de escolher quem vai contratar. Mas até nessa hora é preciso agir com respeito ao aspirante ao cargo. A 1ª Turma do TRT-MG analisou o caso de uma trabalhadora que, após passar por um exame de seleção para o cargo de soldadora, foi considerada inapta no exame médico admissional. O motivo: estava acima do peso. Para o relator, desembargador José Eduardo Resende Chaves Júnior, houve discriminação. Por essa razão, a sentença foi reformada para condenar as reclamadas envolvidas ao pagamento de R$15.000,00 a título de indenização por danos morais.

A reclamante relatou que no dia do exame admissional foi informada que iria fazer os exames. A pessoa que a atendeu comentou que ela estava acima do peso e que a futura empregadora não contrata pessoas "gordinhas". E, de fato, a trabalhadora foi considerada inapta no exame admissional, A não contratação foi confirmada pelo setor de RH, onde ela havia comparecido para finalizar as formalidades de praxe. Neste setor, a reclamante afirmou ter ouvido que estava acima do peso e que infelizmente nada poderia ser feito, pois é norma da empresa não contratar pessoas gordas.

Na sentença, o juiz de 1º Grau não viu qualquer problema na rejeição da reclamante. Segundo ele, a empresa não poderia garantir a ela segurança no exercício da função, em razão do sobrepeso. Mas o relator teve outra visão sobre o caso, ao julgar o recurso apresentado pela trabalhadora. Após examinar as provas, ele observou que a autora foi considerada inapta em razão do índice de massa corporal aferido durante o exame médico admissional. O diagnóstico médico constatou que a trabalhadora não se encontrava em seu peso ideal, determinando, por esse motivo, sua inaptidão para o exercício do cargo pretendido. Uma conduta repudiada pelo magistrado, para quem a empresa poderia até se recusar a contratar a trabalhadora sem qualquer justificativa, mas não rejeitá-la em razão de determinação constante em laudo médico no sentido de estar com sobrepeso. Diante desse contexto, o relator considerou o dano moral caracterizado.

"Está configurado o uso excessivo do direito de escolher livremente seus empregados, já que tal direito potestativo encontra limites na esfera jurídica do trabalhador, limite esse que foi ultrapassado no momento em que a reclamada refutou sua contratação fundada em motivo discriminatório, qual seja, a constituição física da autora", registrou o relator, acrescentando que o laudo médico é visivelmente discriminatório. Até porque, se a reclamante estivesse realmente com inaptidão médica, teria direito ao auxílio-doença.

Na decisão, o magistrado esclareceu também que as partes devem observar o princípio da boa-fé objetiva, mesmo na fase de tratativas para admissão do empregado, que precede o contrato de trabalho. Caso contrário, haverá responsabilização sempre que houver abuso de direito.

"Presentes os elementos componentes do alegado ato ilícito, consubstanciado no tratamento discriminatório sofrido pela reclamante, é devido o pagamento de indenização por danos morais", foi como decidiu a Turma de julgadores. A fixação da indenização em R$15 mil levou em consideração diversos critérios, inclusive o porte econômico das reclamadas.

Fonte: TRT3

Juiz reconhece fraude na contratação de escritório de advocacia e declara vínculo entre as empresas e o advogado que as representava




O juiz Rodrigo Ribeiro Bueno, em atuação na 25ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, julgou procedente o pedido de um advogado e reconheceu a existência de relação de emprego entre ele e as empresas para as quais prestava serviços, pertencentes a um mesmo grupo econômico. Para o magistrado, ficou demonstrado que o advogado exercia o cargo de diretor jurídico nas empresas e trabalhava com a presença dos requisitos legais caracterizadores do vínculo de emprego (onerosidade, pessoalidade, habitualidade e subordinação).

Ao examinar as provas, o julgador observou que as reclamadas celebraram contratos de prestação de serviços com escritório de advocacia, mas era o reclamante quem se dedicava pessoalmente ao trabalho em favor das empresas. Conforme constatou o magistrado, ele estava subordinado às rés, pois as testemunhas ouvidas afirmaram que ele tinha uma sala nas dependências das empresas, como também participava de reuniões, viajava a serviço do grupo e tinha e-mail e telefone corporativos. Enfim, o advogado atuava, na realidade, como diretor jurídico das empresas do grupo econômico, o que também foi confirmado pelas declarações do preposto das rés e por organograma apresentado no processo.

Nesse quadro, na visão do juiz sentenciante, o contrato formalizado entre as rés e o escritório de advocacia teve o nítido propósito de fraudar a legislação trabalhista e esconder o vínculo de emprego que elas mantinham com o advogado. Além disso, ele explicou que o fato de o reclamante prestar serviços de advogado para outras pessoas ou empresas não desconfigura o vínculo empregatício, já que a exclusividade não é requisito da relação de emprego.

Assim, foi declarada a nulidade dos contratos de prestação de serviços firmados com a sociedade de advogados e as reclamadas, porque em desacordo com a realidade (art. 9º da CLT). Por essas razões, o juiz reconheceu o vínculo de emprego do advogado com as rés, por todo o período trabalhado, determinando a anotação da CTPS, na função de diretor jurídico e com remuneração no valor de R$20.000,00 por mês. As empresas foram condenadas, de forma solidária, a pagar ao reclamante as parcelas trabalhistas decorrentes do vínculo reconhecido (aviso prévio indenizado, férias com 1/3, 13ºs salários e FGTS com 40%). Por fim, determinou-se que as rés entregassem ao trabalhador as guias TRCT, chave de conectividade e CD/SD, sob pena de indenização substitutiva do benefício do seguro desemprego.

Processo nº 00965-2014-025-03-00-6. Sentença em 27/05/2015 
Fonte: TRT3

"Restrições da Lei de Mediação atrapalham sua aplicação no Direito de Família"




Vice-presidente do IBDFAM, Maria Berenice Dias defende mais possibilidades para mediação extrajudicial.

A Lei da Mediação (Lei 13.140/2015), sancionada no final de junho pela presidente Dilma Rousseff, diz que pode ser objeto de mediação o conflito que envolve direitos disponíveis ou indisponíveis que admitam transação. No entanto, exige homologação em juízo do consenso das partes envolvendo direitos indisponíveis — aquele do qual o titular não podem privar-se por simples vontade própria, como os direitos familiares.

Essa restrição, na opinião da advogada Maria Berenice Dias, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), é injustificada e atrapalha a prática conciliatória em muitas ações no âmbito do Direito da Família.

“Não vejo como não haver a possibilidade de fazer mediação extrajudicial quando há interesse de crianças ou incapazes em geral”, disse, em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico. Ela explica que a Justiça vem admitindo que o reconhecimento da paternidade seja feito diretamente no cartório de registro civil, sem processo judicial, por exemplo, e que o filho, por acordo, pode dizer que o genitor não é mais o pai dele.

Na opinião dela, a Lei da Mediação e o novo Código de Processo Civil, quando falam de conciliação, falham ao não ter copiado o modelo argentino. No país vizinho, no âmbito das relações de família, é necessário comprovar documentalmente que foi tentada uma conciliação extrajudicial antes de entrar com um processo na Justiça. A tônica deve ser uma mediação antes do processo e não uma mediação dentro do processo, disse. Só assim o instrumento será eficaz para diminuir o número de casos na Justiça.

Maria Berenice faz mediações extrajudiciais há oito anos, desde que se aposentou como desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

Leia a entrevista:

ConJur — Qual é a opinião da senhora sobre a Lei de Mediação?
Maria Berenice Dias — A regulamentação dessa atividade que busca aproximar as pessoas para encontrar uma solução consensual vem em boa hora, mas, de uma maneira injustificada, não admite que seja feita a mediação quando se trata de direitos indisponíveis. No âmbito do Direito de Família, não vejo como não haver a possibilidade de fazer mediação extrajudicial quando há interesse de crianças ou de incapazes em geral.

ConJur — Por quê?
Maria Berenice Dias — Claro que não se pode abrir mão de alguns direitos, mas isso não quer dizer que seja indisponível. Por acordo, o filho pode dizer que o genitor não é mais o pai dele. A Justiça vem admitindo que o reconhecimento da paternidade seja feito diretamente no cartório de registro civil, sem processo judicial. É uma forma extrajudicial, um acordo de vontade entre os envolvidos. A limitação acaba eventualmente impossibilitando a mediação em muitas ações no âmbito do Direito da Família. Talvez fosse o caso de fazer a ressalva de que a mediação tem de ser levada para homologação judicial quando há interesse de menores e incapazes.

ConJur — A restrição vale também para o direito de visita?
Maria Berenice Dias — Deve haver a possibilidade de ser resolvido de forma consensual o estabelecimento da forma de convivência, o chamado direito de visita, em relação a uma criança. O que melhor atende o interesse dela são os pais decidirem como vai ser essa convivência, e não o juiz dizer quais são os horários. Nesse aspecto, o juiz é incompetente e vai errar. É importante deixar os familiares resolverem porque eles sabem os costumes e a dinâmica da família.

ConJur — A senhora acredita que a lei conseguirá reduzir a judicialização dos conflitos?
Maria Berenice Dias — O que peca tanto na Lei da Mediação, mas basicamente no novo Código de Processo Civil, nesse ponto da mediação, é não ter copiado o modelo argentino. Para se entrar com uma ação na Justiça na Argentina, no âmbito das relações de família, é necessário comprovar documentalmente que foi tentada uma conciliação extrajudicial. Primeiro as pessoas têm que fazer uma tentativa de mediação e documentá-la. Este documento é expedido pelos serviços de mediação. É a forma mais eficaz de diminuir o número de processos na Justiça — que é a finalidade primeira de incentivar formas conciliatórias.

ConJur — Qual é o procedimento sugerido pelo CPC para a mediação?
Maria Berenice Dias — É judicialmente. Conforme o novo CPC, é preciso procurar um advogado e entrar com uma ação fundamentada. E isso gera animosidade porque há citação, é um procedimento judicial. Depois é que o juiz manda fazer a conciliação. A partir disso, quem vai pautar quando será feita a mediação é o mediador. É uma volta desnecessária no processo. O que amenizou um pouco é que nas ações de família, quando o réu é citado, ele não vai receber a cópia da petição inicial. Alguns processualistas estão se insurgindo contra, porque dizem que o réu vai para a audiência sem saber do que vai ter que se defender. Este dispositivo foi inspirado no Código das Famílias, que foi elaborado pelo IBDFAM. Acho salutar. Ao receber a cópia com uma acusação de abandono de lar, por exemplo, o réu pode se irritar e dificultar a mediação. No caso de mediação extrajudicial, a pessoa simplesmente é chamada para tentar resolver o conflito.

ConJur — E se a validade da mediação for questionada?
Maria Berenice Dias — Se os direitos são disponíveis ou não, em caso de Direito da Família, quando há interesse de criança, é só colocar no papel o que foi acordado e levar para homologação judicial. Mas, mesmo assim, o juiz vai ser um carimbador, ele não vai fazer uma audiência. A tônica deve ser uma mediação antes do processo e não uma mediação dentro do processo.

ConJur — Qual foi a maior dificuldade encontrada pela senhora nesses oito anos fazendo mediação no âmbito do Direito da Família?
Maria Berenice Dias — É a mágoa, o ressentimento. Todos sonham com amor eterno e tendem a culpar o parceiro pelo fim do relacionamento. É uma forma de compensar a dor da perda com um sentimento de vingança. É a mãe dizendo para o pai que não vai mais deixá-lo ver o filho porque houve a separação. Ou o marido traído dizendo que não vai pagar pensão para o filho.

ConJur — Qual é o assunto mais controverso atualmente no Direito da Família?
Maria Berenice Dias — Antes era o valor da pensão alimentícia, hoje é com relação ao chamado direito de convivência. Cada vez mais os pais estão reivindicando conviver mais com os filhos depois da separação e há a resistência das mães que, muitas vezes, se acham proprietárias das crianças, porque saíram da barriga dela. É um ranço cultural difícil de ser superado. É por isso que surgiu a lei da guarda compartilhada, a lei da alienação parental, que foram criadas por causa do movimento dos pais excluídos da convivência com os filhos. O pai só vê o filho quando a mãe “deixa”, parece que não é um direito do pai. É um direito do filho de conviver com o pai. Esse ranço contaminou o Poder Judiciário porque dificilmente a justiça entrega a guarda para o pai.

ConJur – É uma forma de preconceito em relação aos homens?
Maria Berenice Dias — Sim. Noto ainda o Poder Judiciário muito arraigado esse sentimento chamado instinto maternal. Isso não existe, mãe não é bicho e eu nunca ouvi falar em instinto paternal. 


Marcelo Galli é repórter da revista Consultor Jurídico.



Revista Consultor Jurídico, 13 de julho de 2015, 17h34

segunda-feira, 13 de julho de 2015

ESPECIAL - Aviso prévio: quando o empregador pode ou não descontar a parcela e quando está obrigado a quitá-la.




Nas relações de emprego, quando uma das partes, empregado ou empregador, decide rescindir o contrato de trabalho por prazo indeterminado, sem justa causa, deverá notificar a outra parte da sua decisão, de forma antecipada. É o aviso prévio, ou seja, a comunicação da rescisão do contrato de trabalho dirigida por uma das partes à outra, com a antecedência a que está obrigada pela lei. Ele está previsto no artigo 487 da CLT e sua finalidade é evitar a surpresa na ruptura do contrato de trabalho, concedendo ao empregador a possibilidade de preencher o cargo vago e, ao empregado, de obter uma nova colocação no mercado de trabalho.

Havendo a rescisão do contrato de trabalho sem justa causa, por iniciativa do empregador, ele poderá optar por conceder ao empregado o aviso prévio trabalhado ou indenizado. Nesse último caso, deverá pagar ao trabalhador os salários correspondentes aos dias do aviso, juntamente com as verbas rescisórias. Quando for do empregado a iniciativa de romper o vínculo, ou seja, quando ele pedir demissão, terá que cumprir o aviso prévio, a menos que o empregador o dispense formalmente. Caso contrário, o empregador poderá descontar os salários relativos ao período das suas verbas rescisórias. É o que determina os parágrafos primeiro e segundo do artigo 487 da CLT.

Nessa matéria especial, veremos alguns casos apreciados pelas Turmas do TRT-MG, nos quais se discutiu a possibilidade de desconto do aviso prévio pelo empregador das verbas devidas ao empregado, inclusive naquelas situações em que, não configurados os pressupostos para a rescisão indireta do contrato de trabalho, prevaleceu a vontade do empregado de se desligar do emprego, situação equivalente ao pedido de demissão.
Empregado pede demissão e não cumpre aviso prévio: é possível deduzir valor do aviso das parcelas rescisórias 


O parágrafo 2° do art. 487 da CLT é claro ao estabelecer que a falta de aviso prévio por parte do empregado dá ao empregador o direito de descontar os salários correspondentes ao período. E, se não existe salário a receber, o valor pode ser descontado de outros créditos do empregado, como férias e 13° salário.

Assim decidiu a 3ª Turma do TRT/MG, ao dar provimento ao recurso de uma empresa que não se conformava com a sua condenação a restituir a um trabalhador o valor do aviso prévio descontado na rescisão contratual, assim como de pagar a multa do artigo 477 da CLT. Pela tese da ré, como o reclamante se demitiu sem cumprir o aviso prévio, ela estaria autorizada a realizar o desconto respectivo, nos termos do artigo 487, parágrafo 2º da CLT. E, em razão do valor descontado, o ex-empregado não teve saldo a receber de verbas rescisórias. Por isso mesmo, seria inaplicável a multa do artigo 477 da CLT. Esses argumentos foram acolhidos pela Turma julgadora.

O relator do recurso, juiz convocado Manoel Barbosa da Silva, destacou que o parágrafo 2° do artigo 487 da CLT permite expressamente que o empregador desconte dos salários o valor correspondente ao aviso prévio não cumprido pelo empregado que pediu demissão, como no caso. E, não havendo salário a receber, nada impede que o desconto incida sobre outros créditos do empregado, como férias e 13° salário.

"Se pode ser descontado do salário, verba reconhecida como intocável pela doutrina e pela jurisprudência, com maior razão deve ser permitido o desconto do aviso prévio devido pelo empregado no pedido de demissão", frisou o relator.

Para reforçar esse entendimento, ele citou decisão do TST que, por sua vez, apoiou-se na lição de Valentim Carrion, in Comentários à CLT, art. 487, § 2°, nota 7: "Lícita é a compensação do aviso prévio dado à empresa pelo empregado demissionário em parcelas decorrentes do pedido de dispensa, como férias e gratificação natalina" (TST, E-RR 1.278/79, Fernando Franco, Ac. TP 1.757/81, in Valentim Carrion, Comentários à CLT, Edição de 2013).

Assim, a Turma, acolhendo o voto do relator, deu provimento ao recurso da empresa para absolvê-la da restituição do aviso prévio descontado no TRCT, e por consequência, da multa prevista no § 8° do art. 477 da CLT. (TRT-00672-2014-079-03-00-0-RO - acórdão em 25/02/2015)
Rescisão indireta improcedente: desconto de aviso prévio indevido 


Já em outra situação analisada pela 8ª Turma do TRT mineiro, a empregada se afastou do serviço e requereu na Justiça a rescisão indireta do contrato de trabalho. Para os julgadores, mesmo tendo havido o indeferimento da rescisão indireta e reconhecimento da condição de demissionária da reclamante, ela não deixou de cumprir o aviso prévio, mas apenas se valeu da prerrogativa prevista no artigo 483, § 3º, da CLT. É que a norma prevê que o empregado poderá pedir na Justiça a rescisão indireta do pacto, permanecendo ou não no serviço até a decisão final do processo.

O juiz de 1º Grau julgou improcedente a rescisão indireta e declarou que a reclamante era demissionária. Com isso, entendeu que ela deveria ter cumprido o aviso prévio e, como não o fez, autorizou que a empresa descontasse dos créditos da empregada o valor correspondente ao aviso prévio. A reclamante recorreu da sentença, afirmando ser indevido o desconto e requerendo o pagamento do aviso prévio por parte da ré. A Turma lhe deu razão.

O relator do recurso, desembargador José Marlon de Freitas, então atuando como convocado na Turma, ressaltou que, apesar de ter sido considerada demissionária, com o indeferimento da rescisão indireta, a reclamante não deixou de cumprir o aviso prévio, mas, apenas se valeu da prerrogativa prevista no artigo 483, § 3º, da CLT, de se afastar do serviço, até o final da decisão do processo. Conforme frisou, ela não teria como cumprir o aviso prévio, na forma como determina o art. 487, § 2º, da CLT, porque distintas as circunstâncias. Por essas razões, a Turma deu provimento ao recurso da reclamante para excluiu o desconto e determinar que a empresa pagasse o valor do aviso prévio à reclamante.(0010819-89.2014.5.03.0165 RO - acórdão em 03/12/2014)
Empregado dispensado que arranja logo novo emprego: é devido o aviso prévio? 


Nesse terceiro e último caso, a situação foi um pouco diferente. O reclamante era empregado de uma empresa prestadora de serviços que o dispensou sem justa causa. Só que ele foi imediatamente transferido para outra empresa prestadora de serviços e continuou a trabalhar na mesma tomadora, sob as mesmas condições, sem solução de continuidade. A antiga empregadora não lhe pagou o aviso prévio, mas o trabalhador também não pediu a dispensa do seu cumprimento. E aí? Nessas circuntacias, ele teria direito ao aviso prévio?

Para a 1ª Turma do TRT de Minas a resposta é positiva. Os julgadores reformaram a sentença que indeferiu o pedido do trabalhador de recebimento do aviso prévio e suas projeções.

No entendimento do juiz de 1º Grau, o fato de o ex-empregado ter sido imediatamente admitido por outra empresa, inclusive continuando a prestar serviço na mesma tomadora e em iguais condições, exclui o direito ao recebimento do aviso prévio indenizado. Isso porque a finalidade do aviso prévio seria justamente proporcionar ao trabalhador um período razoável para busca de novo emprego, tendo aplicação, no caso e por analogia, o precedente normativo 24 do TST. Mas a Turma de julgadores, acolhendo o voto da relatora do recurso, desembargadora Maria Cecília Alves Pinto, decidiu de forma diferente.

De acordo com a relatora, a hipótese de obtenção de um novo emprego exclui o direito do trabalhador ao aviso prévio somente se ele requerer, de forma expressa, a dispensa do seu cumprimento perante a empresa, o que não ocorreu no caso. Conforme ressaltou, essa é a melhor interpretação da súmula ao 276/TST, que dispõe que: "O direito ao aviso prévio é irrenunciável pelo empregado. O pedido de dispensa de cumprimento não exime o empregador de pagar o respectivo valor, salvo comprovação de haver o prestador dos serviços obtido novo emprego".

Para reforçar seu posicionamento, a desembargadora citou várias decisões do TST, no sentido de que o aviso prévio é irrenunciável pelo empregado, a não ser por uma única exceção: se ele requerer a dispensa do seu cumprimento por estar prestando serviços a novo empregador. Ou seja, se não há pedido de dispensa do aviso prévio pelo trabalhador, a obtenção de novo emprego no período não afasta a obrigação da empresa de pagá-lo.

Assim, tendo em vista que o reclamante foi dispensado sem justa causa e que não houve aviso prévio, seja na forma trabalhada, seja na forma indenizada, a Turma concluiu que ele tem direito a receber da ré o valor correspondente ao aviso, com suas projeções. (TRT/00617-2014-169-03-00-1-RO - acórdão em 08/06/2015)



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Fonte: TRT3

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Como (não) se ensinava processo penal antes da "lava jato". Eis o busílis!






Alexandre Morais da Rosa (ler aqui) pergunta como é possível ensinar Direito Processual penal depois da operação "lava jato". A resposta é difícil. Ela exigiria a escrita de um livro e não de uma coluna. O segredo da resposta está na crise da dogmática jurídica, da qual falarei mais adiante.

Dos anos 80 para cá ocorreu uma transição não muito bem feita. A falta de democracia originou uma espécie de aposta no protagonismo do Judiciário em face da estrutura autoritária da legislação e do Estado. Por isso floresceu, em determinado período, um espaço que foi ocupado por teses acionalistas, como o realismo jurídico, o direito alternativo, o direito achado na rua, a velha investigação cientifica, etc. No regime autoritário, era necessária aposta em posturas acionalistas. Entretanto, quando foi implantada a democracia e promulgada, logo depois, a Constituição, a dogmática jurídica não se reciclou. Ali começa o problema.

A crise de paradigma de dupla face: minha antropofagia
Para mim, o busílis da questão que está na raiz da pergunta de Alexandre Morais da Rosa reside lá longe. E sobre ela escrevi muito. Já antes de 1988 fazíamos congressos e, junto com José Eduardo Faria, denunciávamos aquilo que hoje bate forte na dogmática. Faria dizia que se avizinhava uma crise de paradigma com a nova Constituição. Segundo ele, o direito estava preparado para lidar com conflitos interindividuais e não “aguentaria o tranco” quando se defrontasse com os conflitos transindividuais.

Bingo. Ousadamente, peguei a tese de Faria e fiz uma antropofagia, que já está em textos bem antigos. Chamei a essa crise de uma crise paradigmática com dupla face. A face um (lado A) era a da estrutura do direito, que, preparada para pegar ladrões de galinha (e criticava a cultura manualesca cujos exemplos eram sobre Caio, Ticio e Mévio), não estava preparada para enfrentar os casos que tratavam de bens jurídicos transindividuais (vejam: as garantias são para todos; na época denunciava que estas só eram aplicadas em favor de determinados segmentos — eu queria isonomia para a patuleia, por assim dizer).

Mas havia um problema a mais. A crise só se sustentava porque havia um lado “B”, que chamei de crise do paradigma aristotélico-tomista e da filosofia da consciência (e teses voluntaristas em geral) porque, de um lado ainda a dogmática estava sustentada em posturas objetivistas (verdade real, por exemplo e o mito do dado das posturas exegetistas) e, de outro, paradoxalmente, quando interessa(va) — ideológica e politicamente — lança(va) mão do extremo subjetivismo, dando o sentido que quer(ia) às leis e aos fenômenos envolucrados nos tipos penais e nas garantias processuais.

A crise de dupla face escondeu, por exemplo, o solipsismo judicial, que, por sua vez, esconde o paradoxo representado pela dupla face (o mix entre objetivismo e subjetivismo). E continua escondendo a relevante circunstância de que a dogmática jurídico-processual penal produziu doutrina durante todos esses anos apostando no protagonismo dos juízes.Continuou a apostar na livre apreciação da prova. Mais: colocou um verniz — que agora desbotou — com a ficção do “livre convencimento motivado” (ou livre apreciação motivada). É de uma ingenuidade de dar dó a crença generalizada da comunidade jurídica na bondade das analises judiciais. O juiz é bom? Para quem? Depende do lado que você está. Ou eu tenho um direito, ou eu não tenho — se eu tenho, o Poder Público tem o dever de reconhecê-lo. Não importa minha posição social. É assim que funciona em arranjos democráticos. E isso não pode depender da opinião que eu e você temos a respeito disso.

Observemos um sintoma: quando a procuradora Ela de Castilhos escreveu sua tese de doutorado nos anos 90, mostrou que menos de 10% dos casos de crimes de colarinho branco era objeto de condenação em Pindorama. Por que hoje isso mudou? Por uma razão simples: naquele momento os órgãos repressivos-investigativos eram competentes para lidar com os crimes ligados à interindividualidade ( o lado A da crise). Sempre foi mais fácil provar coisas quando o réu era pobre e os crimes daqueles-cometidos-por-pobres. No momento em que, dos anos 2000 para cá, houve um aprimoramento da Policia Federal e do Ministério Público, começou a mudar o cenário. No andar de baixo a coisa continuou como estava; o que começou a mudar foi a relação com o andar de cima.

Só a dogmática não se reciclou
Mas, o que não mudou? Só não mudou o imaginário dos juristas. No processo penal, continuou-se a escrever, grosso modo, as mesmas coisas. Poucas foram as analises criticas, no sentido paradigmático da palavra (não me refiro aos discursos panfletários). E tem sido quase zero a preocupação com a filosofia no processo, isto é, a discussão das condições de possibilidade de o judiciário apreender o fenômeno e... decidir. Não nos preocupamos com a decisão. Por incrível que pareça — e isso parece risível — somos tão atrasados que até mesmo o projeto do novo Código de Processo Penal (que tramita a passos de cágado no Parlamento) insiste na tese da livre apreciação da prova.

Ora, deveríamos ter iniciado no dia 5 de outubro de 1988 uma filtragem nos Códigos. Mais, fundamentalmente, deveríamos ter feito uma filtragem nas posturas dos juristas. A CF/88 mudou o alvo. Lamentavelmente, pouquíssimo se alterou na dogmática processual-penal. Até hoje tem gente que escreve sobre processo penal ainda defendendo o sistema inquisitivo. Foi muito lenta a apropriação do novo. Lembro a batalha que travei, em conjunto com a 5ª Câmara do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, para implementar a tese do interrogatório como meio de defesa. Fiz inúmeros pareceres sustentando a nulidade de interrogatórios que não traziam a presença do advogado. De forma pioneira, a 5ª Câmara anulou centenas de processos. O Ministério Públicorecorria contra meus próprios pareceres. E o Superior Tribunal de Justiça anulava as anulações, sob o argumento de que o CPP não exigia a presença de advogado. Lembro que, em 2004, quando veio a Lei 10.792/2003, escrevi: os juristas não acreditaram até agora na CF que prevê a ampla defesa; mas agora acreditam na nova Lei.Aleluia. Não era dramático?

Há marcos rupturais?
Alexandre Morais da Rosa diz que a "lava jato" é um marco. Eu diria que a “coisa” começou um pouco antes, na Ação Penal 470. Escrevi várias colunas na ConJur mostrando que a maior derrotada na AP 470 foi, exatamente, a dogmática jurídica. Seus elementos centrais foram destroçados do mesmo modo que o escrete canarinho o foi pela seleção alemã na Copa passada. Quando viram, estava 5x0. E assim foi com a AP 470. Aquilo que a dogmática pregava e ensinava a vida toda foi liquidada paradoxalmente pelo mesmo esquema tático que a sustentou: a livre apreciação da prova e a busca da verdade real (que tem em seu ponto de estofo o velho inquisitivismo e, portanto, as respostas teleológicas). Sim. Há décadas que os livros de processo penal ensina(ra)m aquilo que foi utilizado como arma contra os próprios ensinadores e utentes em geral. É duro, mas foi o que ocorreu.

De fato, é nesses hard cases da vida (real) que os juízes revelam suas convicções pessoais sobre o direito, não esquecendo que também houve uma profunda renovação nos quadros da magistratura e do Ministério Público. A questão é saber se o direito coincide com as convicções pessoais dos juízes (e dos promotores). Entendem o que quero dizer? O que apareceu, tanto na AP 470 como na "lava jato" (e isso se estende ao restante do direito)? Simples. Apareceu aquilo que venho denunciando há muito tempo: A visão pessoal do judiciário acerca do problema e seus efeitos colaterais em uma sociedade fragmentada. Ou seja, indagou-se ao judiciário o que o direito tem a dizer sobre esses fenômenos e ele respondeu o-que-cada-membro-do-judiciário-pensa-sobre-tudo-isso. Claro que ele já fazia isso desde sempre. Só que, agora, pegou em outro alvo. Essa talvez seja a parte mais difícil de compreender na teoria do direito: a de que, antes dos juízes, existe uma estrutura chamada “direito” e que, por vezes, não diz exatamente a mesma coisa que cada juiz pensa. Esse é o locus da doutrina jurídica: fazer essa transição paradigmática entre o direito (estrutura) e o imaginário dos operadores. Observe-se: esta análise transcende os hard casesem tela. Não pretendo, assim, “julgar os julgamentos”.

Onde e quanto sapato aperta em novos pés
Por que digo isso? Porque, quando o sapato aperta (em novos pés), quando o caso e os argumentos que os concebem assim o exigem, os juízes acabam dizendo o que pensam sobre a apreciação da prova, do convencimento, da formação da opinião. O problema é que, por vezes, isso fica aquém ou além da estrutura chamada “direito” (que é feito pelo parlamento). Quando surge um “decido conforme minha consciência”, ou um “não me importa o que diz a doutrina” na voz da linguagem pública, é porque a doutrina já fracassou de há muito... se é que me entendem.

Ou seja: vai tudo muito bem até que o direito (uma instituição fundante da democracia) deixa de ser um direito, para ser aquilo-que-o-juiz-entende-por-direito. É, por exemplo, quando se prende e se solta com base no mesmo argumento. Pois é: Se tudo é, nada é. Acredito que isso tudo pode ser resumido assim: enquanto a “clientela” era a patuleia, a dogmática jurídica se indignava no atacado; mas quando a “clientela” passou a ser um “não-patuleu”, a dogmática passou a se indignar no varejo. Só que já é(ra) tarde. Aqui entra a pergunta de Alexandre Morais da Rosa.

Então, como ensinamos?
Pois esse é o ponto central para a resposta à pergunta de Alexandre Morais da Rosa. Como ensinamos processo até hoje? Simples: Ensinamos processo a anos-luz dos paradigmas que conformam o mundo. Ninguém mais fala no esquema sujeito-objeto. Mas, no direito, sim. Só que é ainda pior. Não só falam no esquema sujeito-objeto (subjetivismo-solipsista) como ainda tem gente escrevendo sobre verdade real, que é uma “verdade” pré-moderna, em que, se quisermos lidar com os fatores S e O, seria O>S, um objeto que (ainda) assujeita o sujeito. É complexo isso? É. Muito. Mas se continuarmos a achar que direito é coisa simples — como querem setores importantes da dogmática jurídica — teremos que aguentar isso tudo-o-que-vemos-cotidianamente.

Um sintoma que mostra a crise claramente
Outro sintoma que demonstra a minha tese da crise de dupla face: a tal da ponderação. Esse sintoma desnuda a crise de dupla face. Sempre a denunciei (a ponderação) como sendo uma tese caudatária do subjetivismo. Inúmeros juristas — alguns que hoje se queixem da "lava jato" e se queixaram da AP 470 — escreveram ou ensina(ra)m nas salas de aula que o juiz pode fazer ponderação entre direitos individuais e interesses coletivos, citando, para isso, Alexy. Dramaticamente equivocados. Quantos acusados já foram condenados com base na ponderação (mal feita)? Sem fazer qualquer passagem pelas fases complexas do processo de “ponderação”, o judiciário simplesmente pega um “valor” (sic) em cada mão e, fiat lux: escolhe um deles, no mais das vezes o “valor público”, que seria o interesse da coletividade. Só que esquece(ra)m que Alexy nunca disse isso. E o ônus argumentativo? Ninguém fala disso? Sabem por quê? Porque a dogmática nunca se preocupou com isso. Coagulou os sentidos e se fechou em um monastério. A dogmática jurídica quer ser prática. Mais importante que estudar e pesquisar, é ter bons contatos na República. É conhecer os caminhos das pedras... Pois é.

Insisto: Enquanto o modelo investigatório-probatório tratava de alcançar a malta, a dogmática quedou-se silente. Agora, quando se alcançam outros setores, a “coisa pega”. Louvo a preocupação de Alexandre Morais da Rosa. Bingo. Apenas acrescentaria que: não se ensina depois... porque não se ensinou antes... Essa luta é paradigmática. E foi perdida. Pela própria dogmática jurídica. Porque exatamente cumpriu o vaticínio da crise de paradigmas de dupla face: preparada para enfrentar os conflitos interindividuais, não se preparou para os grandes embates. Não se preparou para o dia em que o jogo poderia virar, com novidades como delação, etc.

Tudo isso que disse acima posso comprovar epistemicamente (e empiricamente). Quando saiu a Lei das Interceptações — lá em 1997 —, escrevi acerca do perigo de se usar esse mecanismo como inicio e não comoultima ratio. Poucos se preocuparam com isso. A própria delação premiada merec(er)ia uma filtragem constitucional, conforme delineei alhures, para que ela não fosse utilizada igualmente como unica ratio e como instrumento de pressão. Ali está(ria) uma inconstitucionalidade. Como sempre, a dogmática decidiu esperar o que o judiciário diria... Sempre uma volta ao velho realismo jurídico. O direito se faz mesmo é... na decisão. O fantasma de Holmes, Alf Ross, Olivecrona... estão presentes.

Quando surgiu a lei que alterou o artigo 212 do CPP, fui o primeiro a escrever e lutar no tribunal para que fosse aplicado, porque ali estava o inicio da implementação do sistema acusatório. E ali estava também uma possibilidade de ruptura com a velha teoria das nulidades. Fui à luta. Fiz críticas à doutrina de Luiz Flávio Gomes e Guilherme Nucci que defenderam a não necessidade de aplicar, dizendo que o novel dispositivo nada havia alterado na estrutura do CPP. Diziam ambos que isso acarretava apenas nulidade relativa, como se estivéssemos no século XIX. Também critiquei o STJ e o Supremo Tribunal Federal. E quem esteve no Congresso da ABDCONST realizado depois da lei deve se lembrar do repto que fiz ao STF e a um dos ministros presentes acerca do sentido dos limites semânticos da lei. Está lá gravado. E a dogmática jurídica quedou-se silente. Posso matar a cobra e mostrá-la morta.

Enfim, esse quadro de crise paradigmática de dupla face faz com que, hoje — e esse é o ponto nevrálgico — os direitos, as garantias processuais não dependam de uma estrutura chamada direito (conceito aqui já explicitei ad nauseam), e, sim, do solipsismo judicial, que por sua vez possui ancoragem nas fragmentadas decisões judiciais. Para o bem e para o mal. Afinal, há decisões para todos os gostos. As decisões passam a ser, cada vez mais, teleológicas (decide-se e, só depois, busca-se uma justificativa) e não de principio. Não quero ser o descobridor da pólvora, mas tenho insistido, com chatice epistêmica, que as decisões judiciais devem ser proferidas por princípios e não por políticas. E que precisamos de uma teoria da decisão. Antes de uma decisão por decisão, um modo de como esta deve ser feita.

Para ser bem claro: Se, por exemplo, o paciente reúne as condições de receber habeas corpus — aferíveis objetivamente em face da estrutura chamada “direito” — por mais que seja antipático ou politicamente incorreto a sua soltura, o judiciário deve conceder o writ. Mesmo que a mídia berre. Porque a decisão na democracia é por principio. Por mais tentador que seja agir por política. Mas, infelizmente, a própria dogmática jurídica cavou o seu buraco. Admite até hoje a livre apreciação. Logo, se esta é livre, pode ser contra ou a favor. E logo depois se justifica o que foi decidido intuitivamente... Por isso, em casos que envolvam forte atuação da mídia, cada vez mais as decisões são teleológicas. Finalísticas.

Mas não ponho a culpa no Judiciário. Fazemos parte de uma coisa maior, que é o imaginário jurídico no interior do qual nos localizamos. E agimos. E não reagimos. Do professor da faculdade tipo-balão-mágico, que não sabe um ovo do que ensina, até o professor de cursinho que encanta as plateias com refrões resumidinhos, até a pós-graduação que, em parte considerável de programas, ainda repete conteúdos da graduação, com dissertações e teses sobre embargos, limitação de fim de semana, estelionato, cheque sem fundo ou agravo, com temas monográficos que recebem uma flambagem teórica do tipo “regra é no tudo ou nada, princípios é na ponderação”. Tem exceção? Claro. Muita. Mas parcela considerável do ensino e das práticas nos mostra esse quadro tão bem pintado por Alexandre Morais da Rosa. Só que minha resposta tenta pegar a origem disso tudo.

O problema é que o judiciário já se acostumou...
Parece que a discussão das garantias processuais, antes tão distante do andar de baixo (veja-se que a maioria dos tribunais estaduais ainda usa a inversão do ônus da prova para crimes do tipo cometido-pela-patuleia), está provocando, dialeticamente, o andar de cima. Violações são condenáveis nos dois andares. Só há um modo de combater isso: decidindo por princípio,como explicito em Verdade e Consenso. E, para tanto, necessitamos de uma doutrina adequada.

Se na primeira pedalada a-paradigmática nas garantias a doutrina tivesse feito os necessários constrangimentos (que devem atuar nas faculdades, cursinhos, livros, conferencias, seminários, etc), não teria sido formada uma “certa tradição”... se me entendem o que quero dizer. Ou seja, o problema é que o judiciário já se acostumou a julgar conforme a sua livre apreciação acerca dos fatos e da lei. E, hoje, todos pagam o preço:
o andar de baixo, por ser da tradição de um país de modernidade tardia; e
o andar de cima, pelo desejo que o judiciário tem de tentar corrigir aquilo que a política não vem conseguindo.

Só que esta tarefa não é dele.

Numa palavra final
O quadro pintado por Alexandre Morais da Rosa está correto no plano de uma análise realista. É assim mesmo que as coisas estão indo. E a saída que ele propõe também tem fortes traços de realismo jurídico, isto é, a decisão é, ao fim e ao campo, um problema do judiciário e assim devemos nos preparar para enfrentar esse fenômeno de poder. Mas, aí é que está: eu não consigo conceber que o problema da decisão se transforme em um jogo de poder ou seja resolvida como se fosse (algo tipo als ob). Se, de fato, for um jogo de poder, temos de confessar o fracasso da doutrina e de tudo o que ela representa em termos de “constrangimentos epistemológicos”. É como se, no nosso cotidiano, os sentidos das coisas só nos surgissem no momento em quelidássemos com elas e não a partir de um a priori compartilhado que, é claro, também inclui o encontro com essas coisas. Mas não são essas coisas (no caso, as decisões) que me impingem o que a coisa (o sentido do direito) é. Toda concepção que possui traços realistas inexoravelmente flerta com alguma forma de objetivismo. As decisões não são a fotografia do direito, assim como a filosofia não é o espelho da natureza, para usar uma expressão conhecida.

A partir do diagnóstico de Alexandre Morais da Rosa, haveria uma polarização que opõe um modelo “continental” de estudo do direito (identificado a partir de uma perspectiva epistemológica mais abstrata e sistemática, centrada na resolução dos problemas normativos) a um modelo anglo-saxão, de conotação realista (cuja identificação pode ser retratada a partir de um corte mais pragmático, assistemático, centrado num tipo de análise que permita avaliar as condições sociais e psicológicas que envolvem o processo decisório para — tentar — fazer projeções de como serão decididas os casos futuros semelhantes).

A questão posta, portanto — a partir de um olhar hermenêutico — não pode ter como resposta um realismo de nova roupagem, que continue a descrer da possibilidade de uma concepção de direito que preexista à decisão judicial e que deve conformar o caso, com um efetivo grau de autonomia. Ora, se hoje temos esse mosaico sincrético de tradições no âmbito do processo penal, como bem denuncia Alexandre Morais da Rosa, isso se dá justamente porque, nos últimos dez anos, o campo majoritário do direito no Brasil acabou seduzido pelo canto das sereias do realismo jurídico. O que seria essa volta a uma espécie de realismo? Simples: nele, os sentidos do direito decorrem e se dão predominante... na e pela decisão judicial; eis o porquê do crescimento do direito “jurisprudencial” em Pindorama; eis o porquê da paixão do novo Código de Processo Civil (CPC) pelos precedentes.

Claro que a solução do problema não está em colocar o modelo conceitualista-sistemático como o método privilegiado de análise do direito. Insisto: a resposta à questão exige uma reflexão que consiga apontar para uma dimensão mais complexa do que aquela que resulta(ria) de uma simples opção por um modelo ou outro. Trata-se de conseguirmos construir uma verdadeira terceira via. Algo que, na verdade, já está aí: no pós-positivismo de Friedrich Müller, na teoria integrativa de Ronald Dworkin e, permito-me dizer, também na Teoria da Decisão que proponho em Verdade e Consenso — que faz uma antropofagia de Gadamer, Dworkin e Müller, de alguma forma) e outros tantos livros. Mas esse encontro precisa acontecerlogo, sem esperas ou demoras.

Desculpem-me pelo tamanho da coluna, mas o texto de Alexandre é absolutamente instigante. E é só o começo de uma longa discussão.


Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados:www.streckadvogados.com.br.



Revista Consultor Jurídico, 9 de julho de 2015, 8h00

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...