Li na revista eletrônica Consultor Jurídico, no último domingo (1/3), belíssima entrevista feita por Sérgio Rodas e Otavio Luiz Rodrigues Jr com os Professores alemães Reinhard Zimmermann e Jan Peter Schmidt. A manchete já diz tudo: "Princípios do Código Civil não autorizam juiz a atropelar a lei" (clique
aqui para ler). Dizem:
“Mas, claro, as cláusulas gerais têm uma grande desvantagem, na medida em que elas criam incerteza jurídica e talvez deem muito poder ao juiz. Dito de outro modo: talvez as cláusulas não deem tanto poder ao juiz, mas o juiz pode acreditar que agora ele tem muito poder.
Complementando, dizem:
“Então, ele pode ir longe demais nos seus poderes discricionários. E isso é algo que pode ser observado hoje em dia em alguns tribunais brasileiros, quando determinados juízes revelam uma certa tendência a desprezar as normas específicas que foram promulgadas pelo legislador, e, em vez disso, preferem se basear diretamente no princípio da boa-fé, por exemplo, e recorrer a ele para solucionar o caso, mesmo se a solução for contrária ao que a norma específica diz.
Para fechar:
Então, na realidade, eles invertem as decisões que o legislador tomou. E o objetivo das cláusulas não é dar poder ao juiz para prevalecer sobre o legislador”.
A reportagem é um balde de água fria no pan-principialismo da terra de Santa Cruz. É um petardo contra o uso inadequado das cláusulas gerais do Código Civil. Despiciendo dizer que adorei o conteúdo da entrevista. Afinal, para um jurista nativo que de há muito diz a mesma coisa e bate nessa tecla, ler isso dito por eminentes professores alemães é um bálsamo, mormente pela síndrome de Caramuru que assalta as mentes pindoramenses, em que tudo que vem de fora é melhor. Pois aqui estou usando “os de fora” para confrontar o que representa o pensamento dominante hoje, que, por acaso, diz-se “baseado na doutrina que vem...de fora”. Meu esquema, aqui, é 4-5-1 (com três volantes de contenção).
Há mais de década que denuncio o que Zimmermann e Schmidt (ver nota 5) disseram na entrevista em liça. E em Verdade e Consenso, nas diversas edições, deixei isso bem claro ao comentar as cláusulas gerais do Código Civil.
Sempre afirmei que o pan-principialismo e o ab-uso das (e nas) cláusulas gerais vinha de uma equivocada interpretação da jurisprudência dos valores e da tese alexyana de que princípios são mandados de otimização. Enfim, sempre sustentei o equívoco da tese de que “princípios são valores”,verbis:
“(...) é equivocada a tese de que os princípios são mandatos de otimização e de que as regras traduzem especificidades (em caso de colisão, uma afastaria a outra, na base do “tudo ou nada”), pois dá a ideia de que os “princípios” seriam “cláusulas abertas”, espaço reservado à “livre atuação da subjetividade do juiz”, na linha, aliás, da defesa que alguns civilistas fazem das cláusulas gerais do novo Código Civil, que, nesta parte, seria o ‘Código do juiz’”.
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Bingo!
Também de há muito digo que “parcela considerável dos doutrinadores civilistas brasileiros trilha pelo caminho de entender o novo Código Civil como um sistema aberto, em face, principalmente, da adoção das cláusulas gerais”. E me valho da contundente análise crítica elaborada por Otavio Luiz Rodrigues Jr, ao que denomina de colonização do Direito Civil por uma visão distorcida do conceito de “constitucionalização do direito privado”:
“Começa-se a usar de conceitos e ferramentas típicas da análise econômica do Direito e a se falar em ponderação ou sopesamento de princípios e valores, bem ao gosto, respectivamente, dos escritos de Richard Posner e Robert Alexy. Experimentam-se, nesse cenário, situações de desagradável sincretismo metodológico, importação e apropriação inadequadas de conceitos e de categorias, tudo em nome de argumentações grandiloquentes, que, muita vez, escondem falácias, jogos de palavras ou vazios de fundamentação. (...) Quando se diz algo como ‘o novo Direito Civil busca os princípios e não a letra fria da lei’ ou ele se ocupa ‘da Justiça e não da Lei’, faz-se uma brutal confusão entre o problema de o Direito ter um referencial externo (a Justiça, a Legitimidade, o Bom, o Moral) de correção de suas normas e a forma como o Direito é estudado. (...) Nesse sentido, ‘a existência de conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais na Constituição, o que é esperável dada sua natureza normativa específica, é campo fértil para a ação dos interessados no arbítrio e no abuso da discricionariedade judicial. Se foi possível realizar demagogia judiciária com base em elementos do próprio Direito Civil, agora isso é feito com a invocação do texto constitucional’”.
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Mais ainda, sempre disse, tanto em Verdade e Consenso como emHermenêutica Jurídica e(m) Crise, que
“pensar assim é fazer uma concessão à discricionariedade positivista, o que pode ser facilmente percebido em assertivas do tipo ‘a lei [o Código Civil, na parte relativa às cláusulas gerais] confia ao intérprete‑aplicador, com absoluta exclusividade e larga margem de liberdade, a inteira responsabilidade de encontrar, diante de um modelo vago, a decisão justa para cada hipótese levada à decisão judicial’
3” (grifo meu).
Enfim, é em vários textos venho afirmando que não parece democrático delegar ao juiz o preenchimento conceitual das assim chamadas “cláusulas gerais” (a mesma crítica pode ser feita ao uso da ponderação para a “escolha” do princípio que será utilizado para a resolução do problema causado pela “textura aberta da cláusula”). Ao lado disse, critiquei sempre com veemência essa praga contemporânea representada pela Lei-com-nome-chocolate (LINDB). Ela é o sintoma do atraso da teoria do direito em Pindorama.
Por tudo isso vem bem a calhar a crítica de Zimmermann e Schmidt em sua incursão na terra de Santa Cruz. Para quem quer compreender as críticas e avançar na discussão lendo nossas objeções ao pan-principialismo, basta ver o que tem sido feito em nome da “abertura” do direito civil, dos valores a serem descobertos ao-se-cavar-debaixo-das-cláusulas-gerais e da construção desenfreada de “princípios” que nada tem de normatividade como “felicidade, afetividade e a superafetação da dignidade da pessoa humana”, pelos quais hoje é possível decidir de qualquer modo. Em nome da “abertura principiológica”, criaram-se princípios como do poliamorismo, para reconhecimento de relação de união estável para a concubina concorrer a herança do falecido; princípio da paternidade responsável pelo qual a responsabilidade começa desde a concepção até que seja pertinente um acompanhamento dos filhos pelos pais; princípio da solidariedade familiar, pelo qual o Poder Público, bem como a sociedade, devem promover políticas públicas para garantir as necessidades familiares de pobres e excluídos (isso tudo pode ser bom...mas judiciário não tem a chave do cofre; e mais: atende-se a alguns e o restante fica a ver navios; eis a diferença entre atitudes ad hoc e políticas públicas!). Nessa linha ultra-ativista, dá-se três mães a uma criança e/ou dois ou três pais (fora os avós); estende-se licença-maternidade por três ou quatro meses porque a mãe teve trigêmeos; licença maternidade para homem que adotou gêmeos com licença dobrada; concede-se usucapião de terras públicas em nome da dignidade da pessoa humana (até a caça se proíbe com base nesse super-princípio), que, também serve para fundamentar sentenças cíveis em acidente de trânsito, reconhecimento da competência da Justiça do Trabalho para julgar ações de terceirizados contra a União
4, inadimplemento de obrigações, elasticidade para reconhecimentos de assédio moral, alteração de função de trabalhador em ofensa à convenção coletiva, reintegração de posse (afinal, qual é a reintegração que não viola alguma “dignidade”?),
5 alteração de prenome
6, cerceamento de defesa, manutenção – ou cassação - de prisão preventiva (sim, isso vai até ao processo penal) e tantos outros exemplos colhidos de uma rápida pesquisa nos ementários eletrônicos de vários tribunais brasileiros. E isso só para citar algumas das coisas que vem sendo feitas em nome da “abertura valorativa-principiológica” que predomina no direito civil, mas que se espraiou por outros campos, mormente a partir do neoconstitucionalismo e o uso desenfreado da ponderação de “valores” (sic) ou de “interesses” (sic).
Quando alguém como eu protesta dizendo que existem limites interpretativos e clamo, ancorado v..g., em Elias Diaz, por uma “legalidade constitucional”, sou taxado de “conservador” e “positivista” (sic) por querer defender “a letra – sic - do Código Civil” (ou de outros Códigos). Onde se viu clamar pela obediência de uma sinonímia em uma lei? Onde já se viu querer que “onde está escrito ‘perguntas complementares” se leia...”perguntas complementares”, que, como se sabe,...sempre vem...depois”? Nem mais respondo a isso. Já muito escrevi sobre esse tema. Apenas quero dizer que, em uma democracia, todo poder emana do povo, por mais mal que esse povo possa ter votado, elegendo deputados irresponsáveis, etc, etc. O poder não emana do Poder Judiciário. Por vezes – ou na maioria das vezes – ao praticarmos e incentivarmos ativismos, não estamos fazendo mais do que tutelar o povo. Claro. A malta vota mal (e, é claro, nós votamos bem! Nós somos os esclarecidos!). Logo, temos que “protegê-la” dela mesma, delegando o poder de decidir para além do que o legislador decidiu. De novo, antes que alguém me acuse de exegetista ou originalista, sugiro a leitura do texto “Aplicar a ‘letra da lei’ é uma atitude positivista?” (clique
aqui para ler). Não me façam nenhuma crítica sem ler esse artigo. Essa discussão é recorrente também em meu Lições de Crítica Hermenêutica do Direito (Livraria do Advogado, 11ª. Ed) e Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica (4ª. Ed, RT). Não me aventuro a dizer frases soltas e sem contexto, sem invocar a própria tradição que ajudei a construir. Não parto, pois, de algum grau zero de sentido.
Antes de concluir, mais uma ou duas palavras. Ao me alegrar com a entrevista de Zimmermann-Schmidt
7 e também reivindicar as alvíssaras pela originalidade de minhas críticas, não pretendo agir como o “sábio incompreendido”. Disso não podem me acusar. Quero apenas por ênfase na luta que não é apenas minha, mas cuja bandeira tenho sustentado a duras penas contra o pensamento pseudomajoritário de quem compreende o Direito como algo “fácil”, “dúctil”, “entre amigos” e que pensa que o direito não comporta limites e que tudo passa pela consciência do intérprete e por aquilo que ele acha “justo” (um justômetro?). Pois é. Justo para quem, eis a questão.
Devemos isso não aos acadêmicos, muitos dos quais já desertaram de suas missões, tão bem descritas por Zimmermann, mas ao povo humilde, à malta, ao trabalhador que é defraudado em seus direitos e busca no Direito uma resposta. O que quero dizer? Simples. É que em tempos de ditadura, era admissível desconfiar de uma lei elaborada por militares autocratas. Já na democracia, ainda que o espaço de cooperação entre os Poderes haja se ampliado, ao exemplo das medidas provisórias ou das ações de descumprimento de preceito fundamental, permanece no Parlamento a centralidade da legisferação democrática.
Não podemos converter cada unidade jurisdicional brasileira em uma “microconstituinte” ou nela encontrar um “código” particular. Democracia pressupõe igualdade e essa pressupõe conhecer o direito e vê-lo aplicado isonomicamente para o cidadão de Rio Branco ou do Alegrete. Os tempos passam, mas não se pode esquecer que uma revolução começou em 1789 em larga medida porque os súditos não aguentavam mais se sujeitar a magistrados que decidiam conforme suas consciências e em nome de “costumes” que só eles sabiam interpretar. Desculpem-me, mas isso precisa ser dito, mesmo que a grande maioria tenha medo em fazê-lo.
Meu discurso é antigo e tem encontrado, aqui na coluna Senso Incomum, uma refinada compreensão de muitos leitores que me acompanham desde seu início. E não posso deixar de me alegrar quando vejo também o reconhecimento da crítica pan-principiológica no Supremo Tribunal Federal, especialmente no já clássico acórdão do ministro Dias Toffoli sobre a investigação de paternidade. No RE 363.889, corajosamente e contra o lugar-comum, Toffoli fez um longo repúdio ao uso indiscriminado da dignidade humana e dos princípios como “tropo retórico”. Na fundamentação, eu me encontrava ao lado de Antonio Junqueira de Azevedo e João Baptista Vilella. Ideologicamente antípodas, mas, como eu, fiéis ao rigor metodológico. Também fico feliz quando leio no acórdão do STF (Recl 2645), relatoria do Ministro Teori Zavaski, a encampação implícita do que venho dizendo com minhas seis hipóteses (Jurisdição Constitucional e Decisão Juridica, op.cit) pelas quais uma lei pode não ser aplicada. Diz o STF: não se pode negar a aplicação de uma lei sem antes declarar formalmente a sua inconstitucionalidade. Bingo de novo. Não é fácil ser profeta em sua própria terra. Que as palavras de Zimmermann-Schmidt possam atrair mais pessoas para esse tipo de reflexão.
E mais não preciso dizer. Basta ler a entrevista de Zimmermann e Schmidt. E os textos do Otavio Luiz. Bingo!
1 Cf. Verdade e consenso, 5. ed., Saraiva,2014, e nas edições anteriores.
2 Cf. RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz . Estatuto epistemológico do Direito Civil contemporâneo na tradição de civil law em face do neoconstitucionalismo e dos princípios. O Direito (Lisboa), v. 143, p. 43-66, 2011. Disponível em: https://www.academia.edu/9281885/ESTATUTO_EPISTEMOL%C3%93GICO_DO_DIREITO_CIVIL_CONTEMPOR%C3%82NEO_NA_TRADI%C3%87%C3%83O_DE_CIVIL_LAW_EM_FACE_DO_NEOCONSTITUCIONALISMO_E_DOS_PRINC%C3%8DPIOS
3Aqui faço uma crítica à doutrina de Frederico R. A. Neves, que simboliza o termo médio do que se diz sobre o assunto, in: Conceitos jurídicos indeterminados e direito jurisprudencial. In: Processo civil: aspectos relevantes. São Paulo: Método, 2006, pp. 85‑86.
4 Todos os exemplos não são fictos. Eles são casos concretos decididos. Apenas arrolo que este é do TRT-3-. Acórdão nº: 20150090760. Juiz Relator: Ivani Contini Bramante. 4ª Turma. 3-3-2015.
5 Alguém dirá que alguns dos exemplos que elenco (p.ex., o poliamorismo) tem a concordância de juristas-civilistas do porte de Pablo Malheiros e Luis Edson Fachin. Entretanto, isso não quer dizer que eles concordem com o modo como “isso está sendo feito”. O que quero ressaltar é que há um conjunto de autores do direito civil como Malheiros, Fachin, Paulo Lobo, Ricardo Aronne e Carlos Pianovski (entre outros) que não concordam com o uso indiscriminado e desfundamentado dos princípios no Direito e no Direito Civil. Também ressalvo, aqui, a contribuição de Ingo Sarlet, pelas críticas bem feitas ao uso indiscriminado da “dignidade”.
6 Idem nota 4: TJRJ. 19ª Câmara Cível. Apelação 0048246-59.2010.8.19.0038. Des. Ferdinaldo do Nascimento. Julgado em 06/12/2011.
7 Obviamente que não concordo com todas as teses de Zimmermann. Por exemplo, não tenho exatamente a mesma posição quanto à relação regra-princípio. Para mim, há momentos em que um princípio tem de ter o poder de derrogar uma regra (ou propiciar que se faça uma nulidade parcial sem redução de texto), caso contrário teríamos que deletar a tese de que princípios (também) são normas e que são deontológicos e não meramente teleológicos. Como já disse tantas vezes, princípios atuam (também) no código lícito-ilícito. Só que não são aplicados sem regras. E nem estas são aplicadas sem eles. Veja-se que na entrevista, Zimmermann e Schmidt concordam, por exemplo, que não se pode aplicar o principio da boa-fé diretamente, no que concordamos. Mas sobre nossos (des)acordos, farei coluna específica. Importa, aqui, é o “adversário epistêmico comum” que combatemos.
Revista Consultor Jurídico, 5 de março de 2015, 9h24