quarta-feira, 4 de março de 2015

STJ reconhece possibilidade de parceiro homossexual pedir pensão alimentícia



A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reafirmou a viabilidade jurídica da união estável homoafetiva e entendeu que o parceiro em dificuldade de subsistência pode pedir pensão alimentícia após o rompimento da união estável.

A posição da Turma reafirmou a jurisprudência adotada pelo STJ e pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em casos semelhantes. O entendimento unânime afastou a tese de impossibilidade jurídica do pedido adotada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) e determinou o julgamento de uma ação cautelar de alimentos.

O recurso foi proposto pelo parceiro que alega dificuldade de subsistência, pois se recupera de hepatite crônica, doença agravada pela síndrome da imunodeficiência adquirida (Aids) da qual é portador. Ele afirma que desde o fim da relação, que durou 15 anos, não consegue se sustentar de forma digna.

Após iniciar ação de reconhecimento e dissolução de união estável, ainda pendente de julgamento, o parceiro propôs ação cautelar de alimentos, que foi julgada extinta pelo TJSP em razão da “impossibilidade jurídica do pedido”.

Confronto

O tribunal paulista entendeu que a união homoafetiva deveria ser tida como sociedade de fato, ou seja, apenas uma relação negocial entre pessoas e não como uma entidade familiar. Tal entendimento, afirmou o relator Luis Felipe Salomão, “está em confronto com a recente jurisprudência do STF e do STJ”.

O ministro destacou que o Código Civil de 2002, em seu artigo 1.694, prevê que os parentes, os cônjuges ou companheiros podem pedir uns aos outros alimentos, na qualidade de sujeitos ativos e passivos dessa obrigação recíproca, e assim “não há porque excluir o casal homossexual dessa normatização”.

De acordo com o relator, a legislação que regula a união estável deve ser interpretada “de forma expansiva e igualitária, permitindo que as uniões homoafetivas tenham o mesmo regime jurídico protetivo conferido aos casais heterossexuais”.

Evolução jurisprudencial

Salomão destacou julgamentos que marcaram a evolução da jurisprudência do STJ no reconhecimento de diversos direitos em prol da união homoafetiva, em cumprimento dos princípios de dignidade da pessoa humana, de igualdade e de repúdio à discriminação de qualquer natureza, previstos na Constituição.

Tais casos envolveram pensão por morte ao parceiro sobrevivente, inscrição em plano de assistência de saúde, partilha de bens e presunção do esforço comum, juridicidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo, adoção de menores por casal homoafetivo, direito real de habitação sobre imóvel residencial e outros direitos.

Segundo Salomão, no julgamento da ADPF 132, o STF afirmou que ninguém, “absolutamente ninguém, pode ser privado de direitos, nem sofrer quaisquer restrições de ordem jurídica por motivo de sua orientação sexual”.

Com a decisão da Quarta Turma, afastada a tese da “impossibilidade jurídica do pedido”, o julgamento do processo continuará no tribunal de origem, que vai avaliar os requisitos para configuração da união estável e a necessidade do pagamento da pensão.

O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial.

Fonte: STJ

terça-feira, 3 de março de 2015

ESPECIAL: Norma coletiva que suprime ou limita horas de percurso tem ou não tem validade?





Fonte: TRT3


Horas in itinere (ou de trajeto) é expressão que designa aquele tempo gasto pelo trabalhador no percurso de casa para o trabalho, ida e volta, quando não há transporte público regular até o local de trabalho e a empresa fornece a condução. Se esse tempo leva à extrapolação da jornada contratual ou do limite legal de trabalho, ele deve ser pago como horas extras, sendo considerado tempo à disposição do empregador, embora não haja trabalho efetivo no período. A partir da publicação da Lei 10.243, em 19.06.2001 (que acresceu o parágrafo segundo ao artigo 58 da CLT), esse direito, antes consagrado apenas na jurisprudência (Súmula 90 do TST), passou a ser previsto na CLT.

Frequentemente, as categorias representativas do empregado e do empregador, por meio de acordo ou convenção coletivos, transacionam sobre o direito às horas in itinere. Existem normas coletivas que tratam especificamente desse direito, mas o mais comum é que essa regulação venha no bojo de alguma cláusula do acordo ou da CCT que disciplina outras esferas da relação de emprego. Algumas vezes, essas normas estabelecem limites para o pagamento das horas de percurso, fixados, por exemplo, com base na média do tempo gasto nos trechos percorridos pelo trabalhador. Outras vezes, o instrumento coletivo suprime o direito do trabalhador ao pagamento das horas de trajeto, concedendo ou não outras vantagens ao empregado como forma de compensá-lo. Nessas situações é que surge a pergunta: é válida a norma coletiva que limita ou suprime o direito do trabalhador às horas in itinere?

As Turmas do TRT mineiro têm entendimentos divergentes sobre a matéria. Confira:
Fixar média sim, suprimir não. 


A 2ª Turma do TRT-MG, por exemplo, em julgamento de recurso em que se discutiu a matéria, decidiu que a norma coletiva que suprimia o direito às horas itinerantes não poderia prevalecer, considerando válida apenas a norma que limita o direito, com a fixação de um tempo médio de percurso. Assim, por maioria de votos, reconheceu o direito de um trabalhador ao pagamento das horas in itinere, em relação ao período abrangido pelo ACT que excluiu o direito, modificando a sentença, no aspecto.

A juíza convocada Sabrina de Faria Fróes Leão, autora do voto que embasou a decisão, constatou que, no caso, existia norma em Acordo Coletivo de Trabalho (ACT) estabelecendo que a empresa fornecesse transporte gratuito para os seus empregados e que o tempo gasto no trajeto, do ponto de embarque ao local de trabalho, não seria considerado como à disposição da empresa.

Mas, de acordo com o entendimento da Turma, a norma coletiva não possui validade porque não pode suprimir direito assegurado em lei, especificamente no artigo 58, parágrafo segundo, da CLT e, ainda por cima, ligado à saúde do trabalhador. "Assim sendo e considerando que o ordenamento jurídico não admite a supressão, pura e simples, de direito previsto em lei, a ausência de remuneração pelo período de trajeto não pode ser objeto de negociação coletiva a partir da publicação da Lei 10.243/01", destacou a relatora. Ela ponderou que os instrumentos coletivos encontram limite no princípio da reserva legal (artigo 5º, inciso II, Constituição da República). Citou decisão do TST, no mesmo sentido da sua tese (TST-AIRR-18340-77.2009.5.18.0251, Ministro Relator Maurício Godinho Delgado).Verificando, no caso, o preenchimento dos requisitos para o direito às horas itinerantes (concessão de transporte gratuito pela empresa e local de difícil acesso, não servido por transporte público regular), a Turma deferiu ao trabalhador o pagamento das horas in itinere, no período abrangido pelo acordo coletivo.



Entretanto, a relatora observou que, a partir de determinado período, os ACTs não mais suprimiram o direito às horas itinerantes, mas apenas fixaram o tempo médio gasto nos trechos, o que, segundo os julgadores, não contraria qualquer regra de direito e está compreendido nas prerrogativas dos sindicatos (inciso III artigo 8º da Constituição Federal).

"O parágrafo 2° artigo 58 CLT determina as situações em que o tempo despendido no transporte é computado na jornada de trabalho. Essas situações podem ser objeto de negociação coletiva, desde que o direito não seja totalmente suprimido, nos termos dos artigos 619 e 620 CLT e inciso XXVI artigo 7º da Constituição Federal, que não contempla exceções. Nem existe violação de norma de ordem pública, porque o direito seria irrenunciável pelo trabalhador. No caso, foi apenas estabelecida a duração média do tempo de transporte, para facilitar o cumprimento dessa obrigação, pela empregadora, além de definir, de forma coletiva, o direito dos empregados", explicou a relatora.

Portanto, citando o princípio do conglobamento, de acordo com o qual não pode uma das partes, obrigada pelos termos do acordo ou convenção coletiva, concordar com as cláusulas que lhe são benéficas e rejeitar aquela que a prejudica, a Turma entendeu que a média do tempo despendido no transporte prevista nos ACTs deverá ser observada, pela regra do inciso XXVI artigo 7º da Constituição Federal. Assim, foi indeferido o pedido das horas in itinere, em relação ao período de vigência destes instrumentos coletivos. (0010127-27.2013.5.03.0165)
Direito disponível, negociação válida. 


Situação parecida foi analisada pela 9ª Turma do TRT-MG, mas o entendimento adotado pelos julgadores foi diferente. No caso, a Turma manteve o indeferimento do pedido do trabalhador quanto ao recebimento das horas in itinere, por entender que a norma coletiva que suprimiu o direito é plenamente válida.

O desembargador João Bosco Pinto Lara, relator do recurso do trabalhador, verificou que a matéria foi objeto de negociação coletiva, que estabeleceu o fornecimento do transporte pela empresa sem que se computasse na jornada o tempo gasto no trajeto. E, no entendimento da Turma, deve prevalecer o que foi expressamente acordado entre as categorias representativas das partes.

Para o relator, a negociação coletiva que resolve situação específica para as categorias interessadas é eficaz e compõe, com base constitucional, o interesse conflitante. "Constitui-se em ato jurídico perfeito, com eficácia reconhecida pela Constituição Federal (art. 7º, inciso XXVI). Cabe aos sindicatos "a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria" (CF, artigo 8°, inciso III), sendo que os convênios pactuados coletivamente, de supremacia inquestionável, constituem convergência de vontades, visando a otimização das condições de trabalho ofertadas pela categoria profissional que os subscreve, com concessões (reciprocidade no despojamento bilateral), onde ambas as partes renunciam a certas vantagens em detrimento daquelas que entendem mais benéficas. Restabelece-se, assim, o equilíbrio juridicamente almejado", ressaltou.

Ainda segundo o desembargador, a negociação coletiva supera o individualismo para favorecer a ótica do interesse coletivo, ou seja, da maioria: "A norma coletiva se baseia na realidade da categoria profissional, nascendo de concessões recíprocas, não cabendo ao julgador destacar quais são essas vantagens. O ajuste feito mediante acordo ou convenção coletiva possui força vinculante, e como tal obriga às partes convenentes".

Entendendo que se trata de direito disponível e, portanto, negociável, a Turma considerou válidos os acordos coletivos, concluindo, por unanimidade, serem indevidas as horas in itinere pretendidas pelo trabalhador. (0010289-41.2013.5.03.0094) 


Confira o entendimento de outras Turmas do TRT mineiro sobre a matéria:


PELO SIM PELO NÃO
HORAS IN ITINERE. NEGOCIAÇÃO COLETIVA. A Constituição da República reconhece os instrumentos coletivos como mecanismos disciplinadores das relações de trabalho, acolhendo a flexibilização das normas que regem o contrato de trabalho, conforme previsão contida em seu art. 7º, inciso XXVI. Se os sindicatos representantes das categorias econômica e profissional ajustaram determinadas normas - porque as entenderam benéficas para o conjunto dos seus filiados, não podendo estes, individualmente, se opor a avença firmada em nome de toda a categoria, sem com isso desequilibrar a relação contratual e quebrar o princípio do conglobamento que informa as negociações coletivas. Não se pode considerar o instrumento coletivo cláusula por cláusula, mas em seu conjunto, observando-se os benefícios que foram assegurados, em detrimento de algumas concessões. Se assim não fosse, o empregado teria as benesses e se insurgiria contra as normas que julga prejudiciais. Dois pesos e duas medidas. Na espécie, o regramento relativo às horas in itinere não contraria norma de higiene, saúde e segurança do trabalho. (TRT 3ª R Sexta Turma 0010770-04.2013.5.03.0094 RO - Relator Desembargador Jorge Berg de Mendonça) 

EMENTA: HORAS IN ITINERE - POSSIBILIDADE DE NEGOCIAÇÃO COLETIVA. Aos sindicatos e às empresas foi assegurado o poder de conformação da ordem jurídica por meio da negociação coletiva (art. 7º, XXVI, da Constituição da República), que constitui, inclusive, a forma preferencial de solução de conflitos coletivos (art. 114, §§ 1º e 2º, da Constituição da República). Neste contexto, é válida a cláusula de instrumento normativo que dispõe sobre o pagamento ou não de horasin itinere. Os instrumentos coletivos devem ser interpretados considerando o conjunto das condições ajustadas (teoria do conglobamento), tendo em vista as concessões mútuas, visando a atender interesses do empregador e da categoria profissional. ( 01800-2013-052-03-00-3 RO / 16/10/2014 - Turma Recursal de Juiz de Fora - Relator Convocado Manoel Barbosa da Silva) 

EMENTA: HORAS IN ITINERE. ACORDO COLETIVO DE TRABALHO. VALIDADE. Legítima a disposição coletiva que fixa o tempo despendido pelo empregado no percurso até o local de trabalho, para fins de pagamento das horas in itinere. As cláusulas normativas refletem a vontade das partes acordantes e devem ser observadas, sob pena de ofensa ao art. 7º, XXVI, da CR/88. (00052-2014-148-03-00-1 RO / 15/10/2014 - Nona Turma - Relator Desembargador Ricardo Antonio Mohallem) 

EMENTA: HORAS IN ITINERE - LIMITAÇÃO POR NORMA COLETIVA - VALIDADE. O entendimento majoritáio do c. TST no sentido de que deve ser considerada lícita a norma coletiva que fixa o tempo a ser pago em virtude do tempo despendido pelo empregado com as horas in itinere pois o estabelecido decorre de concessões mútuas firmadas no âmbito da referida negociação, o que não ofende o disposto no art. 58, §2º, da CLT (00249-2014-070-03-00-3 RO - 14/10/2014 - Oitava Turma - Relator Convocado Paulo Maurício R. Pires) 
EMENTA: HORAS IN ITINERE. SUPRESSÃO DE PAGAMENTO. INVALIDADE DA CLÁUSULA NORMATIVA. É inválida a cláusula normativa que suprime o pagamento das horas in itinere. Exegese dos artigos 1º, 58 §2º e 3º e artigo 9º da CLT, combinados com o caput do artigo 7º e incisos VI, XIII, XVI e XXVI, da C.R./88. Precedentes da SDI-1 do TST. (00776-2013-102-03-00-7 RO / 14/10/2014 - OITAVA TURMA - Relator Desembargador Sércio da Silva Peçanha) 

EMENTA: HORAS IN ITINERE - NEGOCIAÇÃO COLETIVA - LIMITES. O reconhecimento dos instrumentos coletivos encontra limite no princípio da reserva legal (art. 5º, inciso II, da CF/88), o que enseja a nulidade de cláusulas normativas que consagram a supressão de direitos previstos em lei. Ainda que a Magna Carta reconheça os acordos e convenções coletivas de trabalho em seu artigo 7º, inciso XXVI, a autonomia dada às partes não permite negociação acerca das horas in itinere, pois devem ser preservadas as garantias mínimas asseguradas aos trabalhadores urbanos e rurais (art. 7º, caput, CR/88). Com efeito, havendo expressa previsão legal quanto às horas in itinere (artigo 58, parágrafos 1º e 2º, da CLT), a cláusula elaborada em sede de negociação coletiva dispondo em sentido diverso, com a supressão do direito, não tem validade. Entretanto, a d. maioria entendeu que, mesmo havendo supressão das horas in itinere, deve-se prestigiar a negociação coletiva, vencido o relator no aspecto. (00084-2014-157-03-00-8 RO - 13/10/2014 - Quarta Turma - Julio B. do Carmo ) 

EMENTA: HORAS IN ITINERE - SUPRESSÃO - NEGOCIAÇÃO COLETIVA - Não encontram amparo legal as normas coletivas que suprimem o direito do trabalhador ao reconhecimento das horas itinerantes como tempo à disposição do empregador. Inválidas, portanto, ainda que sob a justificativa que outros direitos trabalhistas foram estabelecidos em favor dos trabalhadores. (00116-2012-086-03-00-0 RO - 13/10/2014 - Quinta Turma - Relatora Convocada Ana Maria Amorim Rebouças) 

EMENTA: HORAS IN ITINERE. NEGOCIAÇÃO COLETIVA. LIMITES. A constituição reconhece as convenções e acordos coletivos como legítimas fontes do direito do trabalho (artigo 7º, inciso XXVI). Não há dúvida de que também assegurou, mediante o artigo 8°, ampla liberdade sindical, com inegável fortalecimento das entidades representativas das categorias profissional e econômica. No entanto, esses dispositivos devem ser interpretados sistematicamente com os demais direitos e garantias fundamentais assecuratórios da dignidade do trabalhador. A transação dos direitos trabalhistas, por meio da negociação coletiva, não é irrestrita, encontrando óbice intransponível quando confronta com norma de ordem pública, cogente, imperativa, como é o caso das horas in itinere, nos termos do artigo 58, § 2º, da CLT. Esse instituto não se relaciona apenas à duração do trabalho, configurando igualmente medida de proteção à saúde e à segurança do trabalhador (artigo 7º, inciso XXII, da Constituição Federal), que são direitos timbrados por indisponibilidade absoluta, não comportando supressões, seja na esfera individual, seja no âmbito coletivo. Portanto, as cláusulas normativas que eliminam, parcial ou totalmente, a remuneração correspondente às horas de percurso devem ser consideradas nulas, por restringirem direito indisponível do empregado. (00048-2013-156-03-00-7 RO - 10/10/2014 - Primeira Turma - Luiz Otavio Linhares Renault ) 

Turma admite norma que autoriza desconto nos salários de caixas por cheques devolvidos



Os empregados de uma rede de supermercados de Santa Catarina podem sofrer descontos nos salários em decorrência de cheques devolvidos, caso não observem as normas internas para pagamento de compras de clientes. O procedimento da A. Angeloni & Cia. Ltda. foi considerado legal pela Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho, por haver previsão contratual e norma coletiva que autoriza o desconto.

Ao julgar ação do Ministério Público do Trabalho, o Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região (SC) determinou que a empresa se abstivesse de efetuar os descontos sem antes tentar a obtenção dos créditos mediante cobrança judicial dos próprios clientes. A multa pelo não cumprimento era de R$ 10 mil por desconto irregular.

A empregadora recorreu ao TST alegando que o procedimento se respaldava em regulamento interno relativo ao recebimento de valores, de conhecimento de todos os operadores de caixa, treinados para isso. A norma coletiva da categoria, por sua vez, prevê como única condição para a realização dos descontos a inobservância pelo trabalhador dessas regras. Assim, a decisão regional teria afrontado a norma constitucional do inciso XXVI do artigo 7º, ao negar reconhecimento às convenções coletivas.

A rede destacou ainda que a maioria dos cheques não compensados apresentam valores pequenos, o que tornaria inviável a utilização de cobrança judicial, pois as despesas processuais excederiam a importância contida a ser cobrada.

TST

De acordo com o ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, relator do recurso no TST, não se trata, no caso, de transferência do risco da atividade econômica do empregador para o empregado, como entendeu o Tribunal Regional. "Trata-se de responsabilização do empregado em virtude de ter agido com culpa no exercício de suas funções, o que ocasionou prejuízo ao empregador", assinalou.

O relator explicou que as regras do caput e parágrafo 1º do artigo 462 da CLT e o entendimento jurisprudencial do TST (Precedentes Normativos 14 e 61 e Orientação Jurisprudencial 251 da SDI-1) estabelecem como requisitos para realização de descontos na remuneração, especialmente quanto ao recebimento de cheques sem cobertura, apenas "o ajuste prévio entre as partes, seja individual ou coletivo, e o descumprimento de normas internas da empresa - circunstâncias verificadas no caso concreto". Ressaltou também que a Constituição da República consagra expressamente o reconhecimento e a validade das convenções e acordos coletivos de trabalho.

"Não se pode admitir que decisão judicial imponha ao empregador a obrigação de postular previamente em juízo os seus créditos, para apenas posteriormente efetuar os descontos salariais pertinentes ao recebimento de cheques devolvidos ou outros documentos - tíquetes sem validade, cartões de crédito ou débito sem assinatura, por exemplo -, quando o empregado, no exercício de suas funções, atua com culpa ao não observar as regras contidas em norma interna da empresa quanto ao recebimento de valores", afirmou o ministro. A decisão foi unânime no sentido de dar provimento ao recurso da empresa nesse ponto.

(Lourdes Tavares/CF)


Fonte: TST

Professora de natação infantil receberá adicional de insalubridade em grau médio






A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho não conheceu de recurso da Academia Be Happy Ltda., de Curitiba (PR), condenada ao pagamento de adicional de insalubridade em grau médio a uma professora de natação infantil por exposição excessiva à umidade, por permanecer por longo período dentro na piscina acompanhando as crianças.

O relator do caso no TST, ministro Vieira de Mello Filho, observou que a condenação se baseou em laudo pericial que concluiu pela insalubridade por exposição à umidade em local alagado ou encharcado, de acordo com o descrito no Anexo 10 da Norma Regulamentadora 15, do Ministério do Trabalho e Emprego. Segundo o perito, a professora permanecia exposta a condições caracterizadas como insalubres pelo contato com a água da piscina de forma habitual e em tempo suficiente para causar danos a sua saúde, em especial irritações dermatológicas.

Ação trabalhista

Na reclamação trabalhista, a professora alegou que, devido ao contato constante e por longos períodos com a água da piscina, a pele ficava ressecada e o corpo sofria com constantes choques térmicos. Também afirmou que contraiu alergias dermatológicas, como dermatite e candidíase.

A academia se defendeu afirmando que o trabalho da professora não trazia riscos a saúde, já que a jornada era reduzida, em ambiente fechado e climatizado e em condições sanitárias adequadas. O estabelecimento também ressaltou que a natação é atividade física saudável muito presente nas recomendações médicas, o que inviabilizaria o enquadramento da função de professora como trabalho insalubre.

O juízo da 10ª Vara do Trabalho de Curitiba decidiu com base no resultado da pericia, e condenou o estabelecimento a pagar o adicional de insalubridade em grau médio (20% sobre o salário vigente), conforme o artigo 192 da CLT. A Academia Be Happy recorreu ao Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região (PR), que manteve a condenação.

TST

Em nova tentativa, a empresa interpôs recurso de revista ao TST, alegando que o enquadramento da atividade insalubre em local alagado ou encharcado depende necessariamente da exposição permanente do profissional à umidade e da demonstração de que tal agente seria capaz de causar danos à saúde.

O ministro Vieira de Mello assinalou que, de acordo com a NR 15 do MTE, a insalubridade em locais alagados ou com umidade excessiva deve ser verificada por laudo de inspeção realizada no local de trabalho. "Portanto, o direito ao adicional não deriva do simples trabalho em ambiente impregnado de vapor de água ou molhado", observou, lembrando que o pressuposto da constatação pela perícia foi observado no caso.

As decisões trazidas pela academia para demonstrar divergência jurisprudencial foram rejeitadas pela Turma, por tratarem de situações diferentes da dos autos: uma tratava de exposição eventual à umidade, e outra de professor de educação física que ministrava também aulas de vôlei e basquete, sem referência a perícia para avaliar eventuais danos causados pelo contato com a umidade. Por unanimidade, a Turma não conheceu do recurso.

(Alessandro Jacó/CF)


Fonte: TST

Dois importantes precedentes judicias salvaram a inusitada semana






Flagrado, utilizando literalmente os “autos do processo”, o magistrado carioca que neste momento está em evidência de norte a sul do Brasil, bem revela como as nossas instituições, expostas pelos meios de informação, têm sido muito criticadas pela sociedade contemporânea.

Atitudes reprováveis isoladas, embora frequentes, comprometem a confiança que os cidadãos sempre depositaram no Poder Judiciário.

Sob o prisma jurisdicional, é certo, que a atual concepção de “processo justo” não tolera qualquer resquício de discricionariedade, até porque, longe de ser simplesmente “la bouche de la loi”, o juiz proativo de época moderna deve estar comprometido e zelar, tanto quanto possível, pela observância, assegurada aos litigantes, do devido processo legal

Não obstante, em nossa experiência jurídica, esquecendo completamente de que a celeridade deve servir às partes e não ao Estado, os tribunais, em várias situações, extrapolam as garantias processuais, passando a legislar em detrimento do direito material do litigante, como ocorre, por exemplo, no âmbito da famigerada jurisprudência defensiva.

Para salvar a semana, observo que dois importantes e recentes julgados foram estampados, na íntegra, no último boletim (n. 2.929) da operosa Associação dos Advogados de São Paulo, que bem demonstram a sensibilidade e os atributos que devem revestir, no Elogio de Calamandrei, “o talento do bom juiz”.

O primeiro deles, da 20ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP, no julgamento do Agravo de Instrumento n. 2092111-81.2014.8.26.0000, de relatoria do Desembargador Alberto Gosson, desproveu o recurso com fundamento na prudência e razoabilidade. Vale a transcrição parcial da precisa ratio decidendi: “A inviolabilidade do sigilo bancário é direito de extração constitucional (CF, art. 5º, incisos XII e X), que somente admite relativização em hipóteses excepcionais arroladas pela Lei Complementar n. 105/2001 e pela jurisprudência. Em interpretação da citada lei, como regra, não se permite o afastamento do sigilo em processos cíveis, mas somente para fins de investigação criminal ou instrução processual penal... E, com a mesma orientação, precedentes do STJ e do STF... A espécie, no entanto, até mesmo por tratar de matéria cível, não se amolda a nenhuma das hipóteses previstas na Lei Complementar n. 101/2005. No mais, deve ser levado em conta o princípio da ‘menor onerosidade da execução’, do qual se pode extrair que, mesmo admitida a quebra do sigilo em processo de execução, tal medida só poderia ser adotada em último caso, como ultima ratio, de maneira absolutamente subsidiária a todas as demais ferramentas postas à disposição do juiz para propiciar a satisfação da prestação. Não bastasse, a pessoa cuja conta bancária se requer a violação não é nem mesmo devedora da exequente, não constando da nota promissória nem integrando o polo passivo do processo. Ademais, não é razoável restringir um direito fundamental de primeira geração (dimensão), com base simplesmente em suposições de conluio, desprovidas de qualquer indício de prova, entre o devedor e terceiro, para obstaculizar a execução”.

Já o outro aresto, proferido no Recurso Especial n. 1.443.992-RJ, pela 1ª Turma do STJ, cujo voto condutor é da lavra do Ministro Ari Pargendler, recentemente aposentado, enfrentou questão processual emergente do polêmico art. 285-A do CPC, ensejando o provimento do recurso.

Recorde-se que esta regra legal (reproduzida no art. 332 do novo CPC: “improcedência liminar do pedido”) autoriza o juiz a proferir sentença de improcedência do pedido, quando, no mesmo juízo, o mérito, exclusivamente de direito, já tiver sido apreciado em outra demanda. Ocorre que nem sempre se torna fácil traçar nítida distinção entre matéria de direito e matéria fato, circunstância que reclama redobrada atenção do julgador. Nesse particular, o açodamento do juiz pode ferir a garantia da ampla defesa.

Foi exatamente o que sucedeu no precedente acima mencionado, constando da fundamentação do acórdão o seguinte trecho: “O pedido inicial, qual seja o de que o recorrente deixou de receber parcelas devidas a título de ‘quintos’ e ‘décimos’, tem dois pressupostos: - um, o de que o Conselho da Justiça Federal reconheceu-lhe o direito de incorporar à sua remuneração as aludidas vantagens funcionais; e – outro, o de que algumas das respectivas parcelas deixaram de lhe ser pagas. À evidência, o juiz federal substituto não poderia ter imprimido ao procedimento a tramitação do processo sem contraditório regular. Se é verdade que, tratando-se de servidora da Justiça Federal lotada na 2ª Região, o magistrado e o tribunal a quo poderiam ter conhecimento dos fatos alegados nesse âmbito, não lhes era dado presumir o que diz respeito à Seção Judiciária do Estado do Amazonas. A falta de pagamento de parcelas atrasadas constitui, portanto, fato que precisa ser provado”.

Desse modo, a turma julgadora, por unanimidade, conheceu do recurso especial e lhe deu provimento para anular o processo desde a sentença, “dando ensejo ao contraditório regular”.

Não é preciso enfatizar que as teses desenvolvidas em ambos os julgados são da maior relevância, tanto mais quanto se tenha presente o significado dos princípios constitucionais que exornam a garantia do devido processo legal, necessariamente assecuratória da plenitude de defesa.

Viceja destarte a instrumentalidade do processo como vetor institucionalizado em prol da efetivação do direito material.

Valeu a semana!


José Rogério Cruz e Tucci é advogado, diretor e professor titular da Faculdade de Direito da USP e ex-presidente da Associação dos Advogados de São Paulo.



Revista Consultor Jurídico, 3 de março de 2015, 10h22

"Aprovação da PEC da Bengala não é boa para o país", diz Luis Roberto Barroso



O ministro do Supremo Tribunal Federal Luis Roberto Barroso declarou ser contrário à PEC da Bengala (PEC 457/2005), que pretende aumentar para 75 anos a idade para a aposentadoria compulsória no serviço público.

Fazendo a ressalva de que sua opinião é “estritamente doutrinária, e não política”, uma vez que a decisão sobre proposta cabe ao Congresso Nacional, Barroso afirmou que a “aprovação da PEC da Bengala não seria boa para o país” por três razões.

A primeira é que, embora a Constituição Federal de 1988 não tenha estabelecido mandatos para os membros de tribunais superiores, a aposentadoria aos 70 anos acaba criando um “mandato natural”. Isso porque “a nomeação normalmente se dá entre os 55 e 60 anos, fazendo com que o ministro fique no cargo entre dez e 15 anos, que é uma média boa”.

O segundo motivo de Barroso é que a aposentadoria aos 75 anos iria tornar a magistratura menos atrativa, pois os novos juízes demorariam mais para se tornarem desembargadores. Para o ministro, isso afastaria os melhores profissionais da carreira.

Já a terceira razão busca preservar o STF, que é, de acordo com Barroso, “uma instituição consolidada, que serve bem ao país”. Assim, segundo ele, eventuais mudanças no funcionamento da corte deveriam “ter motivação institucional, e não politico-partidária”.

Medo do PT
A PEC da Bengala está sendo apoiada por congressistas da oposição ao governo Dilma Rousseff, que temem a possibilidade de o STF ter dez de seus 11 ministros indicados pelo PT em dezembro de 2018.

A proposta é defendida pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), que pretende submetê-la a votação em meados de março.


Revista Consultor Jurídico, 3 de março de 2015, 11h50

segunda-feira, 2 de março de 2015


"Princípios do Código Civil não autorizam juiz a atropelar a lei"


Zimmermann (esq.) e Jan Schmidt (dir.)

O Poder Judiciário brasileiro faz uso peculiar das cláusulas gerais doCódigo Civil, como a que exige a boa-fé nos negócios jurídicos e a que garante a função social do contrato. Com isso, decisões entram em choque com as leis, pois juízes as fazem com base nas suas visões de mundo. Essa é a opinião do jurista alemão Jan Peter Schmidt, pesquisador do Instituto Max-Planck de Hamburgo. Para ele, o Brasil deveria rever a função desses princípios e cláusulas gerais.

“O objetivo dessas cláusulas não é dar poder ao juiz para prevalecer sobre o legislador. A função delas é permitir que o juiz tome decisões razoáveis quando houver uma lacuna na legislação, para que, por exemplo, quando não houver normas, ele possa encontrá-las nas cláusulas gerais, que podem guiá-lo nessa direção”, afirma Schmidt.

Em dezembro de 2014, ele falou sobre o princípio da boa-fé objetiva no Ciclo de Estudos de Direito Privado Contemporâneo, organizado pelo Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e pela Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo, que congrega sete universidades brasileiras e duas europeias. O evento foi coordenado pelo professor titular Ignacio Poveda, secretário-geral da USP, e pelo professor doutor Otavio Luiz Rodrigues Jr, tendo contado a presença de mais de 30 professores de Direito Privado de diversas regiões do Brasil, além uma centena de estudantes de graduação e pós-graduação. 

O destaque do evento foi o professor Reinhard Zimmermann, catedrático da Universidade de Ratisbona, diretor do Instituto Max-Planck de Hamburgo e estudioso do Direito Romano e do Direito Privado Europeu moderno. Zimmermann é considerado um dos maiores nomes do Direito Privado Comparado no mundo e exerce importantes funções públicas ligadas à pesquisa e à docência na Alemanha, além de ter sido homenageado na África do Sul por seu papel na luta contra o apartheid nos anos 1980. Em São Paulo, ele foi recebido pelo reitor da Universidade de São Paulo, Marco Antonio Zago. Zimmermann falou sobre a dificuldade para que sejam criadas normas europeias de caráter mandatório para o direito interno dos Estados-membros da União Europeia. Antes disso, é preciso restabelecer uma cultura científica comum — algo que o jurista não acredita que acontecerá em breve. “Houve uma época em que muitas pessoas pensavam que nós iríamos gradualmente obter um Código Contratual, ou inclusive um Código Civil comum. E aí, nós estaríamos em direção a uma Europa com Estados federativos, talvez no modelo dos EUA. Porém, no momento, há um grande ceticismo em diversos países. Quando tentaram aprovar uma Constituição Europeia em 2005, a iniciativa falhou. Então, o clima na Europa é menos positivo hoje do que foi no passado”, opina o professor.

Em entrevista à revista Consultor Jurídico — da qual também participouOtavio Luiz Rodrigues Junior, professor doutor de Direito Civil da USP e ex-bolsista do Instituto Max-Planck de Hamburgo —, Schmidt e Zimmermann comentaram as semelhanças e diferenças entre os ordenamentos jurídicos do Brasil e da Alemanha, destacaram a importância do Direito Romano na formação dos advogados e criticaram a fragmentação do Direito Privado em códigos específicos.

A entrevista publicada na ConJur é uma versão condensada do conteúdo original, cuja íntegra será publicada no volume 4 da Revista de Direito Civil Contemporâneo, de julho-setembro de 2015.

Leia a entrevista:

ConJur — Quais são as semelhanças e as diferenças, em geral, entre os ordenamentos jurídicos do Brasil e da Alemanha? 
Jan Schmidt — Se olharmos para as leis, para a Constituição, para os tribunais, encontraremos muitas semelhanças, especialmente no Direito Privado. Nossa tradição é, basicamente, a mesma. É uma tradição que começa com o Direito Romano, e, mais tarde, evolui com o desenvolvimento do Direito Romano na Idade Média. Toda essa tradição veio da Europa continental para o Brasil. Então, se um advogado alemão chegar aqui e olhar para o Código Civil brasileiro, ele irá encontrar muitas, muitas semelhanças com o código alemão. A forma de estruturar as leis, a forma de pensar o Direito, os conceitos que são usados, tudo isso é muito similar, e podemos dizer que brasileiros e alemães pertencem à mesma família jurídica nesse sentido.

Por outro lado, há muitas diferenças na forma como o Direito funciona na prática. Por exemplo, uma significativa diferença, e que tem grande impacto na prática diária, é como os processos judiciais no Brasil demoram muitos anos até serem finalmente resolvidos. E o Judiciário brasileiro está sobrecarregado de processos. Em contraste, o Judiciário alemão – quando comparado com os de outros países, não só com o brasileiro – funciona de forma relativamente rápida, e é relativamente barato. Então podemos dizer que o acesso à Justiça é muito mais fácil na Alemanha. No Brasil, grande parte da sociedade tem um acesso muito pequeno à Justiça, também por causa da falta de recursos financeiros, da falta de conhecimento sobre os direitos que eles possuem. Por isso, eles não podem ir aos tribunais para reclamar seus direitos, porque eles nem sabem que direitos têm. Então, nesses aspectos, há muitas diferenças. A desigualdade social é muito menor na Alemanha do que no Brasil.

ConJur — Professor Zimmermann, o senhor estuda as normas da União Europeia. E elas estão se tornando mais complexas, regulando mais matérias. Quais são os limites à competência de legislar da União Europeia? E o que é reservado aos países regularem?
Reinhard Zimmermann — Eu estudo o desenvolvimento do Direito Privado europeu. E o aspecto interessante é que nós tivemos um Direito Privado europeu por muitos séculos, que veio do Direito Romano e do Direito Canônico, e que terminou por ter aplicação, ainda que subsidiária, por toda a Europa. E seu declínio começou com a era da codificação, quando todos os Estados nacionais codificaram suas leis – o Direito francês teve seu “Code Civil” em 1804, depois vieram os da Itália e Alemanha, e por aí vai. Em 1957, a Comunidade Econômica Europeia foi fundada. Desde então, passo a passo, tentaram desenvolver um mercado interno e hoje nós temos uma moeda comum. Na sequência, apareceu a questão inevitável: “Nós também não precisamos de um Direito comum, de um Direito Privado comum?”, especialmente um Direito Contratual, porque contratos podem ser o veículo do comércio internacional. E há esforços nesse sentido. Atualmente, existe um projeto no Parlamento Europeu. Trata-se de um direito opcional de compra e venda, mas não como se fosse um tratado. Ele não se aplicará automaticamente. As partes precisarão aderir a ele. Se você é inglês e eu sou alemão, e nós celebramos um contrato, poderemos querer que este se submeta às normas desse Direito europeu comum de compra e venda.

ConJur — Mas o senhor acredita que um dia haverá leis europeias aplicáveis automaticamente a todos os países, como um Código Civil comum, um Código Penal comum? E que os países somente legislarão sobre assuntos menores, como questões locais?
Reinhard Zimmermann — Houve uma época em que muitas pessoas pensavam que nós iríamos gradualmente obter esse Código Contratual, ou inclusive um Código Civil comum. Desse modo, nós estaríamos em direção a uma Europa com Estados federativos, talvez no modelo dos EUA ou de qualquer outro Estado federativo. Porém, no momento, há um grande ceticismo em diversos países. Quando tentaram aprovar uma Constituição Europeia em 2005, a iniciativa falhou. Então, o clima na Europa é menos positivo hoje do que foi no passado. Portanto, não está claro nem se conseguiremos obter um Código Contratual opcional, que é apenas um passo pequeno. Mas quando você pergunta se teremos algo como um Código Civil europeu algum dia, no momento, isso não é imaginável. Atualmente, eu sou cético.

ConJur — Hoje a União Europeia está sendo contestada, especialmente pelos países que mais sentiram os efeitos da crise econômica, como Grécia, Espanha e Portugal. Até mesmo o conflito na Ucrânia foi motivado pela divergência se o país deveria ou não ingressar na União Europeia. Nesse cenário de crise, o senhor acredita que é possível tornar as leis europeias obrigatórias? E elas deveriam ser obrigatórias?
Reinhard Zimmermann — Eu não acredito muito em leis europeias obrigatórias. Muitas das normas que tivemos foram mal redigidas e politicamente questionáveis. Não tivemos muitas experiências boas. Primeiramente, precisamos reconstruir uma cultura europeia comum, um conhecimento europeu comum. Isso porque, no momento, nós temos uma situação na qual advogados alemães tendem a se concentrar no Código Civil alemão, e ter discussões apenas entre eles próprios, e o mesmo ocorre na França, na Inglaterra, e por aí vai. Somente nos últimos 20 anos é que advogados, com uma mente mais internacionalizada em termos de Direito Comparado e de História do Direito, se abriram e formaram grupos acadêmicos para estabelecer princípios comuns e para escrever livros de precedentes ou de doutrina.

A situação é um pouco parecida com a de 1814. Em 1814, Napoleão havia sido exilado na ilha de Elba e na Alemanha existiam vários estados individuais. Em 1804, a França havia editado seu Código Civil. Então, na Alemanha de 1814, uns queriam uma unificação legal, outros queriam inclusive uma unificação política. Na França, eles tinham esse código incrível, nós não deveríamos ter um código para todos os estados alemães, um código comum? Esse era o grande debate. Nisso, alguém disse: “Se nós obtivermos um código comum para a Alemanha, isso também impulsionará uma unificação política. Os estados irão se unir”. Mas a opinião que prevaleceu foi a do jurista alemão mais importante até hoje, Friedrich Carl von Savigny. Ele argumentou: “Não. Vamos esperar até que tenhamos realmente construído um conhecimento comum, que tenhamos conceitos comuns, que tenhamos reafirmado nosso Direito de uma maneira que o torne suficientemente firme, que o torne suficientemente refinado, para daí procedermos à codificação”. Ele defendia que codificar primeiro e depois desenvolver um conhecimento jurídico comum seria o caminho errado. Esse é mais ou menos o mesmo debate de hoje. Um código, se decretado por Bruxelas, seria visto como um instrumento imposto de cima para baixo, e eu penso que as coisas dever-se-iam desenvolver mais organicamente.

ConJur — Direito Romano, atualmente, é uma matéria optativa na maioria das faculdades de Direito do Brasil. Qual é a importância do Direito Romano para um estudante de Direito do século XXI?
Reinhard Zimmermann — Na Faculdade de Direito da USP não. É disciplina obrigatória. O Direito Romano é a base da nossa cultura jurídica. Roma foi a única civilização antiga que desenvolveu um modelo muito sofisticado de Direito Privado. Esse Direito Privado foi herdado na Europa por meio de um processo que chamamos de “recepção”. Da Idade Média em diante, ele se espalhou por toda a Europa. E é uma influência civilizadora e unificadora na Europa. Ele impulsionou o nível de sofisticação dos sistemas jurídicos europeus a níveis nunca imaginados pelo Direito tribal germânico. Isso se deu devido ao fato de ele ser um Direito aprendido, um Direito sofisticado que era estudado em universidades. Um Direito que se afirmou por si só. E virou a base para a cultura jurídica predominante na Europa.

Agora, qual é a importância dele hoje? Por um lado, ele dá a visão geral de um sistema jurídico que pode ser estudado com um interessante distanciamento histórico, e permite ver como um sistema jurídico funciona em certa sociedade. Por si só, isso é muito interessante. Um sistema jurídico altamente sofisticado no passado, e que não é mais parte de nosso presente, onde se pode ver o que os advogados fizeram, como os textos evoluíram, quais eram as normas jurídicas, a doutrina, quais eram as características da sociedade etc. O mais importante, porém, é que muitas das normas jurídicas e dos conceitos jurídicos ainda estão conosco nos dias atuais. E eles moldaram nossa mentalidade jurídica moderna. Eu acredito que é essencial que um estudante não aprenda apenas as leis de seu país. Tal se deve porque se você for olhar para as leis – e isso se aplica tanto ao Brasil quanto à Alemanha e a todos os outros países –, se você aprender Direito alemão, se você aprender seu próprio sistema, você se acomodará, pensará que é assim que as coisas devem ser. Na realidade, você só começa a compreender o seu sistema jurídico se o enxergar em comparação a outro. Mas a perspectiva comparativa não é suficiente, porque, se você olhar para o Direito alemão, o Direito italiano, o Direito brasileiro, o Direito francês etc., verá certos pontos em comum e certas diferenças. Para entender os pontos em comum e as diferenças, é preciso saber como eles evoluíram. E então, você precisa de uma abordagem histórica e comparativa. Não por uma questão de Direito Comparado ou de História do Direito, mas por uma questão de se tornar um advogado sofisticado e refinado para seu próprio sistema jurídico, que entende as leis, que entende se elas são boas leis ou más leis. Assim, para saber disso, é preciso saber por que elas evoluíram, como elas evoluíram, como isso aconteceu em outros países, e é necessário, de uma certa forma, tentar adotar uma perspectiva exterior. Essa perspectiva é de vital importância para o aprendizado jurídico, e eu gostaria que houvesse muito mais ênfase no currículo nessa matéria, e que muitas disciplinas especializadas fossem suprimidas. Atualmente, as universidades estão obcecadas em treinar seus estudantes para a prática, ensinando-lhes matérias práticas como fusões e aquisições, Direito Societário 1, Direito Societário 2, Direito Societário 3, e por aí vai. Isso é algo que as pessoas vão aprender com muito mais facilidade na prática. Mas elas podem aprender muito melhor na prática se tiverem um sólido conhecimento geral, uma cultura geral do desenvolvimento das normas jurídicas. Eu tive diversos estudantes que escreveram teses de doutorado sobre a história do Direito Romano que agora estão comandando divisões jurídicas em grandes multinacionais. Para uma pessoa que tem bons conhecimentos em matérias fundamentais, não é problema, mexendo aqui ou ali, para entender os temas da prática jurídica. Mas, se já na faculdade você se especializar nesse sentido, a partir dessa especialização, não é possível ir para outra área. É preciso ter a base geral e essa visão histórico-comparativa.

ConJur — O Código Civil brasileiro tem diversas cláusulas gerais, como as que estabelecem função social do contrato e da boa-fé. Na opinião do senhor, como os tribunais brasileiros aplicam essas cláusulas?
Reinhard Zimmermann - Essa é uma questão sobre o Direito brasileiro e é melhor que o Jan trate do assunto. Mas, eu gostaria de fazer algumas breves considerações. Na Alemanha, nós também temos cláusulas gerais. Isso não é algo específico do Direito brasileiro. Nós temos essas cláusulas gerais e, é claro, elas conseguiram se incutir porque permitem ao juiz ter uma considerável margem de apreciação dos valores constitucionais. Nós também possuímos uma constituição com um catálogo de direitos fundamentais e assim por diante. Nosso Código é bastante antigo e quando a Constituição foi promulgada nós adotamos a doutrina da Drittwirkung, que significa que a Constituição tem eficácia em relação ao Direito Privado, mas por intermédio das cláusulas gerais. A maneira como as cláusulas gerais são interpretadas no Brasil, pelo que ouvi dizer, liga-se ao desenvolvimento da constitucionalização do Direito Privado, a qual me parece foi longe demais. Eu penso que sobre esse tópico o Jan pode dizer mais.

Jan Peter Schmidt — As cláusulas gerais permitem a constante adaptação do Código Civil às mudanças sociais. Por exemplo, se há uma cláusula que diz que você tem responsabilidade específica por objetos perigosos, então é possível aplicar essas regras a situações envolvendo um novo objeto que não existia na época em que o código foi promulgado. A norma é tão aberta que pode ser facilmente aplicável a uma nova situação. Se, em vez disso, houver uma legislação muito casuística, e, digamos, houver regras específicas para carros, para trens, para aviões, no momento em que surgir um novo meio de transporte, ele não se encaixará nessa legislação. Então, cláusulas gerais dão muito mais flexibilidade, e, em geral, são ferramentas jurídicas muito úteis. Outro exemplo: se houver uma norma proibindo os contratos que violem a ordem pública, os bons costumes, o juiz pode adaptar ou interpretar a situação de acordo com os pontos de vista da sociedade na época. Na Alemanha, houve casos na primeira metade do século XX em que um testamento por meio do qual uma pessoa não deixava seus bens para sua família, mas para seu ou sua amante, era considerado pelos juízes como contrário aos bons costumes e, por isso, declarado nulo. Em nossa época, essas opiniões, esses pontos de vista mudaram, nós somos muito mais liberais, então a visão da maioria não é mais tão cética. Atualmente, o juiz declarará válido o testamento. Veja, a norma não mudou nada, ainda é a norma que diz que, no Direito Contratual, uma transação jurídica, um negócio jurídico, que viole os bons costumes é nulo, e ela poderá ser interpretada diferentemente em épocas diferentes. Isso é mais uma vantagem da flexibilidade.

Mas, claro, as cláusulas gerais têm uma grande desvantagem, na medida em que elas criam incerteza jurídica e talvez deem muito poder ao juiz. Dito de outro modo: talvez as cláusulas não deem tanto poder ao juiz, mas o juiz pode acreditar que agora ele tem muito poder. Então, ele pode ir longe demais nos seus poderes discricionários. E isso é algo que pode ser observado hoje em dia em alguns tribunais brasileiros, quando determinados juízes revelam uma certa tendência a desprezar as normas específicas que foram promulgadas pelo legislador, e, em vez disso, preferem se basear diretamente no princípio da boa-fé, por exemplo, e recorrer a ele para solucionar o caso, mesmo se a solução for contrária ao que a norma específica diz. Então, na realidade, eles invertem as decisões que o legislador tomou. E o objetivo das cláusulas não é dar poder ao juiz para prevalecer sobre o legislador. A função delas é permitir que o juiz tome decisões razoáveis quando existir uma lacuna na legislação, para que, por exemplo, quando não houver normas, ele possa encontrá-las nas cláusulas gerais, que podem guiá-lo nessa direção. Ainda há algum trabalho a ser feito quanto a isso. É também muito importante que a doutrina jurídica ajude os tribunais nesse aspecto, elabore a fundamentação teórica para o uso correto das cláusulas gerais, de forma que haja equilíbrio entre a equidade, entre decisões justas, e decisões que fazem a justiça no caso concreto, mas também que garantam um nível suficiente de segurança jurídica. Neste momento, eu observo uma forte preferência dos juízes brasileiros pela equidade, pela decisão supostamente equitativa, muitas vezes em detrimento da segurança jurídica. É preciso restaurar o equilíbrio, até porque a justa solução em um caso concreto, muitas vezes, depende da opinião do juiz, e o que ele considera uma solução justa pode ser difícil de justificar sob um ponto de vista objetivo. Frequentemente, você pode encontrar decisões que são, na realidade, muito injustas, porque elas concedem um privilégio a uma pessoa específica em detrimento de diversas outras. Alguns juízes brasileiros, às vezes, podem revelar uma visão muito estreita de algumas questões. Eles apenas olham para o caso concreto e buscam oferecer justiça a essa pessoa específica, mas esquecem que as consequências para a sociedade como um todo podem ser negativas.       

ConJur — Professor Jan Peter Schmidt, o senhor escreveu uma tese sobre o processo de codificação civil no Brasil. Há no Congresso Nacional um projeto de um novo Código Comercial, que unificaria diversas leis sobre o assunto existentes no país. Qual é a opinião do senhor sobre isso?
Jan Schmidt — Mesmo sem ter estudado esse projeto em detalhe, sou crítico dessa iniciativa por uma série de razões. A ideia de ter um código civil e comercial unificado é, na realidade, muito moderna. Muitas jurisdições, tanto na Europa quanto na América Latina, adotaram essa ideia. O último exemplo é o Código Civil e Comercial da Argentina, que foi promulgado em setembro de 2014. Há vários argumentos em favor dessa solução, que já foram apresentadas por Augusto Teixeira de Freitas no século XIX. É mais coerente, é mais simples… Na realidade, é muito difícil justificar a solução separada, a codificação separada do Direito Comercial. A codificação separada do Direito Comercial, que ainda encontramos em muitos países, como Alemanha e França, por exemplo, existe mais por razões históricas. Tal se deve porque, na Idade Média, o Direito Comercial se desenvolveu autonomamente como uma matéria a princípio não regulada pelos Estados, e sim como um Direito que os comerciantes criaram para eles.

No caso brasileiro, há outro detalhe interessante: desde o tempo de Teixeira de Freitas, então durante quase 150 anos, o Brasil havia almejado ter um código unificado. Com o Código de 2002, o sonho finalmente virou realidade. O fato de que pouco mais de dez anos depois alguns já querem dar volta atrás, é algo que expressa, de maneira bastante eloquente, uma certa obsessão brasileira com a reforma de códigos inteiros, apesar de a experiência mostrar claramente as dificuldades e os riscos que isso implica. Tanto o Código Civil de 1916 quanto o Código de 2002 foram adotados somente depois de processos legislativos muito longos e complicados, e em ambos casos a qualidade sofreu por isso. A lição a ser aprendida disso, que também é confirmada pela experiência de outros países, é que, no tema da reforma legislativa, é melhor proceder com pequenos passos e não querer fazer tudo ao mesmo tempo. Compreendo que os comercialistas não estejam satisfeitos com algumas regras do Código Civil. Mas, não vejo porque esses problemas não poderiam ser solucionados por intermédio de reformas pontuais. De onde vem a necessidade de um novo Código e quem garante que as regras dele seriam de uma melhor qualidade?

Aliás, há uma discussão semelhante na área do Direito de Família, onde soube que existe um projeto para a criação de um Código das Famílias. Contra essa ideia podem ser invocados basicamente os mesmos argumentos que os utilizados contra um novo Código Comercial. Não é preciso ser um profeta para predizer que o projetado Código das Famílias, por causa da amplitude e complexidade do tema, conteria muitas falhas técnicas e criaria muito contradições em face de regras do Código Civil. Se se acha que o Direito da família precisa de reformas, façam-se então essas reformas dentro do Código Civil. O Código Civil sempre respeitou a autonomia principiológica do Direito de Família. Não é necessário ter um Código autônomo para isso.

Reinhard Zimmermann — Se você olhar para o Direito Privado, há relações negociais consumeristas, e se você tirá-las e colocá-las em um código específico, você terá um código do consumidor especializado. E se você tirar os negócios jurídicos de natureza comercial, você terá um código comercial especializado. E então, o que sobra? O que sobra do Direito Privado, do núcleo do Direito Privado? Não muita coisa, apenas certas relações negociais de caráter não comercial entre indivíduos. E isso significa a completa desintegração do Direito Privado. Trata-se de algo para se arrepender, além de ser contra a corrente geral do desenvolvimento em termos comparados nos dias de hoje.

ConJur — Professor Reinhard Zimmermann, o senhor morou na África do Sul nos tempos do apartheid. Gostaria que contasse um pouco sobre sua vivência naquele país e de sua experiência como professor lá em tempos tão difíceis.
Reinhard Zimmermann — Eram tempos difíceis na África do Sul. Existia o apartheid universitário. Ou seja, havia universidades para brancos, universidades para negros, universidades para indianos. Eu estava em uma universidade para brancos. E as universidades para brancos eram subdivididas entre as para os descendentes dos imigrantes holandeses, os bôeres, e as universidades inglesas. Estas e a University of Cape Town [Universidade da Cidade do Cabo], onde eu estava, eram as mais influentes. Elas possuíam um espírito liberal inglês. A universidade se opunha ao regime do apartheid. Embora a universidade fosse destinada aos brancos, havia uma cota, o que significava que o governo tinha o poder de estabelecer cotas para estudantes que não eram brancos em universidades para brancos. Mas nenhuma cota jamais foi estabelecida. Então, na realidade, nós éramos livres para aceitar estudantes negros. E, durante o meu período na University of Cape Town, o número de estudantes negros aumentou consideravelmente. Era, porém, muito difícil, porque a maior parte das escolas para negros era de qualidade inferior asa das escolas para brancos. Então, os estudantes negros chegavam despreparados à minha universidade e nós tínhamos de baixar nossos padrões. Ora, se quiséssemos um número significativo de estudantes negros, teríamos duas opções: baixar os padrões de qualidade acadêmica ou suprir aquilo em que as escolas secundárias haviam sido falhas em suas atribuições. Fizemos a escolha, ao meu ver, certa: nós introduzimos cursos específicos, o que fazia com que a maioria dos estudantes negros que desejávamos ver aceitos na universidade tivesse de estudar dois anos a mais para chegar ao nível que queríamos que eles tivessem. Isso era visto como discriminação: “Por que os negros têm que estudar mais tempo do que os brancos?”, e por aí vai. Então, havia todos esses tipos de problemas, quando, na verdade, nosso desejo era permitir que mais negros tivessem acesso à universidade mas sem comprometer os níveis de qualidade acadêmica.

ConJur — Os estudantes negros tinham de pagar pela faculdade?
Reinhard Zimmermann — Os estudantes tinham de pagar para estudar na universidade. Note que a University of Cape Town é uma universidade privada, embora receba muito dinheiro do Estado. Ela tinha mensalidades, mas também bolsas de estudo. Havia bolsas de estudo particularmente para estudantes negros. Então, nós tínhamos um número crescente de estudantes negros, mas a próxima questão era “onde eles poderão morar?”. Nós éramos uma universidade com estrutura para residência estudantil. As pessoas moravam no campus, em residências estudantis que foram reservadas para brancos por efeito da lei que estabeleceu o território de cada grupo étnico. Então, negros tinham de viver fora da universidade. A University of Cape Town estava em uma área de brancos. Mas, na realidade, nós permitimos que todos os nossos estudantes morassem no campus e o governo fechou os olhos para isso. 

Em 1986, as coisas ficaram realmente ruins quando foi decretado estado de emergência e o Estado de Direito foi abolido. Quando eu residia na Cidade do Cabo, eu sempre pensava: “O que fazer quando se está vivendo em uma sociedade injusta?” e também me indagava: “Nós podemos funcionar normalmente em uma situação anormal?”

Eu sempre pensei, no entanto, que seria positivo se existissem “fachos de luz”, onde nós providenciaríamos a educação de acordo com os valores liberais, com base na neutralidade política, nos direitos humanos e no Estado de Direito. Eu acreditava que era muito importante que nós instilássemos esses valores, pois algo iria crescer a partir daí. Mas se tornou mais difícil manter essa ideia quando o Estado de Direito foi abolido. Nessa época, eu era o decano da minha faculdade e presidente da South African Law Teachers Association [Associação Sul-Africana de Professores de Direito]. Na ocasião, era meu desejo que a South African Law Teachers Association protestasse contra o fato de que o Estado de Direito havia sido suprimido. Nós elaboramos uma resolução dizendo apenas que: “Se pregarmos na universidade algo que não seja condizente com o mundo real, com o que acontece lá fora, tal situação prejudicará nossa posição como professores de Direito”. Isso não foi levado adiante, e eu deixei o cargo. Minha decisão baseou-se na seguinte reflexão: nos tempos de Hitler, na Alemanha, quando os advogados não disseram nada quando havia violência e os judeus estavam sendo assassinados, o sistema jurídico se corrompia, os advogados e a maioria das organizações oficiais de advogados ficaram quietos. Mas mesmo dentro da nossa universidade, nós tínhamos diversas discussões nessa época sobre o que fazer diante desse problema. Havia dois slogans. Um deles era “Libertação antes de educação”. Nós não podemos ensinar em uma sociedade anormal e nesse estado de emergência. Primeiro é preciso haver libertação, e, aí, nós poderemos educar apropriadamente. Eu estava sempre no lado ligeiramente mais conservador da minha universidade, dizendo “Não! É muito importante que continuemos a educar da melhor forma que pudermos”. E aí, por meio da educação, podemos chegar a situação na qual os novos valores triunfem sem uma revolução violenta. Houve semanas em que a polícia foi ao campus, os estudantes protestaram e foram presos. Aqueles foram dias selvagens.

ConJur – Em 2006, o senhor recebeu um doutorado honoris causa da University of Cape Town em reconhecimento a sua contribuição à restauração do estado de direito durante o apartheid. O que esse título significa para o senhor?
Reinhard Zimmerman — Bem, como um acadêmico, é normalmente algo muito especial receber uma distinção universitária como essa. Como político, você também pode receber um diploma honorário como reconhecimento de seus feitos políticos. Nesse caso, quando eu fui para a África do Sul, eu era um estrangeiro, um alemão, e é sempre um pouco estranho interferir na política do Estado que lhe acolheu, por razões óbvias. Em primeiro lugar, eu apenas cumpri meu dever como acadêmico: ensinei e pesquisei. Mas, em seguida, quando eu fui eleito para cargos de responsabilidade de direção universitária e como presidente da Associação de Professores de Direito da África do Sul, para a qual fui eleito porque eu poderia servir de ponte entre as comunidades de língua inglesa e africâner, eu tive de assumir posições públicas. Isso é algo que sempre tentei sustentar como professor: em nossa condição temos de professar alguma coisa, temos que professar valores, professar uma certa integridade moral e jurídica, nós temos de fazer nosso melhor para preservar a integridade do sistema jurídico. Bem, e foi isso que eu tentei fazer. Em muitas ocasiões, enfrentei resistências de setores mais radicais. Em relação a eles eu argumentava que não poderíamos agir do mesmo modo que o Governo. Nossas práticas tinham de ser diferentes. Nesse aspecto, eu tive muita sorte de conviver em uma comunidade acadêmica formada por colegas que também eram amigos. Havia diferenças entre nós, mas elas eram resolvidas por meio do diálogo. Nós podíamos confiar uns nos outros, o que era muita coisa em um tempo no qual nós éramos vigiados e nossos telefones monitorados. Esse título de doutor honoris causa, por tudo isso, é muito especial para mim.


Sérgio Rodas é repórter da revista Consultor Jurídico.



Revista Consultor Jurídico, 1 de março de 2015, 9h02

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