quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

O passado ilumina o futuro – eis o novo CPC! Sanciona, presidenta!








E o Novo CPC finalmente foi para o Planalto para ser sancionado...
Vejam todos que, de pronto, deixamos de lado qualquer discussão sobre se devemos chamar a primeira mandatária da nação de presidente ou presidenta. E resolvemos chamá-la como ela gosta. Portanto, esperamos que Sua Excelência olhe com carinho este pleito de dois juristas que representa — sem medo de errar — o anseio de centenas de milhares de advogados, professores e, também, de boa parcela da magistratura de nosso país. Além das partes que litigam cotidianamente. Queremos apresentar para a senhora presidenta alguns pontos que devem ser preservados no novo Código de Processo Civil.



Comecemos com um parágrafo e alguns incisos. Esses nomes “parágrafo” e “inciso” parecem designar coisa sem importância, mas, aqui, no caso, eles representam o cerne de um artigo que trata desse anseio e da preocupação da comunidade jurídica do país.

Pois bem. Esse parágrafo e esses incisos tratam da necessidade de que os juízes e tribunais fundamentem aquilo que eles estão decidindo. Presidenta: Acredite. Muitas vezes o cidadão entra em juízo e sai de lá totalmente surpreendido. Por quê? Porque o que ele alegou nem foi levado em conta. Ou foi simplesmente deixado de lado. Diz-se por aí que, por vezes, o cidadão corre sozinho e chega em segundo. Também há o conhecido folclore de quede urna, barriga de mulher e de cabeça de juiz nunca se sabe o que vai sair. Ledo engano, porque as pesquisas boca de urna já nos dizem antes quem vai ganhar; o ultrassom já resolveu de há muito o sexo do bebê. Então, senhora presidenta, por que temos que ser surpreendidos pelo que sai da cabeça do juiz?

Pois, senhora presidenta, esse é o grande mote do novo CPC: previsibilidade.As partes e os advogados — e isso inclui o governo, maior litigante do país — não devem mais ser surpreendidos com o que o Judiciário decide ou vai decidir. Por isso o Parlamento resolveu colocar vários procedimentos no novo Código para impedir que os juízes decidam como querem. Ninguém quer um juiz autômato. Mas também não queremos um juiz que seja o contrário disso.

Daí que os artigos 10 e 489 — que apenas deixam mais claro o que está na Constituição (artigo 5º, inciso LV e artigo 93, inciso IX) — que vão para a Sua mesa para receber sanção ou veto, são dispositivos que cuidam disso. Há outros também, por exemplo, um — o 926 — , que exige que a jurisprudência do país seja estável, íntegra e coerente – que são um imenso avanço nisso que falamos acima: previsibilidade e garantia de as partes não serem surpreendidas.

Inclusive pedimos sua especial atenção para o artigo 10, sobre o qual já falamos inúmeras vezes e nem merece aqui maiores digressões, até mesmo porque defender-se hoje que o contraditório não seja uma garantia de influência e não surpresa representaria uma profunda ignorância do direito constitucional e processual mundial dos últimos 30 anos (ao menos). Acho que mesmo aqui no Brasil ninguém teria tamanha ousadia de criticar o referido artigo 10 e revelar tamanha limitação cognitiva. É uma unanimidade entre quem pensa! De todo modo, gostaríamos que Vossa Excelência ficasse alerta em relação a esse artigo.

Desculpe-nos a insistência, mas defender-se o contrário — por exemplo, um veto ao artigo 10 — seria manter o quadro de leitura superficial do contraditório que se desconsidera o que é dito no processo, com surpresas constantes na fundamentação: sentença kinder ovo, com surpresinha...

Na sequência, fixemo-nos no 489 que trata das garantias do jurisdicionado para que tenha uma sentença justa e bem fundamentada. Vejamos:

§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

Presidenta: o Parlamento aqui esteve iluminado, pois garante que uma decisão (sentença, acórdão) que não tenha alguns requisitos, não vai valer, porque é nula. Simples assim.

O primeiro deles é:

I – [a sentença não estará fundamentada] se [ela] se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;

Veja, presidenta: o que o Parlamento está pedindo é que o juiz deve sempre explicar a relação de causa e efeito entre um argumento que estiver usando e a causa em jogo. Isto é para evitar que o juiz diga: conforme o artigo tal, decido assim. Ele necessitará dizer qual é a relação dos alhos com os bugalhos da causa.

II – [a sentença não estará fundamentada se] empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;

Sanciona, presidenta! Esse pequeno inciso garante que o juiz ou tribunal não use conceitos “ônibus”, nos quais caibam dezenas de sentidos; por exemplo, ele não poderá proibir a caça com base no principio da dignidade da pessoa humana (como já aconteceu, presidenta); ele terá que sempre explicar em que sentido está usando a expressão.

III – [a sentença não estará fundamentada se] invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;

Senhora presidenta: muito justo que o Parlamento tenha dito isso. Afinal, não dá para usar os motivos da ilegalidade de um tributo, válidos em um processo, em outro processo que nem trata desse tipo de imposto. Por falar em impostos e tributos, a Senhora sabe do que estamos tratando, pois não?

IV – [a sentença não estará fundamentada se] não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;

Este, senhora presidenta, talvez seja o mais importante para evitar as surpresas e aquela coisa de “de cabeça de juiz...”. A senhora mesmo não se pergunta, as vezes, algo como “de onde o tribunal tirou essa ideia? Isso nem foi alegado...!”. Pois é, presidenta.

Não queremos nos exibir, mas na Alemanha isso é assim já há muito tempo (Para citar apenas um país porque inúmeros outros também seguem este pressuposto há tempos). Até o nosso Supremo Tribunal tem decisões referindo-se a essa garantia. Falamos do dever do juiz de levar em consideração os argumentos relevantes das partes[1], que atribui ao magistrado não apenas o dever de tomar conhecimento das razões apresentadas[2], como também o de considerá-las séria e detidamente[3]em seu artigo 489, parágrafo 1º, inciso IV, do NCPC.[4] Há muito a doutrina percebeu que o contraditório não pode mais ser analisado tão somente como mera garantia formal de bilateralidade da audiência, mas sim como uma possibilidade de influência[5] sobre o desenvolvimento do processo e sobre a formação de decisões racionais, com inexistentes ou reduzidas possibilidades de surpresa.

Sem querer chatear e tomar mais o seu precioso tempo, senhora presidenta,mas tal concepção significa que não se pode mais acreditar que o contraditório se circunscreva ao dizer e contradizer formal entre as partes, sem que isso gere uma efetiva ressonância (contribuição) para a fundamentação do provimento, ou seja, afastando a ideia de que a participação das partes no processo possa ser meramente fictícia, ou apenas aparente, e mesmo desnecessária no plano substancial.

Para fechar: no sistema alemão, o princípio, nos termos do artigo 103, parágrafo 1º, da Grundgezets (Lei Fundamental alemã) inclui não só o direito de se expressar, mas também o direito a que essas declarações sejam devidamente levadas em consideração. Julgados do Tribunal Constitucional Federal (por exemplo, BVerfGE 70, 288 NJW 1987, 485) localizam esse dever como decorrência do contraditório (Anspruch auf rechtliches Gehör), apontando que ele assegura às partes o direito de ver seus argumentos considerados. É isso. Portanto, achamos que conseguimos nos explicar e agora podemos pedir: Sanciona, presidenta!

Já o inciso V diz que [a sentença não estará fundamentada] se [ela] se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;

Excelência: este é um velho pleito. Todos os alunos do primeiro ano de faculdade ouvem de seu professor: “- A sentença não é um silogismo; não basta fazer dedução; isso é do século XIX”. Pois bem. Agora, com o NCPC, temos a chance de garantir que isso que dissemos aos alunos é verdade, isto é, que uma sentença ou acordão não pode se limitar a dizer “julgo conforme a sumula tal”, sem explicar as razões que ligam o enunciado ao caso concreto em jogo. Pode acreditar, presidenta: vale a pena sancionar!

VI - Por último, [a sentença não estará fundamentada] se [ela] deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

Por que é de fundamental importância esse inciso? Para garantir que exatamente o precedente que uma parte está usando, seja utilizado pelo Juiz; e se ele não serve para decidir aquela causa, o juiz terá que dizer porquê. Com isto, senhora presidenta, vai diminuir consideravelmente o número de recursos no país.

Sempre é bom saber que, quando disputamos uma corrida entre dois, no máximo que vai acontecer é chegar em segundo; nunca em terceiro. Por que a senhora acha que o Brasil é campeão de uma coisa chamada “embargos de declaração”? Simples: porque as partes precisam saber aquilo que agora os juízes estarão obrigados a dizer na decisão.

O Brasil ganhará. E muito. Sanciona, presidenta!



[1] Recht auf Berücksichtigung von Äußerungen.


[2] Kenntnisnahmepflicht


[3] Erwägungspflicht


[4] cf. THEODORO JR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre; PEDRON, Flávio. Novo Código de Processo Civil: Fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: GEN Forense, 2015. Tb Streck, L.L. Verdade e Consenso, SP, Saraiva, parte final.


[5] Einwirkungsmöglichkeit . BAUR, Fritz. Der Anspruch auf rechliches Gehör. Archiv für Civilistiche Praxis, Tubingen, J.C.B. Mohr, n. 153, p. 403, 1954.


Lenio Luiz Streck é jurista, professor, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.

Dierle Nunes é advogado, doutor em Direito Processual, professor adjunto na PUC Minas e na UFMG e sócio do escritório Camara, Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia). Membro da Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do Novo Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados.



Revista Consultor Jurídico, 25 de fevereiro de 2015, 8h52

Horas de sobreaviso e participação em cursos treinet's dão direito a horas extras






A Justiça do Trabalho mineira tem recebido grande número de ações que noticiam casos de trabalhadores que permanecem à disposição do empregador, aguardando ordens para cumprimento de atividades ou executando tarefas à distância. Os avanços da tecnologia são os principais responsáveis pelo surgimento dessa nova modalidade de prestação de serviços, uma vez que o empregado é frequentemente submetido a controle patronal por meio de instrumentos telemáticos ou informatizados. Um exemplo que ilustra bem essa realidade é o caso analisado pelo juiz Mauro Elvas Falcão Carneiro, em sua atuação na Vara do Trabalho de Lavras. Na visão do magistrado, o reclamante conseguiu comprovar que fazia jus às horas de sobreaviso, por ter permanecido à disposição do empregador em regime de plantão, bem como às horas extras decorrentes da participação em cursos "Treinet", destinados à qualificação profissional, realizados à distância e fora do horário de trabalho.

O primeiro pedido do bancário foi de condenação do banco reclamado ao pagamento de horas de sobreaviso, porque, de acordo com o seu relato, ao menos uma vez por mês, era obrigado a ficar com as chaves do banco, sendo responsável por solucionar quaisquer situações imprevisíveis, como o disparo de alarme, segurança e acionamento da polícia. Afirmou, ainda, que essas situações limitavam sua liberdade nos finais de semana, quando não podia ausentar-se de sua residência, pois tinha de ficar disponível através do aparelho celular para o caso de eventuais imprevistos. O juiz sentenciante salientou que os depoimentos das testemunhas confirmaram esse fato e revelaram que o reclamante era o único empregado lotado nos postos de atendimento de Ijaci e Cana Verde, sendo, portanto, o único responsável pela solução dos imprevistos.

O conjunto probatório demonstrou que, além da obrigação de comparecer ao posto de atendimento no caso de acionamento do alarme, o empregado em plantão era proibido de se ausentar do município. Portanto, o caso do processo é mais abrangente do que o simples uso, por si só, de celular fornecido pela empresa, enquadrando-se no entendimento consolidado no inciso II da Súmula 428 do TST, segundo o qual considera-se em sobreaviso o empregado que, à distância e submetido a controle patronal por instrumentos telemáticos ou informatizados, permanecer em regime de plantão ou equivalente, aguardando a qualquer momento o chamado para o serviço durante o período de descanso Nesse contexto, o julgador entendeu que ficou demonstrada a existência de escalas de sobreaviso, das quais participou o reclamante em um final de semana por mês, quando ficou à disposição do banco. Em consequência, condenou o reclamado ao pagamento do valor a ser apurado correspondente às horas de sobreaviso, na proporção de 48 horas ao mês ou fração laborada e respectivos reflexos.

Quanto ao pedido de horas extras pela participação em cursos virtuais, o juiz apurou que, por imposição do empregador, o reclamante tinha que participar, fora do horário de trabalho, dos cursos denominados Treinet's, alcançando um elevado número de horas extras mensais, que não foram devidamente quitadas. Conforme observou o magistrado, esse fato foi comprovado pelos depoimentos das testemunhas e pelos documentos juntados ao processo pelo próprio empregador. O conjunto probatório demonstrou também a impossibilidade de conciliar os cursos com o horário de trabalho, em razão do acúmulo de serviços, já que o posto de atendimento no qual o reclamante prestava atendimento possuía mais de 1200 clientes e apenas um empregado, como declarou a testemunha do próprio banco. Na avaliação do juiz sentenciante, a "participação do empregado em cursos, ainda mais quando ofertados pelo próprio empregador, busca o aperfeiçoamento profissional e o aprimoramento no desempenho das tarefas, a serem desenvolvidas em prol do próprio empregador" .

Nesse contexto, o julgador entendeu que a participação do bancário nos cursos Treinet's representa tempo à disposição do empregador e, por isso, devem ser remunerados como horas extras, pois foram realizados fora do horário de trabalho. Com base nesse posicionamento, o magistrado condenou o banco ao pagamento de 04 horas extras para cada curso Treinet comprovado, com devidos reflexos. O TRT mineiro confirmou a sentença nesses aspectos.

Fonte: TRT3

Princípio da especificidade prevalece sobre territorialidade em decisão da SDC sobre representação sindical



A Seção Especializada em Dissídios Coletivos (SDC) do Tribunal Superior do Trabalho julgou, na sessão de segunda-feira (23), conflito de representação entre dois sindicatos - um de âmbito estadual e mais específico em relação à atividade profissional, e outro de âmbito municipal e mais abrangente quanto à atividade. A decisão foi a de que o critério da especificidade prevalece em detrimento ao da territorialidade.

A questão refere-se à representatividade sindical dos empregados do Consórcio Encalso S.A. Paulista, que trabalham na execução de obras e serviços de duplicação da Rodovia dos Tamoios. Também chamada de SP -099, a rodovia liga as cidades da Região do Vale do Paraíba ao litoral norte do Estado de São Paulo, passando pelos municípios de São José dos Campos, Paraibuna, Jambeiro e Caraguatatuba.

O consórcio ajuizou dissídio coletivo de greve contra o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção do Mobiliário e Montagem Industrial de São José dos Campos e Litoral Norte (Sintricom), e requereu a integração ao processo do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Pesada - Infraestrutura e Afins do Estado de São Paulo (Sinfervi), que, segundo alegou, seria o legítimo representante de seus empregados. Segundo o consórcio, o Sintricom incitou ilegitimamente uma paralisação geral de todas as frentes de trabalho, em outubro de 2012, para reivindicar, entre outros benefícios, reajustes salariais. Após audiências com participação dos dois sindicatos, o Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (Campinas/SP) declarou a legitimidade do Sinfervi para representar os trabalhadores da empresa e homologou acordo.

Foi contra essa decisão que o Sintricom recorreu ao TST, sustentando que a rodovia está dentro dos seus limites territoriais e que, em face do princípio da unicidade sindical, a base territorial do opoente não pode abranger os municípios em que a categoria já se encontra representada.

SDC

A relatora do recurso, ministra Dora Maria da Costa, resumiu a controvérsia: de um lado, o Sinfervi, específico da categoria, representa os trabalhadores da indústria de construção de estradas, pavimentação e obras de terraplenagem em geral, de âmbito estadual. O Sintricom, por sua vez, é mais eclético, e representa trabalhadores nas indústrias da construção e do mobiliário, mas tem abrangência intermunicipal em São José dos Campos, Paraibuna e Caraguatatuba, municípios nos quais a obra é realizada.

A ministra destacou que o artigo 571 da CLT admite o desmembramento de sindicato para a formação de entidade sindical mais específica, desde que a nova entidade ofereça possibilidade de vida associativa regular e de ação sindical eficiente. "Os sindicatos que abrangem mais de um município podem ser desmembrados em sindicatos de âmbito exclusivamente municipal, de acordo com a estrutura adotada no Brasil, ou se tornarem mais específicos com relação à atividade econômica, fazendo valer o princípio da especificidade", explicou.

A jurisprudência da SDC, como observa a relatora, firmou-se no sentido de que, havendo conflito de representação entre dois sindicatos, deve prevalecer o princípio da especificidade, ainda que o sindicato principal tenha base territorial mais reduzida, sendo necessário o paralelismo entre o segmento econômico e a categoria profissional representada. "As entidades sindicais que representam categorias específicas podem exercer sua representatividade atendendo com maior presteza aos interesses de seus representados", justificou.

Para Dora Maria da Costa, a categoria representada pelo Sinfervi apresenta, inclusive pela sua denominação, nítida correspondência com a atividade econômica do Consórcio Encalso S.A. Paulista. Dessa forma, concluiu correta a decisão regional, ao declarar que essa entidade é a legítima representante dos empregados do consórcio. Por unanimidade, a SDC negou provimento ao recurso ordinário em dissídio coletivo de greve e econômico do Sintricom.

(Lourdes Tavares/CF. Foto: Aldo Dias)


Fonte: TST

Terceira Turma manda indenizar Barrichello por uso indevido de imagem


O ex-piloto de Fórmula 1 Rubens Barrichello deve ser indenizado pelo uso indevido de seu nome e de sua imagem em campanha publicitária produzida pela Full Jazz Comunicação e Propaganda para a Varig Logística S/A. A decisão é da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em recurso relatado pelo ministro Paulo de Tarso Sanseverino.

A campanha foi lançada em 2004. Os anúncios não traziam o nome completo do piloto, mas apresentavam uma criança de macacão vermelho – mesma cor da Ferrari, equipe em que Barrichello atuava na época – em um carro de brinquedo também vermelho, com a frase: "Rubinho, dá pra ser mais Velog?"

Velog era o serviço de entrega de malotes da Varig Logística, que teve a falência decretada em 2012. Barrichello processou a agência de propaganda e sua cliente, acusando-as de fazer alusão jocosa à sua carreira esportiva, de forma a ridicularizá-lo, e de usar indevidamente sua imagem.

Notoriedade

No entanto, para o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), o uso do apelido do piloto não configurou ofensa aos seus direitos de personalidade nem gerou a obrigação de indenizar, por se tratar de pessoa de grande notoriedade.

O piloto recorreu ao STJ sustentando, entre outros pontos, que o fato de ser uma personalidade pública não autoriza empresas privadas a usar seu nome e imagem em campanha publicitária sem contrapartida financeira.

Alegou ainda que a publicidade não autorizada configura violação do direito de personalidade quando apresenta características capazes de identificar a pessoa, mesmo que não haja menção expressa a seu nome.

Segundo o ministro Paulo de Tarso Sanseverino, o caso julgado amolda-se perfeitamente ao enunciado 278 da IV Jornada de Direito Civil, que interpreta o artigo 18 do Código Civil. Diz esse enunciado: “A publicidade que divulgar, sem autorização, qualidades inerentes a determinada pessoa, ainda que sem mencionar seu nome, mas sendo capaz de identificá-la, constitui violação a direito da personalidade.”

Fins lucrativos

Para o ministro, não há dúvida de que a publicidade foi veiculada com fins lucrativos e, mesmo sem mencionar o nome completo do piloto, levou o consumidor a prontamente identificá-lo pelo seu apelido, amplamente conhecido do público em geral, em um contexto que indicava com clareza a sua atividade esportiva.

Citando vários precedentes, Sanseverino reiterou que os danos morais por violação do direito de imagem decorrem exatamente do próprio uso indevido da imagem, não havendo necessidade de demonstração de outros prejuízos, conforme entendimento uniforme do STJ.

Acompanhando de forma unânime o voto do relator, o colegiado determinou que o tribunal paulista prosseguisse no julgamento da apelação e fixasse o valor da indenização devida por danos extrapatrimoniais.

Leia a íntegra do voto do relator.

Fonte: STJ

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Dworkin contra o pragmatismo de Posner na decisão judicial





A problemática em torno da relação entre Direito e moral é antiga nas discussões de Teoria do Direito, estando presente desde os dilemas de Antígona, perpassa pelo debate moderno entre juspositivistas e jusnaturalistas até autores contemporâneos. Discussão famosa a respeito do assunto foi travada entre Herbert Hart e Ronald Dworkin. Enquanto Dworkin defendia uma conexão necessária entre Direito e Moral[1], Hart sustentava que, embora existam diferentes conexões contingentes, não há conexões necessárias entre o conteúdo do Direito e o da Moral[2].

Essa polêmica alcançou a teoria da decisão judicial, principalmente quando se começou a indagar se a teoria moral é útil aos magistrados no processo decisório e em que medida ela deve servir de parâmetro para pautar suas decisões.

Para dar conta dessa problemática, primeiramente há que se indagar: mas afinal, o que seria a teoria moral? Em breves palavras, a teoria moral se revela no discurso presente em práticas culturais que buscam dizer como as pessoas devem se comportar, ou seja, o discurso teórico que procura captar a correção do nosso agir no que diz respeito às nossas obrigações sociais. Essa teoria trata sobre questões como: “será sempre errado mentir ou descumprir uma promessa?”; “Será moral o infanticídio?”; “A discriminação sexual é correta?”, etc.

Sobre o tema da viabilidade de se adentrar em debates morais e de utilizar argumentos e raciocínios morais na decisão judicial complexa, recentemente, na condição de orientador, tive a satisfação de presidir a banca de defesa da dissertação de mestrado do acadêmico Bruno Farage, no âmbito do Programa de Pós-graduação em Direito da UERJ, intitulada “O pragmatismo antiteórico de Richard A. Posner e as respostas da teoria moral para a decisão judicial”.

Em seu trabalho, Farage resgatou a discussão travada entre Richard Posner, que defende uma “abordagem judicial pragmática”, isenta da utilização da teoria moral no processo decisório e os(jus)filósofos morais, argumentando acerca da importância da teoria moral e do raciocínio moral nas decisões judiciais difíceis, corrente capitaneada por Ronald Dworkin e reforçada por Charles Fried[3], Anthony Kronman[4], John T. Noonan Jr.[5] e Martha C. Nussbaum[6]

Seguirei, então, com a dissertação mencionada, para apresentar ao leitor os principais pontos desse debate e a forte crítica de Dworkin à pretendida assepsia moral do pragmatismo de Posner.

O ceticismo moral
Conforme bem destacado no texto de Bruno Farage, a abordagem “posneriana” se diz prática, instrumental, “voltada para frente”, ativista, cética, antidogmática e experimental. Essa perspectiva se intitula fruto de um pragmatismo cotidiano, que valoriza a visão prática das ações e que dá peso crucial às melhores consequências e ao uso da razoabilidade e racionalidade, ao invés de se importar com debates teóricos que possam levar a uma posição consensual ou “verdade moral”[7]. Sem embargo, a abordagem pragmática recorre constantemente à intuição para captar as “necessidades da época” - elevando a opinião pública a um patamar de destaque como guia para a decisão judicial -, assim como à orientação científica (empírica) dos juízes para suprir as lacunas inerentes aos casos difíceis que emergem no Direito.

Todavia, ela é hostil à ideia de utilizar a teoria moral ou qualquer outra teoria considerada “abstrata” para a orientação do processo de tomada de decisão judicial, o que por vezes justifica o rótulo de “antiteoria”.

Além da rejeição à teoria moral, a proposta “posneriana” também tem repulsa pelo “moralismo acadêmico”, o qual, segundo ele, representa a ética aplicada formulada por professores acadêmicos e muitas das vezes utilizada em forma de argumentos morais no processo de tomada de decisão judicial na seara constitucional. Posner acredita que os chamados moralistas acadêmicos buscam impor uma moral uniforme, encontrando-se essa questão explícita na discussão de casos constitucionais. Entretanto, tal ambição seria impossível de se concretizar. Como não há acordo no debate moral, o consenso é impossível neste campo.

A teoria moral seria apenas uma camuflagem, pois, na prática, essa concepção perece diante das intuições dos juízes nos casos concretos. Na leitura pragmática, os juízes são guiados por um “choque de intuições” ou da “oposição do interesse próprio” e, muitas vezes, principalmente em hard cases, a intuição e a crença que prevalecem sobre a teoria moral têm caráter político, ainda que não partidarista.

Daí os magistrados não precisarem tomar partido em questões morais: as questões morais podem ser suprimidas ou reformuladas como questões de interpretação, de competência institucional, de prática política, de separação de poderes ou de stare decisis, etc. Nesse sentido, o raciocínio moral deveria ser substituído pelo raciocínio em sua forma pura (toutcourt).

Para Farage, a antiteoria pragmatista tem sustentáculo em um posicionamento particular em relação à moral denominado de ceticismo moral pragmático. Esse posicionamento não crê na existência de um realismo moral, sendo a moral tão somente um fenômeno local e variável, não se poderia falar em moral universal. O pragmatismo posneriano também acredita em uma forma particular de relativismo moral, rejeitando a possibilidade do seu progresso. Consequentemente, essa posição descredencia a capacidade da moral em resolver conflitos, sejam eles morais ou jurídicos.

A oposição de Dworkin
Essa visão de que as decisões judiciais devem ser pragmáticas, evitando a teoria moral, é enfaticamente combatida por Dworkin. A começar pela crença de que a moral está intrinsecamente ligada ao Direito, crendo a concepção dworkiniana na existência de princípios morais que compõem o Direito como prova dessa conexão necessária. Para Dworkin deve haver, no mínimo, uma fundamentação moral aparente que sustente a afirmação da existência de deveres jurídicos.

Ele considera o fato de que os direitos na sua dimensão jurídica devem ser entendidos como uma espécie de direitos morais, sendo essa tese um elemento crucial em sua Teoria do Direito. As constituições, igualmente, necessitam ser corretamente interpretadas como instâncias que impõem limites morais a quaisquer leis que possam ser validamente criadas. Para tanto, é preciso que a moral tenha um fundamento objetivo, o qual sirva de parâmetro para a correção (ou não) da decisão judicial.

Na leitura de Dworkin, algumas instituições são de fato injustas e algumas ações são realmente erradas, independentemente de existir uma grande quantidade de pessoas que acredite no contrário. Essa ideia se sustenta em seu posicionamento em relação à moral denominado de Independência metafísica do valor[8], significando que qualquer princípio moral, por mais que esteja completamente inserido em nossa cultura, língua e prática, pode ser falso. De outro lado, por mais que o princípio seja completamente rejeitado socialmente, pode ser verdadeiro.Os juízos de valor podem ser verdadeiros e a verdade independe da correspondência com entidades morais especiais. Como as verdades morais são próprias do campo da argumentação, não dependem de instâncias metafísicas, daí a “independência metafísica do valor”[9].

Segundo sua proposta, raciocinar em termos jurídicos significa aplicar a problemas jurídicos específicos uma ampla rede de princípios de natureza jurídica ou de moralidade política. Na prática, seria impossível refletir sobre a resposta correta referente a questões de direito a menos que se tenha refletido profundamente ou se esteja disposto analisar um vasto e abrangente sistema teórico de princípios complexos.

Conforme a abordagem teórica dworkiniana, uma alegação de direito é equivalente à afirmação de que um ou outro princípio oferece uma melhor justificação de algum aspecto da prática jurídica. Melhor no sentido interpretativo, isto é, porque tal princípio se ajusta de forma mais adequada e coerente à prática jurídica, colocando esta sob uma “luz mais favorável”.

Em seu ponto de vista, essa abordagem constitui descrição fidedigna do raciocínio jurídico e de como podemos discutir adequadamente algumas afirmações sobre o que é o Direito. O raciocínio jurídico, por sua vez, pressupõe um vasto campo de justificação, aí incluídos princípios bastante abstratos de moralidade política. Não é possível responder questões jurídicas profundas e controversas sem “mergulhar” no âmbito da teoria.

Nesse sentido, Dworkin entende que, ao se esconder em parâmetros ditos econômicos/racionais e parecer equilibrada, sensata e norte-americana, a abordagem prática de Posner oculta que a abordagem teórica é inevitável mesmo parecendo abstrata[10].

A própria “antiteoria” de Posner é, ela mesma, uma teoria moral. Para Dworkin resta claro que a antiteoria pragmatista é um juízo moral de natureza teórica e global, pois o fato de se questionar se algum tipo de afirmação moral oferece “base sólida” para outra já constitui, em si, uma questão moral.

Ainda, ao tratar dos hard cases, Dworkin propõe que, se os juízes tiverem de lidar com questões morais, seria um erro de categoria – como dizer a alguém com problemas com álgebra que tente usar um abridor de latas – dizer-lhes que resolvam essas questões através da história, da economia ou de qualquer outra técnica não moral, como sugere Posner.

Além de expor as incoerências e contradições da antiteoria pragmatista com os argumentos dos filósofos morais, Farage demonstra como a abordagem antiteórica é incompatível com a conjuntura justeórica ocidental contemporânea. Ao retirar de sua matriz teórica a força da leitura moral do Direito, Posner contribui para o relativismo decisório, escondendo-o em fórmulas ditas científicas na análise dos casos concretos.

No contexto brasileiro, isso se torna especialmente dramático, tendo em vista o fenômeno cada vez mais comum de decisões proferidas sem fundamentação teórica consistente. Pior, tais decisões, em regra, são justificadas por um apanhado de argumentos que fazem um arrazoado pseudo-pragmático, não raro violando expressamente o texto legal. 

De minha parte, penso que, por não levar a sério a decisão judicial e o fundo hermenêutico sempre nela presente, Posner ignora algo essencial: o juiz não sai do mundo para compreender o caso e, sem o pano de fundo existencial que demarca sua posição no mundo, não há perguntas. E a pergunta, como ensina Gadamer, é sempre o ponto determinante da resposta que se busca. É a partir dela [pergunta] que o intérprete/cientista opera. Daí não é possível saltar fora da linguagem e do contexto moral antes de formular os questionamentos de cada caso. O juiz posneriano, quando pergunta, desde antes já estabeleceu parâmetros morais ainda que não perceba.

Assim, ignorar a teoria moral é, antes de tudo, fugir do enfrentamento fundamental para se evitar relativismos decisórios. Ademais, não se pode esquecer que a atual proposta antiteórica de Posner foi formulada após a sua Teoria Econômica no Direito ter sofrido importantes críticas, apontando-se, por exemplo, a inconsistência de adoções simplistas do conceito de eficiência. Desse modo, parece-me que o pragmatismo posneriano é uma tentativa de fugir do necessário debate de teorias do Direito e moral depois do razoável fracasso da sua reflexão teórica anterior. 



[1] Vide, p. ex. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 568 p.
[2] HART, H.L.A. O conceito de direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. 348 p.
[3]FRIED, Charles. Philosophy Matters. Harvard Law Review, Cambridge, v. 111, n. 7, p.1739- 1750, maio 1998.
[4]KRONMAN, Anthony Townsend. The Value of Moral Philosophy. Harvard Law Review, Cambridge, v. 1751, p.1751 -1767, 1 jan. 1998.
[5]NOONAN JUNIOR, John T.. Posner's Problematics. Harvard Law Review, Cambridge, v. 111, n. 7, p.1768-1775, maio 1998.
[6]NUSSBAUM, Martha C.. Still Worthy of Praise. Harvard Law Review, Cambridge, v. 111, n. 7, p.1776-1795, maio 1998.
[7]POSNER, Richard. Direito, pragmatismo e democracia. Rio de Janeiro: Forense, 2010. 299 p.
[8]DWORKIN, Ronald. Justiça para ouriços. Coimbra: Almedina, 2012, p. 33-97.
[9]FARAGE, Bruno da Costa Felipe. O pragmatismo antiteórico de Richard A. Posner e as respostas da teoria moral para a decisão judicial. Dissertação de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ, 2015, p. 65.
[10]DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 116.

Marco Aurélio Marrafon é presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).



Revista Consultor Jurídico, 23 de fevereiro de 2015, 16h14

Princípio da dignidade humana não justifica usucapião de bens públicos



DIREITO CIVIL ATUAL



Segundo o artigo 102 do Código Civil; o artigo 191, parágrafo único, e o artigo 183, parágrafo 3º, ambos da Constituição da República; bem como, segundo a Súmula 340 do Supremo Tribunal Federal, os bens públicos em geral jamais serão objeto de usucapião, nem móveis, nem imóveis, sejam de uso comum do povo, de uso especial ou dominicais.

Há quem defenda, apesar disso, a ideia de que os imóveis públicos vagos, principalmente as terras devolutas, seriam passíveis de usucapião com base no princípio da função social da propriedade e no princípio da dignidade humana. A proibição do parágrafo único do artigo 191 da Constituição estaria a contrariar princípios por ela mesma erigidos. Se o Estado se mostra inerte diante da ocupação de algum de seus imóveis, não haveria razão para não se admitir o usucapião.

Os que admitem essa possibilidade invocam a função social da propriedade, que também os imóveis públicos deveriam cumprir, e a dignidade humana do usucapiente de imóvel público. Uma proibição de caráter patrimonial não poderia se sobrepor à dignidade que há de ser garantida a todo cidadão, por força já do artigo 1º da própria Constituição, quanto mais tratando-se de imóvel público.

Os que propugnam pela tese tradicional, apontam para o fato de que não se pode invocar um princípio, numa interpretação parcial e unilateral, para se invalidar proibição expressa do texto constitucional. Além disso, o fato de o imóvel ser público torna-o imune ao usucapião, pela simples razão de que um indivíduo não poderia se apropriar de propriedade de todos e rigorosamente sua também. Ademais, à Administração Pública não podem ser exigidos o mesmo zelo e, principalmente, a mesma eficiência no dever de vigiar seus milhares de imóveis, mormente as terras devolutas, que às pessoas de Direito Privado. Mais ainda, admitir usucapião de terras devolutas seria fraudar a reforma agrária, a que se destinam, atentando-se, aqui também, contra os princípios da função social da propriedade e da dignidade humana, em última instância.

Por ora, vem prevalecendo a tese tradicional, não admitido, pois, o usucapião de bens públicos, sejam móveis ou imóveis.

Sobre esse tema, no fim do ano passado, noticiou-se no mundo jurídico que o Tribunal de Justiça de Minas Gerais havia, em decisão histórica (Apelação Cível 1.0194.10.011238-3/001 – comarca de Coronel Fabriciano), admitido o usucapião de imóvel público. Muita gente comemorou, como uma vitória da dignidade humana sobre o patrimônio. A este respeito, gostaria de tecer alguns poucos comentários:

1. Em primeiro lugar, o TJ-MG não admitiu o usucapião de imóvel público, pura e simplesmente. Tratava-se de imóvel do Departamento de Estradas de Rodagem de Minas Gerais (DER/MG), em que várias famílias de ex-funcionários se assentaram, formando-se um vilarejo no local, com igreja, asfalto, luz e tudo o mais. Ademais, a doação do terreno pelo DER ao município, para fins de urbanização, já fora autorizada por lei. Segundo o acórdão,


O que acontece neste caso, é que os moradores (ex-funcionários do DER/MG), pouco a pouco foram edificando suas casas no local do acampamento. Com o tempo, as famílias foram crescendo, criando-se vínculo com a propriedade e desde então se passaram aproximadamente 30 anos. Hoje, uma pequena vila, dotada de infraestrutura como: asfalto, energia elétrica, mina e uma pequena igreja. Esta área ocupada pelos moradores, corresponde aproximadamente a 26% do imóvel. O restante encontra-se livre. Assim, aquele que por mais de trinta anos, como no presente caso, tem como seu o imóvel, tratando-o ou cultivando-o, tornando-o útil, não pode ser compelido a desocupá-lo à instância de quem o abandonou. Na espécie, os réus demonstraram a aquisição da posse do imóvel há mais de trinta anos, sem qualquer oposição do DER. Destarte, demonstrado está que os réus, ora apelados, não detinham apenas a mera detenção do bem, mas verdadeiramente sua posse, como se donos fossem. Ademais, cumpre ressaltar que malgrado os bens públicos não sejam passíveis de aquisição por usucapião (art. 183, § 3º, da CF; art. 102, do Código Civil) o imóvel usucapiendo não está incluído em área de domínio público, tanto que, conforme corretamente decidiu o d. Magistrado a quo: ‘Importa salientar que, no caso concreto dos autos, a viabilidade de se declarar a prescrição aquisitiva se encontra ainda mais evidente, porque já existe uma lei em vigor autorizando expressamente o DER a doar os imóveis em comento ao Município de Antônio Dias, justamente para que este lhes dê uma destinação social, promovendo o assentamento das famílias que estão no local, conforme se verifica às fls. 264/266’.

Fica mito claro, pois, que não se tratava de um imóvel público qualquer, como festejado. Aliás, o acórdão é muito claro ao afirmar não ser possível o usucapião de bens públicos.

2. Em segundo lugar, admitir o usucapião de imóveis públicos com esteio no princípio da dignidade humana, é analisar o problema por uma ótica unilateral. Sem dúvida, todo usucapiente possui dignidade, como, aliás, qualquer um de nós, até os mais crápulas. Por outro lado, os imóveis públicos desocupados têm destinação, seja específica, para atender a eventuais necessidades da Administração Pública, seja genérica, reservando-se, precipuamente, ao planejamento urbano ou à reforma agrária. Em ambos os casos, a destinação também terá como escopo primordial a promoção da dignidade humana. Assim, a se aceitar o usucapião de imóveis públicos, contrariando frontalmente a Constituição e o Código Civil, com fundamento na dignidade do usucapiente, estar-se-á olvidando a dignidade dos destinatários da reforma agrária, do planejamento urbano e dos eventuais beneficiários da utilização que eventualmente a Administração Pública venha a conferir ao imóvel.

3. Em terceiro lugar, muitos grileiros hão de se aproveitar da situação. Segundo noticia Luiz Nassif,:


Para se ter uma ideia do que se trata e não sei como ele conseguiu, mas recentemente foi divulgada a notícia de que o pai do Aécio Neves, finado ex-deputado federal Aécio Cunha, teria adquirido as terras da sua fazenda em Montezuma através de ‘usucapião’ de terras públicas do Estado de Minas Gerais (o que a Constituição proíbe).

É nessas horas que entendo um velho ditado da minha querida e falecida avó mineira, que dizia: ‘Na sombra de cachorro, galinha bebe água!’

Na desculpa do uso social da terra e com o apelo de atender aos mais necessitados, muitas raposas felpudas poderão passar por essa brecha e além de tomarem água, vão pôr as galinhas no bucho. (Disponível em: http://jornalggn.com.br/noticia/polemica-sentenca-em-minas-reconhece-usucapiao-de-bem-publico. Acesso em: 7 de fevereiro de 2015)

De fato, sem os cães (Constituição e Judiciário) a vigiar, as galinhas (patrimônio público/povo em geral) estarão, como nunca, à mercê das raposas. É isso que queremos?

4. Nessa mesma esteira, caberia um comentário mais político que jurídico; talvez um desabafo. Num país em que bem comum é bem nenhum, em que o patrimônio público é achacado cotidianamente por aqueles que deveriam zelar por ele, em que “se mete a mão” sem o menor pudor nos bens que deveriam servir ao público, num país assim, defender o usucapião de bens públicos, é muito natural e muito triste, data maxima venia.

De todo modo, é bom que se avalie cada situação individualmente. Talvez, tenha sido feliz a decisão, no caso do acórdão em comento, dadas as suas várias peculiaridades. Mas isso não significa que se possa defender, sem mais aquela e frontalmente contra legem, o usucapião de bens públicos, numa visão unilateral e perigosa do princípio da dignidade humana.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF e UFC).


César Fiuza é advogado e professor na Universidade Federal de Minas Gerais, na PUC-MG e na Universidade FUMEC.



Revista Consultor Jurídico, 23 de fevereiro de 2015, 8h00

Trabalhadora será indenizada porque empregadora publicou aviso de abandono de emprego em jornal durante auxílio-doença




Uma empresária de Santa Catarina foi condenada pela Justiça do Trabalho a pagar indenização por danos morais de R$ 5 mil por publicar, em jornal, notificação de abandono de emprego de uma auxiliar de serviços gerais antes que ela tivesse alta previdenciária. A demissão por justa causa foi revertida em dispensa imotivada, e a empregada receberá também as verbas rescisórias.

O anúncio do abandono de emprego foi publicado três vezes em jornal de circulação local em datas diversas. A empregada estava afastada do trabalho, recebendo auxílio-doença, devido a lesão nos ombros, e permaneceu de licença até 25/2/2011. No entanto, em 2/2, a empregadora encaminhou notificação convocando-a para retornar ao trabalho.

O Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região (SC) entendeu que a rescisão contratual durante este período é nula, pois o contrato de trabalho estava suspenso. Assim, não se poderia considerar que houve abandono de emprego durante o período de afastamento por saúde da auxiliar. Para o Regional, a antijuridicidade do ato da empregadora estava em tornar público um fato desabonador da conduta da empregada que não ocorreu.

O TRT-SC salientou que a empresária não esgotou outras formas de notificação, pois poderia ter mandado correspondência com aviso de recebimento. De acordo com o Regional, o ato foi ilícito porque objetivou, unicamente, caracterizar o abandono de emprego sem que este tenha de fato ocorrido.

No recurso ao Tribunal Superior do Trabalho, a empregadora – proprietária de 26 imóveis destinados a locação para turistas – alegou que não podia ser condenada ao pagamento de indenização por danos morais, pois a empregada faltou ao trabalho por mais de 30 dias. Sustentou que a decisão contrariou a Súmula 32 do TST, que trata do abandono de emprego.

Ao julgar o caso, a Sexta Turma do TST não conheceu do recurso de revista, entendendo que os julgados apresentados para confronto de jurisprudência eram inespecíficos, por tratarem da ausência do empregado ao serviço por período igual ou superior a 30 dias, não abordando situação em que o empregador convocou o empregado a retornar ao trabalho quando ainda estava percebendo o benefício previdenciário. O relator, ministro Aloysio Corrêa da Veiga, destacou ainda que não podia considerar contrariada a Súmula 32, pois ficou delimitado nos autos que a empregada foi impedida de retornar ao trabalho.

(Lourdes Tavares/CF)


Fonte: TST

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Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...