Extra, extra! Polêmica nacional: o picolé Dilleto e o suco Do Bem estão sendo “investigados” porque teriam mentido em suas propagandas. O suco não é feito com laranjas da Fazenda X e o picolé não é feito com a receita inventada pelo avô do dono da fábrica, que, no máximo, sabia capinar na lavoura nas montanhas da Itália.
Questão: pode a publicidade mentir? Céus. E... céus! Depois de ter frouxos de riso, recuperei-me do choque provocado pela “polêmica” neo-farisaica. Minha tese: vamos fechar a fábrica de picolés. Onde se viu inventar um avô que não sabia fazer picolés? Que pilantras. Ora, inventar um avô.
E acrescento, a título de colaboração: Vamos fechar o McDonalds, cujo sanduíche não é nem parecido com o que está na fotografia. Exijam o sanduíche das fotos! Processemos os hotéis e agência de propaganda que vendem estadias, porque mostram fotos de quartos que, quando lá se chega, nem de perto são o que aparece nas fotos. E vamos processar as pessoas do Facebook.
Veja as fotos dos facebookeanos... Encontre-os na rua e verá: a foto não tem nada a ver com a figura “ao vivo”. E o que dizer da propaganda da Vivo? Vivo tudo ou total por R$ 6,90 por mês. Internet por seis e noventa! Sim! Tudo verdade! Assine a Sky: você não imagina que barato. Tudo por R$ 59,90 (na prática, paga-se três ou quatro vezes mais ou os canais são reduzidíssimos em relação aos demais “pacotes”, combos, etc; ou o preço só vale por três meses)! Eu tenho um celular 4G (Vivo) e posso mostrar para qualquer um que só aparece na tela 3G. Fui à loja da Vivo e nem lá dentro o sinal de 4G apareceu. Tudo verdade! Não estou mentindo. Ah: Em Porto Alegre tem uma propaganda de funerária que diz que a tal funerária nem parece funerária. Tudo verdade.
Verdades e mentiras! Esse país é uma maravilha. Ligo o rádio e ouço um reclame governamental: “a segurança pública avançou no governo tal e tal”. E, em seguida, o noticiário: morreram tantas pessoas assassinadas, houve tantos assaltos... Tudo mentira e tudo verdade!
Emagreça tomando comprimidos de algas ou casca de árvore de pé-de-boi. Ou compre a TV X em 10x sem juros! Yes! Sem juros! Tudo verdade!!! E vamos fechar a fábrica dos picolés do avô inventado. Vamos expulsá-lo do país. Mentiroso. Onde já se viu mentir assim em um país em que a verdade é quase ontológica? Alugue um carro na AVIS e devolva-o no aeroporto de Confins sem o tanque completo. Bingo! Pagará R$ 5,50 por litro de álcool. Tudo verdade. Amo esse país. De verdade. Não é mentira, não!
Aristóteles perguntava: Que vantagem têm os mentirosos? E respondia: A de não serem acreditados quando dizem a verdade. E Millor: jamais diga uma mentira que não possa provar! E eu digo: eu posso provar a verdade acerca das mentiras ditas acima. Como também posso provar que são mentiras as verdades que se dizem por ai. Por isso posso provar que os 0800 das companhias telefônicas ou da SkyNet são para enganar trouxas. Aliás, posso demonstrar que os telefones nos quais uma gravação atende são danosos ao consumidor. As companhias devem atender a ligação em 1 minuto. Elas atendem...e deixam você pendurado por 15 minutos. Como a Azul, que cobra R$ 130 para alterar uma passagem, mesmo que seja para viajar uma hora antes. Mais: faça o teste e ligue, agora, para, assim por amostragem, o SAC da Samsung (ah, não é assistência técnica? Que pena...). Viva. Ou Vivo. Também é verdade a propaganda eleitoral em que os novos deputados diziam: “Pela ética, vote na renovação”! Beleza: desde que me pague a minha parte em dinheiro! Por exemplo, em troca de meu voto em determinado projeto de lei... Entenderam?
Vou colocar um adesivo no meu carro: Fora com o cara que inventou o avô! Onde se viu isso? Ou vou colocar no twitter (que não tenho): #A publicidade e a TV não mentem! Fora com o cara do picolé Dilleto que inventou um avôfake e cujo avô de verdade não sabia fazer picolé!#
E vou estocar comida. E picolés feito com receita de meu avô. O avô é meu e ninguém tasca. Ele nasceu no Afeganistão. Faz picolé de raspa de tijolo. Picolés Streck. Os melhores. E não é verdade que seja mentira a mentira que, de verdade, contaram na peça publicitária. Montanhas: aqui vou eu! Com o farnel cheio de picolés e laranjas da Fazenda do seu Francisco. Estocar e estocar! Eis a solução. O caos e o dilúvio vêm aí! Estou avisando.
As mentiras no direito e como Fragoso sabia de tudo
Mentiras estão ligados aos mitos. Mitos institucionalizam mentiras. Mitos são simplificações com o objetivo de dar, por meio da lógica, “conforto moral” àqueles que se sentem miseravelmente perdidos em meio ao caos da História. Mitos não são verdade nem pretendem sê-lo; servem somente para conferir sentido ao homem-massa, com bem diz o Professor em História da USP Marcos Guterman.
O jurista-massa sobre(vive) de mitos. A verdade real é um mito. O livre convencimento é um outro mito que conforta moralmente os juristas. Vende-se nas salas de aula que o “direito é uma questão de caso concreto”...e, “de verdade mesmo”, sabemos que isso é um mito, uma mentira que dizemos aos alunos. Até a Constituição mente, ao dizer que os tribunais examinarão “causas”. Os embargos declaratórios são outras das mentiras que são contadas cotidianamente. Se a Constituição exige fundamentação, como podemos admitir sentenças omissas, contraditórias ou obscuras? O Código Penal estabelece uma divisão em títulos e capítulos. O Direito Penal serve para “pacificar” a sociedade... Sim. Pura mentira. Todos são iguais perante a lei...mas no resto não. E assim por diante. Mitos e teorias sobre a lei, como diria Warat, há 40 anos.
Mas talvez o mito mais “contundente” seja o de que, em país como o nosso, a autoridade é algo que se herda, tanto é que sempre “tomamos posse”. Fulano tomou posse no cargo de...! A linguagem marca. Define. Palavra é pá-que-lavra. Veja-se o caso do juiz do Maranhão que deu voz de prisão — e efetivamente prendeu — funcionários de companhia aérea que, cumprindo procedimento previstos na legislação aérea, não permitiram que Sua Excelência embarcasse. Carregando o mito de que “faço parte de um estamento e por isso sou diferente dos patuleus”, manda prender quem faz exatamente aquilo que ele, juiz, deveria fazer: cumprir a lei. Aliás, ao que consta, o juiz já julgara ação em que a tese por ele albergada era exatamente a tese que os funcionários da TAM aplicaram no caso dele. Bingo.
Por isso, Hanna Arendt vai dizer que, em determinados casos, os mitos são uma “ofensa ao bom senso”. É o caso. Que sentido tem, em uma democracia, que alguém possa pensar que, ao não ser atendido em seu desejo individual — no caso, embarcar em um avião “fora de prazo” — tenha o direito de prender trabalhadores em flagrante? Aliás, quantos pleitos já foram indeferidos por Sua Excelência por estarem “fora de prazo”? O prazo e a pontualidade só valem para os mortais? Há, sim, havia esquecido. Embora já tenha transitado em julgado que “juiz não é Deus” (parece já ser uma Súmula Vinculante, conforme os brilhantes votos dos também juízes Alexandre Morais da Rosa e Néviton Guedes, com os quais concordei por escrito aqui na ConJur), ainda há alguns recalcitrantes. É o caso do Juiz do Maranhão.
Nestes tempos de deificações, surge até um novo problema: e os membros do Ministério Público, mormente os procuradores da República, também não se acham deuses? Bom, talvez a solução seja adotarmos o poleteismo. Assim, não brigamos.
Cito a seguir um belíssimo texto, com o propósito de desmi(s)tificar (o mito e o sacral) o imaginário jurídico de terrae brasilis, o insuspeito Heleno Fragoso, que, ao menos nesta parte deveria ser lido pelo juiz do Maranhão e pelo procurador da República que sustenta que “passarinho na gaiola canta melhor”.
“...o Poder Judiciário pode e deve ser criticado. É que estamos mal habituados a uma autêntica sacralização da justiça, pela qual os advogados são, talvez, os maiores responsáveis. Dos tribunais se costuma dizer sempre que são ‘egrégios’, ‘colendos’, ‘altos sodalícios”, e do Supremo Tribunal comumente se diz que é o ‘Excelso Pretório’.
Dos juízes, que são apenas funcionários do Estado encarregados de dirimir os conflitos judiciais, se diz sempre que são ‘eminentes’, ‘ínclitos’, ‘meritíssimos’, ‘doutos’, ‘ilustres’, etc.
As sentenças são sempre ‘venerandas’ e ‘respeitáveis’, por mais injustas e iníquas que possam ser. Nada disso tem sentido num regime democrático e republicano, no qual a justiça se faz em nome do povo, fonte primária de todo poder”.
[1]
Na verdade, Fragoso vai mais longe ainda. Mas penso que é suficiente o que está dito acima. Os advogados, principalmente eles, deveriam recortar essa citação de Fragoso e coloca-la na parede ou na geladeira, para não esquecer jamais. Mas, é claro, juízes e procuradores também devem ler esse belo texto!
Pronto. Uma coluna bem curtinha. Acústica!
[1] FRAGOSO, Heleno Cláudio – Advocacia da Liberdade, Forense, Rio de Janeiro, 1984, p. 199.
Revista Consultor Jurídico, 11 de dezembro de 2014, 8h00