terça-feira, 27 de maio de 2014
Fisioterapeuta de clínica estética não consegue adicional de insalubridade por exposição a agentes biológicos
O adicional de insalubridade é o valor pago ao trabalhador para compensar a sua exposição a determinado agente de risco ou situação de trabalho considerada nociva à saúde, em função da natureza, intensidade e tempo de exposição. De acordo com a CLT, é considerada atividade insalubre aquela em que o trabalhador é exposto a agentes nocivos acima dos limites tolerados pelo Ministério do Trabalho e Emprego. A Norma Regulamentadora nº 15, do MTE, define o que é atividade insalubre.
Uma fisioterapeuta que trabalhava em uma clínica estética buscou a Justiça do Trabalho, pedindo o pagamento do adicional de insalubridade. Ao analisar o caso, a juíza de 1º Grau reconheceu que, de fato, ela matinha contato permanente com radiação não-ionizante e agentes biológicos. Por essa razão, condenou a reclamada ao pagamento da parcela, em grau médio. Mas, ao julgar o recurso da ré, a 4ª Turma do TRT mineiro afastou totalmente a possibilidade de caracterização da insalubridade por exposição a agentes biológicos no caso.
O trabalho da reclamante consistia na aplicação de procedimentos estéticos, tais como, carboxiterapia, laser para depilação, radiofrequência por meio de luz pulsada, drenagens, massagens, dentre outros. De acordo com o laudo pericial que fundamentou a sentença, a insalubridade teria ficado caracterizada por contato com agentes biológicos quando da realização da carboxiterapia. Este procedimento consiste na aplicação de injeções de gás carbônico.
No entanto, o desembargador relator, Paulo Chaves Correa Filho, discordou desse entendimento. Ele lembrou que a NR-15, Anexo 14, da Portaria 3.214/78 do Ministério do Trabalho e Emprego, considera atividades insalubres, em grau médio, as seguintes atividades: trabalhos e operações em contato permanente com pacientes, animais ou com material infectocontagiante, em hospitais, serviços de emergência, enfermarias, ambulatórios, postos de vacinação e outros estabelecimentos destinados aos cuidados da saúde humana, aplicando-se unicamente ao pessoal que tenha contato com os pacientes, bem como aos que manuseiam objetos de uso desses, não previamente esterilizados.
Para o julgador, de forma alguma esse é o caso da reclamante e, tampouco, da reclamada. É que a fisioterapeuta não mantinha contato permanente com pacientes ou com material infecto-contagiante. Conforme ponderou o relator, a atividade que ela desempenhava na clínica de estética não se equipara àquelas normalmente desenvolvidas em postos de vacinação ou em outros estabelecimentos destinados aos cuidados da saúde humana, descritos na norma regulamentadora. "Não há subsunção à norma, uma vez que a reclamante não aplicava injetáveis em pacientes, mas em clientes que se dirigem à reclamada para tratamento estético", ressaltou, acrescentando não ter identificado no desempenho da atividade os elementos caracterizadores da insalubridade.
O desembargador chamou a atenção para uma decisão do TST relacionada ao caso de um vendedor-balconista de farmácia, que aplicava injeções. Na ocasião, entendeu-se que a atividade sequer expunha o balconista a efetivo contato com material infectocontagiante, como ocorre em hospitais, ambulatórios ou postos de saúde. A conclusão pericial foi considerada incabível no mundo jurídico, por distanciar completamente da normatização posta na NR-15, Anexo 14 da Portaria 3.214/78. "Afirmações sem nenhum embasamento técnico-científico" - foi como as conclusões do perito foram consideradas. Os julgadores lembraram que apenas as clínicas e laboratórios credenciados, além dos hospitais, podem fazer aplicações de determinados medicamentos, até pelos riscos que a operação envolve.
Por outro lado, o relator confirmou o entendimento de que não houve neutralização dos efeitos da radiação não-ionizante a que estava exposta a trabalhadora quando aplicava laser, radiofreqüência, infravermelho e ultravioleta. Na forma do disposto no Anexo 7 da NR-15 da Portaria nº 3.214/78, para fins de segurança do trabalho, são radiações não-ionizantes as microondas, o ultravioleta e o laser. Nesse contexto, o recurso da clínica de estética, que pretendia se ver livre da condenação ao pagamento do adicional de insalubridade, foi julgado improcedente.
( 0001059-57.2013.5.03.0002 ED )
Fonte: TRT3ª Região
Retirada de cheques por terceiros gera dano por fato do serviço, e prescrição é de cinco anos
Retirada de cheques por terceiro gera dano por fato do serviço, e prescrição é de cinco anos
A devolução de cheques cujos talões foram retirados indevidamente por terceiros, sem autorização do correntista, gera dano por fato do serviço. A vítima desse tipo de dano é considerada consumidora do serviço bancário e pode buscar indenização até cinco anos depois do fato. A decisão é da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Ao tentar fazer compra a prazo, uma cliente do Banco do Brasil (BB) foi surpreendida em 2003 pela existência de uma restrição contra ela. Constava nos serviços de proteção ao crédito a devolução de 65 cheques em seu nome.
Depois de apurar que os talonários foram retirados da agência por terceiros, sem sua autorização, e postos em circulação, a consumidora moveu ação de indenização contra o banco, em 2008.
R$ 8 mil
Inicialmente, a Justiça do Paraná deu razão à consumidora do serviço bancário. Para o magistrado, a cliente deveria receber indenização de R$ 8 mil.
Mas em recurso do banco, o Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), aplicando o prazo prescricional do Código Civil para a reparação civil (artigo 206, parágrafo 3º, inciso V), entendeu que a vítima teria apenas três anos para buscar a indenização.
Fato de serviço

Para o ministro Paulo de Tarso Sanseverino (foto), no entanto, a ação trata da responsabilidade do banco pelo fato do serviço, na linha do Código de Defesa do Consumidor. “O serviço mostrou-se, em princípio, defeituoso ao não fornecer a segurança legitimamente esperada pelo consumidor/correntista, pois um talonário de cheques em poder e guarda da instituição financeira foi entregue a terceiro, que o utilizou fartamente”, explicou o relator.
“Constitui fato notório que os talonários de cheques depositados na agência bancária somente podem ser retirados pelo próprio correntista, mediante assinatura de documento atestando a sua entrega, para possibilitar o seu posterior uso. O banco, portanto, tem a posse desse documento, esperando-se dele um mínimo de diligência na sua guarda e entrega ao correntista”, completou o ministro.
Afastada a prescrição, o caso volta agora ao TJPR para que avalie as demais razões do recurso do banco contra a sentença favorável à consumidora.
Esta notícia se refere ao processo: REsp 1254883
http://www.stj.jus.br/webstj/processo/justica/jurisprudencia.asp?tipo=num_pro&valor=REsp1254883
Fonte: STJ
segunda-feira, 26 de maio de 2014
Não há acúmulo de funções se tarefas são compatíveis com a função exercida
Não há acúmulo de funções se tarefas são compatíveis com a função exercida
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Um técnico de radiologia procurou a Justiça do Trabalho alegando que também exercia a função de auxiliar de radiologia. Isto porque, segundo sustentou, a atividade de revelação do filme não fazia parte da função para a qual foi contratado. Com esses fundamentos, pediu o pagamento de diferenças salariais por acúmulo de funções. Mas a pretensão foi julgada improcedente. Tanto o juiz de 1º Grau quanto a 9ª Turma do TRT-MG, que julgou o recurso do reclamante, reconheceram que todas as atividades realizadas pelo técnico eram compatíveis com a função, não gerando direito a qualquer diferença salarial. No processo ficou demonstrado, inclusive, que o hospital reclamado não possui a função de auxiliar de radiologia.
Casos como esse já fazem parte da rotina da Justiça do Trabalho mineira. Quem chama a atenção para a proliferação de demandas envolvendo o tema é a desembargadora Mônica Sette Lopes, que atuou como relatora no recurso do técnico de radiologia: "O pedido de diferenças salariais por acúmulo de função constitui uma nova onda nas ações trabalhistas".
Com olhar crítico sobre essa realidade, a magistrada apontou os equívocos comumente praticados nas reclamações: "O pedido vem deduzido a partir da dissecação da atividade do empregado, como se ela fosse composta de tarefas estanques e, no mais das vezes, não há uma base jurídica (uma norma coletiva, uma lei a indicar a exigibilidade de pagamento destacado por certa tarefa) que possa impor ao empregador o dever de pagar mais do que o contratado". A relatora lembrou, diante desse contexto, que o Poder Judiciário trabalhista, em dissídios individuais, não tem legitimidade para olhar a situação do empregado e livremente estabelecer quanto ele deve ganhar para o exercício de cada tarefa.
E foi partindo dessa premissa que a desembargadora analisou o recurso apresentado pelo reclamante. No caso, não foi encontrada na norma coletiva anexada aos autos qualquer previsão de remuneração diferenciada para o exercício das atribuições indicadas pelo reclamante. Além disso, uma testemunha esclareceu que no hospital nunca existiu auxiliar em técnico de radiologia e que o feixe de atribuições abrange "as tarefas de uma auxiliar dessa função, que apenas consiste em revelar as chapas". Ainda conforme o relato, em razão da demanda no hospital, nunca foi necessária a presença de auxiliar em radiologia. Até 2006/2010, a demanda era bem maior, quando fazia em média 20 exames radiológicos por plantão, sempre sem auxiliar. De acordo com a testemunha, cabia ao técnico, inclusive, fazer a limpeza das máquinas de Raio X. Outro fator considerado pela desembargadora é que não houve prova de que tenha havido aumento de atribuições em razão de alguma alteração estrutural ou organizacional na empresa que se refletisse sobre os empregados, como, por exemplo, a extinção de um cargo ou a dispensa de um empregado, com a distribuição das tarefas deste para o reclamante.
"As atividades desenvolvidas no curso do contrato de trabalho eram compatíveis com o cargo exercido pelo autor", foi como concluiu a relatora, diante da realidade apurada nos autos. Ela chamou a atenção para o fato de não ter havido prova de que o reclamante tenha recebido remuneração diferenciada em relação a outros que também tivessem as mesmas atribuições. Na visão da magistrada, as funções do reclamante não se incompatibilizam com o exercício de suas atribuições profissionais como técnico de radiologia, o que não implica qualquer desdobramento do ponto de vista da remuneração.
Ao final, a relatora lembrou que o parágrafo único do artigo 456 da CLT não exige que a empresa remunere cada uma das tarefas desempenhadas pelo empregado. Se estas são compatíveis com a função exercida, somente o salário previsto é devido. Com essas considerações, negou provimento ao recurso do técnico de radiologia, sendo acompanhada pela Turma de julgadores.
( 0000449-07.2013.5.03.0094 ED )Fonte: TRT 3ª Região | |
Acesso facilitado ao Supremo atrasa Justiça, diz Roberto Barroso
O acesso facilitado ao Supremo Tribunal Federal atrasa a Justiça do país. A opinião é de Luís Roberto Barroso, ministro da própria corte. "A gente perde muito tempo com coisas irrelevantes", disse, acrescentando que muitos casos deveriam ser julgados e encerrados em 2ª instância. As afirmações foram feitas ao jornalista Mário Sérgio Conti, em programa no canal GloboNews.
Ministro do STF há quase um ano, Barroso (foto) disse também que o fato de o país ser hierarquizado e dividido em classes reflete no comportamento do Judiciário. “A Justiça, sobretudo a Justiça Penal brasileira, é dura com os pobres e mansa com os ricos, embora ache que temos feito um esforço civilizatório relevante para sair deste atraso. Temos andado na direção certa, embora não na velocidade desejada”.
Sobre as manifestações que voltaram a ocupar as ruas das cidades brasileiras com maior intensidade, Barroso afirmou que elas nascem da incapacidade do Estado de atender demandas da população. “Ela [sociedade] quer serviços públicos de qualidade, mais ética na política, melhor perspectiva de futuro.”
Para Barroso, no entanto, não deveria haver espaço para violência nas manifestações. “Onde há democracia, e, apesar de todas as deficiências, nós somos uma democracia, a violência não se justifica”.
Revista Consultor Jurídico, 25 de maio de 2014, 15:12h
O jurista Carl Schimitt e os experimentos de Von Pettenkofer
O jurista Carl Schmitt e os
experimentos de Von Pettenkofer

Conta-nos Francisco de Sosa Wagner que em abril de 1945, logo após a derrota da Alemanha na Segunda Guerra Mundial, em Berelim, um oficial russo prendeu o jurista Carl Schmitt. Schmitt, que faleceu em 1985, recorrentemente acusado de ter sido o defensor jurídico do ideário nazista, ainda que se reconheça, também recorrentemente, suas qualidades de juspublicista fino e argumentativo. O vínculo com o nacional-socialismo revela-se como uma maldição que acompanhou a tragetória desse pensador solitário, de poucos amigos, especialmente a partir do fim da guerra.
O oficial russo que interrovaga Schmitt centrava as perguntas na ligação do interrogado com o regime derrotado. Schmitt teria respondido que sua participação no regime nazista dera-se exatamente de acordo com o experimento de um sábio, Max von Pettenkofer, químico e higienista bávaro, que viveu de 1818 a 1901.
Evidentemente, o oficial russo desconhecia o experimento do então citado sábio. Schmitt explicou que von Pettenkofer havia demonstrado que as infecções não se contraem apenas pela presença de um bacilo, mas também pela predisposição do sujeito que o aloja. Schmitt ainda explicou ao oficial russo que von Pettenkofer teria ingerido o bacilo da cólera na frente de alguns alunos, e que, provando a tese defendida, não contraiu a doença.
O oficial russo ainda nada teria entendido. A comparação, em princípio, não fazia sentido. Schmitt então concluiu que o mesmo havia ocorrido com ele. Isto é, ainda que ingerido o bacilo do nacional-socialismo, por essa moléstia não fora infectado... Portava o mal, porém a doença nele não se manifestara. Isto é, ainda que portador do bacilo do nacional-socialismo, argumentava Schmitt, essa patologia nele jamais se revelara. Sosa Wagner também nos conta que o oficial russo riu da pilhéria e que em seguida liberou o jurista.
Questiono se Schmitt de fato dissera a verdade. É dúvida que sugere excerto de texto de Schmitt, “O Füher protege o Direito” (que se encontra traduzido no belíssimo livro de Roberto Porto Macedo Júnior, agora em segunda edição, livro primoroso).
E ainda admitindo que Schmitt ao oficial russo falara a verdade, no sentido de que o nazismo não o afetou, o que provavelmente muitos disseram no contexto da desnazificação, verdadeira ou maliciosamente, essa instigante passagem retratada por SosaWagner provoca-nos uma reflexão em torno das relações éticas entre os intelectuais e o poder.
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pós-doutor em Teoria Literária pela Universidade de Brasília.
Revista Consultor Jurídico, 25 de maio de 2014, 08:00h
quinta-feira, 22 de maio de 2014
O juiz, a umbanda e o solipsismo: como ficam os discursos de intolerância?
O juiz, a umbanda e o solipsismo: como ficam os discursos de intolerância?
![Caricatura Lenio Streck [Spacca]](http://s.conjur.com.br/img/b/caricatura-lenio-streck1.png)
Explicando o case
O Ministério Público Federal entrou com Ação Civil Pública para a retirada de vários vídeos ofensivos (e intolerantes) contra as religiões afro-brasileiras (umbanda e candomblé). O juiz Federal do Rio de Janeiro, encarregado do caso, negou a antecipação de tutela sob o argumento de que as “manifestações religiosas afro-brasileiros não se constituem em religião”. E acrescentou: faltariam a elas “traços necessários de uma religião”, como um “texto base”, a exemplo da Bíblia ou do Alcorão. Apontou, ainda, a ausência de uma estrutura hierárquica e de um Deus a ser venerado. Também disse que não havia urgência na retirada. Sobre o sentido de religião e liberdade, trataria no mérito. O Ministério Público ingressou com agravo. É o relatório (brincadeira, vício de profissão).
O velho problema do decisionismo
Como o juiz negou a antecipação de tutela? Nitidamente — e tudo dá a entender isso — a partir de sua percepção pessoal sobre religião, Deus, etc. Na semana passada fiz uma coluna criticando (ler aqui) o fator “decido-conforme-minha-consciência”. Portanto, repito, não é implicância minha. Juiz não deve decidir conforme seus humores, pendores, desejos, crenças etc. Dworkin, por exemplo, diz que não importa o que pensam os juízes sobre impostos, jogos etc. Importa é que seu ato é de responsabilidade política.
Com Dworkin: Juiz decide por princípios e não por políticas ou por moral(ismos). Digo isso pela centésima vez. Democracia se faz a partir de responsabilidade política. Direito é um conceito interpretativo e é aquilo que é emanado pelas instituições jurídicas, sendo que as questões a ele relativas encontram, necessariamente, respostas nas leis, nos princípios constitucionais, nos regulamentos e nos precedentes que tenham DNA constitucional, e não na vontade individual do aplicador. Portanto, direito não é moral. Não é religião. Não é futebol. Não é política.
Pois o juiz Federal do Rio de Janeiro, em vez de reconstruir a história institucional do problema relativo aos discursos de ódio versus liberdade de expressão (por exemplo), ele atalhou e usou os seus próprios pré-juízos, que, como se viu, causaram um enorme prejuízo.
A decisão do juiz é inconstitucional porque a distinção entre religião e manifestação religiosa para efeito de negação de tutela constitucional viola o princípio da proibição de proteção deficiente ou insuficiente (Untermassverbot). Melhor ainda, a decisão, ao desproteger as religiões afro-brasileiras, violou o dispositivo constitucional que estabelece a liberdade de crença etc. Ou seja, não somente o legislador pode incorrer em uma violação da Untermassverbot, como também o órgão julgador.
E não adianta reconhecer o caráter de ancestralidade aos "cultos afrobrasileiros" (que ele colocou entre aspas) para depois negar-lhes proteção, algo que já denunciei alhures como sendo a aplicação da fórmula Scalia (refiro-me ao voto de Scalia no caso Bowers v. Hardwick).
Discuti esse assunto amiúde com Marcelo Cattoni (professor da UFMG), jusfilósofo da cepa que, em vários escritos, explicita e compreende sobremodo o sentido das exigências de reconhecimento do pluralismo social e cultural próprias ao Estado Democrático de Direito que, como no caso da Constituição de 1988, condena o racismo social, cultural e de classe, além de assegurar direitos culturais aos indivíduos e às comunidades ancestrais. Sim, existe racismo cultural do mesmo modo que existe o “racismo comum”.
Pergunta, então, Cattoni: “De qualquer forma, faz algum sentido, para efeito de garantir a liberdade religiosa (inclusive de não ter nenhuma religião!!) diferenciar manifestações religiosas e religião? Afinal, o que é liberdade religiosa e de crença num Estado Democrático de Direito, republicano, laico e protetor do pluralismo social e cultural que constitui internamente a nacionalidade e a cultura brasileira”?
Não esqueçamos que o STF, no HC 82424 (Caso Ellwanger),[1] negou o sentido constitucional da liberdade de expressão a discursos de ódio, a expressões de preconceito e de discriminação de qualquer natureza, que visam a inferiorizar ou a não reconhecer a liberdade como igualdade na diferença e a dignidade de todos e de cada um como expressão constitucional do direito fundamental a ser tratado pelo Estado com igual respeito e consideração (o sentido amplo ali adotado pelo STF para "racismo").
Com relação à não concessão de tutela antecipada, não esqueçamos também, aqui, que, no caso Ellwanger, o STF não exigiu, para efeito de garantia de direitos fundamentais, que houvesse caso de dano iminente e irreparável, mas considerou a própria publicação e divulgação de material racista lesivo não apenas às comunidades judaicas, mas também à própria sociedade democrática. Bingo.
Enfim: se a Umbanda e o Candomblé são manifestações culturais centenárias e profundamente enraizadas na cultura brasileira, somente isso já justifica a sua proteção contra formas de discriminação social e cultural, expressão, em sentido amplo, de racismo social e cultural.
Dito isso, qual é o papel de um juiz?
Decidir não é escolher. Escolhas são da ordem de nossa razão prática. Escolhe-se entre ir ao cinema ou ao futebol. Mas quando o juiz decide (judicialmente falando) deve fazê-lo a partir do Direito. Evidente que a decisão não é um ato subsuntivo (a subsunção sequer se sustenta filosoficamente; subsunção é tão fictícia quanto a sustentação da verdade real). Mas a decisão tampouco é um ato arbitrário. O juiz não é escravo da lei... Óbvio isso. Mas, por favor, ele tampouco é dono da lei (ou da Constituição ou do conceito de religião ou do conceito de cultura ou do conceito de preconceito ou do conceito de discurso de ódio...).
Juiz não é neutro. Ninguém o é. Não é disso que se trata. O que venho sustentando em meus escritos sobre teoria da decisão é que a subjetividade do juiz deve ser constrangida epistemologicamente (quer dizer, controlada) pela intersubjetividade. Se o juiz não consegue suspender seus pré-juízos, ele não pode (e não deve) ser juiz. Ele pode odiar ou amar algo. Mas na hora da decisão isto deve ficar suspenso (uma epoché). Isso se chama de responsabilidade política. Democracia é isso. Caso contrário, meus direitos dependerão da boa vontade do juiz. E, repito a frase (que não é minha, é do Agostinho Ramalho): Deus me livre da bondade dos bons.
Ora, no caso dos vídeos objetos da Ação Civil Pública promovida pelo MPF, há que se consultar as práticas sociais e aquilo que a tradição acerca do que seja religião e cultura afro significa (o comentário acima elucida a quaestio juris). Aquilo que já faz parte da tradição de um povo. Esse é o primeiro movimento que o juiz deve fazer: buscar o sentido a partir do revolvimento do chão linguístico em que está assentada determinada tradição sob questionamento. É o que se chama de método hermenêutico, que venho trabalhando amiúde sob a epígrafe de “a alegoria do hermeneuta” (neste sentido, meu Lições de Crítica Hermenêutica do Direito).
Nitidamente os tais vídeos configuram abuso de liberdade de expressão. São discursos de ódio e de intolerância que a democracia veda. No mínimo, racismo cultural. Parafraseando Dostoievski e sem fazer trocadilhos (e invertendo a frase), se Deus morreu, agora não podemos tudo...
Portanto, muita calma. Liberdade de expressão não quer dizer que dê para passar a mão na bunda do guarda. E nem ofender a crença e a cultura de milhões de brasileiros. Para que existe a Lei da Igualdade Racial, por exemplo? Por que o Brasil assina tratados e acordos contra a descriminação?
Por isso, a minha insistência: aos juízes incumbe a apuração da coerência, ou não, do texto de cada lei em relação à Constituição. O juiz cumpre um papel. São os dois corpos do Rei, tese desenvolvida por Kantorowitz. No seu cotidiano, na sua vida pessoal, o juiz pode fazer as coisas que quiser. Mas, no papel de juiz, tem uma representação social e política.
Cada coisa no seu lugar, como diria Voltaire, falando do personagemPangloss (e compreendamos as suas desventuras): “reparem que o nariz foi feito para sustentar óculos. Por isso usamos óculos. As pernas foram visivelmente instituídas para vestirem calças; por isso usamos calças. As pedras foram feitas para serem talhadas...”.
Post scriptum I
Já finalizada a coluna — no “crepúsculo de jogo”, como dizia Fiori Gigliotti — soube da noticia que dava conta de uma espécie de retratação do juiz no que tange ao problema semântico-conceitual a fim de se saber se os cultos afro-brasileiros representam religião ou não. Segundo o jornal Estado de S. Paulo (clique aqui), o juiz autor da decisão voltou atrás na fundamentação, mas manteve a decisão liminar que autorizou a permanência no YouTube dos vídeos considerados ofensivos pelo Ministério Público Federal.
Note-se: a nova argumentação possui um nítido caráter instrumental. A decisão, em si, não mudou. Mesmo com uma nova roupagem, seu teor solipsístico continua inalterado. Trata-se de uma demonstração do velho “decido primeiro para fundamentar depois”, que também pode se expressar da seguinte maneira: “na minha jurisdição, primeiro decido segundo minha formação humanística e experiência, depois procuro justificar a decisão nos aspectos técnicos oriundos do ordenamento jurídico”. Caráter instrumental da fundamentação/argumentação, indeed. E não se venha dizer que o “juiz decidiu conforme sua consciência”. Isso não é argumento na democracia. Aliás, o juiz de Três Passos (RS), do “caso Bernardo”, também justificou a sua decisão de deixar que o pai — acusado de matar o menino — ficasse com a sua guarda. Disse: “decidi conforme minha consciência”. E quando a “consciência” não bate com a lei e a Constituição?
Sigo. Ainda segundo a notícia, a fundamentação foi readequada (sic) de modo a "registrar a percepção (sic) deste juízo de se tratarem os cultos afro-brasileiros de religiões". Quer dizer que o-sentido-do-que-seja-religião depende de uma “nova” percepção? Ou de uma “percepção melhor ou mais adequada”? Mas, afinal, o que é isto — a religião ou a manifestação cultural? É uma questão meramente semântica? Trata-se de um neo-nominalismo?
Na versão 2.0 da decisão, o juiz explica que a manutenção dos vídeos teve como fundamento a defesa da liberdade de expressão. A partir de um pretenso liberalismo, afirma que, embora os vídeos sejam de mau gosto “refletem exercício regular da referida liberdade”. E, novamente, errou o alvo. Isto porque tanto a proteção da liberdade de religião e crença, quanto a tutela da liberdade de expressão não implicam indiferença do Estado para com esses campos.
Explico melhor: há um erro de base naqueles que pensam que a liberdade de expressão representa uma espécie de direito absoluto em uma democracia constitucional: o esquecimento que a liberdade de expressão implica o exercício da tolerância. Como dizia o velho Kant — que, por sinal, era um liberal —, a autoridade política, no campo da liberdade de religião, possui um direito negativo de preservar a comunidade política de toda influência que possa ser prejudicial à tranquilidade pública. Nesse passo, a autoridade política — no caso o Estado — deve, por consequência, diz Kant, não permitir que a concórdia civil fique em perigo, seja pelas disputas internas, seja pelo conflito de diferentes religiões entre si, o que constitui, então, um direito de polícia. Ponto para o velho Imannuel!
Ou seja, diante de discursos que incitam o ódio e a intolerância (quem tem paciência, veja os vídeos), não podemos falar em exercício legítimo da liberdade de expressão. Logo, mudar a fundamentação não retirou o caráter solipsista (e inconstitucional) da decisão. Ao contrário, apenas serviu para demonstrar, de forma mais categórica, a sua ocorrência.
Aliás, por ocasião do julgamento do famoso caso Ellwanger, acima referido, chegou-se a sustentar que “judeu não era raça”, para descaracterizar o crime de racismo... Quer dizer que se “judeu não fosse raça”, os livros de Ellwanger poderiam ter sido publicados (por exemplo, Acabou o Gás, entre outros)? Se judeu não é raça, o que mudaria? No caso aqui sob comento, o que muda se a umbanda é religião ou não? Quer dizer que, em sendo religião, pode ser vítima de discurso de ódio ou de intolerância ou de racismo cultural?
Mais: o que é isto — a fundamentação? Ela é condição de possibilidade ou é meramente um adorno, um artifício retórico? Como é possível que uma decisão seja proferida tendo por base a premissa de que umbanda não é religião e, depois, reconhecida a circunstância desta ser religião, permanecer igual? Ou seja: ao que entendi, tanto faz se umbanda e candomblé são religiões; em nome de liberdade de expressão, pode-se delas dizer o que se quiser!
Na democracia tudo pode? Veja-se como, em nome da liberdade, vamos criando permissividades: de repente, sem qualquer aviso, São Paulo é vítima das greves de ônibus. Milhões de pessoas prejudicadas. Viva a liberdade de fazer greve! Viva a liberdade de expressão em poder fazer vídeos recheados de intolerância. Viva! E as consequências desse “Deus morreu e agora pode tudo”? Bem, as consequências sempre vem depois...como dizia o genial Conselheiro Acácio.
Post Scriptum II - um pequeno desagravo
Li o artigo do ex-ministro Eros Grau (aqui) em que ele espinafra a coluna Diário de Classe, na qual André Karam Trindade criticou a decisão do ministro Joaquim Barbosa acerca da polêmica sobre o cumprimento de um sexto da pena. Embora Grau não tenha citado o texto de André, é evidente o alvo (embora politicamente o texto de Grau possa ter outro endereço). A crítica de Grau foi, no mínimo, deselegante. Não fica bem usar falácia do tipoad hominem. Não ficou “legal” isso. Só para registrar.
[1] A crítica mais consistente até hoje feita ao caso Elwanger foi feita por Marcelo Cattoni, no artigo Direito, política e filosofia: contribuições para uma teoria discursiva da constituição democrática no marco do patriotismo constitucional. Rio de Janeiro: Mandamentos, 2007, cap. 8., p. 113-125.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 22 de maio de 2014, 08:00h
Análise de fatos que levaram a uma sentença deve ser refeita em nova ação
Análise de fatos que levaram a uma sentença deve ser refeita em nova ação
O julgamento de um processo não precisa seguir a mesma conclusão sobre a verdade dos fatos que motivou sentença em outra ação já transitada em julgado, ainda que seja relacionado ao mesmo caso e às mesmas partes. Esse foi o entendimento da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça ao avaliar disputa entre uma pousada e uma construtora que discutiam o valor da compra de um imóvel.22 de maio de 2014, 09:39h
O conflito chegou à Justiça quando a construtora decidiu cobrar a pousada por dívidas sobre parte do montante estabelecido em contrato. Mas uma sentença negou o direito a novos pagamentos, avaliando que a pousada já havia pagado pelo imóvel valor três vezes superior ao de mercado. Quando a decisão transitou em julgado, a pousada ajuizou nova ação, agora pedindo a devolução dos valores pagos a mais pelo imóvel. O pedido foi negado tanto em primeira instância quanto pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
No recurso ao STJ, discutiu-se a ocorrência ou não de ofensa à coisa julgada, tendo em vista que, na segunda ação, não foi reconhecido o pagamento maior apontado na sentença do primeiro processo. O ministro Sidnei Beneti, relator do caso, avaliou que a conclusão fática não precisaria ser a mesma, pois o artigo 469 do Código de Processo Civil diz que a verdade dos fatos estabelecida como fundamento de sentença não faz coisa julgada.
Embora o artigo 301 do CPC estabeleça que “há coisa julgada quando se repete ação que já foi decidida por sentença, de que não caiba recurso”, Beneti apontou que o artigo 469 fixa três situações em que isso não ocorre: os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença; a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença; e a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentalmente no processo. A decisão, unânime, ainda não foi publicada. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.
REsp 1.298.342
Revista Consultor Jurídico, 22 de maio de 2014, 09:39
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