Não há acúmulo de funções se tarefas são compatíveis com a função exercida
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Um técnico de radiologia procurou a Justiça do Trabalho alegando que também exercia a função de auxiliar de radiologia. Isto porque, segundo sustentou, a atividade de revelação do filme não fazia parte da função para a qual foi contratado. Com esses fundamentos, pediu o pagamento de diferenças salariais por acúmulo de funções. Mas a pretensão foi julgada improcedente. Tanto o juiz de 1º Grau quanto a 9ª Turma do TRT-MG, que julgou o recurso do reclamante, reconheceram que todas as atividades realizadas pelo técnico eram compatíveis com a função, não gerando direito a qualquer diferença salarial. No processo ficou demonstrado, inclusive, que o hospital reclamado não possui a função de auxiliar de radiologia.
Casos como esse já fazem parte da rotina da Justiça do Trabalho mineira. Quem chama a atenção para a proliferação de demandas envolvendo o tema é a desembargadora Mônica Sette Lopes, que atuou como relatora no recurso do técnico de radiologia: "O pedido de diferenças salariais por acúmulo de função constitui uma nova onda nas ações trabalhistas".
Com olhar crítico sobre essa realidade, a magistrada apontou os equívocos comumente praticados nas reclamações: "O pedido vem deduzido a partir da dissecação da atividade do empregado, como se ela fosse composta de tarefas estanques e, no mais das vezes, não há uma base jurídica (uma norma coletiva, uma lei a indicar a exigibilidade de pagamento destacado por certa tarefa) que possa impor ao empregador o dever de pagar mais do que o contratado". A relatora lembrou, diante desse contexto, que o Poder Judiciário trabalhista, em dissídios individuais, não tem legitimidade para olhar a situação do empregado e livremente estabelecer quanto ele deve ganhar para o exercício de cada tarefa.
E foi partindo dessa premissa que a desembargadora analisou o recurso apresentado pelo reclamante. No caso, não foi encontrada na norma coletiva anexada aos autos qualquer previsão de remuneração diferenciada para o exercício das atribuições indicadas pelo reclamante. Além disso, uma testemunha esclareceu que no hospital nunca existiu auxiliar em técnico de radiologia e que o feixe de atribuições abrange "as tarefas de uma auxiliar dessa função, que apenas consiste em revelar as chapas". Ainda conforme o relato, em razão da demanda no hospital, nunca foi necessária a presença de auxiliar em radiologia. Até 2006/2010, a demanda era bem maior, quando fazia em média 20 exames radiológicos por plantão, sempre sem auxiliar. De acordo com a testemunha, cabia ao técnico, inclusive, fazer a limpeza das máquinas de Raio X. Outro fator considerado pela desembargadora é que não houve prova de que tenha havido aumento de atribuições em razão de alguma alteração estrutural ou organizacional na empresa que se refletisse sobre os empregados, como, por exemplo, a extinção de um cargo ou a dispensa de um empregado, com a distribuição das tarefas deste para o reclamante.
"As atividades desenvolvidas no curso do contrato de trabalho eram compatíveis com o cargo exercido pelo autor", foi como concluiu a relatora, diante da realidade apurada nos autos. Ela chamou a atenção para o fato de não ter havido prova de que o reclamante tenha recebido remuneração diferenciada em relação a outros que também tivessem as mesmas atribuições. Na visão da magistrada, as funções do reclamante não se incompatibilizam com o exercício de suas atribuições profissionais como técnico de radiologia, o que não implica qualquer desdobramento do ponto de vista da remuneração.
Ao final, a relatora lembrou que o parágrafo único do artigo 456 da CLT não exige que a empresa remunere cada uma das tarefas desempenhadas pelo empregado. Se estas são compatíveis com a função exercida, somente o salário previsto é devido. Com essas considerações, negou provimento ao recurso do técnico de radiologia, sendo acompanhada pela Turma de julgadores.
( 0000449-07.2013.5.03.0094 ED )Fonte: TRT 3ª Região |
segunda-feira, 26 de maio de 2014
Não há acúmulo de funções se tarefas são compatíveis com a função exercida
Acesso facilitado ao Supremo atrasa Justiça, diz Roberto Barroso
O acesso facilitado ao Supremo Tribunal Federal atrasa a Justiça do país. A opinião é de Luís Roberto Barroso, ministro da própria corte. "A gente perde muito tempo com coisas irrelevantes", disse, acrescentando que muitos casos deveriam ser julgados e encerrados em 2ª instância. As afirmações foram feitas ao jornalista Mário Sérgio Conti, em programa no canal GloboNews.
Ministro do STF há quase um ano, Barroso (foto) disse também que o fato de o país ser hierarquizado e dividido em classes reflete no comportamento do Judiciário. “A Justiça, sobretudo a Justiça Penal brasileira, é dura com os pobres e mansa com os ricos, embora ache que temos feito um esforço civilizatório relevante para sair deste atraso. Temos andado na direção certa, embora não na velocidade desejada”.
Sobre as manifestações que voltaram a ocupar as ruas das cidades brasileiras com maior intensidade, Barroso afirmou que elas nascem da incapacidade do Estado de atender demandas da população. “Ela [sociedade] quer serviços públicos de qualidade, mais ética na política, melhor perspectiva de futuro.”
Para Barroso, no entanto, não deveria haver espaço para violência nas manifestações. “Onde há democracia, e, apesar de todas as deficiências, nós somos uma democracia, a violência não se justifica”.
Revista Consultor Jurídico, 25 de maio de 2014, 15:12h
O jurista Carl Schimitt e os experimentos de Von Pettenkofer
O jurista Carl Schmitt e os
experimentos de Von Pettenkofer
Conta-nos Francisco de Sosa Wagner que em abril de 1945, logo após a derrota da Alemanha na Segunda Guerra Mundial, em Berelim, um oficial russo prendeu o jurista Carl Schmitt. Schmitt, que faleceu em 1985, recorrentemente acusado de ter sido o defensor jurídico do ideário nazista, ainda que se reconheça, também recorrentemente, suas qualidades de juspublicista fino e argumentativo. O vínculo com o nacional-socialismo revela-se como uma maldição que acompanhou a tragetória desse pensador solitário, de poucos amigos, especialmente a partir do fim da guerra.
O oficial russo que interrovaga Schmitt centrava as perguntas na ligação do interrogado com o regime derrotado. Schmitt teria respondido que sua participação no regime nazista dera-se exatamente de acordo com o experimento de um sábio, Max von Pettenkofer, químico e higienista bávaro, que viveu de 1818 a 1901.
Evidentemente, o oficial russo desconhecia o experimento do então citado sábio. Schmitt explicou que von Pettenkofer havia demonstrado que as infecções não se contraem apenas pela presença de um bacilo, mas também pela predisposição do sujeito que o aloja. Schmitt ainda explicou ao oficial russo que von Pettenkofer teria ingerido o bacilo da cólera na frente de alguns alunos, e que, provando a tese defendida, não contraiu a doença.
O oficial russo ainda nada teria entendido. A comparação, em princípio, não fazia sentido. Schmitt então concluiu que o mesmo havia ocorrido com ele. Isto é, ainda que ingerido o bacilo do nacional-socialismo, por essa moléstia não fora infectado... Portava o mal, porém a doença nele não se manifestara. Isto é, ainda que portador do bacilo do nacional-socialismo, argumentava Schmitt, essa patologia nele jamais se revelara. Sosa Wagner também nos conta que o oficial russo riu da pilhéria e que em seguida liberou o jurista.
Questiono se Schmitt de fato dissera a verdade. É dúvida que sugere excerto de texto de Schmitt, “O Füher protege o Direito” (que se encontra traduzido no belíssimo livro de Roberto Porto Macedo Júnior, agora em segunda edição, livro primoroso).
E ainda admitindo que Schmitt ao oficial russo falara a verdade, no sentido de que o nazismo não o afetou, o que provavelmente muitos disseram no contexto da desnazificação, verdadeira ou maliciosamente, essa instigante passagem retratada por SosaWagner provoca-nos uma reflexão em torno das relações éticas entre os intelectuais e o poder.
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pós-doutor em Teoria Literária pela Universidade de Brasília.
Revista Consultor Jurídico, 25 de maio de 2014, 08:00h
quinta-feira, 22 de maio de 2014
O juiz, a umbanda e o solipsismo: como ficam os discursos de intolerância?
O juiz, a umbanda e o solipsismo: como ficam os discursos de intolerância?
Explicando o case
O Ministério Público Federal entrou com Ação Civil Pública para a retirada de vários vídeos ofensivos (e intolerantes) contra as religiões afro-brasileiras (umbanda e candomblé). O juiz Federal do Rio de Janeiro, encarregado do caso, negou a antecipação de tutela sob o argumento de que as “manifestações religiosas afro-brasileiros não se constituem em religião”. E acrescentou: faltariam a elas “traços necessários de uma religião”, como um “texto base”, a exemplo da Bíblia ou do Alcorão. Apontou, ainda, a ausência de uma estrutura hierárquica e de um Deus a ser venerado. Também disse que não havia urgência na retirada. Sobre o sentido de religião e liberdade, trataria no mérito. O Ministério Público ingressou com agravo. É o relatório (brincadeira, vício de profissão).
O velho problema do decisionismo
Como o juiz negou a antecipação de tutela? Nitidamente — e tudo dá a entender isso — a partir de sua percepção pessoal sobre religião, Deus, etc. Na semana passada fiz uma coluna criticando (ler aqui) o fator “decido-conforme-minha-consciência”. Portanto, repito, não é implicância minha. Juiz não deve decidir conforme seus humores, pendores, desejos, crenças etc. Dworkin, por exemplo, diz que não importa o que pensam os juízes sobre impostos, jogos etc. Importa é que seu ato é de responsabilidade política.
Com Dworkin: Juiz decide por princípios e não por políticas ou por moral(ismos). Digo isso pela centésima vez. Democracia se faz a partir de responsabilidade política. Direito é um conceito interpretativo e é aquilo que é emanado pelas instituições jurídicas, sendo que as questões a ele relativas encontram, necessariamente, respostas nas leis, nos princípios constitucionais, nos regulamentos e nos precedentes que tenham DNA constitucional, e não na vontade individual do aplicador. Portanto, direito não é moral. Não é religião. Não é futebol. Não é política.
Pois o juiz Federal do Rio de Janeiro, em vez de reconstruir a história institucional do problema relativo aos discursos de ódio versus liberdade de expressão (por exemplo), ele atalhou e usou os seus próprios pré-juízos, que, como se viu, causaram um enorme prejuízo.
A decisão do juiz é inconstitucional porque a distinção entre religião e manifestação religiosa para efeito de negação de tutela constitucional viola o princípio da proibição de proteção deficiente ou insuficiente (Untermassverbot). Melhor ainda, a decisão, ao desproteger as religiões afro-brasileiras, violou o dispositivo constitucional que estabelece a liberdade de crença etc. Ou seja, não somente o legislador pode incorrer em uma violação da Untermassverbot, como também o órgão julgador.
E não adianta reconhecer o caráter de ancestralidade aos "cultos afrobrasileiros" (que ele colocou entre aspas) para depois negar-lhes proteção, algo que já denunciei alhures como sendo a aplicação da fórmula Scalia (refiro-me ao voto de Scalia no caso Bowers v. Hardwick).
Discuti esse assunto amiúde com Marcelo Cattoni (professor da UFMG), jusfilósofo da cepa que, em vários escritos, explicita e compreende sobremodo o sentido das exigências de reconhecimento do pluralismo social e cultural próprias ao Estado Democrático de Direito que, como no caso da Constituição de 1988, condena o racismo social, cultural e de classe, além de assegurar direitos culturais aos indivíduos e às comunidades ancestrais. Sim, existe racismo cultural do mesmo modo que existe o “racismo comum”.
Pergunta, então, Cattoni: “De qualquer forma, faz algum sentido, para efeito de garantir a liberdade religiosa (inclusive de não ter nenhuma religião!!) diferenciar manifestações religiosas e religião? Afinal, o que é liberdade religiosa e de crença num Estado Democrático de Direito, republicano, laico e protetor do pluralismo social e cultural que constitui internamente a nacionalidade e a cultura brasileira”?
Não esqueçamos que o STF, no HC 82424 (Caso Ellwanger),[1] negou o sentido constitucional da liberdade de expressão a discursos de ódio, a expressões de preconceito e de discriminação de qualquer natureza, que visam a inferiorizar ou a não reconhecer a liberdade como igualdade na diferença e a dignidade de todos e de cada um como expressão constitucional do direito fundamental a ser tratado pelo Estado com igual respeito e consideração (o sentido amplo ali adotado pelo STF para "racismo").
Com relação à não concessão de tutela antecipada, não esqueçamos também, aqui, que, no caso Ellwanger, o STF não exigiu, para efeito de garantia de direitos fundamentais, que houvesse caso de dano iminente e irreparável, mas considerou a própria publicação e divulgação de material racista lesivo não apenas às comunidades judaicas, mas também à própria sociedade democrática. Bingo.
Enfim: se a Umbanda e o Candomblé são manifestações culturais centenárias e profundamente enraizadas na cultura brasileira, somente isso já justifica a sua proteção contra formas de discriminação social e cultural, expressão, em sentido amplo, de racismo social e cultural.
Dito isso, qual é o papel de um juiz?
Decidir não é escolher. Escolhas são da ordem de nossa razão prática. Escolhe-se entre ir ao cinema ou ao futebol. Mas quando o juiz decide (judicialmente falando) deve fazê-lo a partir do Direito. Evidente que a decisão não é um ato subsuntivo (a subsunção sequer se sustenta filosoficamente; subsunção é tão fictícia quanto a sustentação da verdade real). Mas a decisão tampouco é um ato arbitrário. O juiz não é escravo da lei... Óbvio isso. Mas, por favor, ele tampouco é dono da lei (ou da Constituição ou do conceito de religião ou do conceito de cultura ou do conceito de preconceito ou do conceito de discurso de ódio...).
Juiz não é neutro. Ninguém o é. Não é disso que se trata. O que venho sustentando em meus escritos sobre teoria da decisão é que a subjetividade do juiz deve ser constrangida epistemologicamente (quer dizer, controlada) pela intersubjetividade. Se o juiz não consegue suspender seus pré-juízos, ele não pode (e não deve) ser juiz. Ele pode odiar ou amar algo. Mas na hora da decisão isto deve ficar suspenso (uma epoché). Isso se chama de responsabilidade política. Democracia é isso. Caso contrário, meus direitos dependerão da boa vontade do juiz. E, repito a frase (que não é minha, é do Agostinho Ramalho): Deus me livre da bondade dos bons.
Ora, no caso dos vídeos objetos da Ação Civil Pública promovida pelo MPF, há que se consultar as práticas sociais e aquilo que a tradição acerca do que seja religião e cultura afro significa (o comentário acima elucida a quaestio juris). Aquilo que já faz parte da tradição de um povo. Esse é o primeiro movimento que o juiz deve fazer: buscar o sentido a partir do revolvimento do chão linguístico em que está assentada determinada tradição sob questionamento. É o que se chama de método hermenêutico, que venho trabalhando amiúde sob a epígrafe de “a alegoria do hermeneuta” (neste sentido, meu Lições de Crítica Hermenêutica do Direito).
Nitidamente os tais vídeos configuram abuso de liberdade de expressão. São discursos de ódio e de intolerância que a democracia veda. No mínimo, racismo cultural. Parafraseando Dostoievski e sem fazer trocadilhos (e invertendo a frase), se Deus morreu, agora não podemos tudo...
Portanto, muita calma. Liberdade de expressão não quer dizer que dê para passar a mão na bunda do guarda. E nem ofender a crença e a cultura de milhões de brasileiros. Para que existe a Lei da Igualdade Racial, por exemplo? Por que o Brasil assina tratados e acordos contra a descriminação?
Por isso, a minha insistência: aos juízes incumbe a apuração da coerência, ou não, do texto de cada lei em relação à Constituição. O juiz cumpre um papel. São os dois corpos do Rei, tese desenvolvida por Kantorowitz. No seu cotidiano, na sua vida pessoal, o juiz pode fazer as coisas que quiser. Mas, no papel de juiz, tem uma representação social e política.
Cada coisa no seu lugar, como diria Voltaire, falando do personagemPangloss (e compreendamos as suas desventuras): “reparem que o nariz foi feito para sustentar óculos. Por isso usamos óculos. As pernas foram visivelmente instituídas para vestirem calças; por isso usamos calças. As pedras foram feitas para serem talhadas...”.
Post scriptum I
Já finalizada a coluna — no “crepúsculo de jogo”, como dizia Fiori Gigliotti — soube da noticia que dava conta de uma espécie de retratação do juiz no que tange ao problema semântico-conceitual a fim de se saber se os cultos afro-brasileiros representam religião ou não. Segundo o jornal Estado de S. Paulo (clique aqui), o juiz autor da decisão voltou atrás na fundamentação, mas manteve a decisão liminar que autorizou a permanência no YouTube dos vídeos considerados ofensivos pelo Ministério Público Federal.
Note-se: a nova argumentação possui um nítido caráter instrumental. A decisão, em si, não mudou. Mesmo com uma nova roupagem, seu teor solipsístico continua inalterado. Trata-se de uma demonstração do velho “decido primeiro para fundamentar depois”, que também pode se expressar da seguinte maneira: “na minha jurisdição, primeiro decido segundo minha formação humanística e experiência, depois procuro justificar a decisão nos aspectos técnicos oriundos do ordenamento jurídico”. Caráter instrumental da fundamentação/argumentação, indeed. E não se venha dizer que o “juiz decidiu conforme sua consciência”. Isso não é argumento na democracia. Aliás, o juiz de Três Passos (RS), do “caso Bernardo”, também justificou a sua decisão de deixar que o pai — acusado de matar o menino — ficasse com a sua guarda. Disse: “decidi conforme minha consciência”. E quando a “consciência” não bate com a lei e a Constituição?
Sigo. Ainda segundo a notícia, a fundamentação foi readequada (sic) de modo a "registrar a percepção (sic) deste juízo de se tratarem os cultos afro-brasileiros de religiões". Quer dizer que o-sentido-do-que-seja-religião depende de uma “nova” percepção? Ou de uma “percepção melhor ou mais adequada”? Mas, afinal, o que é isto — a religião ou a manifestação cultural? É uma questão meramente semântica? Trata-se de um neo-nominalismo?
Na versão 2.0 da decisão, o juiz explica que a manutenção dos vídeos teve como fundamento a defesa da liberdade de expressão. A partir de um pretenso liberalismo, afirma que, embora os vídeos sejam de mau gosto “refletem exercício regular da referida liberdade”. E, novamente, errou o alvo. Isto porque tanto a proteção da liberdade de religião e crença, quanto a tutela da liberdade de expressão não implicam indiferença do Estado para com esses campos.
Explico melhor: há um erro de base naqueles que pensam que a liberdade de expressão representa uma espécie de direito absoluto em uma democracia constitucional: o esquecimento que a liberdade de expressão implica o exercício da tolerância. Como dizia o velho Kant — que, por sinal, era um liberal —, a autoridade política, no campo da liberdade de religião, possui um direito negativo de preservar a comunidade política de toda influência que possa ser prejudicial à tranquilidade pública. Nesse passo, a autoridade política — no caso o Estado — deve, por consequência, diz Kant, não permitir que a concórdia civil fique em perigo, seja pelas disputas internas, seja pelo conflito de diferentes religiões entre si, o que constitui, então, um direito de polícia. Ponto para o velho Imannuel!
Ou seja, diante de discursos que incitam o ódio e a intolerância (quem tem paciência, veja os vídeos), não podemos falar em exercício legítimo da liberdade de expressão. Logo, mudar a fundamentação não retirou o caráter solipsista (e inconstitucional) da decisão. Ao contrário, apenas serviu para demonstrar, de forma mais categórica, a sua ocorrência.
Aliás, por ocasião do julgamento do famoso caso Ellwanger, acima referido, chegou-se a sustentar que “judeu não era raça”, para descaracterizar o crime de racismo... Quer dizer que se “judeu não fosse raça”, os livros de Ellwanger poderiam ter sido publicados (por exemplo, Acabou o Gás, entre outros)? Se judeu não é raça, o que mudaria? No caso aqui sob comento, o que muda se a umbanda é religião ou não? Quer dizer que, em sendo religião, pode ser vítima de discurso de ódio ou de intolerância ou de racismo cultural?
Mais: o que é isto — a fundamentação? Ela é condição de possibilidade ou é meramente um adorno, um artifício retórico? Como é possível que uma decisão seja proferida tendo por base a premissa de que umbanda não é religião e, depois, reconhecida a circunstância desta ser religião, permanecer igual? Ou seja: ao que entendi, tanto faz se umbanda e candomblé são religiões; em nome de liberdade de expressão, pode-se delas dizer o que se quiser!
Na democracia tudo pode? Veja-se como, em nome da liberdade, vamos criando permissividades: de repente, sem qualquer aviso, São Paulo é vítima das greves de ônibus. Milhões de pessoas prejudicadas. Viva a liberdade de fazer greve! Viva a liberdade de expressão em poder fazer vídeos recheados de intolerância. Viva! E as consequências desse “Deus morreu e agora pode tudo”? Bem, as consequências sempre vem depois...como dizia o genial Conselheiro Acácio.
Post Scriptum II - um pequeno desagravo
Li o artigo do ex-ministro Eros Grau (aqui) em que ele espinafra a coluna Diário de Classe, na qual André Karam Trindade criticou a decisão do ministro Joaquim Barbosa acerca da polêmica sobre o cumprimento de um sexto da pena. Embora Grau não tenha citado o texto de André, é evidente o alvo (embora politicamente o texto de Grau possa ter outro endereço). A crítica de Grau foi, no mínimo, deselegante. Não fica bem usar falácia do tipoad hominem. Não ficou “legal” isso. Só para registrar.
[1] A crítica mais consistente até hoje feita ao caso Elwanger foi feita por Marcelo Cattoni, no artigo Direito, política e filosofia: contribuições para uma teoria discursiva da constituição democrática no marco do patriotismo constitucional. Rio de Janeiro: Mandamentos, 2007, cap. 8., p. 113-125.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 22 de maio de 2014, 08:00h
Análise de fatos que levaram a uma sentença deve ser refeita em nova ação
Análise de fatos que levaram a uma sentença deve ser refeita em nova ação
O julgamento de um processo não precisa seguir a mesma conclusão sobre a verdade dos fatos que motivou sentença em outra ação já transitada em julgado, ainda que seja relacionado ao mesmo caso e às mesmas partes. Esse foi o entendimento da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça ao avaliar disputa entre uma pousada e uma construtora que discutiam o valor da compra de um imóvel.22 de maio de 2014, 09:39h
O conflito chegou à Justiça quando a construtora decidiu cobrar a pousada por dívidas sobre parte do montante estabelecido em contrato. Mas uma sentença negou o direito a novos pagamentos, avaliando que a pousada já havia pagado pelo imóvel valor três vezes superior ao de mercado. Quando a decisão transitou em julgado, a pousada ajuizou nova ação, agora pedindo a devolução dos valores pagos a mais pelo imóvel. O pedido foi negado tanto em primeira instância quanto pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
No recurso ao STJ, discutiu-se a ocorrência ou não de ofensa à coisa julgada, tendo em vista que, na segunda ação, não foi reconhecido o pagamento maior apontado na sentença do primeiro processo. O ministro Sidnei Beneti, relator do caso, avaliou que a conclusão fática não precisaria ser a mesma, pois o artigo 469 do Código de Processo Civil diz que a verdade dos fatos estabelecida como fundamento de sentença não faz coisa julgada.
Embora o artigo 301 do CPC estabeleça que “há coisa julgada quando se repete ação que já foi decidida por sentença, de que não caiba recurso”, Beneti apontou que o artigo 469 fixa três situações em que isso não ocorre: os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença; a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença; e a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentalmente no processo. A decisão, unânime, ainda não foi publicada. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.
REsp 1.298.342
Revista Consultor Jurídico, 22 de maio de 2014, 09:39
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terça-feira, 20 de maio de 2014
"STF e STJ não comunicam bem sua jurisprudência a tribunais"
"STJ e STF não comunicam bem sua jurisprudência a tribunais"
Proferida em agosto de 2012, a decisão do ministro Marco Aurélio, na qual negou a possibilidade do Habeas Corpus como substitutivo do Recurso ordinário, determinou nova jurisprudência sobre o tema no Supremo Tribunal Federal. A partir daí, o Superior Tribunal de Justiça e os demais tribunais seguiram o mesmo entendimento e passaram a não conhecer mais os pedidos em HC que achassem que caberiam em recursos.
A medida, adotada como forma de administrar a sobrecarga de pedidos de HCs que chegam a Brasília todos os dias, revelou outro grave problema da Justiça brasileira: a incapacidade do STF e do STJ em comunicar aos demais tribunais, de maneira eficiente, a jurisprudência que aplicam.
A avaliação é do professor Thiago Bottino, responsável pela coordenação da pesquisa "Panaceia universal ou remédio constitucional? Habeas Corpus nos Tribunais Superiores”, desenvolvida pela Fundação Getulio Vargas (FGV-Rio) a pedido do Ministério da Justiça.
“Mais importante do que fechar a porta é saber por que existe essa demanda altíssima de Habeas Corpus. Foi esse o interesse do Ministério da Justiça ao encomendar a pesquisa", explica Bottino, em entrevista exclusiva concedida à revista eletrônica Consultor Jurídico.
De acordo com o professor, o estudo mostra que os ministros do Supremo e do STJ deveriam priorizar a identificação dos temas de maior demanda que chegam às cortes e transformá-los em súmulas. “No momento em que fizerem isso, vão comunicar mais rápido às instâncias de baixo e, consequentemente, o entendimento vai se uniformizar e não se terá mais tantos recursos subindo”, acredita.
Coordenar por seis meses o trabalho de leitura e classificação de 13,8 mil Habeas Corpus ajudou a construir essa convicção, admite o doutor em Direito pela PUC-RJ, que dedica seu tempo às aulas de Direito Penal na UFRJ e na FGV-Rio, onde também coordena a graduação.
O universo retratado pela pesquisa corresponde a 5% dos pedidos de HC que aportaram nas cortes superiores entre 2008 e 2012. Durante os cinco anos analisados, foram impetrados, em média, 180 pedidos de HC por dia no STJ e 30 no STF.
Além de profissionais e estudantes de Direito, o time de 30 pessoas envolvido na empreitada incluiu um matemático e um técnico em TI. Isso possibilitou explorar mais bem os números para responder a perguntas como: "quais os tipos penais mais comuns entre os HCs que chegam ao STJ e STF?"; "qual o ranking dos tribunais responsáveis pela maioria dos recursos?"; "como os ministros de Brasília julgam?"; "que tipo de decisão prevalece entre eles, colegiada ou monocrática?".
Uma das surpresas da pesquisa foi a liderança isolada do Tribunal de Justiça de São Paulo entre os pedidos de HC que subiram ao Supremo e ao STJ, com 44% do total.
Para se ter ideia do que isso significa, ainda que se reunisse os recursos dos quatro tribunais seguintes no ranking — Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Distrito Federal —, não se chegaria nem à metade dos recursos originados no TJ-SP. Para Bottino, esse dado revela que juízes e desembargadores de São Paulo resistem a seguir a jurisprudência pacificada do STJ e STF.
Clique aqui para consultar o site exclusivo que permite explorar todas as variáveis da pesquisa, que foi lançada semana passada no TJ-SP, e tem lançamento previsto, no TJ do Rio, para o próximo dia 2 de junho. Depois, o Ministério da Justiça deverá lançar oficialmente o estudo em Brasília, na sede da Ordem dos Advogados do Brasil. A data ainda será confirmada. Clique aqui para ler a pesquisa no formato tradicional, com a análise dos números.
Leia a entrevista:
ConJur — O que motivou o Ministério da Justiça a encomendar essa pesquisa?
Thiago Bottino — No fim de 2012, o Supremo Tribunal Federal, por meio do ministro Marco Aurélio, que relatou a decisão, mudou a orientação no que diz respeito ao Habeas Corpus e passou a não conhecer mais o HC em determinados casos. Deferir ou não deferir é uma coisa, outra é não analisar nem o mérito, simplesmente não conhecê-lo.
Thiago Bottino — No fim de 2012, o Supremo Tribunal Federal, por meio do ministro Marco Aurélio, que relatou a decisão, mudou a orientação no que diz respeito ao Habeas Corpus e passou a não conhecer mais o HC em determinados casos. Deferir ou não deferir é uma coisa, outra é não analisar nem o mérito, simplesmente não conhecê-lo.
ConJur — Em que tipo de situação isso passou a ocorrer?
Thiago Bottino — O Supremo e o STJ passaram a não conhecer o HC em um caso muito particular. Digamos que um juiz pratique uma ilegalidade. O advogado recorre ao tribunal. Normalmente se faz isso por meio de um HC, visto que em muitas decisões não cabe Apelação e a única via é mesmo o HC. Caso o tribunal negue, pode-se recorrer ao STJ. O recurso correto seria o Recurso Ordinário de Habeas Corpus. Mas, nesse caso, é preciso aguardar a publicação do TJ. Quanto tempo isso pode levar? Uma semana, um mês, um ano?
Thiago Bottino — O Supremo e o STJ passaram a não conhecer o HC em um caso muito particular. Digamos que um juiz pratique uma ilegalidade. O advogado recorre ao tribunal. Normalmente se faz isso por meio de um HC, visto que em muitas decisões não cabe Apelação e a única via é mesmo o HC. Caso o tribunal negue, pode-se recorrer ao STJ. O recurso correto seria o Recurso Ordinário de Habeas Corpus. Mas, nesse caso, é preciso aguardar a publicação do TJ. Quanto tempo isso pode levar? Uma semana, um mês, um ano?
ConJur — Chega a um ano?
Thiago Bottino — Em alguns casos, até passa de um ano. E o que fazer com quem está preso injustamente? Se o advogado não pode entrar com recurso, faz um Habeas Corpus em substituição no STJ. Se o STJ nega, o caminho seria impetrar um recurso no STF. Mas o advogado costuma entrar logo com um HC substitutivo, o que, aliás, sempre se fez. Porque, na prática, não há diferença entre um recurso e um HC.
Thiago Bottino — Em alguns casos, até passa de um ano. E o que fazer com quem está preso injustamente? Se o advogado não pode entrar com recurso, faz um Habeas Corpus em substituição no STJ. Se o STJ nega, o caminho seria impetrar um recurso no STF. Mas o advogado costuma entrar logo com um HC substitutivo, o que, aliás, sempre se fez. Porque, na prática, não há diferença entre um recurso e um HC.
ConJur — Se não há diferença, por que o STJ e o STF negam?
Thiago Bottino — No seu voto, o ministro Marco Aurélio Mello diz que existe uma quantidade absurda de processos no Supremo e que não há condições físicas e materiais de dar conta dessa demanda. Afirma, então, que só reconhecerá o pedido se ele vier no meio próprio, ou seja, no recurso. O que ele está fazendo com isso? Ganhando tempo.
Thiago Bottino — No seu voto, o ministro Marco Aurélio Mello diz que existe uma quantidade absurda de processos no Supremo e que não há condições físicas e materiais de dar conta dessa demanda. Afirma, então, que só reconhecerá o pedido se ele vier no meio próprio, ou seja, no recurso. O que ele está fazendo com isso? Ganhando tempo.
ConJur — Fechando uma das portas...Thiago Bottino — Quando o Supremo fez isso, o STJ decidiu fazer o mesmo. Só que o STJ resolveu que além de HC substitutivo de Recurso Ordinário, também não aceitaria substitutivo de Recurso Especial nem de Revisão. Ocorre que todos os recursos são demorados e o Habeas Corpus era a via adotada pelo advogado para demonstrar que havia uma ilegalidade.
ConJur — Efeito dominó?
Thiago Bottino — Exatamente. Nesse momento, os Tribunais de Justiça resolveram que também não iriam mais reconhecer Habeas Corpus substitutivo de Apelação e de Agravo de Execução, como se o problema fosse o Habeas Corpus em si. Claro que isso vai reduzir o número de recursos, mas o que se perde do outro lado? Se impede que o cidadão tenha um caso conhecido de forma célere pela Justiça, o que é importante quando falamos de liberdade de locomoção. Imagine ficar até quatro meses preso porque o acórdão ainda não foi publicado? E se, mais tarde, ele tem reconhecido o direito de ficar em liberdade? Quem paga esse tempo que ele ficou preso a mais? Não tem como. O Ministério da Justiça reconhece que é um problema ter um volume tão grande de processos no STF e STJ, afinal, isso prejudica a prestação jurisdicional, as decisões demoram mais e a qualidade não é a mesma. Porém, mais importante que fechar a porta é saber por que isso está acontecendo. Foi para compreender esse fenômeno que o Ministério da Justiça encomendou a pesquisa.
Thiago Bottino — Exatamente. Nesse momento, os Tribunais de Justiça resolveram que também não iriam mais reconhecer Habeas Corpus substitutivo de Apelação e de Agravo de Execução, como se o problema fosse o Habeas Corpus em si. Claro que isso vai reduzir o número de recursos, mas o que se perde do outro lado? Se impede que o cidadão tenha um caso conhecido de forma célere pela Justiça, o que é importante quando falamos de liberdade de locomoção. Imagine ficar até quatro meses preso porque o acórdão ainda não foi publicado? E se, mais tarde, ele tem reconhecido o direito de ficar em liberdade? Quem paga esse tempo que ele ficou preso a mais? Não tem como. O Ministério da Justiça reconhece que é um problema ter um volume tão grande de processos no STF e STJ, afinal, isso prejudica a prestação jurisdicional, as decisões demoram mais e a qualidade não é a mesma. Porém, mais importante que fechar a porta é saber por que isso está acontecendo. Foi para compreender esse fenômeno que o Ministério da Justiça encomendou a pesquisa.
ConJur — De quanto foi o crescimento de HCs?
Thiago Bottino — Analisando a média histórica de impetração de HCs, entre 2008 e 2012 [período coberto pela pesquisa] chegou a um pico de 6 mil no Supremo, em 2009. No STJ, o boom acontece em 2011, com 36,5 mil HCs, caindo um pouco em 2012, para 32,5 mil. No período, isso dá 180 HCs por dia no STJ e 30 no Supremo.
Thiago Bottino — Analisando a média histórica de impetração de HCs, entre 2008 e 2012 [período coberto pela pesquisa] chegou a um pico de 6 mil no Supremo, em 2009. No STJ, o boom acontece em 2011, com 36,5 mil HCs, caindo um pouco em 2012, para 32,5 mil. No período, isso dá 180 HCs por dia no STJ e 30 no Supremo.
ConJur — Isso é sintoma ou doença?
Thiago Bottino — Sintoma. Trata-se de uma febre fortíssima.
Thiago Bottino — Sintoma. Trata-se de uma febre fortíssima.
ConJur — E a pesquisa descobriu a causa?
Thiago Bottino — São várias as causas. Pegamos uma amostra estatística de 5% de todos os HCs julgados no STJ e STF nesse período de cinco anos. Parece pouco, mas como trata de um universo grande, é muito representativo. Estatisticamente é perfeito. Pegamos casos aleatórios, mês a mês, tribunal a tribunal. Em seis meses de trabalho, a equipe leu e classificou 13,8 mil casos.
Thiago Bottino — São várias as causas. Pegamos uma amostra estatística de 5% de todos os HCs julgados no STJ e STF nesse período de cinco anos. Parece pouco, mas como trata de um universo grande, é muito representativo. Estatisticamente é perfeito. Pegamos casos aleatórios, mês a mês, tribunal a tribunal. Em seis meses de trabalho, a equipe leu e classificou 13,8 mil casos.
ConJur — A pesquisa levantou a origem desses HCs. Como está esse ranking?
Thiago Bottino — O primeiro lugar é de São Paulo, com quase 44%. Depois vem Minas Gerais, com 9,5%. Você vai me dizer: “ora, São Paulo é o estado mais populoso”. Ok, mas o estado que tem 21% da população do país concentrar 44% dos Habeas Corpus? A lista dos cinco primeiros reúne São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Distrito Federal. Curiosamente, se somar os HCs do segundo ao quinto colocado não chega à metade dos HCs originados em São Paulo.
Thiago Bottino — O primeiro lugar é de São Paulo, com quase 44%. Depois vem Minas Gerais, com 9,5%. Você vai me dizer: “ora, São Paulo é o estado mais populoso”. Ok, mas o estado que tem 21% da população do país concentrar 44% dos Habeas Corpus? A lista dos cinco primeiros reúne São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Distrito Federal. Curiosamente, se somar os HCs do segundo ao quinto colocado não chega à metade dos HCs originados em São Paulo.
ConJur — E a pesquisa ajuda a explicar essa liderança tão isolada?
Thiago Bottino — Essa análise passa pelo perfil de cada impetrante, que pode ser o advogado, o paciente ou a Defensoria Pública. Vale dizer que até 2008 o estado de São Paulo não tinha defensores públicos. O primeiro concurso para a Defensoria Pública ocorre em 2007, e os primeiros defensores tomam posse ao longo daquele ano. Em 2008, finalmente, a população de baixa renda de São Paulo passa a ter acesso aos tribunais superiores como nunca antes.
Thiago Bottino — Essa análise passa pelo perfil de cada impetrante, que pode ser o advogado, o paciente ou a Defensoria Pública. Vale dizer que até 2008 o estado de São Paulo não tinha defensores públicos. O primeiro concurso para a Defensoria Pública ocorre em 2007, e os primeiros defensores tomam posse ao longo daquele ano. Em 2008, finalmente, a população de baixa renda de São Paulo passa a ter acesso aos tribunais superiores como nunca antes.
ConJur — E, assim, libera-se a demanda reprimida de jurisdicionados.Thiago Bottino — Uma demanda reprimida brutal. De repente, uma boa parte da população passa a ter alguém que levará o seu caso para um tribunal superior. Hoje, Defensoria Pública impetra mais HCs no STJ que advogado. Em 2008, 53% dos HCs do STJ foram impetrados por advogados, e 36%, por defensores. Quatro anos depois, o cenário se inverteu: 47% dos HCs chegaram por meio da Defensoria e 44% pelos advogados. No Supremo o percentual de HCs impetrados pela Defensoria Pública também cresceu.
ConJur — Então, o aumento de HCs no STJ e no STF tem relação direta com a criação da Defensoria Pública em SP?Thiago Bottino — O que não é algo ruim. Na verdade, o que esses números estão dizendo é que a Defensoria está com a razão e o TJ de São Paulo está errado.
ConJur — Quais os principais tipos penais relacionados a esses HCs?
Thiago Bottino — Em São Paulo, os tipos que predominam, pela ordem, são roubo, tráfico, homicídio e furto. Dentro de roubo, os temas que mais aparecem são progressão de regime, prisão cautelar, regime inicial de cumprimento — quando se discute se o cidadão vai cumprir a pena no regime aberto, semiaberto ou fechado —, regras de dosimetria e excesso de prazo.
Thiago Bottino — Em São Paulo, os tipos que predominam, pela ordem, são roubo, tráfico, homicídio e furto. Dentro de roubo, os temas que mais aparecem são progressão de regime, prisão cautelar, regime inicial de cumprimento — quando se discute se o cidadão vai cumprir a pena no regime aberto, semiaberto ou fechado —, regras de dosimetria e excesso de prazo.
ConJur — E a primeira conclusão foi...Thiago Bottino — Que o TJ de São Paulo é muito resistente, diria até que em geral não segue a jurisprudência do STJ. Antes, quando não havia tantos recursos chegando a Brasília, ficava do jeito que estava. Mas com a chegada da Defensoria Pública, o índice de deferimento de HCs explodiu. Por exemplo, no tema roubo com erro na fixação do regime, a taxa de concessão no STJ chega a 62%.
ConJur — O que é possível concluir disso?
Thiago Bottino — A questão é: o STJ está concedendo tantos HCs porque os ministros são bonzinhos, ou porque eles já examinaram esse tema, já firmaram uma jurisprudência e os tribunais de baixo não estão cumprindo?
Thiago Bottino — A questão é: o STJ está concedendo tantos HCs porque os ministros são bonzinhos, ou porque eles já examinaram esse tema, já firmaram uma jurisprudência e os tribunais de baixo não estão cumprindo?
ConJur — Qual a média de concessão de HCs no STJ e no STF?
Thiago Bottino — No STJ é 27%, uma média alta. A do Supremo é bem inferior, 8%.
Thiago Bottino — No STJ é 27%, uma média alta. A do Supremo é bem inferior, 8%.
ConJur — O tema do princípio da insignificância também aparece nesses HCs?
Thiago Bottino — Aparece muito. Aliás, uma das conclusões da pesquisa é que falta uma súmula sobre o tema. O princípio da insignificância não está na lei, na Constituição, no Código, em lugar nenhum. É uma construção jurisprudencial, doutrinária, e por essa razão, cada juiz decide de um jeito. Um decide que furtar melancia é insignificante, outro diz que furtar abóbora não é.
Thiago Bottino — Aparece muito. Aliás, uma das conclusões da pesquisa é que falta uma súmula sobre o tema. O princípio da insignificância não está na lei, na Constituição, no Código, em lugar nenhum. É uma construção jurisprudencial, doutrinária, e por essa razão, cada juiz decide de um jeito. Um decide que furtar melancia é insignificante, outro diz que furtar abóbora não é.
ConJur — Entre os tipos penais prevalentes, quais possuem entendimento pacificado e quais ainda não?
Thiago Bottino — Dos cinco, ao menos um, roubo, possui diferentes entendimentos pacificados no STJ e no Supremo. O roubo pressupõe violência e grave ameaça. Se eu roubo você com uma arma de verdade é uma coisa, mas com uma de brinquedo é outra. Por quê? A qualificadora do emprego da arma de fogo só vale quando a arma é de verdade. Se a arma for de verdade, sua vida está em risco e sua pena aumenta. Já a de brinquedo não é capaz de matar, logo, não haverá uma pena tão grave. Sempre é roubo, mas é preciso dar respostas diferentes, de acordo com a periculosidade da ação do sujeito. Aí eu pergunto: no roubo em julgamento foi usada uma arma de verdade, que não atira ou está sem balas. Nesse caso, aumenta-se ou não a pena?
Thiago Bottino — Dos cinco, ao menos um, roubo, possui diferentes entendimentos pacificados no STJ e no Supremo. O roubo pressupõe violência e grave ameaça. Se eu roubo você com uma arma de verdade é uma coisa, mas com uma de brinquedo é outra. Por quê? A qualificadora do emprego da arma de fogo só vale quando a arma é de verdade. Se a arma for de verdade, sua vida está em risco e sua pena aumenta. Já a de brinquedo não é capaz de matar, logo, não haverá uma pena tão grave. Sempre é roubo, mas é preciso dar respostas diferentes, de acordo com a periculosidade da ação do sujeito. Aí eu pergunto: no roubo em julgamento foi usada uma arma de verdade, que não atira ou está sem balas. Nesse caso, aumenta-se ou não a pena?
ConJur — Sem entendimento pacificado, o juiz decide sozinho.Thiago Bottino — Exatamente. Bastaria uma súmula para resolver esse impasse. Mas os ministros do STJ e do Supremo não sabem disso porque estão sentados em 36 mil processos e não conseguem digerir tudo aquilo. O que a pesquisa está dizendo é que o STJ e o Supremo precisam criar mecanismos para identificar o tema que mais cresce e buscar pacificá-lo. O que não pode é esperar um ano, dois anos, cinco anos. Identificou uma situação que está sendo discutida, pacifica logo. Porque isso vai arrefecer a demanda, seja para o lado mais liberal ou mais conservador. O pior de tudo é não pacificar, porque aí aumenta o número de processos e cria desigualdade. Se o tema não está pacificado, você vai ter na mesma cela dois presos que roubaram com arma que não atira, mas que terão penas diferentes porque seus casos foram decididos por juízes com entendimentos diferentes, ou, quem sabe, cada processo caiu em uma Turma do STJ.
ConJur — Isso não fere o princípio da isonomia?Thiago Bottino — Não apenas isso. Ter casos iguais com tratamentos diferentes gera insegurança jurídica e aumenta o número de processos, além, claro, de criar uma situação de desigualdade entre pessoas que praticaram o mesmo fato. Hoje, o STJ e o STF ainda não sabem, mas o tema do roubo com arma precisa ser enfrentado e pacificado.
ConJur — Súmula Vinculante do STF deve ser seguida pelos tribunais, já a Súmula do STJ tem caráter de sugestão. Isso se reflete nas decisões dos tribunais?Thiago Bottino — No caso das Súmulas do STJ, o juiz e o desembargador têm independência para decidir como quiser. O problema é que quando se faz isso já sabendo que o outro tribunal pensa diferente. Nessa hora, o juiz está obrigando uma parte a recorrer. Ou, se aquela parte é mais humilde e não vai recorrer, está mantendo-a em uma situação de desigualdade em relação a que vai recorrer. Quando se diz que quem tem bom advogado consegue uma porção de coisas, é verdade, porque ele vai até a última instância, e assim consegue fazer valer o entendimento que já está pacificado, enquanto outros não conseguem. Isso vale para o crime, mas também para setores como cível e família.
ConJur — Entre as razões para o congestionamento de HCs no STJ e STF, alguma lhe chamou a atenção?Thiago Bottino — A forma como é julgada a maioria desses casos. No Supremo as decisões monocráticas representam 68,8%, e no STJ, 59,4%. Isso é ruim, porque a expectativa é que quando o HC chega ao Supremo ele seja julgado por um colegiado. Se a decisão é monocrática, acabamos tendo a jurisprudência de cada ministro. Quando se leva o pedido de HC para o colegiado e se debate, o ministro que foi vencido vai aderir ao voto vencedor na próxima, justamente para manter a constância. Na decisão monocrática, não. A falta de um julgamento colegiado impede essa fixação de entendimento pacificado, de súmula. Fica cada um no seu quadrado, julgando sozinho, e isso não gera segurança jurídica, uniformidade de pensamento, nem diminui o número de processos. Vira uma loteria. O advogado passa a pensar, “se o meu caso cair com fulano eu ganho, se cair com sicrano eu perco”. Por outro lado, quando o julgamento acontece no Plenário, mesmo que seja por 6 a 5, acabou, ninguém vai levar aquilo de novo para o Plenário. No caso do STJ, as Turmas passam a julgar de acordo com o que foi decidido em Plenário.
ConJur — A alta demanda de processos é o motivo alegado para as decisões monocráticas, naturalmente.Thiago Bottino — Mas enquanto os ministros julgarem assim, o volume de processos não vai diminuir.
ConJur — O que fazer, então?Thiago Bottino — Identificar os temas com maior demanda, levá-los a Plenário, decidir e transformar em súmula. No momento em que fizerem isso, vão comunicar mais rápido para as instâncias de baixo, consequentemente o entendimento vai uniformizar e não se terá mais tantos recursos subindo.
ConJur — O julgamento colegiado no STF e STJ já não cumpriria esse papel?Thiago Bottino — Mas ele comunica menos do que a súmula. O juiz que compra uma nova edição do Código Penal encontra a lei acompanhada das súmulas. Nem sempre ele lê o informativo do STJ e do Supremo para saber a decisão sobre aquele tema. A súmula resolve esse problema. A mensagem da súmula é essa: fechamos a questão, agora é definitivo, a divergência aqui acabou. Depois, imprime a súmula no Código e o acesso é muito mais fácil, seja para o delegado, o promotor, o advogado, o juiz, o desembargador. Às vezes, há decisões do Plenário do Supremo que só vão passar a ser aplicadas no dia a dia meses ou anos depois.
ConJur — A causa do excesso de HCs no STF e STJ está na falta de comunicação com os tribunais inferiores?Thiago Bottino — Mas é preciso saber o que comunicar e o que comunicar. Qualquer especialista em comunicação que estivesse acompanhando o dia a dia do Supremo diria que eles estão comunicando mal suas decisões. Porque está chegando muita coisa repetitiva lá. Vários instrumentos têm sido criados, no âmbito do Judiciário, para comunicar melhor e diminuir o recurso repetitivo. Há a repercussão geral, nos recursos extraordinários, as decisões sobre recursos repetitivos e a súmula vinculante. Tudo isso existe para evitar decisões iguais. O que a pesquisa demonstra é que o crescimento de Habeas Corpus no STJ e Supremo embutem decisões repetitivas.
ConJur — Ou seja, não adianta o ministro não conhecer o Habeas Corpus.Thiago Bottino — Dessa maneira, o ministro só estará represando ainda mais o andar de baixo. E isso é ruim, porque tem gente ali que está sofrendo. Quando o ministro não conhece o HC substitutivo, na verdade, não está resolvendo nem o problema dele. Porque em algum momento isso explode. Seja por meio da superpopulação prisional ou pelo sentimento de injustiça das pessoas. Cada vez fica mais difícil dar conta de todo esse volume de processos. Uma hora essa onda virá, como uma tsunami. Ninguém vai deixar de recorrer por causa disso, nem a defensoria, nem o advogado.
Marcelo Pinto é correspondente da ConJur no Rio de Janeiro.
Revista Consultor Jurídico, 18 de maio de 2014, 09:38h
O STF RECONHECE REPERCUSSÃO GERAL SOBRE TERCEIRIZAÇÃO
Para advogados, decisão do STF sobre terceirização trará segurança inédita
A decisão mais importante dos últimos anos para o empresariado brasileiro será tomada pelo Supremo Tribunal Federal. Caberá à corte definir os parâmetros para a terceirização, um dos temas que mais chegam à Justiça Trabalhista. Isso porque o Supremo reconheceu, na última sexta-feira (16/5), repercussão geral sobre a questão. Advogados consultados pela revista Consultor Jurídico mostraram preocupação com a falta de definição legal de conceitos como "atividade-meio" e "atividade-fim" e com regras criadas pelo Tribunal Superior do Trabalho.
O ministro aposentado do TST e professor da PUC-SP Pedro Paulo Teixeira Manus explica que, em razão da falta de regramento legal para a terceirização, o TST foi obrigado a regular a questão, fazendo-o por meio do enunciado 256, posteriormente aperfeiçoado, criando a atual Súmula 331. O dispositivo diz que a terceirização somente é legal quando se refere à atividade-meio da empresa, e não à atividade-fim.
“A jurisprudência do TST impede, como regra, a terceirização na denominada ‘atividade-fim’, permitindo-a na ‘atividade-meio’, desde que ausente a subordinação direta do prestador de serviços ao tomador destes mesmos serviços. A par da dificuldade em definir em muitos casos o que seja ‘fim’ e ‘meio’, questiona-se o acerto do próprio critério eleito para disciplinar a terceirização”.
Manus aponta que a Justiça do Trabalho reage com veemência à terceirização, identificando-a com a precarização das condições de trabalho, com a contratação pela tomadora dos serviços com empresas inidôneas, que desrespeitam as garantias legais dos trabalhadores. Para o professor, a generalização no trato com o tema da terceirização — de parte a parte — é que ocasiona exagero do utilizar indevidamente o instituto, bem como exagero ao impedi-lo, mesmo quando lícito e autorizado por lei.
“Assim, reconhece agora o STF que a liberdade de contratar é conciliável com a terceirização dos serviços, ocasionando o exagero no trato com a questão ofensa à liberdade de contratar, fundada no princípio constitucional da livre iniciativa, constante do artigo 1º, inciso IV, da Constituição Federal. Diante da repercussão geral reconhecida pelo STF, cumpre agora delimitar o que é lícito e o que não é nesta questão da terceirização de mão-de-obra”, complementa.
O caso que será analisado chegou ao Supremo por meio de um recurso de autoria da empresa Celulose Nipo Brasileira (Cenibra) contra decisão da Justiça do Trabalho que a condenou por terceirização ilegal. A condenação se baseou em denúncia do Ministério Público do Trabalho segundo a qual a companhia terceirizava funcionários de empreiteiras para o florestamento e o reflorestamento. De acordo com os procuradores, “sendo essa sua principal atividade, o ato caracteriza terceirização ilegal”.
“É a decisão mais importante dos últimos anos. Porém, é extremamente preocupante que seja decidido no Supremo Tribunal Federal. Legislar por meio de 11 pessoas é muito complicado”, afirma o advogado Luís Carlos Moro, do Moro e Scalamandré Advocacia. Moro explica que os ministros do Supremo, ao julgar a ação, podem não utilizar os mesmos valores consagrados pela Justiça do Trabalho. "A terceirização é uma matéria que não demanda essa discussão no STF. É um tema que está em debate avançado no Congresso e que é pacificado na Justiça do Trabalho”, justifica.
De acordo com o advogado Marcello Badaró, do Décio Freire e Associados, é a primeira vez que o Supremo vai analisar o mérito da questão, encerrando a insegurança jurídica que existe atualmente. "É a ação mais importante da história recente do empresariado brasileiro, com milhares de empresas e milhões de trabalhadores interessados." O escritório é responsável pelo recurso que será analisado pelo STF. A relatoria é do ministro Luiz Fux.
Na ação que chegou ao Supremo, o Ministério Público do Trabalho de Minas Gerais acusa a Cenibra, empresa que fabrica celulosa de eucalipto, de terceirização ilegal. Segundo o MPT-MG, a empresa terceirizava funcionários de empreiteiras para o florestamento e o reflorestamento. De acordo com os procuradores, “sendo essa sua principal atividade, o ato caracteriza terceirização ilegal”.
Porém, para o advogado de defesa da Cenibra, não há legislação que impeça as empresas de contratarem mão de obra. "Não há nenhum dispositivo na lei que defina o que seja atividade-fim e atividade-meio de qualquer seguimento. Há diversos projetos de lei que tratam da terceirização no Congresso, mas nenhum seguiu adiante. Agora, caberá ao Judiciário, mais uma vez, decidir o que pode e o que não pode. Hoje há uma insegurança justamente porque não há essa definição", diz.
Insegurança jurídicaPara a advogada Paula Corina Santone Carajelescov, sócia do escritório Rayes e Fagundes Advogados Associados, o STF enfrentará uma questão que, em razão da insegurança jurídica de que se reveste, aflige o empresariado brasileiro e as relações de trabalho há muito tempo. "É um dos temas mais importantes para a área do Direito do Trabalho e há anos espera-se uma regulamentação, por parte do Congresso, do que seja atividade-meio ou atividade-fim da empresa. Precisamente por não haver uma lei que defina claramente isso, a questão sempre gerou interpretações divergentes nos Tribunais Regionais do Trabalho e no próprio Tribunal Superior do Trabalho”, comenta.
Paula Corina afirma que a definição de atividade-meio como determinante da licitude da terceirização não é assunto fácil e, em razão disso, é questão que atormenta a todos. “Assim, embora haja quem entenda que o critério da atividade-fim e atividade-meio já não seja mais suficiente para tratar do tema, especialmente porque em alguns setores seria possível terceirizar a atividade-fim sem precarizar as relações de trabalho, é inegável que a decisão do STF se reveste de extrema relevância, uma vez que colocará fim a uma longa discussão sobre este assunto. Todavia, a decisão ainda deverá ser observada com cautela, uma vez que o Tribunal Superior do Trabalho já adotou posicionamento divergente ao do STF em assuntos que haviam sido pacificados, mesmo após a alteração de entendimentos, na suprema corte”.
Daniela Moreira Sampaio Ribeiro, sócia do Trigueiro Fontes Advogados, observa que diante da falta de legislação à respeito, nas demandas envolvendo terceirização de atividades, as empresas ficam à mercê da interpretação do Poder Judiciário a respeito do que seria atividade-fim e atividade-meio, atual balizador entre a terceirização legal e a ilegal. Com isso, segundo ela, impera a total insegurança jurídica para o empresariado, até porque é cada vez mais tênue a linha que separa estes conceitos.
Para Daniela, um pronunciamento do STF pode ser decisivo para que o legislativo finalmente prossiga na votação da matéria, já que existem diversos projetos de lei sobre o tema em trâmite no Congresso Nacional — entre eles o mais polêmico, o PL 4.330/2012, que prevê a possibilidade de terceirização de todas as atividades e funções da empresa.
“O fato é que a terceirização está presente em praticamente todos os segmentos empresariais e representa aumento da eficiência na produção. Não procede a ideia de que a liberação da terceirização, em todas as atividades, representaria uma ameaça aos direitos dos trabalhadores, posto que, de qualquer maneira, ele poderá acionar judicialmente as duas empresas, prestadora e tomadora de serviços, em caso de sonegação de direitos trabalhistas”, conclui.
Garantias ao trabalhadorGláucia Massoni, sócia do Fragata e Antunes Advogados, explica que a terceirização não significa precarização dos direitos trabalhistas. “Não podemos confundir a terceirização com a busca exclusiva de melhor preço e descumprimento da legislação. A terceirização bem feita e regulamentada não é sinônimo de lesão ao trabalhador”, afirma. Segundo ela, a discussão sobre a matéria “é muito controversa e a regulamentação se faz necessária já que da forma como está, há uma grande insegurança jurídica”.
A especialista afirma, ainda, que as empresas cada vez mais buscam a mão de obra especializada, “e a verdadeira terceirização se baseia nisso, na especialização, gerando maior produtividade, redução de custos e, evidentemente, maior lucratividade, aquecendo assim o mercado de trabalho, sem lesão aos direitos dos trabalhadores, preservando o princípio da dignidade da pessoa humana, bem como os direitos dos trabalhadores previstos na Constituição Federal”.
A advogada Eliane Ribeiro Gago, sócia do Duarte Garcia Caselli Guimarães e Terra Advogados, também defende a terceirização. “Terceirizar não significa precarizar, pois a falta de registro, trabalho análogo ao de escravo ou quaisquer outras condições precárias de trabalho poderá ocorrer com empregados próprios trabalhadores diretos. A terceirização, por si só, não gera precariedade”.
Ela aponta que a contratação de trabalhadores mediante terceirização é um importante mecanismo de amenização dos efeitos do processo de recessão e, atualmente, imprescindível à economia moderna, tornando praticamente impossível descartar-se tal modalidade, não só no âmbito das áreas-meio, como até mesmo em algumas áreas-fim, dado o caráter multifacetado da cadeia produtiva.
No entanto, segundo ela, tal procedimento tem sido objeto de questionamento e severas restrições por parte do Ministério Público do Trabalho e da Justiça do Trabalho, que não tem admitido a terceirização da atividade-fim, com base na Súmula 331 do TST, inclusive em segmentos nos quais há legislação amparando tal procedimento, como a construção civil e o setor de telecomunicação.
Eliane Gago observa que Projeto de Lei 4.330 poderá, finalmente, eliminar às interpretações subjetivas da Justiça do Trabalho para estabelecer regras claras e objetivas com relação a terceirização. “Enquanto o projeto de lei não é aprovado, o que se espera do STF é uma decisão que não interfira na atividade econômica das empresas e obste a terceirização nas atividades finalísticas, mas que defina de forma clara e objetiva este tipo de relação, especialmente as responsabilidades da empresa tomadora com relação obrigações trabalhistas assumidas pela empresa subcontratada.”
A advogada Ilyonne Simone Camargo, do MPMAE Advogados, observa que a decisão do Supremo Tribunal Federal pode minimizar a intervenção do Ministério Público do Trabalho sobre a prática. “Essa decisão será de suma importância, visto que não há legislação que impeça a terceirização e nenhum dispositivo que defina atividade-fim de atividade-meio, podendo até decidirem pela legalidade da terceirização da atividade-fim fora do local da tomadora de serviço, conforme já vem se posicionando o TST. Bem como, minimizar a intervenção do Ministério Público do Trabalho sobre a prática de terceirizações ilícitas”, afirma.
ARE 713.211
*Texto alterado às 18h42 do dia 19 de maio de 2014.
Tadeu Rover é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 19 de maio de 2014, 17:27h
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