Advertência da Coluna
Esta coluna não deve ser lida por quem não aprecia questões
sofisticadas sobre o Direito. Quem acha que discutir filosofia e “crise
de paradigmas” é perfumaria, não deve perder seu precioso tempo. Pare
por aqui. Portanto, ninguém poderá alegar desconhecimento acerca do
“produto”.
A entrevista do Desembargador Ricardo Dip
Domingo, abro o
ConJur e leio o título “Segurança Jurídica” acima do titulo “juiz precisa ter consciência que erra”. Era a
entrevista
do desembargador Ricardo Dip, do Tribunal de Justiça de São Paulo
(TJ-SP). Pensei: sob esse epíteto “segurança” e esse título da
entrevista, vou me deliciar. Finalmente alguém do Judiciário vai entrar
rachando na temática “segurança jurídica” e na problemática do “erro de
apreciação judicial”. Alvíssaras.
Já no início, fiquei animado. O
entrevistado, com base filosófica considerável e grande convivência com a
literatura (o que atraiu, de pronto, minha simpatia), faz uma crítica
ao neosofistas contemporâneos. E fez críticas ao relativismo. Cada vez
mais animado, fui adiante. Confesso que me vi nas palavras do
desembargador Dip. Principalmente depois que li, dias antes, que um
ministro do STF, abrindo uma conferência, citou um poeta sofista, para
quem as coisas são segundo o cristal com se olha, isto é, nada mais,
nada menos que a repristinação da máxima de Protágoras “o homem é a
medida de todas as coisas”. Aqui, um esclarecimento necessário. No caso
da sentença de Protágoras, faz-se necessário ressalvar que o fato de ser
aqui o homem
a medida de todas as coisas não representa um
sujeito que por si só descobre os sentidos do mundo, construindo estes
(os sentidos) seguindo a sua subjetividade ou consciência (Com
Heidegger, é preciso observar que o ambiente da filosofia grega não
conhecia conceitos próprios da modernidade como é o caso do conceito de
sujeito). De todo modo, repito, o desembargador Dip fez críticas duras
aos sofistas (inclusive nominando Protágoras). Que felicidade.
Mas
eis que, na sequência, de repente, nosso entrevistado resvala
epistemicamente, ao dizer que o juiz deve decidir de acordo com sua
consciência. Como eu estava empolgado com o início da entrevista, tive
que ler de novo. De fato, ali constava,
verbis: “O juiz deve
decidir de acordo com sua ciência e consciência. Em rigor, eu digo isso,
e é um fato muito pessoal: minha consciência, em determinado momento,
está totalmente voltada a Deus. Eu sei que eu vou responder pelos meus
acertos e erros perante Deus”. Sobre essa “questão de Deus”, não falarei
na coluna, uma vez que sou adepto da secularização plena, por assim
dizer.
Prossigo. Em outro momento, quando fala do juiz ideal, lá
aparece, esculpido-em-carrara, a figura do juiz solipsista, uma espécie
de “juiz do justo concreto”. Então, qual é o problema? Onde reside o
resvalo epistêmico?
Explico: os sofistas foram os primeiros
positivistas (naquilo que se entende por positivismo de forma
sofisticada). E isso é assim por causa de sua concepção
convencionalista. Não há qualquer imanência ou ontologia entre palavras e
coisas. Por isso o homem é a medida de todas as coisas. Foram
combatidos por Platão, pela boca de Sócrates. O livro
Crátilo
deixa isso muito claro, quando os sofistas são colocados frente à frente
com o naturalismo de Crátilo. Aristotéles pensava, inclusive, que
Platão bateu pouco nos sofistas.
É certo que o relativismo
contemporâneo deita raízes nos sofistas, embora essa concepção possa ser
explicada de outros modos. Por exemplo, o pragmaticismo tem relação
direta com o nominalismo (pensemos no personagem Humpty Dumpty de
Alice Através do Espelho).
Assim, o positivismo é relativista (Kelsen reconhece isso; e o
positivismo tem um quê forte de nominalismo. E assim por diante. Michel
Villey descreve muito bem essa relação do positivismo com o nominalismo e
o relativismo.
Já o sujeito — da relação sujeito-objeto — é uma
invenção moderna. A partir de Descartes, tem-se que os sentidos, se
antes estavam nas coisas (porque estas tinham uma essência), agora
passam a estar na consciência. Vale dizer, a filosofia cartesiana
transfere a
substância aristotélica que se colocava na natureza
e naquilo que, diante da constante modificação, permanece inalterado,
para a certeza de si do pensamento pensante (
cogito). Todas as
afirmações e dogmas da tradição foram colocados em dúvida pelo
cartesianismo, até que essa dúvida encontrou qualquer coisa que já não
podia ser posta em dúvida: enquanto se duvida, não se pode duvidar que
aquele que duvida ele próprio existe e que tem que existir para que
possa duvidar. Na medida em que duvido, portanto, eu
sou. O
eu
é aquilo que não pode ser colocado em dúvida. Desse modo, antes da
teoria acerca do mundo (esse sim, objeto da dúvida), deve colocar-se a
teoria acerca do sujeito. Daqui em diante a
teoria do conhecimento é o fundamento da filosofia, o que a torna moderna, distinguindo-a da medieval.
Para evitar mal-entendidos sobre o que estou dizendo
E aí é que está o problema da entrevista do desembargador. Vou
pontuar bem essa questão para evitar mal-entendidos (sei que haverá
muitos mal-entendidos, mas vou tentar reduzir os “danos” o máximo que
puder). Note-se: o desembargador Dip faz menção à decisão conforme à
“ciência e a consciência” (algo que me faz lembrar diversos
pronunciamentos do ministro Marco Aurélio no plenário do STF) em uma
pergunta cujo contexto está ligado ao atual apelo midiático do poder
judiciário e ao excessivo caráter de publicidade que temos hoje em
certos julgamentos, especialmente aqueles que são transmitidos pela TV
Justiça. Todavia, nesse momento, aparece, como um sintoma, algo que está
recrudescido no imaginário gnosiológico dos juristas: a ideia de que a
“liberdade de decisão do juiz” está ligada a uma ideia de
responsabilidade subjetiva dos julgamentos que profere. Algo como dizer
que
o-juiz-constrói-sua-decisão-a-partir-de-uma-simbiose-de-razões-e-sentimentos
que são apenas seus (vale dizer, um juiz solipsista — um
Selbstsüchtiger).
Ora, dizer que o juiz decide conforme sua consciência retira o caráter
institucional e político que reveste as decisões do Poder Judiciário.
Daí que o desembargador, da — acertada — crítica que faz àquilo que se
chama de “pós-modernidade” e ao relativismo dos sofistas, acaba por cair
em um outro tipo de relativismo: aquele próprio da
filosofia da consciência (ou nas vulgatas moderno-voluntaristas). É nisso que reside a “coisa”.
Daí
a minha pergunta: De que adianta dizer que não há segurança jurídica
hoje no Brasil e, ao mesmo tempo, sustentar que o juiz deve decidir
conforme sua consciência? Ora, em termos de paradigmas filosóficos,
estamos apenas saindo da crítica de uma concepção sofistica e indo em
direção a uma concepção solipsista, para dizer o menos. Que segurança
tem o jurisdicionado quando sabe que a decisão é dada conforme a
consciência individual do decisor? Ainda que isto esteja afiançado por
uma instância transcendente com pretensões de objetividade (Deus ou a
Natureza).
Mas não estou satisfeito. Sigo para aprofundar mais
ainda essa questão. É que da crítica bem feita aos sofistas o
desembargador Dip cai na filosofia da consciência (ou nas vulgatas
moderno-voluntaristas). Daí a minha pergunta: De que adianta dizer que
não há segurança jurídica hoje no Brasil se, ao mesmo tempo, sustentar
que o juiz deve decidir conforme sua consciência? Ora, em termos de
paradigmas filosóficos, ele apenas saiu da critica de uma concepção
sofistica e caiu em uma concepção solipsista, para dizer o menos.
Trazendo para o direito: Em vez de a decisão ser dada de acordo com uma
estrutura (na hermenêutica chamamos a isso de a priori compartilhado,
que compreende a reconstrução da história institucional do direito, com
coerência e integridade, o decisor prolata a sentença de acordo com o
que a sua consciência. Ora, dizer que alguém decide assim implica
ingressar na problemática dos paradigmas filosóficos. Sem tirar nem por.
Eis a grande discussão a ser feita e que venho sustentando há tantos anos e que está no livro
O Que É Isto – Decido Conforme Minha Consciência?
Não há Direito sem Filosofia. Não há direito sem paradigmas
filosóficos. Parece que já superamos o paradigma epistemológico da
filosofia da consciência em outras áreas. A própria filosofia, depois
daquilo que se consignou a chamar de
linguistic turn,
movimenta-se fora dos estreitos caminhos da subjetividade assujeitadora
do mundo. Isso tanto no campo da filosofia analítica quanto no âmbito da
assim chamada filosofia continental, no interior da qual se situa a
corrente hermenêutica. Mas não no Direito. Parece que no Direito isso
está impregnado. E desse enclausuramento de imaginário temos uma
sequência de implicações à listar mas que, de um modo ou de outro,
convergem para o mesmo ponto: a aposta no protagonismo judicial. O
instrumentalismo processual começou com um “grito” solipsista de Oskar
Büllow. Isso também pode ser visto nas posturas que defendem o realismo
jurídico. É o que se chama também de positivismo fático. Enfim, um mix
de posturas que acabam na defesa de posturas discricionaristas, que, ao
fim ao cabo, são o produto da prevalência do sujeito indomado da
modernidade.
Portanto, a defesa da segurança jurídica por parte do desembargador Dip se transforma na defesa de uma
insegurança
jurídica ou a segurança-conforme-o-decidir- individua(ista) da
consciência de si do pensamento pensante (do julgador). E isso não dá
segurança para ninguém. Apenas a sensação de que temos de torcer para
que o juiz que decide nossa causa seja um “homem de bem”. E quem
acredita na bondade dos bons?
Digo de novo: Não é implicância minha com quem assume a postura do “decidir conforme a consciência”, ou de sentença vem de
sentire
ou ainda de posturas que repristinam o velho socialismo processual dos
tempos de Menger e Klein. São os paradigmas filosóficos que falam
(d)isso. Cada um fala de determinado lugar. Lorenz Puntel explica bem
que, quando fazemos filosofia, fazemos teoria. E que teoria pressupõem
um quadro referencial teórico que permita articular os seus resultados
em um contexto de sistematicidade. Ernildo Stein afirma algo similar,
mas chama esse contexto amplo que acomoda a sistematicidade da reflexão
de paradigmas filosóficos. Falar de um determinado lugar implica
compromissos. Por isso, defender que o uma decisão deve ser dada
conforme a consciência é permanecer refratário a todas as conquistas do
giro linguístico do século XX. E isso não é invenção minha. Nem
implicância.
O contexto e o nível da crítica
Vejam os leitores: minha crítica vai nesse nível em respeito e
homenagem ao entrevistado. Se ele desfila um leque importante de autores
e faz importantes críticas filosóficas no e do direito, penso que essa
matéria deve ser enfrentada em um nível similar. Por isso faço esta
coluna, jogando nas regras no jogo epistêmico, colocando à lume uma
flagrante contradição. Na verdade, ao cair na armadilha da modernidade, o
entrevistado anula toda a sua crítica ao modo atual de aplicação do
direito. Ao colocar os exemplos para falar do “juiz ideal”, pouco mais
fez do que repetir os próprios sofistas. Só que em uma versão 2.0. Sim,
porque a diferença entre os sofistas e os filósofos da consciência está
na “questão do sujeito”. Os sofistas estavam inseridos em uma dimensão
de época — ou, poderíamos dizer, em um paradigma filosófico — que não
conhecia a ideia de sujeito. Um mundo cheio de determinismos e, no
interior do qual, os sentidos estavam dados.
O sujeito da
modernidade, mesmo nos filósofos racionalistas, é livre para construir o
próprio conhecimento. Não existe um sentido que lhe seja apresentado
como determinante para a organização de sua vida. Ele é
auto-nomos.
Por certo que a modernidade filosófica não é uma mal-em-si. Destruir as
“qualidades” que nos prendiam ao mundo antigo, no sentido de destruição
das essências, é um aspecto fundamental para o processo civilizatório.
Todavia, há que se ter em mente que essa libertação operada pela
modernidade implica mais e não menos responsabilidade — pública — do
sujeito/decididor. Dostoievsky, melhor do que todos, compreendeu isso
quando perguntava: “Deus morreu, e agora? Podemos tudo?”, ao que já se
emendava a resposta: “- não, agora é que não podemos nada”.
Enfim... O juiz do “caso Bernardo” decidiu conforme sua consciência...
O problema, em síntese, nem é o da aparente opção (ou
permanência) no paradigma da filosofia da consciência. A questão a ser
debatida — e isso venho fazendo amiúde — é a vulgata deste paradigma.
Afirmar
que o juiz deve decidir conforme sua consciência, atentando para a
realidade ao seu redor, é ressuscitar o velho socialismo processual
(para dizer o
minus). Veja-se que o juiz do “caso Bernardo” (o
menino de Três Passos (RS) que foi morto pela madrasta e pela enfermeira
amiga dela, com a possível anuência do pai), ao decidir que o menino
ficaria sob a guarda do pai, justificou-se, dizendo: “— decidi conforme
minha consciência”. Sim, ele conhecia a realidade da pequena
cidade...(hermeneuticamente podemos dizer que esses “sentidos empíricos
exsurgidos da imediatez” é que são os mais perigosos, porque provocam
uma espécie de “assujeitamento” do intérprete a esse “imediato”, sem
questioná-lo e sem suspendê-lo). Veja-se o perigo que é decidir conforme
a consciência. Afinal — o que é isto — a consciência de cada um? Este é
o
busílis da questão! Poderia ele, o juiz, ter decidido que
não daria a guarda ao pai. Infelizmente, sua escolha foi ruim (em termos
finalísticos, porque com a permanência da guarda, o menino foi morto).
Eis aí, pois, a “coisa”: decidir não é o mesmo que escolher, como tenho
escrito
ad nauseam. Não é e não pode ser. Escolhas sempre podem nos levar a erros. E direito não é filosofia moral, se me entendem.
Por
óbvio que (um)a decisão judicial não pode ser compreendida como um fato
isolado em um cadeia de eventos — pensemos em Dworkin, que já nos
alertou sobre a necessidade de integridade e coerência.
O perigo de tal afirmação — a de que o juiz decide conforme a sua consciência (ou segundo uma instância de
fundamentum inconcussum como o
ens creatum) — reside na possibilidade de o juiz valer-se, por exemplo, de argumentos metajurídicos criados
ad hoc
para legitimar sua decisão, que segundo “sua consciência” deveria
apontar em certa direção (e que talvez pudesse ser diferente dependendo
do juiz ou do humor do mesmo juiz naquele dia) para mitigar as
consequências indesejáveis de sua decisão. Ou o juiz valer do
conhecimento empírico “da realidade ao seu redor”...
Se
acreditarmos nisso, teremos que passar a prestar atenção no que o juiz
come, para que time torce, etc. Isso significa(ria) admitir que o fato
de o juiz, quando pequeno, não ter ganhado uma bicicleta no Natal
pode(ria) proporcionar — hoje — uma decisão X em lugar de y. Ora, ora.
Outro dia vi uma pesquisa dando conta de que os juízes de Israel liberam
mais acusados (réus presos) logo depois do café da manhã e são mais
rigorosos antes do almoço. Ora, isso apenas prova que o juízes precisam
se alimentar melhor... e que o Tribunal de Israel precisa colocar uma
nutricionista na vida desses juízes (ironia, é claro!). Se uma decisão
depender da fome ou de algo correlato, estamos lascados, para usar uma
linguagem mais simples. Se dependermos desse modo de escolhas, podemos
dizer: Fracassamos. Fechemos as Faculdades, paremos de escrever livros. E
passemos a estocar comida...para dar uma parte da ração aos tais juízes
que são mais rigorosos perto do almoço!
Por fim — e sempre ressalvando a importância do entrevistado e a relevância de suas críticas ao imaginário jurídico
lato sensu
(em boa parte com elas estou de acordo) — é inegável que é preciso
resgatar a ideia de verdade na decisão judicial, e neste ponto o
entrevistado está absolutamente correto. A descrença no conceito de
verdade, seja moderna, negando sua objetividade, ou pós-moderna, negando
sua existência, tem repercussões teóricas perigosíssimas para a teoria
do direito. No programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos (Capes
nota 6, máxima do ranking) mantemos um grupo de pesquisa com 15
integrantes (entre alunos e professores) que estudam esse tema.
[1]
O
problema surge nas soluções para este dilema. Na grande maioria das
vezes, a resposta mira no padre e acerta na igreja. Contra a rigidez
objetivista se aposta no voluntarismo niilista, e o contrário também é
verdadeiro.
[1]
Um dos pontos fulcrais, por exemplo, é que, para os sofistas, o
problema da verdade estava no âmbito retórico, principalmente. Na
modernidade, o problema é outro, metafísico. A necessidade de
objetividade no conhecimento deslocou a fonte dos sentidos da coisa para
o sujeito. Nesse sentido, ver o meu
Hermenêutica Jurídica e(m) crise, 2013.