quinta-feira, 10 de outubro de 2013

ASPECTOS GERAIS DA RESPONSABILIDADE CIVIL NO ACIDENTE DE CONSUMO




ASPECTOS GERAIS DA RESPONSABILIDADE CIVIL NO ACIDENTE DE CONSUMO



Luiz Cláudio Borges[1]



RESUMO: O presente estudo tem por finalidade analisar a responsabilidade civil do fornecedor pelo fato do produto ou serviço, o chamado acidente de consumo, trazendo conceitos e desmistificando as expressões “vicio” e “defeito” utilizadas pelo legislador no Código de Defesa do Consumidor. O artigo aborda, com simplicidade e eficiência, todos os pontos relacionados ao instituto da responsabilidade pelo fato do produto ou serviço.



PALAVRAS-CHAVE: RESPONSABILIDADE CIVIL – DEFEITO – ACIDENTE DE CONSUMO.



1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS



O consumo é, sem dúvida, o que movimenta o mercado financeiro, tanto que a defesa do consumidor é assegurada como direito fundamental (artigo 5º, inciso XXXII, da Constituição Federal) e elevada como princípio da ordem econômica, artigo 170, inciso V, da Constituição.

O Código de Defesa do Consumidor é considerado um dos códigos mais avançados do ordenamento mundial, isto porque contém um avançado rol de dispositivos imprescindíveis na defesa do consumidor. Isto por si só não é garantia de efetividade. Em outra ocasião, este autor teve oportunidade de escrever sobre a problemática do acesso à educação e à informação ao direito do consumidor, onde, em linhas gerais, apontou-se a necessidade de maior investimento do Poder Público, para tirar o consumidor da “alienação” e prepará-lo para o mercado, que está cada vez mais voraz[2].

No presente texto, buscar-se-á traçar um estudo sobre a responsabilidade civil dos fornecedores pelo fato do produto ou serviço (acidente de consumo), apresentando conceitos e desmistificando as expressões “vício” e “defeito”. É evidente que não há pretensão de esgotar o assunto, até porque a matéria é ampla e demandaria um livro para abordá-la, entretanto, todos os pontos relacionados à temática foram estudados.

O estudo é realizado com base em pesquisa bibliográfica e possui um caráter científico, ainda que, de alguma forma, limitado, mas que não deixa de observar a seriedade e pertinência do assunto.



2. RELAÇÃO JURÍDICA DE CONSUMO



Não obstante a temática da presente pesquisa esteja circunscrita à responsabilidade civil na relação de consumo, mais especificamente nos casos de acidente de consumo, é importante abordar a relação jurídica de consumo, apresentando seu conceito, bem como identificando seus sujeitos e objeto, a fim de delimitar a aplicação do Código de Defesa do Consumidor[3].

Compõem uma relação jurídica os sujeitos, o objeto e o fato jurídico. Na relação jurídica de consumo, sempre haverá a presença de dois sujeitos: a) consumidor e b) fornecedor; e um objeto: i) um produto ou ii) um serviço. O próprio legislador, nos artigos 2º e 3º do CDC, se preocupou em conceituar esses elementos da relação de consumo.

Segundo a doutrina, o artigo 2º, do CDC, traz o conceito de consumidor standard, como sendo toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

Não obstante a simplicidade do conceito, sua interpretação não o é, tanto que surgiram três correntes interpretativas: a) “finalista”, b) “maximalista”, e c) “finalista aprofundada”.

Para os defensores da corrente finalista o conceito de consumidor dever ser estabelecido de acordo com o critério do artigo 2º, do CDC, partindo da noção de “destinatário final fático e econômico de um produto ou serviço”. Nesta teoria, “consumidor é aquele que adquire ou utiliza produto ou serviço de modo a exaurir sua função econômica, da mesma forma como ao fazê-lo, determina com que seja retirado do mercado de consumo”[4].

Em outras palavras, consumidor para a teoria “finalista” é somente aquele que retira o produto ou serviço do mercado de consumo e o consome.

Segundo aqueles que sustentam a teoria “maximalista” (ou objetiva), a definição de consumidor deve ser interpretada de forma extensiva[5]. Entende-se que, o artigo 2º do CDC apenas exige para a caracterização de consumidor a realização de um ato de consumo, não importando, qual a sua destinação final.

Cavalieri Filho escreve que

[a] expressão destinatário final, pois, deve ser interpretada de forma ampla, bastando à configuração do consumidor que a pessoa, física ou jurídica, se apresente como destinatário fático do bem ou serviço, isto é, que o retire do mercado, encerrando objetivamente a cadeia produtiva em que inseridos o fornecimento do bem ou a prestação do serviço[6].

Observa-se que nesta corrente o CDC é visto como um Código geral de consumo, isto é, um Código para a sociedade de consumo, o que se conclui que o artigo 2º do CDC deve ser interpretado de forma ampla e irrestrita[7].

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) em alguns julgados demonstrava uma certa inclinação para a teoria maximalista, pois considerava consumidor o destinatário final fático do objeto da relação (produto ou serviço), ainda que utilizado no exercício de sua profissão ou empresa[8].

Posteriormente, o STJ aplicou a teoria finalista, sustentando que “não há falar em relação de consumo quando a aquisição de bens ou a utilização de serviços, por pessoa natural ou jurídica, tem como escopo incrementar a sua atividade comercial”[9]. Assentou-se que o consumo intermediário não configura relação de consumo[10], isto é, só se enquadra no conceito de consumidor aquele que adquire os bens de consumo para uso privado fora de sua atividade profissional.

Desta disputa entre a teoria maximalista e finalista, nasce uma terceira corrente, defendida pelo STJ, a corrente “finalista mitigada” (ou aprofundada). Segundo o STJ, em decisões recentes, o CDC pode ser aplicado a determinados consumidores e profissionais, como pequenas empresas e profissionais liberais, desde que demonstrada a vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica no caso concreto[11].

Mas o conceito de consumidor não se restringe ao consumidor standard. O CDC elenca os consumidores por equiparação, que são aqueles do parágrafo único do artigo 2º, do artigo 17 e do artigo 29. No primeiro caso, é a coletividade de consumidores, ainda que indeterminados; no segundo, as vítimas de acidente de consumo; e o último, todos aqueles expostos às práticas comerciais.

O segundo sujeito da relação jurídica de consumo é o fornecedor, conceituado no artigo 3º do CDC como sendo toda pessoa física ou jurídica, pública ou priva, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

O legislador conceituou o fornecedor de forma ampla. Neste sentido, pode-se afirmar que fornecedor é todo aquele que participa da cadeia de fornecimento de produto ou serviço.

Quanto ao objeto da relação jurídica de consumo, o legislador o conceituou no artigo 3º, §§ 1º e 2º, do CDC. Segundo o CDC, produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial; enquanto serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.

É importante salientar que o conceito de produto é muito amplo, isto é alcança todo e qualquer produto inserido no mercado de consumo. Quanto aos serviços, existe uma peculiaridade: só pode ser considerado serviço aquele realizado mediante remuneração, que são pagos e não gratuito, como por exemplo: a) os serviços de hospedagem, b) os serviços de transporte, c) os serviços de educação, d) entretenimento etc.

Mas, haverá situações onde os serviços não são pagos diretamente, como acontece com os estacionamentos em supermercados, farmácias e Shopping Center. Neste caso, ainda que o consumidor não pague diretamente pelo serviço, este é remunerado indiretamente, na medida em que o consumidor consome os produtos no interior do empreendimento.

Objetivou-se neste capítulo demonstrar a importância da compreensão dos elementos da relação jurídica de consumo, a fim de possibilitar um entendimento maior da amplitude de atuação do CDC e, consequentemente, da obrigação de indenizar pelo fornecedor, que será abordada nos próximos itens.



3. RESPONSABILIDADE CIVIL



É imprescindível fazer uma abordagem, ainda que em resumida síntese, sobre o instituto da responsabilidade civil para entender melhor sua aplicação nas relações de consumo.

É certo que “toda manifestação da atividade humana traz em si o problema da responsabilidade”[12].

Mas o que vem a ser responsabilidade?

Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho escrevem que a “palavra “responsabilidade” tem sua origem no verbo latino respondere, significando a obrigação que alguém tem de assumir com as consequências jurídicas de sua atividade (...)”[13]. Isto é, responsabilidade é um dever jurídico decorrente da violação de uma obrigação legal ou contratual.

Em síntese, em uma concepção mais elaborada, a “noção jurídica de responsabilidade pressupõe a atividade dano de alguém que, atuando a priori ilicitamente, viola uma norma jurídica preexistente (legal ou contratual), subordinando-se, dessa forma, às consequências do seu ato (obrigação de reparar)”[14]. Itálico no original.

Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery ao comentarem o disposto no artigo 927, do Código Civil, salientam que a responsabilidade civil pode nascer na lei ou de um fato jurídico, que pode ser um contrato, uma declaração unilateral de vontade, um ato ilícito e, até mesmo, um ato lícito. Salientam que, a “responsabilidade civil é a consequência da imputação civil do dano a pessoa que lhe deu causa ou que responda pela indenização correspondente, nos termos da lei ou contrato”[15].

Partindo-se dessas premissas é possível afirmar que a responsabilidade civil nada mais é do que o dever de reparar o dano imposto ao autor do dano ou responsável, caso esteja impossibilitado de restabelecer a situação ao status quo. É neste contexto que a responsabilidade civil será tratada na próxima seção.



4. RESPONSABILIDADE CIVIL NAS RELAÇÕES DE CONSUMO



Os produtos e serviços inseridos no mercado de consumo quando não atendem o dever de qualidade e segurança, não raras vezes causam danos ao consumidor. O Código de Defesa do Consumidor nos artigos 12 a 17 e 18 a 20, trata da responsabilidade civil pelo fato do produto ou serviço e responsabilidade civil pelo vício do produto e serviço, respectivamente. O presente artigo se restringirá à discussão da responsabilidade civil pelo fato do produto ou serviço.

Conforme se depreende da leitura dos artigos 12 a 14[16], o Código associa o “fato” do produto e do serviço aos “danos” causados aos consumidores por “defeitos” no produto ou serviço.

É importante esclarecer que quando o legislador fala em “fato do produto ou serviço”, está fazendo referência ao acidente de consumo, isto é, quando o vício ou defeito atingir o consumidor provocando-lhe um dano extrapatrimonial. Lisboa o conceitua como vício extrínseco[17].

O vício no produto ou serviço, por si só, não pode ser considerado acidente de consumo, posto que, apenas os tornam impróprios ao uso a que se destinam; é o chamado vício intrínseco[18]. Havendo vícios intrínsecos do produto ou serviço (vícios simples), aqueles previstos nos artigos 18 a 20 do CDC (de qualidade ou quantidade) o dano é meramente patrimonial.

Salienta-se que, “vício” e “defeito”, embora pareçam expressões sinônimas, não o são, pois o “vício” gera apenas uma inadequação do produto ou serviço, tornando-o impróprio para o consumo, seja em razão da sua qualidade ou quantidade. Enquanto o “defeito” é um vício agravado, isto é, que gera um dano extrapatrimonial, um acidente de consumo.

Não obstante o CDC não use a expressão “acidente de consumo”, preferindo chama o evento de “fato do produto ou serviço”, o vício é exógeno ou extrínseco (defeito); o dano causado provoca um dano extrapatrimonial ao consumidor.

Hodiernamente são inúmeros os exemplos de acidente de consumo, como i) o caso do veículo “zero quilômetro” que sai da concessionária e no primeiro momento que o consumidor tenta utilizar o sistema de freios este não funciona, provocando um acidente de trânsito, causando lesões físicas e psíquicas no consumidor; ii) o caso do “Edifício Palace II”, que desabou no Rio de Janeiro em fevereiro de 1998; iii) o caso da mãe que ao servir seus dois filhos com uma geleia de mocotó, contaminada com veneno de rato causou-lhes a; iv) o caso da jovem que pulou de bang jamp e os elásticos arrebentaram, causando-lhe o óbito; v) o caso do Buffet que serve comida contaminada, causando intoxicação aos convidados da festa etc.

Em todos estes exemplos e muitos outros, uma situação é comum a todos, a ausência de segurança. O §1º, do artigo 12, do CDC dispõe que “o produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera [...]”. No mesmo sentido é o disposto no §1º, do artigo 14, do CDC.

O vício extrínseco (acidente de consumo) extrapola a substância do bem e ofende a vida, a saúde, a higidez física e psíquica, ou mesmo a segurança do consumidor, isto é passível de indenização, entretanto, é evidente que a obrigação de indenizar está submetida a alguns requisitos, cuja falta pode causar a inexistência de tal dever, quais sejam i) o defeito do produto ou do serviço; ii) o dano extrapatrimonial; e iii) o nexo de causalidade entre o defeito e o dano.

É importante salientar que a responsabilidade pelo fato do produto ou serviço é objetiva, não depende da prova da culpa. Esta é a exegese do artigo 12, caput, do CDC. A única exceção no CDC é aquela descrita no §4º, do artigo 14, onde a responsabilidade civil do profissional liberal será apurada mediante a verificação da culpa.

O defeito diz respeito ao vício existente no produto ou serviço que, quando manifestado, provoca um dano em razão da ausência de segurança. O dano é o prejuízo propriamente dito, causado pelo vício. O nexo de causalidade é a relação de causa e efeito que se estabelece entre o defeito do produto ou do serviço e o dano.

Os responsáveis pela reparação dos danos foram elencados no caput do artigo 12 13 e 14 do CDC, como sendo o fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, o importador, o comerciante e o prestador de serviços[19].



Da leitura dos dispositivos elencados acima, a responsabilidade dos fornecedores (fabricante, produtor, construtor, nacional ou estrangeiro e o importador) é direta e solidária e independe de verificação da culpa (responsabilidade objetiva). Em relação ao comerciante, fornecedor imediato, (hoje denominado empresário), responde de forma subsidiária, isto é, somente naqueles casos dos incisos do artigo 13, do CDC. Em relação aos profissionais liberais, a responsabilidade é subjetiva, dependerá da verificação de culpa.

Os responsáveis pela reparação dos danos poderão se eximir desta responsabilidade quando provar qualquer uma das excludentes do §3º, do artigo 12 e §3º, do artigo 14, do CDC. Nas excludentes do §3º, do artigo 12, o fornecedor deve provar que o produto não fora inserido no mercado de consumo, ou ainda que tenha colocado no mercado, o defeito não existe, ou que houve culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. Nas excludentes do §3º, do artigo 14, o prestador de serviços deve provar que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste ou a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

O Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 6º, inciso VIII, insere como direito básico do consumidor a possibilidade de inversão do ônus da prova, ficando a critério do magistrado (juiz) a concessão caso verifique que há verossimilhança nas alegações ou a hipossuficiência do consumidor. Entretanto, nos casos de acidente de consumo (pelo fato do produto) essa inversão do ônus da prova é automática, isto é, opera por força da própria lei, §§3º, do artigo 12 e 14 do CDC.

É importante esclarecer que o prazo para ajuizamento de ação objetivando a reparação dos danos oriundos do acidente de consumo é de 5 (cinco) anos, contados a partir do conhecimento dos danos, conforme se depreende da leitura do artigo 27, do Código de defesa do consumidor, contados .

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não obstante a amplitude do tema, buscou-se neste estudo apresentar os aspectos gerais da responsabilidade civil pelo fato do produto ou serviço (acidente de consumo), sem, contudo, esgotar o assunto.

Observou-se que, as disposições do Código de Defesa do Consumidor, mais especificamente, a responsabilidade pelo fato do produto ou serviço só se aplicam às relações de consumo, a qual de um lado encontra-se o consumidor (parte vulnerável na relação), de outro, o fornecedor e fazendo uma ligação entre os dois, o produto ou serviço.

Os conceitos de vicio e defeito foram apresentados. O primeiro, como sendo aquele que causa apenas uma inadequação do produto ou serviço, tornando-o impróprio ao consumo, é o chamado vício intrínseco ou vício simples. O outro (defeito), é também um vício, porém extrínseco ou exógeno, proveniente da falta da observância do dever de segurança, que causa um dano extrapatrimonial, isto é físico ou psíquico ao consumidor e, em alguns casos, até patrimonial.

O acidente de consumo é muito comum nas relações de consumo, em razão disso, a responsabilidade dos fornecedores é objetiva, independe da apuração da culpa, exceto em relação ao prestador de serviço profissional liberal. Sua reparação se dá por meio do ajuizamento de uma ação contra os responsáveis, entretanto, o consumidor deverá observar o prazo de 5 (cinco) anos, contados do conhecimento do acidente.

O ônus da prova é sempre do fornecedor (fabricante, produtor, construtor, nacional ou estrangeiro e comerciante); cabe a ele demonstrar as excludentes do §3º, do artigo 12, do CDC. O mesmo acontece com o prestador de serviços (§3º, artigo 14), exceto em relação aos profissionais liberais.

Os responsáveis respondem de forma direta e solidariamente, exceto no caso do comerciante, cuja responsabilidade é subsidiária, isto é, só será responsabilizado nas hipóteses do artigo 13, do CDC.

O Código de Defesa do Consumidor, não obstante a existência de posicionamentos contrários, é um excelente instrumento de defesa do consumidor. O CDC é referência em diversos países por ser uma norma moderna e completa, considerado um microssistema, onde estão presentes normas de direito material, processual, penal e administrativo.

É evidente que os acidentes de consumo, mesmo diante destes mecanismos, não reduziram após a entrada em vigor do CDC em 1991, ao contrário. Como o consumo cresce assustadoramente, com ele os acidentes de consumo, haja vista a total ausência de preocupação dos fornecedores em inserir no mercado de consumo produtos de qualidade, duráveis e que ofereçam a segurança desejada.

É hora dos Poderes públicos, responsáveis pela defesa do consumidor, por força do artigo 5º, inciso XXXII, da Constituição, tomar providências a tornar mais efetiva a fiscalização e a punição dos responsáveis pelos danos causados aos consumidores, a final todos nós somos consumidores, inclusive aqueles que estão no Poder!


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BORGES, Luiz Cláudio. Direito do consumidor: Os efeitos pragmáticos da Lei nº 12.291/2010 que obriga a sociedade empresária e o prestador de serviços a ter um exemplar do CDC à disposição do consumidor. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, 95, 01/12/2011.


CAVALIERI FILHO. Sergio. Programa de direito do consumidor. 3. ed. – São Paulo: Atlas, 2011.


DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 9ª, ed., Rio de Janeiro: Forense, 1994, v I.

GAGLICIANO, Pablo Stolze, PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil v. III: responsabilidade civil. 7ª, ed. – São Paulo: Saraiva, 2009.

LISBOA, Roberto Senise. Responsabilidade civil nas relações de consumo. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 2. ed. ver., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. 

NERY JUNIOR, Nelson, ANDRADE NERY, Rosa Maria. Código Civil Comentado. 7º. ed. Rev., ampl. e atual. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2009.




[1] Mestre em Direito Constitucional e Democracia pela Faculdade de Direito do Sul de Minas – FDSM, advogado e professor universitário.


[2] “Pode soar estranho dizer isto, mas em pleno século XXI existem pessoas que sequer sabem da existência do CDC, razão pela qual a inserção da disciplina no ensino fundamental é medida imprescindível para a formação de consumidores conscientes. O dever de informar sobre os direitos e deveres dos consumidores e dos fornecedores é do Estado. Neste ponto, o Estado falha, sobretudo ao relegar esta obrigação à iniciativa privada. Já se passaram 20 anos, desde a entrada em vigor do CDC, muito se fez, mas, ainda, existe muito a se fazer, sobretudo quando o assunto é a difusão do CDC. Sem uma educação adequada, pouco provavelmente o consumidor estará preparado para interpretar as normas elencadas no CDC. Se os próprios aplicadores e operadores do direito confundem os institutos existentes no Código, quem dirá o consumidor que é leigo. Um exemplo disso é o disposto no artigo 12[viii] e 18[ix], do CDC. O primeiro trata da responsabilidade civil pelos danos causados aos consumidores por defeitos nos produtos; o segundo prevê a responsabilização dos fornecedores pelos vícios de qualidade ou quantidade. Ora, defeito e vício não têm o mesmo significado? Na linguagem utilizada pelo CDC não. São expressões parecidas, mas com significados diametralmente opostos. O consumidor está preparado para distinguir um instituto do outro? É evidente que não. [...].” BORGES, Luiz Cláudio. Direito do consumidor: Os efeitos pragmáticos da Lei nº 12.291/2010 que obriga a sociedade empresária e o prestador de serviços a ter um exemplar do CDC à disposição do consumidor. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, 95, 01/12/2011 [Internet]. Disponível em http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=10876. Acesso em 8/10/2013.


[3] “Observa-se, aliás, que uma das mais recorrentes alegações de fornecedores para escapar à aplicação das normas protetivas do consumidor é de que a relação sob exame em um determinado processo não pode ser caracterizada como relação de consumo”. MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 2. ed. ver., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. pg. 84.


[4] MIRAGEM, Bruno. Op. cit. p. 91.


[5] Ibid. p. 92.


[6] CAVALIERI FILHO. Sergio. Programa de direito do consumidor. 3. ed. – São Paulo: Atlas, 2011. p. 60.


[7] “Pela definição legal de consumidor, basta que ele seja o ‘destinatário final’ dos produtos ou serviços (CDC, art. 2º), incluindo aí apenas aquilo que é adquirido ou utilizado para uso pessoal, familiar ou doméstico, mas também o que é adquirido para o desempenho de atividade ou profissão, bastando, para tanto, que se não haja a finalidade de revenda. [...]”. (ALMEIDA, João Batista. A proteção jurídica do consumidor, 2º. ed., Revista dos Tribunais, 200, p. 40)


[8] Cf. REsp. 208.793/MT; REsp 329.587/SP; REsp 286.441/RS.


[9] Cf. REsp 541.86/BA.


[10] CAVALIERI FILHO, Sergio. Op. cit. p. 65.


[11] Cf. REsp 660.026/RJ


[12] DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 9ª, ed., Rio de Janeiro: Forense, 1994, v I, p. 1.


[13] GAGLICIANO, Pablo Stolze, PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil v. III: responsabilidade civil. 7ª, ed. – São Paulo: Saraiva, 2009, p. 2.


[14] Ibid. p. 9.


[15] NERY JUNIOR, Nelson, ANDRADE NERY, Rosa Maria. Código Civil Comentado. 7º. ed. Rev., ampl. e atual. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2009. p. 785.


[16] Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.

§ 1° O produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:

I - sua apresentação;

II - o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam;

III - a época em que foi colocado em circulação.

§ 2º O produto não é considerado defeituoso pelo fato de outro de melhor qualidade ter sido colocado no mercado.

§ 3° O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar:

I - que não colocou o produto no mercado;

II - que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste;

III - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

Art. 13. O comerciante é igualmente responsável, nos termos do artigo anterior, quando:

I - o fabricante, o construtor, o produtor ou o importador não puderem ser identificados;

II - o produto for fornecido sem identificação clara do seu fabricante, produtor, construtor ou importador;

III - não conservar adequadamente os produtos perecíveis.

Parágrafo único. Aquele que efetivar o pagamento ao prejudicado poderá exercer o direito de regresso contra os demais responsáveis, segundo sua participação na causação do evento danoso.

Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

§ 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:

I - o modo de seu fornecimento;

II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;

III - a época em que foi fornecido.

§ 2º O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas.

§ 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:

I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;

II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

§ 4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.



[17] LISBOA, Roberto Senise. Responsabilidade civil nas relações de consumo. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 76.


[18] ibid, p. 76.




[19] Art. 12. “O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.”

[...].

Art. 13. “O comerciante é igualmente responsável, nos termos do artigo anterior, quando:

I - o fabricante, o construtor, o produtor ou o importador não puderem ser identificados;

II - o produto for fornecido sem identificação clara do seu fabricante, produtor, construtor ou importador;

III - não conservar adequadamente os produtos perecíveis”.

[...].

Art. 14. “O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos”.

Juiz do Trabalho pode lançar e executar contribuições



Por Heleno Taveira Torres




O propósito desse breve estudo é determinar o fato jurídico tributário e confirmar a plena legitimidade da Justiça do Trabalho para lançar e executar as contribuições sociais previstas no artigo 195, I, “a”, e II, incidentes sobre verbas indenizatórias, decorrentes das sentenças por ela proferidas, nos termos do artigo 114, VIII, da CF, o que impõe uma necessária metodologia baseada na hermenêutica conforme a Constituição.

As regras assinaladas assim prescrevem:


“Art. 195. (...)
I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre:
a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; (Incluído pela Emenda Constitucional 20, de 1998) (...)
II - do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201; (Redação dada pela Emenda Constitucional 20, de 1998)”


“Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: (Redação dada pela Emenda Constitucional 45, de 2004) (...)
VIII. a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art. 195, I, a , e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir; (Incluído pela Emenda Constitucional 45, de 2004)”

Como se pode verificar, o Constituinte delimitou o critério material da contribuição, a saber: os salários e demais rendimentos do trabalho; mas também fez antecipar seu critério temporal, suficiente para definir sua ocorrência: pagos ou creditados, a qualquer título. Estes, porém, relativamente a casos submetidos à Justiça do Trabalho, serão sempre decorrentes das sentenças proferidas, as quais serão lançadas e executadas de ofício, pelo Juiz (autoridade competente).

Na interpretação da legislação infraconstitucional, tem-se que separar quatro momentos que poderiam servir à determinação do fato jurídico tributário nas sentenças judiciais ou nos acordos homologados, a saber:

1) Quando da prestação dos serviços;
2) Com a sentença publicada;
3) Mediante o trânsito em julgado;
4) Na data do pagamento dos valores da condenação.

Para permitir essa conformidade necessária entre as leis infralegais e a Constituição, faz-se mister compatibilizar o art. 195, I, “a” e inciso II com o teor do artigo 114, VIII, da CF, porquanto qualquer fato jurídico tributário deve obediência ao primeiro, para os fins de definição da autoridade competente para o lançamento e execução da respectiva cobrança.

A prestação dos serviços ou do trabalho somente poderá sujeitar-se à tributação quando se esteja diante de situações incontroversas das quais possam resultar o pagamento de direitos sujeitos à incidência de contribuição previdenciária, quando então serão apuradas mês a mês, com referência ao período da prestação de serviços (art. 43, § 2º e § 3º da Lei 8.212, de 1991). Nesse caso, não pode haver dúvida, considera-se ocorrido o fato gerador das contribuições sociais na data da prestação do serviço.

Não há dúvidas, pelo artigo 195, inciso I, "a", da CF, que a contribuição social do empregador incide sobre “a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, com ou sem vínculo empregatício”. Desse modo, o fato jurídico tributário dependerá do pagamento e, como arremata o Ministro Menezes Direito, no seu Voto no RE 569056/PA: “não é possível, no plano constitucional, norma legal estabelecer fato gerador diverso para a contribuição social de que cuida o inciso I, "a" do artigo 195 da Constituição Federal.” O argumento é incontornável, cuja decisão teve eficácia de “repercussão geral”.

Nas sentenças judiciais ou nos acordos homologados que não tenham discriminadas as parcelas legais relativas às contribuições sociais, estas incidirão sobre o valor total apurado em liquidação de sentença ou sobre o valor do acordo homologado, quanto às parcelas remuneratórias. Nessa hipótese, que é o caso que motiva este Parecer, a contribuição será calculada com base no valor do acordo. (§ 1º e 5º do artigo 43, incluído pela Lei 11.941, de 2009).

De fato, isso iguala toda e qualquer verba devida de natureza remuneratória, desde que objeto da decisão, como suficiente para constituir o respectivo fato jurídico tributário das contribuições, numa lídima interpretação conforme a Constituição.

Não fosse assim, a decadência tributária, matéria de ordem pública, poderia ficar sujeita a declaração de vontade das partes, livres para decidir pelo melhor momento da demanda, para término do litígio e liquidação dos valores.

Desse modo, a interpretação do texto constitucional é satisfeita com a efetividade do ato de pagamento ou do crédito, seja pela escrituração como “salário” ou verba devida, seja pelo quanto decidido no “acordo”, na forma jurídica de liquidez e certeza do montante a ser pago.

De fato, ao longo do exercício da justiça trabalhista, verificou-se a importância de evidenciar uniformidade procedimental no cumprimento das cobranças das leis previdenciárias, pelo princípio da praticabilidade. Foi assim que o artigo 12 da Lei 7.787, de 30 de junho de 1989, ensejou o primeiro esforço para atribuir ao Juiz o dever de velar pelo recolhimento imediato das contribuições previdenciárias. A saber:


“Art. 12. Em caso de extinção de processos trabalhistas de qualquer natureza, inclusive a decorrente de acordo entre as partes, de que resultar pagamento de vencimentos, remuneração, salário e outros ganhos habituais do trabalhador, o recolhimento das contribuições devidas à Previdência Social será efetuado in continenti.
Parágrafo único. A autoridade judiciária velará pelo fiel cumprimento do disposto neste artigo.”

Essa competência não continha permissão para o juiz do trabalho realizar cobrança de tributo. Cingia-se aos meios formais. Em caso de descumprimento, firmou-se o entendimento segundo o qual o juiz deveria cientificar o INSS a respeito, para que este pudesse tomar as respectivas providências. A separação de competências jurisdicionais e administrativas em matéria previdenciária justifica essa cabal diversidade de funções.

Após outros atos precedentes, adveio o Provimento 1, de 20 de fevereiro de 1990, da Corregedoria Geral do TST, com amparo na Lei 7.787/89, para admitir que a citada Lei atribuíra à autoridade judiciária o dever de zelar pelo fiel cumprimento da previsão em torno do imediato recolhimento das importâncias, que a competência da Justiça do Trabalho tem regência constitucional, além de levar em consideração o fato de os títulos judiciais prolatados pela Justiça do Trabalho versarem sobre direitos trabalhistas e que, constitucionalmente, cumpre a Justiça diversa o julgamento de controvérsias que envolvam matéria previdenciária.

O Provimento TST 3, de 8 de abril de 2002, sob alegação dos problemas gerados pela diversidade de provimentos regulando a mesma matéria, prejudicando a uniformização procedimental nos órgãos correicionados e, consequentemente, a administração regular da justiça, resolveu afastar amplamente esse dever de auxiliar na cobrança das contribuições, ao revogar os Provimentos 1/1990, mas também o Provimento 3/1984.

Com o artigo 43 da Lei 8.212/1991, em caso de extinção de processos trabalhistas de qualquer natureza, inclusive a decorrente de acordo entre as partes, de que resultasse pagamento de remuneração ao segurado, o recolhimento das contribuições devidas à Seguridade Social deveria ser adimplido de imediato.[1] Em seguida, a Lei 8.620/1993 alterou os artigo 43 e 44 daquela Lei e determinou o imediato recolhimento das importâncias, sob pena de responsabilidade. Caberia ao juiz, agora, apenas comunicar ao órgão competente os termos da sentença ou do acordo homologado, por notificação ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

Após a vigência dessas leis, com o Provimento TST 1/1996, coube ao juiz da execução determinar as medidas necessárias ao cálculo, dedução e recolhimento das Contribuições devidas, a evidenciar, tanto mais, a equivalência com o ato de lançamento tributário, ao reconhecer como de competência da Justiça do Trabalho o ônus de calcular, deduzir e recolher contribuições devidas ao Instituto Nacional de Seguro Social - INSS, conforme disposto pelos artigos 43 e 44 da Lei 8212, de 24 de julho de 1991.

As dúvidas, entretanto, não cessariam. Os magistrados, em grande parte, não se sentiam obrigados a essa função previdenciária, o que prejudicava a eficiência do recolhimento das contribuições. Justificou-se, então, a elevação do regime ao patamar constitucional, ademais de lei que determinasse a execução de ofício dessas contribuições previdenciárias.

Com a Emenda Constitucional 20, de 1998, o artigo 114, da CF, elevou a matéria ao altiplano constitucional e definiu como competência da Justiça do Trabalho promover a execução Contribuições Sociais referidas pelo artigo 195, I, “a” e II. Mais adiante, o artigo 114 foi novamente alterado, pela Emenda 45, de 2004, e, atualmente, o referido dispositivo ostenta a seguinte redação[2]:


“Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: (Redação dada pela Emenda Constitucional 45, de 2004) (...)
VIII. a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art. 195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir; (Incluído pela Emenda Constitucional 45, de 2004)” (grifo nosso).

E, para afastar dúvidas, a Lei 10.035/2000 ampliou os regimes previstos na CLT (artigos 831 e 832 do Capítulo II do Título X), para melhor tratamento processual específico, afora os aprimoramentos das leis 11.457/2007 e 11.941/2009.

A referida Lei 10.035, de 2000, também acrescentou o parágrafo único ao artigo 876 da CLT, o qual teve sua redação posteriormente modificada, nos seguintes moldes, a saber:


“Art. 876 – (...)
Parágrafo único. Serão executadas ex-officio as contribuições sociais devidas em decorrência de decisão proferida pelos Juízes e Tribunais do Trabalho, resultantes de condenação ou homologação de acordo, inclusive sobre os salários pagos durante o período contratual reconhecido. (Redação dada pela Lei 11.457, de 2007)”

Na sequência, foram alterados os parágrafos 2º a 5º do artigo 43 da Lei 8.212, de 1991 pela Lei 11.941, de 2009, que resultou da conversão da Medida Provisória 449, de 2008, in verbis:


“§ 2º Considera-se ocorrido o fato gerador das contribuições sociais na data da prestação do serviço. (Incluído pela Lei 11.941, de 2009).
§ 3º As contribuições sociais serão apuradas mês a mês, com referência ao período da prestação de serviços, mediante a aplicação de alíquotas, limites máximos do salário-de-contribuição e acréscimos legais moratórios vigentes relativamente a cada uma das competências abrangidas, devendo o recolhimento ser efetuado no mesmo prazo em que devam ser pagos os créditos encontrados em liquidação de sentença ou em acordo homologado, sendo que nesse último caso o recolhimento será feito em tantas parcelas quantas as previstas no acordo, nas mesmas datas em que sejam exigíveis e proporcionalmente a cada uma delas. (Incluído pela Lei 11.941, de 2009).
§ 4º No caso de reconhecimento judicial da prestação de serviços em condições que permitam a aposentadoria especial após 15 (quinze), 20 (vinte) ou 25 (vinte e cinco) anos de contribuição, serão devidos os acréscimos de contribuição de que trata o § 6º do art. 57 da Lei 8.213, de 24 de julho de 1991. (Incluído pela Lei 11.941, de 2009).
§ 5º Na hipótese de acordo celebrado após ter sido proferida decisão de mérito, a contribuição será calculada com base no valor do acordo. (Incluído pela Lei 11.941, de 2009).
§ 6º Aplica-se o disposto neste artigo aos valores devidos ou pagos nas Comissões de Conciliação Prévia de que trata a Lei 9.958, de 12 de janeiro de 2000. (Incluído pela Lei 11.941, de 2009).”

Ante o exposto, tem-se afirmada a competência da Justiça do Trabalho para determinar a execução das contribuições previdenciárias sobre folha de salário e outras, desde que o faça nos termos do artigo 195, I, “a” e II da Constituição Federal, incidentes sobre os valores de natureza remuneratória decorrentes de sentenças condenatórias ou objeto de acordo homologado,[3] no limite processual do art. 114, VIII da CF.

Deveras, a materialidade das contribuições objeto do artigo 43 da Lei 8.212, 1991, corresponde (i) ao pagamento ou creditamento dos valores relativos à folha de salários e de demais rendimentos do trabalho — contribuição prevista do artigo 195, I, “a”, CF — e, de forma correlata, (ii) ao recebimento da remuneração pelo trabalho — artigo 195, II, CF.

A partir de uma análise superficial, poder-se-ia afirmar que o artigo 43 da Lei 8.212, mormente por meio de seu parágrafo 2º, incluído pela Lei 11.941, de 2009, teria fixado como materialidade das contribuições ali referidas a prestação de serviços, e como critério temporal o momento da prestação de serviços. Aceitar essa composição de sentido, porém, seria evidência inequívoca de rompimento com a ordem constitucional.

O fato jurídico tributário, presumido na sentença, inerente ao lançamento que nela se contém, consuma-se pelo pagamento ou creditamento dos valores a título das remunerações, devidos a partir do trânsito em julgado definitivo.

Ora, pelo fato de a Lei 8.212, 1991, fazer, em seu artigo 22, I, alusão à expressão “remunerações (...) devidas”, isto não é de todo suficiente para chancelar qualquer equivalência à prestação de serviços, por parte do trabalhador, para ter-se ocorrido o fato jurídico tributário. A referida expressão é ainda utilizada no artigo 30 da Lei 8.212, de 1991, além de ser feita referência a “rendimentos (...) devidos”, no artigo 28, I, da mencionada lei, o qual versa sobre o salário-de-contribuição.

As contribuições sociais previstas no artigo 195, I, “a” e II, da CF, podem ser igualmente executadas pela Justiça do Trabalho, na esteira da conclusão do ministro Menezes Direito, de saudosa memória:


“Com base nas razões acima deduzidas, entendo não merecer reparo a decisão do Tribunal Superior do Trabalho no sentido de que a execução das contribuições previdenciárias está no alcance da Justiça Trabalhista quando relativas ao objeto da condenação constante das suas sentenças, não abrangendo a execução de contribuições previdenciárias atinentes ao vínculo de trabalho reconhecido na decisão, mas sem condenação ou acordo quanto ao pagamento de verbas salariais que lhe possam servir como base de cálculo.”

Desse modo, mês a mês, para os fins de lançamento administrativo, por eventual fiscalização da SRFB, o fato jurídico tributário das respectivas contribuições acima reputa-se ocorrido, pelo seu critério temporal, no momento em que o segurado torna-se titular jurídico da remuneração dos salários e demais rendimentos do trabalho. E não poderia ser diverso. Isso é certo. Porém, quando se tratar de sentenças ou acordos homologados pela Justiça do Trabalho, o montante líquido e certo determinado autoriza seu lançamento, por presunção daquilo que será o fato jurídico tributário, que somente surgirá com o efetivo pagamento ou creditamento. Assim, com a sentença ou o acordo exsurge o objeto de lançamento tributário e define-se a prescrição de eventual cobrança, caso a contribuição devida não seja paga, por presunção da ocorrência do fato jurídico tributário que advirá com o pagamento das verbas ou seu creditamento.

Em conclusão, o fato gerador das contribuições previdenciárias, para fins de extinção do crédito tributário, não se verifica com a sentença ou homologação do acordo pela Justiça do Trabalho, mas com o efetivo pagamento ou creditamento e com o respectivo recebimento da remuneração pelo trabalho, haja vista a necessidade de certeza e liquidez, com eficácia de definitividade, após eventuais recursos e outros. Não seria possível cogitar da ocorrência do fato jurídico tributário de contribuição previdenciária, incidente sobre verbas controversas, anteriormente à liquidação da sentença, ou, ainda, antes do prazo para pagamento dessas verbas. Por outro giro, o valor da contribuição social devida somente pode ser apurado a partir do momento em que os valores que correspondem à sua base de cálculo deixem de ser controversos, com liquidez e certeza apurada pela sentença ou em conformidade com o acordo.

No caso das contribuições previdenciárias incidentes sobre valores relativos à remuneração pelo trabalho resultantes de sentença condenatória ou de acordo homologado pela Justiça do Trabalho, tem-se que somente no momento em que se efetivar o pagamento dos referidos valores, de fato, reputar-se-á ocorrido fato jurídico das contribuições sociais previstas no artigo 195, I, “a” e II, da CF, com a definitividade necessária para autorizar a extinção da obrigação tributária, pelo pagamento das contribuições eventualmente devidas. Outro não poderia ser o critério temporal das contribuições em tela, haja vista a referida regra-matriz de incidência constitucional dessas contribuições e o imperativo lógico, segundo o qual deve haver correlação entre o critério material e o temporal da regra-matriz de incidência tributária.
[1] Lei 8.212, de 24 de julho de 1991. “Art. 43. Em caso de extinção de processos trabalhistas de qualquer natureza, inclusive a decorrente de acordo entre as partes, de que resultar pagamento de remuneração ao segurado, o recolhimento das contribuições devidas à Seguridade Social será efetuado incontinenti.
Art. 44. A autoridade judiciária exigirá a comprovação do fiel cumprimento ao disposto no artigo anterior.”
[2] “No entanto, cumpre observarmos que, nos termos da CF/88 (artigo 114, VIII) a Justiça do trabalho possui competência para executar as contribuições previdenciárias referidas no artigo 195, inciso I, ‘a’ e inciso II, decorrentes das sentenças por ela proferidas, ou seja, as contribuições previdenciárias incidentes sobre os valores pagos ou creditados ao trabalhador” (VIANNA, Cláudia Salles Vilela. Previdência social: custeio e benefícios. São Paulo: LTr, 2008, p. 210).
[3] Não obstante as controvérsias verificadas acerca deste tema, a posição aqui mencionada é aquela acatada pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Tribunal Superior do Trabalho e pode ser sintetizada da seguinte maneira: “Dessarte, a execução das contribuições previdenciárias de ofício pelo magistrado do trabalho limita-se, mesmo diante da atual redação do parágrafo único do artigo 876, às sentenças condenatórias e às decisões homologatórias de acordo que estabelecem obrigação pecuniária. As sentenças declaratórias, ainda que reconheçam expressamente a existência da relação empregatícia, não ensejam execução ex officio” (MOREIRA, André Mendes; MIRAGLIA, Lívia Mendes Moreira; MACHADO, Sophia Goreti Rocha. A competência da justiça do trabalho para a execução de contribuições previdenciárias e seus desdobramentos. In: PAULSEN, Leandro; CARDOSO, Alessandro Mendes (org.). Contribuições previdenciárias sobre a remuneração. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 202-203).



Heleno Taveira Torres é advogado, professor e livre-docente de Direito Tributário da Faculdade de Direito da USP, e membro do Comitê Executivo da International Fiscal Association.

Revista Consultor Jurídico, 9 de outubro de 2013

terça-feira, 8 de outubro de 2013

A CONSTITUIÇÃO CIDADÃ E O TRIBUNAL DA CIDADANIA



A Constituição Cidadã e o Tribunal da Cidadania
"A Constituição mudou na sua elaboração, mudou na definição dos poderes, mudou restaurando a federação, mudou quando quer mudar o homem em cidadão. E só é cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa.” Ulysses Guimarães – 5 de outubro de 1988.

Foi um discurso histórico. Há exatos 25 anos, as palavras do então presidente da Assembleia Nacional Constituinte, deputado Ulysses Guimarães, anunciavam um novo tempo para o Brasil. A nova Constituição, batizada por ele de Constituição Cidadã, sepultou de vez o regime de exceção e implantou no país o Estado Democrático de Direito.

Antes dela, tivemos outras seis. Dessas, algumas foram impostas, outras foram promulgadas por assembleias constituintes, mas nenhuma foi tão democrática. Não apenas em relação ao conteúdo, mas também na forma de elaboração. A participação da sociedade civil marcou o caráter cidadão da Carta de 88. Nela, 12.277.433 brasileiros colaboraram para a formulação das 122 emendas populares.

O discurso de promulgação falava em saúde, educação, lazer, emprego... Falava também em amplo acesso à Justiça e abriu caminho para a instalação das Defensorias Públicas e uma autonomia sem precedentes do Ministério Público. O Poder Judiciário precisava estar preparado para aquelas transformações.

“Sendo cada vez mais chamado a solucionar conflitos de natureza política, social, ambiental, entre outros temas, pode-se afirmar, com razoável tranquilidade, que a responsabilidade do Poder Judiciário, sob a Constituição de 1988, aumentou consideravelmente”, afirma o professor de direito constitucional Sérgio Antônio Ferreira Victor, doutor em direito do estado pela Universidade de São Paulo e mestre em direito e políticas públicas pelo Centro Universitário de Brasília.

Nova organização

Antes de 1988, cabia ao Supremo Tribunal Federal (STF) não apenas o julgamento em última instância das questões constitucionais, mas também a competência de uniformizar a interpretação das leis federais.

Abaixo do STF, havia o Conselho Nacional da Magistratura, os tribunais e juízes estaduais, os tribunais e juízes militares, os tribunais e juízes eleitorais, os tribunais e juízes do trabalho e a Justiça Federal, composta pelos juízes federais singulares e pelo Tribunal Federal de Recursos (TFR).

“As Justiças estaduais e as especializadas, em razão da matéria, já detinham competências similares àquelas que detêm atualmente. Na Justiça Federal, além dos juízes federais singulares, havia apenas o Tribunal Federal de Recursos ocupando o segundo grau de jurisdição. Acima dele, apenas se poderia recorrer ao Supremo Tribunal Federal. Desse modo, a Justiça Federal, nos moldes como foi organizada pela Constituição de 1967/69, era consideravelmente mais simples que a atual”, explica o professor Sérgio Victor.

Durante o período da Constituinte, em 1987, o então presidente do TFR, ministro Evandro Gueiros Leite, designou uma comissão de ministros do tribunal, encarregada de apresentar estudos e sugestões para a nova organização do Judiciário. Participaram dessa comissão os ministros Antônio de Pádua Ribeiro, Cid Flaquer Scartezzini, Nilson Naves, Eduardo Ribeiro, Carlos Thibau e Ilmar Galvão.

“A condição que estabelecemos é que a comissão não cuidaria de interesses particulares dos ministros, mas apenas dos aspectos institucionais. Entendíamos que essas questões relativas a vencimentos e vantagens deveriam ser defendidas na Constituinte pelas associações de classe. Nossa comissão, portanto, ficou limitada à parte institucional e isso foi importante porque lhe deu muita credibilidade perante a Constituinte”, relembra o ministro Pádua Ribeiro, que presidiu a comissão.

Crise do STF

STF e TFR estavam sobrecarregados. O volume de processos que recebiam era muito superior à quantidade que podiam julgar. Especialistas em direito, como José Lamartine, Luiz Pinto Ferreira e Roberto de Oliveira Santos, também ajudaram a subcomissão da Constituinte que tratava do Poder Judiciário e do Ministério Público a entender melhor a realidade da Justiça na época.

“Alguém que já examinou a pauta do Supremo chegou à conclusão de que, ainda que os ministros daquele órgão trabalhassem todos os dias do ano – sábado, domingo, feriado – sem tirar férias, preparando para julgamento quatro recursos por dia, e trabalhassem de manhã e de noite – as terças, quartas, quintas e sextas-feiras há sessões à tarde no Supremo –, ainda que isso acontecesse não conseguiriam cobrir o déficit dos recursos extraordinários. Restaria um grande número de recursos de um ano para o outro”, disse o jurista José Lamartine, na reunião ordinária do dia 27 de abril de 1987.

Com a nova ordem constitucional, o TFR foi extinto e foram criados cinco Tribunais Regionais Federais (TRFs), para desafogar a segunda instância da Justiça Federal.

A sugestão de criar outro tribunal superior, responsável por integrar e uniformizar a interpretação das leis federais, sem se tratar de uma terceira instância, também foi acatada. Nascia ali, junto com a Constituição Cidadã, o Superior Tribunal de Justiça.

Tribunal da Cidadania

“O STJ é, na verdade, um desmembramento do Supremo Tribunal Federal e não um sucessor do Tribunal Federal de Recursos. As funções do TFR foram transferidas aos Tribunais Regionais Federais, não ao STJ. Não somos uma corte de apelação, mas de uniformização, como toda corte superior no mundo”, explica o presidente do STJ, ministro Felix Fischer.

E foi mais que uma divisão de competências. A Constituição de 88 ampliou os direitos e garantias fundamentais, provocou a edição de novas leis que regulamentaram tais conquistas, e, consequentemente, as matérias a serem enfrentadas pelo STJ teriam relação direta com essa nova realidade jurídica do cidadão. Dessa constatação, surgiu o termo Tribunal da Cidadania, como o STJ também é conhecido.

“O STJ é um tribunal nacional, que julga causas tanto da Justiça Federal quanto da estadual. A natureza dessas causas diz respeito diretamente ao cotidiano do cidadão: direito do consumidor, questões de família e de comércio, por exemplo. Todas essas questões vêm sendo enfrentadas pelo STJ, e a sociedade reconhece isso”, disse o ministro Ari Pargendler, decano do Tribunal.

O cidadão e a Justiça

A relação do Judiciário com a sociedade mudou nesses 25 anos. A nova Carta colocou o cidadão como personagem principal da jurisdição e este passou a compreender, a reivindicar seus direitos e a perceber que a Justiça estava ali a seu serviço.

O Poder Judiciário também entendeu o recado do constituinte. Várias medidas de aproximação da Justiça com os cidadãos têm sido reiteradamente adotadas ao longo deste quarto de século.

Justiça itinerante, justiça volante, juizados especiais, instalação de juizados em aeroportos, mutirões judiciais para julgar demandas que precisam de soluções urgentes e a criação do Conselho Nacional de Justiça – que tem como uma de suas principais funções melhorar a gestão do Poder Judiciário em geral – são apenas alguns exemplos.

“Se no passado a magistratura era considerada vetusta por parte da população, hoje em dia os cidadãos confiam no Poder Judiciário e a ele recorrem quando julgam ter seus direitos violados. E isso, aliado à estabilidade institucional, à garantia da ordem democrática, entre tantas outras conquistas, é um grande feito da Constituição Federal de 1988.”, observou o professor Sérgio Victor.

Retoque necessário

Em relação à criação do STJ, o ministro Pádua Ribeiro também não tem dúvidas: “Foi um êxito total. Não há dúvida nenhuma de que foi uma iniciativa corretíssima, e a prática assim provou. Mas é necessário que se dê um retoque na Constituição para que a atuação do STJ se torne ainda mais eficaz. É necessário que alguns ajustes sejam feitos, decorrentes da prática desses 25 anos.”

Parece pouco tempo, mas já é possível perceber que o STJ sofre as consequências do número elevado de processos que batem à sua porta. Para se ter uma ideia, em 1989, primeiro ano de instalação do STJ, foram julgados 3.700 processos. Este ano, no levantamento feito de janeiro a agosto, já foram mais de 221 mil decisões.

Para o professor Sérgio Victor, a responsabilidade de interpretar a legislação em última instância, somada, entre outras, às suas competências originárias e ao assustador número de habeas corpus que o Tribunal recebe, “leva a crer que talvez haja chegado a hora de pensar em soluções radicais que impeçam que o STJ seja inviabilizado em razão de uma avalanche não administrável de feitos” – como acontecia com o STF e o TFR antes de 1988.

Foto:

Câmara dos Deputados, 5 de outubro de 1988: Ulysses Guimarães exibe a Constituição recém-promulgada.(Arquivo Câmara)

Fonte:STJ



Reprodução de fatos não dá direito a indenização

Por Elton Bezerra

 A reprodução de fatos com respaldo em investigações e notícias veiculadas pela imprensa não dá direito a indenização por danos morais e materiais. Esse foi o entendimento do juiz Guilherme Pedrosa Lopes, da 50ª Vara Cível do Rio de Janeiro, ao julgar improcedente uma ação do banqueiro Daniel Dantas contra o blogueiro e apresentador Paulo Henrique Amorim. Na decisão, o juiz considerou que o princípio da liberdade de imprensa e expressão deve prevalecer sobre a alegada ofensa à honra e à imagem.

Dantas processou Paulo Henrique Amorim por causa de três textos publicados entre os dias 15 de abril e 8 de julho de 2010 no blog Conversa Afiada. Neles, o banqueiro é chamado de “Juan Carlos Abadia” e “Fernandinho Beira-Mar”, traficantes presos e condenados pela Justiça brasileira, e de "Daniel Mendes", em alusão a uma suposta relação espúria entre o autor e o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal. O blogueiro foi defendido pelo advogado Cesar Klouri.

Ao fundamentar sua decisão, o juiz afirmou que as expressões utilizadas pela blogueiro já são objeto de discussão judicial em outros processos. Além disso, Pedrosa Lopes também citou jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro no sentido de negar indenização por divulgação de informações. “Pelo exposto, considerando a liberdade de imprensa, especialmente porque o réu reproduziu fatos com respaldo em investigações e notícias veiculadas na imprensa, julgo improcedentes os pedidos”, decidiu. O juiz condenou Daniel Dantas a pagar as despesas do processo e honorários advocatícios de 10% sobre o valor da causa.

Briga eterna
Paulo Henrique Amorim e Daniel Dantas se enfrentam em diversas ações judiciais. No final de agosto o juiz Leonardo Hostalacio Notini, da 43ª Vara Cível do Rio de Janeiro, negou outro pedido de indenização feito pelo banqueiro. Na sentença, o juiz afirma que não atenta contra os direitos individuais do cidadão a divulgação, pela imprensa, de fato jornalístico ou imagens cuja intenção é de esclarecimento à opinião pública, ainda que a matéria tenha natureza crítica e "estilo linguístico peculiar".

Em março de 2013, o Superior Tribunal de Justiça negou liminar para suspender o acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que condenou Paulo Henrique Amorim a pagar R$ 250 mil de indenização a Daniel Dantas, por publicações ofensivas em seu blog. Já no STF, o ministro Celso de Mello deferiu a liminar. Na primeira Reclamação levada ao Supremo, o relator seria o ministro Marco Aurélio e Amorim desistiu do pedido. Dias depois ele entrou com nova Reclamação, que foi distribuída a Celso de Mello e o blogueiro decidiu manter o pedido.

A concessão da liminar baseou-se na decisão proferida pelo STF na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130, na qual a corte declarou que a Lei de Imprensa (Lei 5.250/67) é incompatível com a Constituição. O ministro também considerou que a Declaração de Chapultepec, que enfatiza que o exercício da liberdade de imprensa “não é uma concessão das autoridades”, e sim “um direito inalienável do povo”.

Em maio de 2012, o blogueiro chegou a ser condenado três vezes na mesma semana, pela primeira e segunda instância fluminenses, a indenizar Dantas por comentários no blog Conversa Afiada e no programa Domingo Espetacular, da Rede Record. Em março do mesmo ano, a 19ª Vara Cível, do Rio de Janeiro julgou improcedente outra ação indenizatória movida pelo banqueiro.

Atuação contestada
A atuação de Paulo Henrique Amorim em seu blog é constantemente discutida na Justiça. A própria origem do site será investigada, uma vez que o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal atendeu uma lista de pedidos feitos pela Procuradoria-Geral da República. Entre eles estão a quebra de sigilo bancário do ex-delegado e deputado Protógenes Queiroz (PCdoB-SP) e do sigilo telefônico do empresário Luís Roberto Demarco. Amorim é acusado de receber dinheiro para atacar o desafeto de Demarco: Daniel Dantas.

O apresentador tem um histórico de condenações por textos publicados em seu blog. Já foi condenado a indenizar, por ofensas, além do próprio Daniel Dantas, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, o diretor geral de jornalismo e esportes da TV Globo, Ali Kamel e o jornalista Heraldo Pereira.

Clique aqui para ler a sentença.



Fonte: Conjur

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

O PODER JUDICIÁRIO NO REGIME DEMOCRÁTICO



O Poder Judiciário no regime democrático



Artigo publicado no Scielo. Clique aqui para citar a referência.

Fábio konder Comparato





NA IDADE MODERNA, SÓ se pode considerar democrático o regime político fundado na soberania popular, e cujo objetivo 'último consiste no respeito integral aos direitos fundamentais da pessoa humana. A soberania do povo, não dirigida à realização dos direitos humanos, conduz necessariamente ao arbítrio da maioria. O respeito integral aos direitos do homem, por sua vez, é inalcançável quando o poder político supremo não pertence ao povo.

O Poder Judiciário, como órgão de um Estado democrático, há de ser estruturado em função de ambas essas exigências. Ressalte-se, contudo, que, diferentemente dos demais poderes públicos, o Judiciário apresenta uma notável particularidade. Embora seja ele, por definição, a principal garantia do respeito integral aos direitos humanos, na generalidade dos países os magistrados, salvo raras exceções, não são escolhidos pelo voto popular.

Na verdade, o fator que compatibiliza o Poder Judiciário com o espírito da democracia (no sentido que Montesquieu conferiu ao vocábulo) é um atributo eminente, o único capaz de suprir a ausência do sufrágio eleitoral: é aquele prestígio público, fundado no amplo respeito moral, que na civilização romana denominava-se auctoritas; é a legitimidade pelo respeito e a confiança que os juízes inspiram no povo. Ora, essa característica particular dos magistrados, numa democracia, funda-se essencialmente na independência e na responsabilidade com que o órgão estatal em seu conjunto, e os agentes públicos individualmente considerados, exercem as funções políticas que a Constituição, como manifestação original de vontade do povo soberano, lhes atribui.

Se quisermos, portanto, verificar quão democrático é o Poder Judiciário no Brasil, devemos analisar a sua organização e o seu funcionamento, segundo os requisitos fundamentais da independência e da responsabilidade.

São as duas partes em que se divide o presente texto.



Independência

Esclareçamos, desde logo, o sentido técnico do termo. Diz-se que o Poder Judiciário em seu conjunto é independente, quando não está submetido aos demais Poderes do Estado. Por sua vez, dizem-se independentes os magistrados, quando não há subordinação hierárquica entre eles, não obstante a multiplicidade de instâncias e graus de jurisdição. Com efeito, ao contrário da forma como é estruturada a administração pública, os magistrados não dão nem recebem ordens, uns dos outros.

A independência funcional da magistratura, assim entendida, é uma garantia institucional do regime democrático. O conceito de garantia institucional foi elaborado pela doutrina publicista alemã à época da República de Weimar, para designar as formas de organização dos Poderes Públicos, cuja função é assegurar o respeito aos direitos subjetivos fundamentais, declarados na Constituição1.

Desde a nossa primeira Constituição republicana, seguimos, em matéria de organização dos Poderes Públicos, o modelo original norte-americano, cujo pressuposto ideológico foi o cuidado em delimitar e restringir a competência do Poder Legislativo, o qual teria, na opinião dos pais fundadores dos Estados Unidos, uma inclinação natural ao abuso de poder. "O corpo legislativo", escreveu Madison, "estende por toda parte a esfera de sua atividade, e engole todos os poderes no seu turbilhão impetuoso"2.

Acrescentou que o Poder Executivo deve ser temido num regime monárquico, ou mesmo quando o povo exerce diretamente a função legislativa.


Mas numa república representativa", ponderou, "em que a magistratura executiva é limitada, tanto na extensão, como na duração dos seus poderes, e onde o poder de legislar é exercido por uma assembléia cheia de confiança nas suas próprias forças, pela certeza que tem da sua influência sobre o povo; [...] em tal estado de coisas, é contra as empresas ambiciosas desse poder que o povo deve dirigir os seus ciúmes e esgotar todas as precauções3.

Acontece que em nosso país – como na generalidade das nações latino-americanas, de resto – a tradição colonial moldou os costumes políticos no sentido da máxima concentração de poderes na pessoa do Chefe de Estado. Ao adotarmos, pois, o regime presidencial de governo, em que o Chefe de Estado é, ao mesmo tempo, Chefe de Governo, nada mais fizemos do que criar, sob pretexto de uma reprodução do modelo norte-americano, um presidencialismo exacerbado.

Já durante o regime monárquico, aliás, a predominância inconteste da vontade imperial sobre todos os órgãos do Estado, e até mesmo acima da vontade popular, pelo exercício do Poder Moderador, era bem conhecida. Como frisou o Marquês de Itaboraí (Rodrigues Torres), "o Imperador reina, governa e administra". Sua Majestade concentrava em suas mãos todas as prerrogativas do Poder Executivo, o qual, como reconheceu Joaquim Nabuco, sempre foi onipotente, sendo esta onipotência, em suas palavras, "o traço saliente do nosso sistema político"4.

Não era, assim, de admirar que durante todo o período imperial o Judiciário se apresentasse como fiel servidor do governo. Ele era "uma mola da máquina administrativa", como reconheceu sem disfarces o Visconde de Uruguai5. Nas palavras candentes de José Antonio Pimenta Bueno, o futuro Marquês de São Vicente e o mais autorizado constitucionalista do período imperial, "o governo é quem dá as vantagens pecuniárias, os acessos, as honras e as distinções; é quem conserva ou remove, enfim quem dá os despachos não só aos magistrados, mas a seus filhos, parentes e amigos"6.

A Constituição de 1891, procurando corrigir tais abusos, determinou, em seu art. 57, que "os juízes federais são vitalícios e perderão o cargo unicamente por sentença judicial". Acrescentou que "os seus vencimentos serão determinados por lei e não poderão ser diminuídos". Mas como a Constituição só se referiu, aí, aos juízes federais, alguns Estados resolveram não observar essas garantias em relação aos seus magistrados. O Supremo Tribunal Federal, chamado a se pronunciar sobre o assunto, julgou que as garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade dos vencimentos da magistratura deviam ser observadas, como princípio constitucional, por todos os Estados da federação; o que veio, afinal, a ser consagrado pela reforma constitucional de 1926. No entanto, como tais garantias não se consideravam aplicáveis aos juízes temporários, essa escapatória foi largamente aproveitada, não só pela União, como também pelos Estados federados.

Consolidou-se, com isto, o costume político, segundo o qual as relações entre o Executivo e os demais órgãos estatais não são de potência a potência, mas de quase vassalagem destes para com aquele; ou, mais exatamente, de submissão geral à pessoa do Presidente ou do Governador de Estado; o que representa, de certa forma, a transposição na esfera estatal do tradicional relacionamento do coronel do interior com os seus agregados e capatazes7. Da mesma forma, entre o povo e o Estado, personificado na figura do chefe do Executivo, quase nunca se estabelece uma relação de cidadania, mas sim uma situação de dependência ou proteção pessoal, análoga à que existe entre pais e filhos, ou entre padrastos e enteados. O povo não foi educado a exercer direitos e a exigir justiça, mas tem sido habitualmente domesticado a procurar auxílios e favores.

É isto o que tende a falsear completamente posição da magistratura judiciária em nossa organização de Poderes. É ingênuo acreditar que a evolução constitucional pôs, finalmente, juízes e tribunais ao abrigo da avassaladora hegemonia governamental.

Se quisermos, portanto, garantir a independência do Poder Judiciário, precisamos, sobretudo, protegê-lo contra as indevidas incursões do Executivo em seu território.

É nesse sentido que passo a alinhar algumas sugestões de reforma.



Preenchimento de cargos nos Tribunais

O Supremo Tribunal Federal deveria ser composto por quinze Ministros, um terço dos quais por indicação do próprio Tribunal, o outro terço indicado pelo Ministério Público Federal e o último terço de indicação da Ordem dos Advogados do Brasil. As indicações seriam sempre feitas em listas tríplices, e a escolha dos Ministros competiria ao Senado Federal, em votação com o quorum qualificado de dois terços dos senadores.

No Superior Tribunal de Justiça, manter-se-ia a mesma composição prevista no art. 104, parágrafo único, da Constituição, mas a designação dos Ministros incumbiria também ao Senado Federal, deliberando com o mesmo quorum qualificado que se acaba de indicar.

Igualmente para o Tribunal Superior do Trabalho, manter-se-ia a mesma composição determinada no art. 111, § 1º, da Constituição8, mas as indicações seriam feitas em listas tríplices pelo próprio Tribunal, o Ministério Público do Trabalho e a Ordem dos Advogados do Brasil, com a escolha definitiva sendo feita pelo Senado Federal, nas mesmas condições acima indicadas.

Quanto aos demais tribunais federais e os tribunais dos Estados e do Distrito Federal, quatro quintos dos seus integrantes deveriam ser escolhidos dentre Juízes de Direito, de modo alternado, por antigüidade e por concurso público, e o quinto restante na forma do disposto no art. 94 da Constituição, ou seja, por membros do Ministério Público, com mais de dez anos de carreira, e de advogados de notório saber jurídico e de reputação ilibada, com mais de dez anos de efetiva atividade profissional, todos eles indicados em lista sêxtupla pelos órgãos de representação das respectivas classes, sendo que, recebidas as indicações, o tribunal formará lista tríplice, a ser submetida ao Senado Federal. Seria, assim, abolido o critério de escolha por merecimento, o qual enseja uma inevitável margem de arbítrio por parte dos tribunais de justiça.



Emendas constitucionais reguladoras da organização, das prerrogativas e do funcionamento do Judiciário

Em se tratando de emendar a Constituição para regular a organização e o funcionamento dos Poderes Públicos, bem como para a fixação das prerrogativas dos seus agentes, a proposta deveria ser submetida a referendo popular. Nada é mais característico da consolidada usurpação da soberania do povo, estabelecida entre nós, do que a facilidade com que o impropriamente chamado poder constituinte derivado se atribui a prerrogativa de decidir, em definitivo, assuntos de tanta relevância para a vida democrática.

Em relação ao Judiciário, porém, essa exigência ainda não é bastante. É que, ao contrário dos demais Poderes, ele tem estado, pela tradição constitucional, alheio ao procedimento de emenda ou reforma da Constituição. Entendo que, dada a posição relativamente inferior do Judiciário em relação aos demais Poderes do Estado no equilíbrio constitucional de competências, é indispensável estabelecer a regra de que toda e qualquer proposta de emenda à Constituição, relativa ao Poder Judiciário e à magistratura nacional, seja de iniciativa exclusiva do Supremo Tribunal Federal, analogamente ao que estabelece a Constituição no que concerne ao Estatuto da Magistratura (art. 93).



Autonomia financeira do Poder Judiciário e fixação dos subsídios da magistratura

A Constituição Federal, em seu art. 99, estabeleceu a autonomia administrativa e financeira do Poder Judiciário. Isto não impediu, contudo, que o Executivo, pressionado pelo Fundo Monetário Internacional, e com a cumplicidade do Congresso Nacional, promulgasse a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 4/5/2000), que fixou limites intransponíveis para as despesas de pessoal do Judiciário, sem que este houvesse participado oficialmente do processo de elaboração da lei.

O adequado funcionamento da Justiça para a proteção efetiva da dignidade humana, princípio supremo da ordem jurídica, não se compadece, claro está, com essa visão fiscalista da coisa pública. É indispensável e urgente iniciar uma vigorosa campanha nacional para a fixação, por lei complementar, de um número mínimo de juízes de primeira instância, na União, nos Estados e no Distrito Federal, em função do número efetivo de habitantes, e de uma correspondente proporção mínima de magistrados dos tribunais de segunda instância, em relação aos juízes de primeira instância, bem como de um número mínimo de membros dos tribunais superiores, em relação aos integrantes dos tribunais de segunda instância. Nunca é demais lembrar que a prestação de justiça é a mais nobre das atividades-fins do Estado, não podendo, portanto, em hipótese alguma, subordinar-se à regra instrumental de balanceamento das contas públicas.

Quanto à fixação dos subsídios da magistratura, dever-se-ia partir, no plano federal, da regra de que os subsídios dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, do Presidente e do Vice-Presidente da República, bem como dos Deputados Federais e Senadores seriam fixados conjuntamente pelos representantes desses três Poderes.

Competiria, em seguida, ao Supremo Tribunal Federal fixar os subsídios dos magistrados dos tribunais superiores, dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais e Juízes Eleitorais, dos Tribunais e Juízes do Trabalho, e dos Tribunais e Juízes Militares Federais. No plano estadual, haveria análogo procedimento, respeitados os limites máximos fixados pela Constituição.



Isenção política dos magistrados

Ultimamente, tem-se vulgarizado a prática de magistrados, sobretudo dos tribunais superiores da República, fazerem pronunciamentos públicos sobre assuntos de governo, sem qualquer ligação com os interesses da magistratura nacional.

Será ainda preciso relembrar que tais atitudes contribuem fortemente para destruir o prestígio público e a necessária presunção de imparcialidade que é apanágio dos magistrados? Quem não percebe, afinal, que, depois de pronunciar-se publicamente, fora do contexto de um litígio judicial, contra ou a favor da atuação de governantes ou parlamentares, o magistrado perde a isenção para julgar, eventualmente, causas em que esses governantes ou parlamentares se achem, direta ou indiretamente, envolvidos?

Faz-se mister, portanto, acrescentar à vedação constante do art. 36, inciso III, da atual Lei Orgânica da Magistratura Nacional9, mais uma, concernente a pronunciamentos públicos, feitos por magistrados fora dos processos judiciais, sobre políticas de governo, ou atos de quaisquer agentes públicos, ressalvada a crítica impessoal manifestada em obras doutrinárias ou no exercício do magistério.



Responsabilidade

A essência do regime republicano, como a etimologia indica, é o fato de que o poder político não pertence, como um ativo patrimonial, aos governantes ou agentes estatais, mas é um bem comum do povo. Res publica, res populi, dizia-se em Roma10. É só neste preciso sentido que se pode falar em poder público.

Ora, o corolário lógico desse princípio fundamental é a necessária correlação existente entre poder e responsabilidade. Quanto maior o poder, maior a responsabilidade, entendida esta como o dever que incumbe ao detentor do poder, em nome de outrem, de responder pela forma como o exerce.

A responsabilidade desdobra-se, na verdade, em duas relações: a correspondente ao dever de prestar contas (que na língua inglesa denomina-se accountability) e a relação de sujeição às sanções cominadas em lei pelo mau exercício do poder (liability).

Numa república democrática, os controles institucionais de abuso de poder pelos órgãos do Estado são de duas espécies: o horizontal, ligado ao mecanismo da separação de Poderes, e o vertical, fundado na soberania popular. Na verdade, a democracia é o regime político no qual ninguém, nem mesmo o povo soberano, exerce um poder absoluto, sem controles. O poder soberano do povo só pode ser exercido, legitimamente, no quadro da Constituição. E é, justamente, ao Poder Judiciário que incumbe a magna função de interpretar os limites constitucionais dentro dos quais há de ser exercida a soberania popular.

Se assim é, se o próprio povo soberano tem a sua ação limitada nos termos da Constituição, com maioria de razão deve a atuação do Judiciário ser submetida a uma fiscalização permanente de sua regularidade. Ora, é forçoso reconhecer que os controles institucionais da ação do Judiciário, em nossa sociedade, são muito frouxos e mesmo, em certos setores, praticamente inexistentes.

Comecemos pelo controle horizontal.

Se se exige, com razão, total independência do Judiciário no julgamento dos demais Poderes Públicos à luz dos mandamentos constitucionais e legais, não se compreende por que o corpo de magistrados não deva se submeter, por igual, a um controle externo do seu comportamento por outros órgãos, para efeito de apuração de suas responsabilidades, tanto no nível penal, quanto no civil e no disciplinar.

É falacioso objetar que a fiscalização ab extra da ação dos magistrados importaria na perda de sua independência de julgamento e do seu poder disciplinar interno. Em primeiro lugar, porque esse exame não implica, em hipótese alguma, uma revisão das decisões processuais ou de mérito, dadas por juízes e tribunais. Ele tem por objeto, de um lado, o modo como os magistrados se desempenham no exercício dessa sua função privativa e, de outro lado, a sua conduta pessoal fora dessa atuação funcional. Em segundo lugar, porque o controle externo não pode jamais abranger a competência de julgamento, assim como a censura judicial dos atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo não significa a assunção pelo Judiciário das funções privativas desses ramos do Estado. Em terceiro lugar, porque um mecanismo de exame externo do funcionamento do Judiciário não acarreta a abolição do poder disciplinar interno dos órgãos judiciais, mas na verdade o complementa.

Atualmente, existe um poder censório geral do Judiciário, atribuído ao Conselho Nacional da Magistratura (Lei Orgânica da Magistratura Nacional – Lei Complementar nº 35, de 14/3/1979). Mas esse órgão, constituído por sete Ministros do Supremo Tribunal Federal, tem sido de todo inoperante, pois não dispõe, como é óbvio, da menor condição de exercer a fiscalização do desempenho funcional de todos os juízes e tribunais do país.

Sem dúvida, o mais adequado, numa democracia, é ter a fiscalização não judicial dos Poderes do Estado exercida por um órgão de representação popular. Entre nós, porém, nenhum dos órgãos legislativos existentes apresenta condições aceitáveis para desempenhar essa função. O Senado Federal não representa o povo brasileiro, mas sim os Estados federados e o Distrito Federal. E quanto à Câmara dos Deputados e às Assembléias Legislativas, elas mal dão conta das funções que lhes foram atribuídas pela Constituição, e não suportariam, como é evidente, assumir mais outra, de tão grande complexidade.

O ideal seria instituir um outro órgão de representação popular, tanto no nível federal, quanto no estadual, com a competência exclusiva de exercer todas as funções de fiscalização e inquérito atualmente atribuídas aos órgãos legislativos, além da supervisão permanente do funcionamento do Poder Judiciário.

A segunda melhor solução seria instituir, na União, em cada Estado e no Distrito Federal, um órgão de controle, composto de agentes das funções essenciais da Justiça, a saber, o Ministério Público e a advocacia (nesta incluídas a advocacia e a defensoria públicas). Esse órgão teria a incumbência de verificar o cumprimento, por todos os magistrados, inclusive os Ministros do Supremo Tribunal Federal, dos deveres funcionais declarados em lei (atualmente, arts. 35 e seguintes da Lei Orgânica da Magistratura), e de encaminhar as conclusões de seus inquéritos às autoridades competentes para a aplicação das sanções legais.

Nessa ordem de idéias, não parece adequado que, em matéria de crimes comuns, os Ministros do Supremo Tribunal Federal mantenham o privilégio de serem julgados pelos seus pares. Poderse-ia, assim, cogitar da criação de um órgão judiciário especial para tais casos, composto pelos cinco Ministros mais antigos em atuação no Superior Tribunal de Justiça.

No tocante ao controle vertical da atuação da magistratura, convém recordar que a Carta Política do Império, em seu art. 157, instituiu uma ação criminal contra os juízes de direito, "por suborno, peita, peculato e concussão", a qual poderia ser intentada "dentro de ano e dia pelo próprio queixoso, ou por qualquer do Povo, guardada a ordem do Processo estabelecida na Lei".

Sem dúvida, essa espécie de ação popular criminal, limitada exclusivamente à hipótese em que o réu é magistrado, não mais se justifica nos dias atuais. Conviria, no entanto, criar uma ação popular criminal subsidiária, mediante adaptação do disposto no art. 5º, inciso LIX, da Constituição Federal11, toda vez que o réu seja um agente público. Em tal hipótese, a ação penal subsidiária deveria ser admitida, ainda quando o representante do Ministério Público se recusasse, expressamente, a oferecer a denúncia.

Por outro lado, não se deve nunca esquecer de garantir cumpridamente a todos os jurisdicionados o respeito ao direito fundamental de obter, no Judiciário, um julgamento isento.

Nesse sentido, proponho a adoção de uma providência processual simples, a fim de resolver o problema – assaz freqüente, aliás – de os jurisdicionados se encontrarem efetivamente privados do direito de serem julgados de forma imparcial na comarca em que são domiciliados. Suponha-se a hipótese de um juiz de direito que, em região de agudo conflito agrário, coloque-se objetivamente – de modo intencional ou não, pouco importa – do lado dos proprietários rurais, e se empenhe em distribuir, mais a torto que a direito, condenações criminais a mancheias contra todos os que atuem, direta ou indiretamente, a favor da reforma agrária; além de julgar sistematicamente improcedentes as ações possessórias e reipersecutórias intentadas por essas mesmas pessoas. As regras processuais concernentes à suspeição não têm aí aplicação, em princípio, pois não se consegue provar algum interesse pessoal do magistrado na solução das lides submetidas à sua decisão.

Para a solução de casos dessa natureza, poder-se-ia cogitar de atribuir a qualquer parte em juízo, em qualquer espécie de processo, o direito de obter o desaforamento do feito para o juízo que vier a ser designado pelo tribunal de segunda instância. Seria um direito potestativo, exercitável, portanto, sem que o seu titular tenha que alegar motivo algum. A freqüência com que for exercido esse direito, em determinado juízo, serviria como indício de que o magistrado já não goza da indispensável confiança dos jurisdicionados, havendo perdido a sua auctoritas funcional.

Eis aí as sugestões que me parecem importantes e oportunas oferecer à consideração geral, como subsídio aos trabalhos de aperfeiçoamento da organização do Poder Judiciário em nosso país.



Notas

1 Sobre o assunto vejam-se, na doutrina brasileira, Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, 7ª ed., Malheiros Editores, capítulo 15, e na doutrina alemã contemporânea, Klaus Stern, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, t. III/1, Münch, Verlag C. H. Beck, 1988, 68.

2 The Federalist, ensaio nº 48, New York, The Modern Library, p. 322.

3 Idem, pp. 322-323.

4 Um Estadista do Império, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, p. 239.

5 Ensaio sobre o Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, t. II, 1862, p. 261.

6 Apontamentos sobre o Processo Criminal Brasileiro, 2ª ed., Rio de Janeiro, 1857, p. 39.

7 Relembre-se o já clássico ensaio de Victor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto, cuja 1ª edição é de 1949.

8 "O Tribunal Superior do Trabalho compor-se-á de dezessete Ministros, togados e vitalícios, escolhidos dentre brasileiros com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos, [...] dos quais onze escolhidos dentre juízes dos Tribunais Regionais do Trabalho, integrantes da carreira da magistratura trabalhista, três dentre advogados e três dentre membros do Ministério Público do Trabalho."

9 "É vedado ao magistrado: [...] III – manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério."

10 Cícero, De re publica, I, XXV, 39.

11 "Será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal".





Texto recebido e aceito para publicação em 19 de junho de 2004.





Fábio Konder Comparato é professor-titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, doutor honoris causa da Universidade de Coimbra e doutor em Direito pela Universidade de Paris.

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