segunda-feira, 8 de abril de 2013

"A OAB TEM DE SER PROTAGONISTA DE CAUSAS, NÃO DE FATOS"


Marcus Vinícius Furtado Coêlho - 28/03/2013 [Spacca]
Além da defesa das liberdades, que se confunde com a luta pelo respeito às prerrogativas dos advogados, a Ordem dos Advogados do Brasil deve desempenhar o papel de protagonista das importantes causas do país, e não atuar ou se manifestar em cima de fatos isolados. Essa é a opinião do presidente do Conselho Federal da OAB,Marcus Vinícius Furtado Coêlho.

Há pouco mais de dois meses no cargo de representante de quase 800 mil advogados espalhados pelo país, Marcus Vinícius afirma que sua intenção é descentralizar as decisões e despersonalizar as opiniões emitidas pela Ordem. Quem deve falar é o Conselho Federal, formado por 81 integrantes, por meio do presidente. Entre suas bandeiras, está a de defender ideias que possam melhorar costumes políticos e desvincular qualquer ligação da instituição com ideologias pessoais.
“Se a causa vem para o cumprimento da Constituição Federal, que é a nossa bíblia, nossa única ideologia, a OAB tem de estar à frente dela”, afirmou o presidente da Ordem em entrevista à revista Consultor Jurídico, concedida na sede do Conselho Federal da entidade, em Brasília.
Com essas ideias em mente, a Ordem lançou um movimento para renegociar as dívidas dos estados com o governo federal e pretende tomar para si a tarefa de fiscalizar a continuidade do pagamento de precatórios pelos estados depois da decisão do Supremo Tribunal Federal, que julgou inconstitucional a Emenda 62/2009, apelidada de Emenda do Calote.
“É muito mais vantajoso ao estado, hoje, pedir dinheiro emprestado ao Banco Mundial para pagar o governo federal, porque o Banco Mundial pratica juros menores. Por isso, a Ordem entende que se faz necessária a reunião da sociedade civil em um movimento para pressionar o governo federal a reabrir a discussão das dívidas com os estados”, afirma.
Com mais dinheiro, os estados poderão dar continuidade ao pagamento de precatórios e investir em políticas públicas: “É uma questão importante porque, à medida que os estados vierem a ter mais fôlego, eles poderão investir mais em saúde, em educação, e também no próprio Poder Judiciário, que é algo fundamental. Os tribunais de Justiça, onde estão os maiores gargalos do Judiciário e que precisam de mais recursos, estão nos estados”.
O presidente nacional da OAB ainda falou sobre o plano de discutir a federalização dos precatórios, Exame de Ordem, eleições diretas para o comando do Conselho Federal, direitos humanos e reforma política, entre outros temas.
Leia a entrevista:
ConJur — Quais os objetivos da OAB ao pedir o congelamento dos cursos jurídicos? 

Marcus Vinícius Furtado Coêlho — Constituímos, a OAB e o MEC, um grupo pioneiro de cooperação técnica, com representantes das duas instituições, para redefinir o marco regulatório do ensino jurídico no Brasil. A intenção é remodelar a grade curricular, a duração do curso, os requisitos obrigatórios para a conclusão do curso, entre outros pontos. Também pretendemos verificar onde estão os problemas de qualidade e enfrentá-los, não apenas pontualmente, no curso A ou B, mas de forma ampla. Até o advento desta nova normatização, como expressou o Ministro da Educação, Aloizio Mercadante, atendendo ao pleito da Ordem, “está fechado o balcão”. A partir dos estudos desse grupo também assumimos o compromisso de fechar vagas em vestibulares. O objetivo, nesse caso, é proteger os jovens dos cursos de péssima qualidade.

ConJur — O que significa, na prática, “balcão fechado”?

Marcus Vinícius — Que está fechado o protocolo para pedidos de novos cursos e congelados os pedidos hoje existentes, que somam cerca de 100 cursos novos e 25 mil novas vagas. Existem tanto pedidos para cursos novos, que agora estão congelados, e pedidos de aumento de vagas em cursos de Direito de universidades já existentes. Nós estancamos 25 mil novas vagas em um sistema que já está sobrecarregado.

ConJur — Por que sobrecarregado? 

Marcus Vinícius — Porque nós saímos, em 20 anos, de 200 cursos de Direito para mais de 1.200 cursos. Um aumento tão grande em tão pouco tempo decerto não acompanha a qualidade exigida para os cursos.

ConJur — O senhor acredita que o alto índice de reprovação nos exames de Ordem prova isso?

Marcus Vinícius — O Exame de Ordem revela isso. Mas não só ele. O próprio Enade [Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes], do MEC, também mostra essa realidade. Perceba que, em regra, e claro que há exceções, as faculdades com péssimo conceito no Enade são as que menos aprovam no Exame de Ordem. Ou seja, são dois exames distintos a comprovar a mesma realidade. Existem faculdades que aprovam 70% dos alunos na primeira tentativa no Exame de Ordem. E os outros 30% são aprovados logo na segunda ou na terceira tentativa. Ou seja, faculdades que aprovam todos. Mas há cursos que não aprovam nenhum. Então, não se pode pôr a culpa na prova com um desnível desse tamanho.

ConJur — Mas a prova não é, de fato, muito rigorosa?

Marcus Vinícius — Nos últimos quatro anos, se formaram no Brasil cerca de 350 mil novos bacharéis. Aproximadamente 200 mil se tornaram advogados. Os números revelam que o índice de aprovação não é apenas de 10% como se divulga. Ao divulgar isso, são deixadas de lado algumas questões importantes.

ConJur — Quais questões?

Marcus Vinícius — Os recursos de alunos que são acolhidos e, por isso, eles terminam aprovados, por exemplo. Outra questão é a repetência acumulada, o fato de um aluno não ser aprovado no primeiro exame e conseguir aprovação no segundo ou no terceiro. Há também o fato de estudantes de Direito do último ano da faculdade que, por força de decisão judicial, podem fazer o exame. Os estudantes fazem até três provas antes de se formar. Tudo isso está no índice negativo. Perceba que índice real é o de que mais da metade dos bacharéis se tornam advogados. Ainda assim, é um índice baixo porque, nos últimos quatro anos, 150 mil não se tornaram advogados. Ainda assim, no mesmo período, o Brasil passou a ter quatro Franças de novos advogados, porque são 50 mil os advogados franceses. O que significa dizer que o Exame de Ordem está longe de ser uma reserva de mercado. Muito pelo contrário, serve para proteger o cidadão daquele profissional que não possui o mínimo de conhecimento jurídico para representá-lo.

ConJur — Se a OAB se preocupa tanto com o cidadão, por que não permite a advocacia pro bono?

Marcus Vinícius — Esse assunto está em discussão. Não existe uma posição do Conselho Federal sobre o assunto. A seccional da OAB de São Paulo tem uma posição mais antiga sobre o tema, mas vem expressando de forma muito adequada a opinião de que essa pauta é do Conselho Federal da Ordem. Já pautamos a discussão desse tema e designamos como relator o conselheiro federal Luiz Flávio Borges D’Urso, de São Paulo, para que ele possa ouvir todos os atores envolvidos no assunto e trazer um parecer para o plenário do Conselho Federal.

ConJur — Há data para a apreciação do tema?

Marcus Vinícius — Não. Mas está em pauta. A advocacia pro bono é um tema sobre o qual a Ordem está à frente para discutir com maturidade. Nós não podemos nos opor à participação de advogados em mutirões em favor da cidadania, por exemplo. Estivemos com o Ministério da Justiça já acertando um mutirão carcerário, para garantir assessoria jurídica a presos. A liberdade não pode esperar. Isso é pro bono ou não é? Isso é cidadania! Podemos fazer outros mutirões, como em relação a reconhecimento de paternidade. Estamos à disposição de campanhas como essas. Mas a questão que se coloca é como institucionalizar, dentro dos escritórios, a advocacia pro bono, diante do fato de que a Constituição Federal prevê a instalação de defensorias públicas. De que forma isso se choca ou não com a Constituição? Para melhorar o atendimento aos necessitados é preciso reforçar as defensorias ou a advocacia pro bono? Ou uma coisa é conciliável com a outra? É isso que está em discussão, qual a melhor forma de atender a quem precisa de assistência jurídica e não tem como pagar por ela. Não está em discussão quem tem mais ou menos carinho pelos necessitados.

ConJur — Diante da advocacia pro bono, agora, a OAB defende a Defensoria Pública. Mas há estados em que a Ordem foi historicamente contra sua instalação e trabalhou contra, como na gestão anterior da OAB catarinense, porque mantinham convênios de assistência judiciária com o governo estadual. Como o senhor vê esse quadro?

Marcus Vinícius — É, realmente, uma realidade que existiu em algumas seccionais. Mas as seccionais que praticam assistência judiciária têm o interesse de bem cumprir a sua função, que é a de atender aos necessitados. O certo é que a Constituição Federal fez uma opção pela Defensoria Pública. Penso que ninguém se opõe ao fato de que a Constituição tem de ser cumprida. Mas as seccionais não podem ser recriminadas por fazerem algo em favor da sociedade. Tudo isso está em debate no Conselho Federal.

ConJur — O ministro Luiz Fux, do Supremo, marcou audiências públicas para discutir a ação da OAB que pede o fim do financiamento de campanhas eleitorais por empresas. Há previsão para o julgamento?

Marcus Vinícius — Fomos ao ministro Luiz Fux, como também ao presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, e a ambos pedimos que se dê preferência ao julgamento dessa Ação Direta de Inconstitucionalidade que cuida da proibição de financiamento de empresas nas campanhas eleitorais. Empresa não tem partido político. A única ideologia de empresa é o lucro. A ideia do ministro Fux de marcar audiências públicas é importante para ouvir todas as vertentes da discussão e, talvez, até possibilitar que o Congresso Nacional legisle sobre o tema. Foi pautado, no Congresso Nacional, o começo da discussão sobre reforma política, iniciando pelo financiamento de campanha. Então, o Congresso tem também a oportunidade de não aguardar que o Supremo Tribunal Federal tenha de fazer a reforma política pela via judicial. E a OAB marcou um ato público pelo financiamento democrático de campanhas eleitorais.

ConJur — O que é um financiamento democrático de campanhas?

Marcus Vinícius — O financiamento democrático é, primeiro, proibir o financiamento por empresas. Depois, baratear as campanhas eleitorais.

ConJur — Como baratear as campanhas?

Marcus Vinícius — Possibilitar ao máximo a participação de TVs públicas na feitura das propagandas de televisão seria uma das formas. Já existe o Fundo Partidário, que é oriundo de receitas da União. Seria uma ampliação do fundo para essa finalidade. Entendemos que isso é bem mais barato do que o sistema atual em nosso país.

ConJur — Um dos maiores desafios da advocacia, hoje, é tentar dissociar a imagem do advogado da imagem do cliente, principalmente a dos profissionais que trabalham nas áreas eleitoral e criminal. O senhor não acha que declarações generalistas como a do ministro Joaquim Barbosa, de que é ruim o conluio entre advogados e juízes, ajudam a perpetuar o imaginário popular ruim sobre a advocacia?

Marcus Vinícius — Nós vivemos em uma liberdade de expressão plena. A declaração do ministro Joaquim Barbosa foi dada dentro do julgamento de um processo, de um determinado caso. O comentário foi feito dentro de seu direito de votar. A Ordem prefere acreditar que a declaração do ministro Joaquim Barbosa não foi generalista em relação à conduta dos advogados e dos juízes do Brasil. Preferimos acreditar que ele não teve essa intenção, até porque toda generalização comete injustiças. Dificuldades de conduta há em todos os organismos e em todas as instituições: na igreja, na imprensa, nos sindicatos, na política, e também na advocacia, na magistratura e na polícia. Os desvios devem ser apontados, investigados e punidos quando comprovados.

ConJur — A OAB obteve recentemente uma vitória no Supremo Tribunal Federal, que declarou inconstitucional a Emenda Constitucional 62/2009, apelidada de Emenda do Calote. Mas a emenda ao menos estabelecia um regime especial de pagamento. Agora, não pode haver novamente um calote generalizado?

Marcus Vinícius — Em primeiro lugar, é preciso comemorar a vitória porque ela é preventiva contra novos calotes. Houve uma primeira emenda do calote, que parcelou o pagamento em oito anos. Uma segunda, que parcelou em dez anos. Esta parcelava em 15 anos! Com esse julgamento, de uma vez por todas, o Supremo fixou que não pode haver calote. É uma grande vitória da cidadania. A corte também decidiu que os juros que devem ser aplicados não são os juros da Caderneta de Poupança, mas os mesmos juros que o governo usa para cobrar os seus créditos. Esse é um grande estímulo para o pagamento.

ConJur — Com esses juros, a rolagem da dívida para fazer caixa deixa de valer a pena...

Marcus Vinícius — Exato. Mas não foi só. O Supremo declarou inconstitucional a compensação automática de débito com crédito. Quer dizer, o cidadão que tinha o que receber não poderia receber se, por acaso, tivesse outra conta. A compensação era unilateral e obrigatória. Ou seja, só o governo podia compensar. O contribuinte, não. E foi reforçada a regra em relação à prioridade dos que têm 60 anos. Pela emenda, a prioridade seria apenas para aqueles que tinham 60 anos completos quando o precatório foi instituído. O Supremo mudou isso ao decidir uma coisa óbvia: deve prevalecer é o fato da vida real de hoje. Se a pessoa tem 60 anos, não importa quando o precatório foi instituído, ela tem preferência.

ConJur — Tudo isso é bom. Mas, e o dia seguinte? Os precatórios, na vida real, serão pagos?

Marcus Vinícius — O poder público não pode transformar a vitória da cidadania em ato de esperteza da má-fé de alguns governantes. Jamais, é inadmissível — e o Supremo Tribunal Federal será alertado pela OAB se isso realmente ocorrer. Será inadmissível que um estado que vinha pagando um determinado valor deixe de pagar por conta do julgamento. Porque ficará claro — é evidente, se isso acontecer —, que ele deixou de pagar por oportunismo e por má-fé, não por dificuldade financeira, já que vinha pagando. Ficará fácil comprovar que estão cometendo crime de responsabilidade. E pode ser enquadrado em ato de improbidade administrativa, porque estará aumentando contas para o gestor seguinte pagar, já que os juros, agora, são ampliados. O presidente de Tribunal de Justiça que não cumprir com sua função, de cobrar o repasse como vinha sendo feito, também comete o crime de responsabilidade. Existem instrumentos jurídicos para continuar brigando para que os governadores e presidentes dos tribunais dêem solução de continuidade ao pagamento dos precatórios. E nós acreditamos que a ampla maioria dos governantes do Brasil não vai se deixar levar por uma prática tão pequena de se aproveitar de uma vitória da cidadania para sonegar o direito que vinha sendo pago, ainda que minimamente. Portanto, a Ordem confia nisso.

ConJur — A OAB tem alguma proposta para pagamento dos precatórios?

Marcus Vinícius — A federalização da dívida, o que não significa que o governo federal vai pagar a conta. Significa transformar os precatórios em títulos segurados, como existem os títulos da dívida agrária, da dívida pública. Títulos que possam ser negociados no mercado. Hoje, existem recebíveis muito menos certos no Brasil que são aceitos como garantias. Por que não aceitar precatórios como garantia? Poderão ser usados, inclusive, no pagamento da casa própria, do programa “Minha Casa, Minha Vida”. São ideias que podem ser postas em discussão e, se houver, realmente, boa vontade, sem que haja uma participação financeira da União, mas, apenas, a organização da União e do sistema, é possível vencer a realidade do calote.

ConJur — Há algo que, na prática, a OAB pode fazer para ajudar os estados a acertarem suas contas?

Marcus Vinícius — Sim. Por isso lançamos o movimento pela revisão das dívidas dos estados. Essas dívidas foram pactuadas com o governo federal há cerca de 15 anos, em uma realidade econômica que difere da atual. Para se ter uma ideia, é muito mais vantajoso ao estado, hoje, pedir dinheiro emprestado ao Banco Mundial para pagar o governo federal, porque o Banco Mundial pratica juros menores. Por isso, a Ordem entende que se faz necessária a reunião da sociedade civil em um movimento para pressionar o governo federal a reabrir a discussão das dívidas com os estados. É uma questão importante porque, à medida que os estados vierem a ter mais fôlego, eles poderão investir mais em saúde, em educação, e também no próprio Poder Judiciário, que é algo fundamental. Os tribunais de Justiça, onde estão os maiores gargalos do Judiciário e que precisam de mais recursos, estão nos estados. A ideia do movimento é convidar os governadores, os presidentes de assembleias, os representantes do governo federal, as entidades da sociedade civil para discutir o tema.

ConJur — Existem outros movimentos que serão encampados pela OAB?

Marcus Vinícius — Propusemos uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo, já aprovada na primeira sessão dessa gestão, que visa impedir a existência de limites de gastos em educação, para efeito de dedução no Imposto de Renda, tal qual ocorre com a saúde. A saúde é um bem essencial e não tem limite de gastos para dedução em Imposto de Renda. Por que é que a educação tem limites? É algo absolutamente incompatível com o princípio constitucional de que a educação é um direito de todos. E essa luta, em nome de quem pode pagar por um ensino de qualidade, não se opõe à outra, absolutamente necessária, pela melhoria de qualidade das escolas públicas. Os dois sistemas têm de conviver harmonicamente. Pretendemos também sensibilizar o governo a colher essa medida para afirmar a importância da educação em nosso país. Seria um ato concreto da Presidência da República de afirmação da importância da educação no Brasil, se houvesse o reconhecimento pelo próprio governo de que esta pauta é importante para a sociedade.

ConJur — Precatórios, renegociação das dívidas dos estados, educação... Todos esses são temas abrangentes. Essa é a nova cara da Ordem?

Marcus Vinícius — Sim. A Ordem deve ser protagonista de causas, não de fatos. Tem de liderar causas republicanas, causas que não verificam partidos políticos, que não verificam governos, causas que pretendem melhorar a sociedade brasileira e que, por vezes, se opõem aos interesses dos governantes. Se a causa vem para o cumprimento da Constituição Federal, que é a nossa bíblia, nossa única ideologia, a OAB tem de estar à frente dela.

ConJur — A OAB fará internamente o que cobra externamente? Por exemplo, discutirá eleições diretas para o comando do Conselho Federal?

Marcus Vinícius — Sim. Criamos a comissão para discutir as regras eleitorais da OAB. Importante registrar que o nosso programa tinha três eixos de compromissos. O primeiro eixo é o da transparência, e criamos a Comissão de Transparência do Conselho Federal. O segundo eixo é a descentralização administrativa, uma gestão participativa e compartilhada. Para isso foi criada a Comissão de Descentralização Administrativa. E o terceiro eixo é a discussão da revisão do sistema eleitoral da OAB. O presidente dessa comissão é o presidente da OAB da Bahia, Luis Viana Queiroz, é o autor da proposta de eleições diretas no Conselho Federal da Ordem.

ConJur — Qual o papel do presidente da OAB?

Marcus Vinícius — Encaminhar para debate no plenário do Conselho Federal todas as propostas que vierem das comissões criadas e compostas pelos conselheiros federais da entidade. São os conselheiros federais e os presidentes seccionais, que participam das comissões, que darão o tom da gestão. Assumi e vou cumprir o compromisso de não tentar influenciar as discussões no sentido de minhas posições pessoais. Os conselheiros federais são livres e independentes para bem encaminhar todas as questões. A OAB tem de atentar também para a proteção dos direitos humanos fundamentais. Por exemplo, o Brasil tem uma superlotação carcerária inadmissível. São cerca de 550 mil presos para 300 mil vagas, fora os mandados de prisão não cumpridos...

ConJur — A OAB tem um histórico de luta pela defesa das liberdades, mas parece ter se desviado um pouco desse caminho em gestões passadas. Voltará para ele?

Marcus Vinícius — Sim. Se torna cada vez mais claro e evidente, para mim, que não há contrariedade entre a luta pelas prerrogativas do advogado e a defesa de uma sociedade melhor. Porque essas duas lutas são complementares, não antagônicas. À medida que se defendem as prerrogativas dos advogados, se possui como objetivo a defesa do cidadão, a proteção do cidadão contra as injustiças. Logo, a constituição de uma sociedade justa. A defesa das liberdades é o ponto de encontro entre a garantia das prerrogativas e a luta por uma sociedade melhor. E essa é a pauta da Ordem: a defesa das liberdades.

Rodrigo Haidar é editor da revista Consultor Jurídico em Brasília.
Revista Consultor Jurídico, 7 de abril de 2013

sexta-feira, 5 de abril de 2013

EMBRIAGUEZ AO VOLANTE: NÃO BASTA O PERIGO PRESUMIDO

Autor:
Está em vigor desde 21.12.2012 a nova lei seca (Lei nº 12.760/2012), que endureceu mais uma vez o Código de Trânsito (dobrou o valor da multa administrativa, agravou-a no caso de reincidência e facilitou a comprovação da embriaguez). Indaga-se: o crime de dirigir veículo automotor em estado de embriaguez (art. 306), agora, com a redação dada pela nova lei, é de perigo abstrato ou concreto?
 
Leonardo de Bem, em livro que estamos preparando, fez uma análise dos vários posicionamentos doutrinários relacionados com o perigo abstrato e chegou à conclusão de que o delito do art. 306 do CTB (na sua nova redação) possui a natureza de perigo abstrato de perigosidade real, que é uma tese muito próxima do perigo abstrato com potencial perigo para o bem jurídico tutelado. Só existiria o crime citado quando houvesse superação de um determinado risco-base.
 
Não se trataria, portanto, de perigo abstrato presumido (ou puro), nem tampouco de perigo concreto. Renato Marcão (no portal atualidadadesdodireito.com.br) opinou no sentido de que se trata de perigo abstrato puro (presumido). A nova redação dada ao art. 306 do CTB, pela Lei nº 12.760/2012, é a seguinte:
 
"Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência:
 
§ 1º - - As condutas previstas no caput serão constatadas por:
I - concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar; ou
II - sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora."
O novo tipo penal, na medida em que exige "capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência", claramente se distanciou dos dois modelos anteriores (de 1997 e de 2008). Criou-se uma terceira situação de ilicitude (distinta das precedentes). Se o legislador mudou a redação da lei, agregando algo que antes não existia, parece muito evidente que houve alteração no perigo abstrato puro ou presumido de 2008.
Desde logo fica evidente o seguinte: o novo tipo penal, em sua literalidade, nem exige comprovação de dano potencial concreto "a outrem" (tal como ocorria em 1997), nem se contentou com a (mera) presunção da influência e da alteração da capacidade psicomotora a partir de uma certa quantidade de álcool por litro de sangue (6 decigramas). Nem uma coisa, nem outra.
Estamos diante de um tercius, de um novo paradigma de ilícito, que exige uma adequada e constitucional interpretação, observando-se desde logo que fato não se presume: ou acontece ou não acontece. As duas novas exigências formais contidas no art. 306 (alteração da capacidade psicomotora do agente e influência do álcool ou outra substância) devem ficar devidamente comprovadas em juízo. Isso, no entanto, não significa perigo concreto determinado (com vítima certa).
O que o legislador contemplou no novo art. 306 é distinto do que constava dele em 2008, porém, não deixa de ser uma forma bastante antecipada de tutela do bem jurídico. Trata-se de um campo prévio ao perigo concreto direto, porque, nas sociedades de risco (Risikogesellschaft), bem descritas por Ulrich Beck, a pergunta é: "Como podem ser evitados ou minimizados ou controlados os riscos e ameaças, coproduzidos sistematicamente nos processos de modernização?" (Ganzenmüller et alii: 1997, p. 13).
O desenvolvimento do direito penal, nas sociedades de risco, utiliza, cada vez mais, a técnica do perigo abstrato (sendo incompatível com elas só o velho sistema da lesão ao bem jurídico do direito penal liberal - Ganzenmüller et alii: 1997, p. 15). Os delitos de perigo, hoje, constituem a mancha de óleo de Lackner, visto que são os "filhos prediletos" do legislador (Ganzenmüller et alii: 1997, p. 17).
Isso foi feito no novo art. 306, porém, aí não se contemplou o chamado perigo abstrato puro ou presumido (tal como ocorria na redação de 2008), sim, o perigo abstrato de perigosidade real, que equivale ao perigo concreto indireto.
Se a lesão significa uma efetiva ofensa ao bem jurídico, se o perigo concreto é uma probabilidade de lesão, se o perigo concreto indireto (ou perigo abstrato de perigosidade real) é uma probabilidade de perigo concreto, o perigo abstrato puro (ou presumido) é uma mera possibilidade de perigo (1) de perigo (2) de perigo (3) concreto. Essa tríplice incidência do perigo é inadmissível no direito penal, porque se distancia demasiadamente do bem jurídico protegido. Parodiando Carlos Britto diríamos tratar-se de um "salto triplo carpado hermenêutico".

OBSERVATÓRIO DO OBSERVATÓRIO OU CIRCULATURA DO QUADRADO


Compreender Direito” o Direito
Saiu o Compreender Direito, livro contramajoritário que apresenta as 22 melhores colunas de 2012, devidamente repaginadas, com introdução e divisão por temas, além de ricas notas explicitadoras (clique aqui para ver). A editora é a RT. Nas boas lojas do ramo. O livro pretende fazer desleituras, na esteira do que diz Harold Bloom. Isto é, o livro trata de textos que nos vêm da tradição, com a qual estabelecemos uma relação de (des)leitores-críticos... Esses textos devem sempre ser submetidos a desleituras. Inclusive o meu livro.

O tema de hoje: “A reinvenção da interpretação”?
Para além do assunto “concursos e concurseiros”, hoje o tema é mais sofisticado. Peço desculpas, mas não há outro modo de abordar a temática, a não ser assim. De todo modo, a coluna mostra novamente como o Direito é um fenômeno complexo.

Explicito: com muita honra faço parte do Observatório Constitucional do IDP, querido instituto que, com sua pujança, faz história no Direito brasileiro. Pois meus alunos do doutorado me chamaram a atenção para um artigo — sob a responsabilidade do (permitam-me, nosso) Observatório (clique aquipara ler) que defendia, de forma vibrante, a necessidade de reinventar a interpretação constitucional(penso que a do Brasil).
Em um piscar d’olhos, fui atrás do texto. Afinal, tenho me dedicado há tantos anos não somente a uma investigação da hermenêutica, a partir de Gadamer, Heidegger, Stein, Dworkin, como também suando em bicas para construir uma teoria da decisão, problemática relatada nas mais de 600 páginas doVerdade e Consenso (Saraiva, 2012). No Hermenêutica Jurídica e(m) crise, já na sua 10ª edição, fiz as tentativas iniciais para romper com a hermenêutica (digamos, assim, clássica), fundada no esquema sujeito-objeto (ou a sua vulgata, o que até é mais comum). Já orientei dezenas de dissertações e teses sobre o assunto.
Assim, quando aparece, assim, de supetão, um artigo dizendo que vai reinventar a interpretação constitucional, fico ouriçado. Acho que qualquer um ficaria, pois não? O ministro Gilmar Mendes, principal mentor do IDP, deve ter ficado ouriçado. Meu amigo André Rufino, que me convidou para ingressar no Observatório, deve também ter ficado ouriçado. E o Otavio Luiz Rodrigues Junior, cuidadoso pesquisador, também. Paremos as máquinas. Algo de novo está(ria) no ar. Vejam: o texto do articulista Jorge Octávio Lavocat Galvão não somente busca reinventar a interpretação pelo título grandioso (e, registre-se, esteticamente bonito) “É hora de reinventarmos...", como também pelo conteúdo, no qual uma certa tradição é jogada por terra, à espera desse algo novo que o artigo parece querer apresentar.
Aliás, porque escrevo sobre o artigo? Por duas razões: a uma, exatamente por ser colega de Observatório me sinto à vontade para criticar, academicamente, o texto. Afinal, um artigo vindo de um Observatório tem força. Observatórios são vistos quase como ombudsmen. Por isso, quando um Observatório fala, é porque algo foi observado. Quem observa, observa de um ponto mais alto. E isso acarreta responsabilidades. Muitas. E por isso deve ser cobrado. A duas, porque as questões postas no texto É hora de reinventarmos a interpretação constitucional valem não porque estejam sendo ditas ali (na coluna Observatório Constitucional), mas, sim, porque revelam de algum modo um imaginário — no sentido negativo, de encobrimento e mal entendido — que repercute insistentemente uma série de equívocos teóricos que, antes de contribuir para a solução do problema, por vezes, mesmo que o autor esteja imbuído da melhor das boas vontades, acabam por jogar mais entulho (no sentido de Unzuhandenem de que fala Heidegger) sobre a discussão.
É, pois, o que pretendo fazer.
Qual é o ponto de saturação de que fala o texto?
Na citada Coluna do Observatório, o culto articulista defendeu a necessidade de se dar um “choque de realidade” (sic) no direito constitucional, na medida em que o “debate acadêmico a respeito da interpretação constitucional, que tem sido a tônica da teoria jurídica nos últimos anos, parece ter atingido o seu ponto de saturação, pouco tendo a acrescentar à compreensão dos constitucionalistas sobre o funcionamento da corte”. E isso porque as tais teorias sobre interpretação constitucional[1], segundo entendi, não explicariam “o que torna uma questão constitucional relevante para os membros da Corte e quais os incentivos que os levam a decidir de um ou de outro modo”. Primeiro problema: o risco de, em um artigo, fazer tábula rasa. Qual é o ponto de saturação de que fala o articulista? Qual é a teoria ou quais são as teorias que “pouco tem a acrescentar”? Vejam a gravidade da afirmação. Nada do que se escreve ou escreveu no Brasil tem ou teve importância? O debate acadêmico no Brasil sobre este tema está saturado? Como assim?

Em termos gerais, a argumentação do articulista é muito bem-vinda. Penso, no entanto — y el diablo sabe por diablo pero más sabe por viejo —, na minha opinião, baseado em mais de 15 anos de pesquisas e em um sem número de aulas que já ministrei, o articulista cometeu uma mistura entre acertos e erros cujo resultado, apesar dos méritos do texto, é misleading.
Por partes
De plano, o articulista afirma que o foco da teoria de Ronald Dworkin na argumentação judicial teria encoberto “vários aspectos relevantes para a compreensão do modo como os tribunais operam dentro da engrenagem política de um Estado”.

Aqui, já há uma má compreensão, com todo o respeito, do, assim chamemos, “projeto dworkiniano”. Explico: em primeiro lugar porque não me parece correto dizer que a ênfase da teoria de Dworkin seja a argumentação (a não ser que tomemos este termo em um sentido tão amplo que qualquer proposta que reivindique algum tipo de caráter prático para experiência jurídica seja uma proposta argumentativista). O que Dworkin ressalta, mais de uma vez, é que o direito seria uma prática interpretativa. Esse ponto é importante para que se tenha clara a diferença que separa o projeto dworkiniano do projeto de Robert Alexy (este último, sim, um argumentativista em sentido estrito).
Vale dizer — de uma vez por todas (desculpem-me a veemência da afirmação) — é importante perceber que há uma diferença entre argumentação e interpretação (e entre argumentação e hermenêutica). A teoria de Dworkin, embora use recorrentemente o termo argumento, é uma-teoria-interpretativa-e-não-argumentativa. Dworkin, portanto, não pode ser considerado um teórico da Teoria da Argumentação. Essa sutileza não passou despercebida, por exemplo, a Paul Ricoeur. Este, no texto interpretação e/ou argumentação, demonstra que diferentemente da teoria de Robert Alexy, que possui a característica de reivindicar para a prática argumentativa geral a qualidade de Begründung, ou seja, de fundamentação, Ronald Dworkin está muito mais interessado no horizonte político-ético no qual se desdobra a pratica interpretativa do direito. Para ele, afirma Ricoeur, “o Direito é inseparável de uma teoria política substantiva. É esse interesse último que, afinal, o afasta de uma teoria formal da argumentação jurídica.”[2]
Isso nos leva a um segundo ponto: não podemos esquecer que Dworkin propõe uma teoria de perfilnormativo[3] — e não meramente descritivo da “engrenagem política de um Estado” (sic). Isso quer dizer que Dworkin não está apenas preocupado em demonstrar que os juízes articulam argumentos de moralidade política na construção de suas decisões — ele está, isso sim, interessado em demonstrar quais são os valores que devem orientar essa argumentação (igualdade, dignidade etc.) e em como evitar que isso descambe para o subjetivismo (aqui, o busílis da questão!).
Numa palavra, Dworkin propõe uma teoria sobre o dever do juiz. E o fato de que os juízes (do STF, por exemplo) não guardarem coerência com o pensamento dworkiniano (e, acrescento eu, nem com qualquer outra teoria, aparentemente) não é, ao contrário do que diz o articulista, resultado de umadeficiência da teoria, mas, sim, apenas a prova de que, na opinião de Dworkin, poder-se-ia dizer que eles agiram em desacordo com “a teoria” (ou alguma teoria). Mas, mesmo assim, isso demanda(ria) outros argumentos que o texto não apresenta. E nem dá pistas ao ávido leitor à espera da reinvenção prometida.
O articulista, contudo, aparentemente vê uma relação de “causa e efeito entre a “ênfase doutrinária na teoria da argumentação” (sic) e o fato de que, nos casos de “grande repercussão”, o Supremo não se ter mantido fiel a alguma destas teorias (eu acrescento algo que o articulista não leva em conta, que é o seguinte: de qual teoria da argumentação estaria ele falando? Da TAJ de Alexy ou da vulgata da TAJ, pela qual a ponderação é utilizada como no jogo na Katchanga?)[4]. Afinal, o que é isto — a teoria da argumentação praticada em terrae brasilis?
A(s) cortina(s) de fumaça
Mas as evidências — em especial as descritas ao longo do artigo, quando o autor corretamente observa que “a interpretação e os métodos constitucionais tem servido muitas vezes como uma cortina de fumaça para camuflar as relações de poder subjacentes as questões jurídicas” — apontam, no entanto, exatamente o contrário! Ou seja, dá a impressão que a culpa disso é de Dworkin ou da TAJ (ou de “alguma hermenêutica”). Prestemos bem atenção: é justamente o fato de teorias como a dworkiniana (nem estou falando da hermenêutica filosófica, por exemplo) não estarem sendo observadas pelos ministros do STF é que faz com que suas decisões sejam incoerentes em princípio e sejam inteligíveis, apenas, do ponto de vista político (ou da ciência social). Eis as verdadeirascausas e efeitos! Aqui, o problema não é nem a falta (ou não) de Dworkin ou qualquer outro autor… Trata-se de podermos exigir coerência e integridade no conjunto decisório, seja ao abrigo de que teoria for.

Entendamos: não é que o “impacto de fatores extrajurídicos nos resultados dos casos” seja “um mistério para a teoria constitucional”, como acusa o articulista. Ele nunca foi um “mistério” (sic), ao menos para Dworkin e para “nosotros”, que pesquisamos isso há tantos anos. Sua célebre (dele, Dworkin) distinção entre argumentos de princípio e argumentos de política que o diga! Aliás: fosse desconhecida de Dworkin a influência, de fato, de fatores extrajurídicos nas decisões judiciais, ficaria a pergunta: Que sentido faria a tese do fórum de princípio? Pensemos a respeito.
A ameaça à autonomia do Direito
Na verdade — e aqui me parece o problema mais grave na tese da propalada “reinvenção” —, a ideia proposta pelo articulista permite divisar mais uma ameaça à autonomia do Direito. Explico. Há um quê de positivismo fático na tese do articulista (lembremos, aqui, do positivismo fático representado pelos diversos tipos de “realismos jurídicos”). Como demonstrarei, a tentação em resvalar no realismo jurídico é difícil de resistir... Já entenderemos isso. Antes disso, é preciso deixar claro que nosso ilustre articulista confunde a Tese do Direito como Integridade com essa vulgata que se tornou a recepção no Brasil, na pior tradição do nosso ecletismo “ibérico”, de autores como Dworkin e mesmo como Alexy. Sendo bem claro, aberto e leal, veja a seguinte afirmação do articulista: “Técnicas de interpretação, princípios, ponderação e direitos fundamentais ingressaram de modo indelével no vocabulário dos advogados. Há um inegável encantamento pelo Poder Judiciário e por seus juízes Hércules, que, em virtude de sua capacidade de traduzir questões políticas em problemas jurídicos, tornaram-se os guardiões não só da Constituição, mas da moralidade pública em geral.

Veja-se que o ilustre articulista misturou “técnicas de interpretação” (século XIX) com “princípios, ponderação e direitos fundamentais” (Dworkin? Alexy?). Mais: juízes Hércules? O que é isto, os juízes Hércules? Ora, em Dworkin, Hércules é uma metáfora para ilustrar o ponto de vista da adequabilidade. Sim, apenas uma metáfora! Mais: trata-se de um arquétipo, um recurso literário que visa a traduzir a teoria da responsabilidade política dos juízes. A jurisdição de Hércules não é — como geralmente se retrata — uma jurisdição “ideal” (sic). Ela é, antes, uma jurisdição do possível. Dito de outro modo, quer dizer que determinadas decisões responsáveis politicamente são mais ajustadas ao direito da comunidade política do que decisões irresponsáveis. Hércules não traduz “questões políticas em problemas jurídicos”. E Dworkin jamais caracterizou o trabalho de Hércules como guardião da moralidade pública em geral. Deixemos isso claro, sempre, para fazer justiça a Dworkin (aproveitemos também para deixar claro — por justiça, registro que isso não está no texto do articulista — que já não dá para aguentar algumas teses sobre Dworkin, a principal delas acusando-o de ser jusnaturalista).
Também o articulista diz, na sequência, que erradas estão mesmo as teorias da interpretação, porque seriam incapazes de compreender o STF: “Os julgamentos quanto à aplicação da Lei da Ficha Limpa às eleições de 2010 e à perda do mandato parlamentar em virtude de condenação criminal no caso do mensalão ilustram bem a insuficiência das teorias da interpretação para se compreender o funcionamento de nossa Suprema Corte.” Impressiona, aqui, e digo isso com toda a lhaneza de alguém que há tantos anos estuda a matéria, o modo como o autor analisa os casos da Ficha Limpa e do Mensalão. De fato, sua análise, como ele mesmo reconhece é “simplista” (penso que no bom sentido da palavra).
Para ele, um “choque de realidade” (sic) é adotar essa atitude por ele mesmo chamada de simplista:“Urge que sejamos menos abstratos e voltemo-nos mais para o estudo dos fatos e das consequências das decisões judiciais”. Ou seja, o bom seria desconsiderar totalmente as questões de princípio e adotar a perspectiva realista: “Para se compreender realmente como os juízes decidem os casos parece agora ser necessário inverter o caminho percorrido por Dworkin, buscando analisar não como os juízes decidem, a partir de uma perspectiva interna, mas o que leva os juízes a decidirem da forma como decidem, a partir de uma perspectiva externa (de um observador das relações causais da prática jurídica)”. Aqui, pois, aparece, implicitamente, o lado positivista fático da tese do articulista — sim, porque o realismo (ou qualquer forma de realismo jurídico — de Olivecrona e Ross ao realismo norte-americano) é uma forma de positivismo. Essa problemática já era criticada por Warat há mais de 30 anos, identificando as formas de positivismo fático como contraponto, por exemplo, do positivismo normativista de Kelsen (pensemos no contraponto Ross-Kelsen).
Ou seja, o articulista quer fazer uma espécie de “ciência política” ou de “história” que desconsidera as questões de princípio e de direitos fundamentais. Aliás, o que quer dizer “voltemo-nos mais para o estudo dos fatos”? O que são fatos? Há questões de fato distintos de questões de Direito? Lidar com teorias sofisticadas, por exemplo, é cair no plano da abstração? E o que é isto — um choque de realidade?
Enfim, a reinvenção da interpretação constitucional, para o articulista, é adotar uma perspectiva do observador externo que pretende descrever regularidades e não compreender o sentido do que seja “cumprir uma norma”, verbis: “Estas questões — que se aproximam mais do âmbito de investigação da ciência política e da história do que da filosofia — têm recebido pouca ou quase nenhuma atenção dos constitucionalistas”.
De se notar que, de efetivamente novo, essa propalada “reinvenção” não tem nada. Na verdade ela seria pré-dworkiniana. Na verdade, mesmo, parece-me simplesmente que — tendo em conta o debate Hart-Dworkin — o articulista faz uma simples opção por aquilo que seria uma espécie de rascunho das teses projetadas pelo positivismo moderado de Hart. De todo modo, um pé em Hart e outro no realismo.
Ora, foi justamente contra a proposta meramente descritiva, que separava observador e participante, que Dworkin apontou a sua crítica. Em termos cronológicos, a proposta “nova” é já velha. Nesse contexto todo, permito-me a seguinte pergunta: por que exatamente a perspectiva do observador seria menos “abstrata” que a do participante? Sim, por quê? Penso que o que ocorre é exatamente o contrário: as tentativas de marcar um ponto isolado a partir do qual se observa o fenômeno jurídico é que leva a discussão para abstracionismos inúteis (veja que quem fala em abstrações é o articulista). Ora, a colocação do problema jurídico na radical condição do participante faz com que a reflexão firme os pés na facticidade. Aliás, é de se perguntar, no âmbito da ciência jurídica, se é possível conquistar esse ponto arquimediano de observação de seu objeto? É possível afirmar a posição de um observador neutral, situado fora das práticas jurídicas cotidianas, para responder a problemas que são projetados por essas mesmas práticas jurídicas cotidianas? Esse observador não “assujeitaria” o objeto?
Trata-se, enfim, do argumento metafísico típico, ou seja, uma perspectiva dualista: “Entretanto, muito se perde ao se atravessar do plano normativo para a realidade”. Como se o Direito e suas questões de princípio não fizessem parte da realidade, como se esses princípios e direitos, como dizia Dworkin, não fossem também filhos da história institucional. Veja-se de novo a insistência do articulista em separar o plano normativo da realidade.
Na verdade, ao que entendi, a “reinvenção da interpretação constitucional” que o autor propõe é abrir mão da perspectiva normativa e adotar a realista (qual?). O risco disso é exatamente perder de vista justamente o que o autor acredita dever ser mantido da contribuição de Dworkin: “Não se pretende questionar com isso que, conforme leciona Dworkin, os juízes devam decidir com coerência e integridade, respeitando os princípios e os compromissos institucionais previamente estabelecidos”.
O que o texto É hora de reinventarmos... não leva em conta é que uma das grandes contribuições da Hermenêutica Filosófica e, no Direito, de uma hermenêutica crítica como a de Dworkin, foi exatamente a superação desses dualismos metafísicos[5]. Em vez de se perder entre o normativismo e o realismo, pois ambos perdem de vista a historicidade e a abertura de sentido dos princípios e dos direitos, é preciso adotar uma perspectiva reconstrutiva ou, ao menos compreensiva que reconheça que as questões de princípio se impõem historicamente ao Direito como parte essencial dos processos políticos e sociais.
Síndrome de Caramuru. De novo.
Veja-se o perigo em dizer (ou anunciar) que É hora de reinventarmos a interpretação constitucional. Primeiro, há um problema nisso, porque dá a impressão que o Brasil é um país de néscios, que até hoje nada fizeram nesse campo. Já denunciei, aqui, em outra coluna, a síndrome de Caramuru. Com tanta gente trabalhando sobre o tema “interpretação constitucional”, o artigo em tela não deixa muita coisa em pé. Sim. Terra arrasada. Diz o articulista que está na hora de reinventarmos... Será? Hoje nossa teoria do Direito — mormente nessa área — está bem mais adiantada que em muitos países. Além disso, devemos sempre levar em conta as especificidades de terrae brasilis. Até mesmo a teoria dworkiniana deve sofrer uma antropofagia. É o que eu tento fazer. Nesse sentido meu debate com um bom aluno de Dworkin, Rodolfo Arango, da Colômbia, que aparece em Verdade e Consenso (4ª edição, página 288).

Não quero dizer “como me ufano do avanço da teoria do direito no Brasil”, mas que avançamos, ah, isso avançamos. Há, hoje, seis programas de pós-graduação em Direito com nota 6-Capes (USP, PUC-SP, UERJ, UFPR, UFSC e Unisinos), que pouco ou nada devem para os bons programas estrangeiros (ao menos no âmbito do que se entende por “teoria do Direito” e “teoria da Constituição”. Posso, aqui, fazer uma lista longa de gente que está estudando interpretação da Constituição. Concordando ou não com muitos deles (por exemplo, L.R.Barroso, Daniel Sarmento, Gilmar Mendes, Neviton Guedes, Alexandre Morais da Rosa, Eduardo Moreira, Antonio Maia, Marcos Marrafon, Ecio Oto, Walber Carneiro, Rafael Tomaz de Oliveira, Clémerson Clève, Juarez Freitas, Menelick de Carvalho, Eduardo Bittar, Tércio Ferraz Jr., Paulo de Barros Carvalho, Francisco Motta, Marcelo Cattoni, Bernando Gonçalves, Emilio Meyer, Alvaro Souza Cruz, Marcelo Neves, JM Adeodato etc e tantos outros que poderiam ser nominados), é alvissareiro termos tanta gente construindo as condições para a interpretação do Direito (e, portanto, da Constituição). Há problemas? Sim. Há uma crise de paradigmas? Sim. Mas em setores da academia cresce a sofisticação da(s) teoria(s). Enquanto em muitos países europeus ainda se discute a dicotomia positivismo-jusnaturalismo (para dizer o menos), por aqui já podemos dizer que construímos teorias adequadas às especificidades brasileiras. Portanto, uma reinvenção da circulatura do quadrado ou a quadratura do círculo ou a circularidade do círculo não nos pega de surpresa.
A propósito
Como referi, o texto do articulista do Observatório é bem-vindo. Entretanto, no modo como foi escrito e pelo grau de sua pretensão teorética, não fica imune a uma série de questionamentos. Por isso, fiz aqui uma espécie de “Observatório do Observatório”. Com a vênia dos colegas do Observatório Constitucional.


[1] Cabe aqui o alerta de que a hermenêutica não é compartimentalizada. Não se deve regionalizar a hermenêutica (ou a interpretação). É inadequado subdividir a hermenêutica em constitucional, civil, penal, etc. A menos que ainda se pense que a hermenêutica é metodológica. Já expliquei exaustivamente e repetidamente isso no meu Hermenêutica Jurídica e(m) Crise.
[2] RICOUER, Paul. Interpretação e/ou Argumentação. In: O Justo. Vol. 1. São Paulo: Martins Fontes, 2008, pp. 153/173.
[3] Na verdade, seria mais correto dizer que Dworkin nao acredita que qualquer teoria jurídica possa ser meramente descritiva – basta retomar os argumentos de seu celebre debate com Hart; mas isso e assunto para outra conversa.
[4] Na UNISINOS será defendida tese de doutorado, sob minha orientação, de autoria de Fausto de Morais, que mostra que a ponderação, propalada em quase 200 acórdãos no STF, não guarda relação com a matriz originária alexiana.
[5] Tenho feito um intenso debate com jusfilósofos de ponta como Marcelo Cattoni, da UFMG, que sobre essa temática escreve magnificamente em livro publicado pela FUMEC, "Constitucionalismo e História do Direito" cap. 1, p. 38, primeiro e segundo parágrafos, assim como no texto escrito durante o seu pos-doutorado, denominado Democracia sem espera e processo de constitucionalização, que também consta no aludido livro, cap. 7, p. 215-217. Também registro os diálogos com Francisco Motta, nestes meses estudando na Columbia Universiy - NY, ele autor do belo Levando o Direito a Sério (Livraria do Advogado).
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine oFacebook.
Revista Consultor Jurídico, 4 de abril de 2013

quinta-feira, 4 de abril de 2013

LEIA O VOTO DO MINISTRO MARCO AURÉLIO NA AP 470


O ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio divulgou nesta quarta-feira (3/4) seu voto na Ação Penal 470, o chamado processo do mensalão. Nele constam desde as preliminares, como a questão relativa ao desmembramento do processo, na qual o ministro ficou vencido, ao mérito da denúncia.
O julgamento foi fatiado em sete itens, cada um com apreciação separada pelos ministros. A Procuradoria-Geral da Repúbilca havia proposto inicialmente nove itens, sendo o item 1 a introdução e o último, a conclusão. Ambos foram descartados, e os votos se ativeram a sete itens. Foram eles: quadrilha (item 2); peculato (item 3); lavagem de dinheiro (item 4); gestão fraudulenta de instituição financeira (item 5); corrupção (item 6); lavagem de dinheiro referente ao PT e ao ex-ministro dos transportes Anderson Adauto (item 7); evasão de divisas e lavagem de dinheiro referente a Duda Mendonça e Zilmar Fernandes (item 8).
O voto do ministro Marco Aurélio também traz a dosimetria das penas. O Pleno do STF, por decisão do relator, ministro Joaquim Barbosa, não seguiu a ordem numérica dos itens.
Clique aqui para ler o voto do ministro Marco Aurélio.
Revista Consultor Jurídico, 3 de abril de 2013

quarta-feira, 3 de abril de 2013

ACÓRDÃOS DEVERIAM TER LINEARIDADE ARGUMENTATIVA


Por Dierle Nunes
O sistema jurídico brasileiro, encontra-se há algum tempo profundamente imerso no movimento de convergência entre a civil law e common law,[1] com a utilização cada vez mais corrente de decisões jurisprudenciais como fonte de aplicação do Direito.
Este movimento de transição foi fortalecido pela EC45/2004 que permitiu os julgamentos dos Recursos Extraordinário pelo Supremo Tribunal Federal em repercussão geral (regulamentado pelos artigos 543A e B, CPC) e das técnicas de julgamento repetitivos absorvidas por reformas legais na legislação processual.[2]
Estas modificações vêm promovendo paulatinamente um novo olhar sobre o modo de aplicação do Direito e impõem a necessidade de que tematizemos o modo como os tribunais vêm promovendo seus julgamentos.
O “velho” modo de julgamento promovido pelos ministros (e desembargadores) que, de modo unipessoal, com suas assessorias, e sem diálogo e contraditório pleno entre eles e com os advogados, proferem seus votos partindo de premissas próprias e construindo fundamentações completamente díspares, não atende a este novo momento que o Brasil passa a vivenciar.[3]
Os acórdãos, na atualidade, deveriam possuir uma linearidade argumentativa para que realmente pudessem ser percebidos como verdadeiros padrões decisórios que gerariam estabilidade decisória, segurança jurídica, proteção da confiança e previsibilidade. De sua leitura deveríamos extrair um quadro de análise panorâmica da temática, a permitir que em casos futuros pudéssemos extrair uma “radiografia argumentativa” daquele momento decisório.
Extrair-se-ia, inclusive, se um dado argumento foi levado em consideração, pois caso contrário seria possível a superação do entendimento (overruling). Ou mesmo se verificar se o caso atual em julgamento é idêntico ao padrão ou se é diverso, comportando julgamento autônomo mediante a distinção (distinguishing).
No entanto, ao se acompanhar o modo como os tribunais brasileiros trabalham e proferem seus acórdãos percebemos que se compreende parcamente as bases de construção e aplicação destes padrões decisórias (precedentes), criando um quadro nebuloso de utilização da jurisprudência. Flutuações constantes de entendimento, criação subjetiva e individual de novas “perspectivas”, quebra da integridade (Dworkin) do Direito, são apenas alguns dos “vícios”.
Repetimos: aos tribunais deve ser atribuído um novo modo de trabalho e uma nova visão de seus papéis e forma de julgamento. Se o sistema jurídico entrou em transição (e convergência), o trabalho dos tribunais também dever ser modificado, por exemplo, a) com a criação de centros de assessoria técnico-jurídica (unificação das assessorias) a subsidiar a todos os julgadores de uma Câmara pressupostos jurídicos idênticos para suas decisões; b) respeito pleno do contraditório como garantia de influência, de modo a levar em consideração todos os argumentos suscitados para a formação de um padrão decisório, pelos juízes e pelas partes, entre outras medidas.
Ademais, não se pode olvidar um dos principais equívocos na análise da tendência de utilização dos precedentes no Brasil, qual seja, a credulidade exegeta (antes os Códigos, agora os julgados modelares) que o padrão formado (em repercussão geral ou em recurso repetitivo) representa o fechamento da discussão jurídica, quando se sabe que, no sistema do case law, o precedente é umprincipium argumentativo. A partir dele, de modo discursivo e profundo, verificar-se-á, inclusive com análise dos fatos, se o precedente deverá ou não ser repetido (aplicado).
Aqui, o “precedente” do STF e STJ é visto quase como um fechamento argumentativo que deveria ser aplicado de modo mecânico para as causas repetitivas. E estes importantes tribunais e seus ministros produzem comumente rupturas com seus próprios entendimentos; ferindo de morte um dos princípios do modelo precedencialista: a estabilidade.
É comum a utilização de enunciados de “súmulas” sem se analisar os julgados que a deram base; quando tal procedimento seria essencial para se vislumbrar se os casos que os embasaram (os enunciados) são idênticos ao atualmente em julgamento.
Ocorre que, no Brasil, a principal utilização desta chamada padronização decisória se presta ao dimensionamento da chamada litigiosidade repetitiva; demandas propostas por inúmeros cidadãos com pretensões isomórficas.
Sabe-se que após a CRFB/88 as litigiosidades se tornaram mais complexas e em número maior. E que a partir deste momento o processo constitucionalizado passou a ser utilizado como garantia não só para a fruição de direitos (prioritariamente) privados, mas, para o auferimento de direitos fundamentais, pelo déficit de cumprimento dos papéis dos outros “Poderes” (Executivo/ Legislativo), entre outros fatores.
Dentro deste contexto, a litigiosidade repetitiva passou a aumentar as taxas de congestionamento do Poder Judiciário brasileiro e as propostas de técnicas processuais padronizadoras, e do uso de “precedentes” como fonte, ganhou muitíssima força.
No entanto, como se vem advertindo há algum tempo, necessitamos tematizar o uso destas técnicas, especialmente quando se vislumbra que no atual CPC projetado, cujo relatório foi apresentado (pelos ilustres deputados Sérgio Barradas Carneiro, Fábio Trad e Paulo Teixeira em 19 de setembro de 2012) na Câmara dos Deputados, se aposta com muita veemência na utilização destes padrões decisórios para dimensionar os litígios repetitivos, inclusive viabilizando a criação de “precedentes” pelos tribunais de segundo grau.
O Projeto na Câmara foi deveras aprimorado nesta parte. Mas a contribuição legislativa somente representa uma parte da questão. É na aplicação adequada dos precedentes (e não mecânica) que conseguiremos resultados eficientes e legítimos.
Dentro desta constatação, devemos criticar a proposta ufanista do uso dos precedentes. Não buscando uma crítica pobre e fundamentalista ao seu uso. Mas procurando tematizar e produzir uma teoria científica democrática e abrangente do uso dos precedentes no Brasil.
Conclama-se, assim, todos os pensadores e aplicadores brasileiros a esta tarefa essencial de promoção da melhoria e da adequação normativa do uso do Direito Jurisprudencial entre nós.

[1] Cf. Theodoro Júnior, Humberto; Nunes, Dierle; Bahia, Alexandre. Breves considerações da politização do judiciário e do panorama de aplicação no direito brasileiro – Análise da convergência entre o civil law e o common law e dos problemas da padronização decisóriaRevista de Processo,vol. 189, p. 3, São Paulo: Ed. RT, nov. 2010.
[2] Cf. THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Litigiosidade em massa e repercussão geral no recurso extraordinário. Revista de Processo. São Paulo: RT, v. 177. 2009.
[3]  Acerca das premissas essenciais para o uso dos precedente, veja-se: “Nesse aspecto, oprocessualismo constitucional democráticopor nós defendido tenta discutir a aplicação de uma igualdade efetiva e valoriza, de modo policêntrico e comparticipativo, uma renovada defesa de convergência entre o civil law e common law, ao buscar uma aplicação legítima e eficiente (efetiva) do Direito para todas as litigiosidades (sem se aplicar padrões decisórios que pauperizam a análise e a reconstrução interpretativa do direito), e defendendo o delineamento de uma teoria dos precedentes para o Brasil que suplante a utilização mecânica dos julgados isolados e súmulas em nosso país. Nesses termos, seria essencial para a aplicação de precedentes seguir algumas premissas essenciais:
1º – Esgotamento prévio da temática antes de sua utilização como um padrão decisório (precedente): ao se proceder à análise de aplicação dos precedentes no common law se percebe ser muito difícil a formação de um precedente (padrão decisório a ser repetido) a partir de um único julgado, salvo se em sua análise for procedido um esgotamento discursivo de todos os aspectos relevantes suscitados pelos interessados. Nestes termos, mostra-se estranha a formação de um “precedente” a partir de um julgamento superficial de um (ou poucos) recursos (especiais e/ou extraordinários) pinçados pelos Tribunais (de Justiça/regionais ou Superiores). Ou seja, precedente (padrão decisório) dificilmente se forma a partir de um único julgado.
2º – Integridade da reconstrução da história institucional de aplicação da tese ou instituto pelo tribunal:ao formar o precedente o Tribunal Superior deverá levar em consideração todo o histórico de aplicação da tese, sendo inviável que o magistrado decida desconsiderando o passado de decisões acerca da temática. E mesmo que seja uma hipótese de superação do precedente (overruling)[3] o magistrado deverá indicar a reconstrução e as razões (fundamentação idônea)[3] para a quebra do posicionamento acerca da temática.[3]
3º – Estabilidade decisória dentro do Tribunal (stare decisis[3] horizontal): o Tribunal é vinculado às suas próprias decisões: como o precedente deve se formar com uma discussão próxima da exaustão, o padrão passa a ser vinculante para os Ministros do Tribunal que o formou. É impensável naquelas tradições que a qualquer momento um ministro tente promover um entendimento particular (subjetivo) acerca de uma temática, salvo quando se tratar de um caso diferente (distinguishing) ou de superação (overruling). Mas nestas hipóteses sua fundamentação deve ser idônea ao convencimento da situação de aplicação.
4º – Aplicação discursiva do padrão (precedente) pelos tribunais inferiores (stare decisis vertical): as decisões dos tribunais superiores são consideradas obrigatórias para os tribunais inferiores (“comparação de casos”):[3] o precedente não pode ser aplicado de modo mecânico pelos Tribunais e juízes (como v.g. as súmulas são aplicadas entre nós). Na tradição do common law, para suscitar um precedente como fundamento, o juiz deve mostrar que o caso, inclusive, em alguns casos, no plano fático, é idêntico ao precedente do Tribunal Superior, ou seja, não há uma repetição mecânica, mas uma demonstração discursiva da identidade dos casos.
5º – Estabelecimento de fixação e separação das ratione decidendi dos obter dicta da decisão: a ratio decidendi[3] (elemento vinculante) justifica e pode servir de padrão para a solução do caso futuro; já o obter dictum constituem-se pelos discursos não autoritativos que se manifestam nos pronunciamentos judiciais “de sorte que apenas as considerações que representam indispensavelmente o nexo estrito de causalidade jurídica entre o fato e a decisão integram a ratio decidendi, onde qualquer outro aspecto relevante, qualquer outra observação, qualquer outra advertência que não tem aquela relação de causalidade é obiter: um obiter dictum ou, nas palavras de Vaughan, um gratis dictum.”[3]
6º – Delineamento de técnicas processuais idôneas de distinção (distinguishing) e superação (overruling) do padrão decisório: A ideia de se padronizar entendimentos não se presta tão só ao fim de promover um modo eficiente e rápido de julgar casos, para se gerar uma profusão numérica de julgamentos. Nestes termos, a cada precedente formado (padrão decisório) devem ser criados modos idôneos de se demonstrar que o caso em que se aplicaria um precedente é diferente daquele padrão, mesmo que aparentemente seja semelhante, e de proceder à superação de seu conteúdo pela inexorável mudança social – como ordinariamente ocorre em países de common law.” NUNES, Dierle.Processualismo constitucional democrático e o dimensionamento de técnicas para a litigiosidade repetitiva.A litigância de interesse público e as tendências “não compreendidas” de padronização decisória. Revista de Processo, vol. 189, p. 38, São Paulo: Ed. RT, set. 2011.

Dierle Nunes é advogado, professor adjunto na UFMG, FDSM e PUCMinas e sócio do escritório Camara, Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia.
Revista Consultor Jurídico, 24 de outubro de 2012

Lei Carolina Dieckmann enfrentará dificuldades na prática


Embora a Lei 12.737/2012, apelidada de Lei Carolina Dieckmann — por causa do vazamento de fotos da atriz nua —, seja considerada um avanço no tratamento de crimes cibernéticos, as dificuldades oferecidas pelo universo virtual podem prejudicar a aplicação das regras na prática. Na opinião de especialistas, a nova legislação promulgada nesta terça-feira (2/4) ainda deixa lacunas, como a necessidade de violação de dispositivo de segurança para configurar crime e a imprecisão de termos técnicos. 
Até agora, a Justiça se baseava em tipos previstos pelo Código Penal para aplicar punições. Invasão de computadores, roubos de senhas e conteúdos de mensagens eletrônicas, a derrubada proposital de portais e o uso não autorizado de dados de cartões passam a ser tipificados como crimes. As penas serão aumentadas se houver divulgação, comercialização ou transmissão a terceiros do material obtido na invasão. A captura de informações privadas, segredos comerciais ou industriais e dados protegidos por sigilo judicial é considerada agravante. 
Ainda há previsão de aumento de pena de um terço à metade em casos de crimes praticados contra o presidente da república, os presidentes do Supremo Tribunal Federal, o da Câmara dos Deputados, do Senado das Assembleias Legislativas de estado, da Câmara Legislativa do Distrito Federal e para as Câmaras Municipais. Os crimes praticados contra dirigentes máximos da administração direta e indireta federal, estadual, municipal ou do Distrito Federal também estão na lista. A legislação ainda inclui no Código Penal a equivalência entre cartões de crédito e débito a documentos pessoais.
Parte dos crimes que ocorrem na internet têm correspondência na lei penal — como estelionato, fraudes, furtos e ofensas. Por isso, o criminalista Fábio Tofic Simantob afirma que a alteração legislativa deve concentrar esforços na tipificação de crimes contra sistemas informáticos, e não aqueles praticados pela via digital. “Qualquer mudança visando readequá-los à realidade eletrônica correria o risco de incorrer em casuísmos excessivos e virar sucata com a mesma fugacidade das novas tecnologias”, alerta. A Lei Carolina Dieckmann está em acordo com a Convenção de Budapeste sobre Cibercrimes, de 2001.
As penas previstas pela nova lei variam entre três meses e um ano de detenção. Em relação à dosimetria, o presidente da Comissão de Direito Eletrônico e Crimes de Alta Tecnologia da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo, Coriolano Almeida Camargo, não acredita que as punições sejam brandas. “Não temos no Brasil registro de diminuição dos delitos em função de penas mais severas”, afirma. Para ele, a educação digital e as ações preventivas têm mais poder de transformar a mentalidade dos cidadãos.
Brechas jurídicas
Para o advogado Carlo Frederico Müller, sócio do Müller e Müller Advogados, a lei foi criada às pressas, praticamente em resposta aos anseios da opinião pública e de casos que envolviam celebridades. Ele defende que os administradores de redes sociais, por falta de controle de acesso, deveriam ser responsabilizados criminalmente em situações de injúrias, difamações e outras infrações contra terceiros.

Outra ressalva do especialista é a previsão de crime apenas se houver violação dos dispositivos de segurança. “Nunca estará protegida a maior parte da população, que é leiga e não tem recursos para comprar e atualizar softwares de proteção de seus computadores, tablets ou smartphones”, afirma. O presidente da Subseção de Pinheiros, em São Paulo, da Ordem dos Advogados do Brasil, Pedro Iokoi, aponta quebra do princípio de isonomia nesse trecho da lei. “O texto não protege de modo igual os dispositivos que têm ou não senha. O crime não pode ficar condicionado à presença de barreira de segurança”, afirma.
De acordo com o especialista David Rechulski, o tipo penal “invadir” remete à ocupação ou conquista pela força e de modo abusivo. A transposição de mecanismo segurança seria, portanto, necessária para caracterizar a invasão do dispositivo informático. Ele ainda afirma que a hipótese de crime é cogitada apenas se o agente tiver finalidade de obter, adulterar ou destruir informações armazenadas. “O indevido acesso por si só, ainda que com violação de mecanismos de segurança, não recebeu reprimenda do legislador”, conclui Rechulski.
O criminalista Luiz Augusto Sartori de Castro, do Vilardi Advogados, teme que a maioria daqueles que acessam indevidamente os sistemas de informáticas não sejam punidos pelo Judiciário. “Isso porque não o fazem à força como exige o tipo penal ao se valer do verbo ‘invadir’”, explica. Outro entrave nos tribunais serão de natureza processual. Delitos dessa natureza demandam provas cujo sistema da polícia judiciária não está acostumado e pode gaver problemas de prescrição e regulamentação.
O uso do termo “dispositivo informático” também é criticado. “Hoje há uma grande quantidade de aparelhos que permitem o acesso à internet, como celulares, televisões e até geladeiras. O legislador deveria ter usado a expressão ‘dispositivo eletrônico”, diz o advogado Pedro Iokoi. Para que haja crime, não há necessidade que o dispositivo esteja conectado com a internet, pois a invasão pode ocorrer via Bluetooth, por exemplo. Para ele, os arquivos armazenados em nuvem estão protegidos porque há expectativa de privacidade. Para Coriolano Almeida Camargo, os invasões de redes sociais também estão enquadradas. “Muitas vezes o ataque em redes sociais trata-se de crime conta a honra, já tipificado no Código Penal”, ressalta.
Lei Azeredo
Depois de longa polêmica, também entra em vigor nesta terça-feira a lei para crimes cibernéticos proposta em 1999 pelo então deputado federal Eduardo Azeredo (PSDB-MG). O projeto foi um dos que passou mais tempo em tramitação na Câmara. Entre os pontos polêmicos do texto, estavam a responsabilização de provedores de fiscalizar e armazenar os registros de atividade dos usuários. As normas sugeridas eram consideradas muito restritivas, o que dificultou sua aprovação. 

O tema central do texto que passa a valer a partir de agora é a determinação para que a polícia estruture seções especializadas para crimes virtuais. Para as cidades que não tenham esse setor, deve-se procurar a Polícia Civil. Atualmente poucos municípios, na maioria capitais, possuem delegadas especializadas. Outra das mudanças trazidas pela lei é a possibilidade de um juiz decidir que uma publicação racista, eletrônica ou de outro meio, seja interrompida. 
Victor Vieira é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 3 de abril de 2013

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