segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

MILTON LUIZ PEREIRA E AS FACETAS DE UM GRANDE JUIZ

Coluna Vladimir [Spacca]Os juízes são seres humanos, com todas suas virtudes e defeitos. Mas deles se espera e se exige mais, muito mais. O que se admite em outras carreiras jurídicas, não se permite aos magistrados.
Os anos de profissão vão moldando as pessoas. Opiniões moderadas, hábito de dar a última palavra — mesmo que seja sobre a compra do carro do cunhado — e a inconsciente tendência de ouvir o outro interessado, aplicando o devido processo legal até na disputa dos filhos pelo leite condensado.
Mas, ainda que o tempo torne todos meio semelhantes, inclusive nos currículos, criando um pensamento quase uniforme sobre o Direito e a vida, alguns acabam saindo do padrão. Para o bem e para o mal.
Conheci centenas de magistrados ao longo de minha vida. Não só federais. Dez anos de MP estadual deram-me visão razoável dessa Justiça. Muitos anos de política associativa introduziram-me na Justiça do Trabalho e na Militar. Cursos, visitas, palestras ao redor do mundo deram-me a noção de que os juízes pensam de forma semelhante, em locais tão diferentes como Quênia, Honduras e Austrália.
Entre os magistrados que conheci, muitos me impressionaram. Falarei de um deles, movido pelo fato de ter participado, dia 22 passado, da cerimônia de colocação de seu nome em um Fórum da Justiça Federal em Curitiba. Refiro-me a Milton Luiz Pereira.
Conheci-o no ano de 1981, quando assumi a 2ª Vara Federal de Curitiba. Éramos apenas seis juízes federais para todo o estado. Mas ele era, visivelmente, o líder, o condutor. Sua figura rigorosa, a par da gentileza no trato, impressionou-me. E o tempo me fez compreender aquele homem singular.
Assistindo a aposição de seu nome no edifício que ele instalou em 1983, vieram-me à mente, como naqueles filmes em que sucessivas estações do ano revelam a inexorável passagem do tempo, as inúmeras passagens da vida de Milton Luiz Pereira. Muitas eu presenciei. Outras, me contaram. Vale a pena mencionar algumas. Pequenas coisas, que distinguem os que fizeram a diferença daqueles que, burocraticamente, apenas cumpriram seu papel.
O primeiro caso que me ocorre, contaram-me os servidores. Diziam que ele foi ao Detran resolver um problema e, após horas na fila sem se identificar, no momento em que ia ser atendido, o funcionário disse solenemente: “expediente encerrado” e fechou a pequena janela sua cara. Ele identificou a pessoa e mandou um convite para que fosse à Justiça Federal. O homem lá chegou, amedrontado, vivia-se no regime militar. Ele o recebeu educadamente e mostrou os três andares da Justiça Federal, à época na rua 15 de Novembro. Finalizou, levando o homem ao térreo e disse, sem qualquer sermão: “Sr. Fulano, eu só queria mostrar-lhe que aqui fazemos questão de atender bem a todos que nos procuram”.
Nos anos 1980, vez por outra, vinham ministros do Tribunal Federal de Recursos. Em 1983 chega um deles e era preciso recebê-lo bem. Milton avisou-nos que daria um jantar em sua casa. Lá fomos todos, cerca de 12 pessoas. A comida, preparada por sua esposa Mary — morreram com horas de diferença, no mesmo hospital, com 52 anos de matrimônio — feita com capricho. Seus cinco filhos, ainda crianças, ajudaram a servir e arrumar a mesa, depois brindaram-nos tocando piano. Vi algo incomum, uma linda e diferente recepção familiar.
Quando da mudança da Justiça para o prédio que agora leva o seu nome, estava eu sentado em uma mesa, com dois diretores de Secretaria, deliberando sobre a lotação de funcionários, porque a Vara havia sido desmembrada em duas. Ele passou e, percebendo a dificuldade da divisão, recomendou-me: “Na dúvida, pense no que atende mais ao interesse público e decida”. Essa lição levei para toda minha vida.
Dessa época, outra passagem curiosa. Milton, como diretor do Foro, foi a Brasília em viagem oficial. Ao retornar, entregou ao diretor administrativo as notas fiscais de suas despesas e, dando um cheque em branco e assinado, disse: “as despesas foram menores que as diárias, portanto, recolha a diferença a favor da União”. O diretor, após tentar convencê-lo de que não precisava devolver o dinheiro, perdeu dias até descobrir como recolher a diferença aos cofres públicos, porque até então nunca alguém tinha procedido daquela forma.
O corregedor do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Tadaaqui Hirose, conta que, ao prestar o concurso em Brasília, no dia da prova oral, recebeu a visita de Milton Pereira, então convocado no TFR. Dele ouviu: “Dr. Tadaaqui, hoje de manhã fui à Igreja e rezei para que o senhor faça uma boa prova”.
Poucos anos depois, indicado em lista tríplice para o TFR, foi procurado por um advogado de péssimo conceito, que ofereceu apoio político. Evidentemente, para depois tornar-se credor do favor e cobrá-lo com juros e correção monetária. Ele respondeu: “Dr. Fulano, se o senhor quer me ajudar, reze por mim”. A um só tempo, rejeitou a oferta e não melindrou o homem, revelando sabedoria política.
Quando foram criados os TRFs, ele foi para São Paulo, presidir o TRF-3. Um assessor conta que, certa feita, o tribunal decidiu, administrativamente, pelo pagamento de diferenças salariais. Ele entregou um ofício ao assessor, dizendo: “Entregue no setor de pagamentos, não aceito receber esse dinheiro. Recomende ao diretor que não comente isto com ninguém, pois não quero parecer melhor do que os outros”. Em outra ocasião, o assessor entrou na sua sala, às 13 hs, e encontrou-o ajoelhado, rezando. Saiu rapidamente. Depois, chamado, ouviu a explicação: “Temos sessão hoje e sempre peço a Deus que, nos meus julgamentos, eu não cometa injustiças”.
Nomeado ministro do STJ, jamais se deixou inebriar pelo cargo. Jamais aceitou que o carro oficial o levasse do aeroporto à sua casa quando ia visitar a família, em caráter particular.
Quando foi coordenador do Conselho da Justiça Federal, criou um curso de hermenêutica à distância. Narra a presidente do TRF-4, Marga Tessler, que ao fazer o curso surpreendeu-se com o interesse do ministro que, inclusive, se comunicava com os participantes enviando mensagens. Por expressa recomendação dele, ela leu o livro Didascalion – a arte de ler, escrito por Hugo de San Victor em 1127, que acabou influenciando-a por toda a vida.
Em 2007, já aposentado, recebeu em sua casa a visita do diretor do Foro Marcelo Malucelli e da presidente da associação local, Flávia Xavier, que vinham pedir autorização para que fosse dado seu nome ao Fórum Federal. Exibiram ambos ato do Conselho da Justiça Federal, permitindo que pessoas vivas fossem assim homenageadas, desde que aposentadas. Ele ouviu atentamente, agradeceu e não aceitou. Disse: “Esperem que eu morra”.
Dezenas de passagens de Milton Luiz Pereira são transmitidas oralmente. E não só das atividades de magistrado, mas também dos tempos de estudante de Direito — venceu um concurso nacional de oratória —, de radialista, de advogado, de prefeito de Campo Mourão — onde recebeu, ao deixar o mandato, um Volkswagen de presente da população — e de professor — dedicado e rigoroso.
Exemplos como o dele devem ser lembrados e divulgados. E que frutifiquem, para o bem do Brasil.
Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF 4ª Região, onde foi presidente, e professor doutor de Direito Ambiental da PUC-PR.
Revista Consultor Jurídico, 24 de fevereiro de 2013

EXISTE UM DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

Documentos, dados e reportagens dos trabalhos da Assembleia Constituinte de 1987 e 1988 não são fáceis de reunir. Suprir essa lacuna é o desafio do advogado  Rodrigo Mudrovitsch e de um grupo de 70 alunos do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Eles buscam reconstruir o momento histórico e desenvolver uma análise crítica dos movimentos que resultaram na atual Constituição Federal.
Dividido em vários subgrupos temáticos, o grupo de pesquisa, liderado pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, irá estudar os bastidores da Constituinte e os movimentos sociais que a impulsionaram. "O IDP quer suprir a lacuna abordando questões como: quais foram os debates? Quais foram as preocupações? O que se pensava naquela época?", diz Mudrovitsch. Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, ele sustentou que não faz sentido estudar a mutação constitucional, por exemplo, sem saber de fato qual era o retrato salvo naquela época.
Rodrigo Mudrovitsch é professor e coordenador executivo do curso de pós-graduação em Direito Constitucional do IDP. É graduado em Direito pela Universidade de Brasília, mestre em Direito, Estado e Constituição pela mesma universidade e doutorando em Direito Constitucional pelo Departamento de Direito do Estado da Universidade de São Paulo.
Atua também como coordenador do grupo de pesquisa sobre a Constituinte junto com o professor Rodrigo Kaufmann. A pesquisa inclui, além de entrevistas e busca por dados históricos, uma série de palestras com personagens que viveram o momento e contribuíram, de alguma forma, na criação da Constituição de 1988. Entre os que já participaram estão os ministros aposentados do Supremo Nelson Jobim e José Carlos Moreira Alves, que narram como e por que foram esculpidos os principais artigos do texto.
“Esse trabalho é interessante porque a gente começa a tentar trazer elementos para alguns debates, como: foi uma Constituição com ampla participação social, ou foi um acordo de líderes?”, conta Mudrovitsch.
O grupo quer produzir conteúdo que possa ampliar e enriquecer o pouco material histórico e acadêmico que existe sobre a Constituinte. Os trabalhos serão finalizados em outubro, mês em que a Constituição Federal completa 25 anos e contará com a publicação da obra com todos os detalhes estudados, um documentário televisivo e uma linha do tempo eletrônica.
Leia a entrevista: 
ConJur — Quando começou e qual é a formação do grupo de pesquisa sobre a Constituinte?
Rodrigo Mudrovitsch — O grupo teve início no começo de 2012 e deve finalizar seus trabalhos no aniversário de 25 anos da Constituinte, que é no final deste ano. O projeto é capitaneado pelo ministro Gilmar Mendes, e a coordenação é minha e do professor Rodrigo Kaufmann. O grupo de pesquisa é formado por aproximadamente 70 alunos da graduação e da pós-graduação do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), especialmente do curso de mestrado do IDP, além de outros cursos de graduação e pós-graduação de Brasília, tanto da Universidade de Brasília como de faculdades privadas.
ConJur — Qual é o objetivo do projeto?Rodrigo Mudrovitsch — O grupo de pesquisa é destinado a reconstruir os bastidores não só da Constituinte, mas também dos movimentos sociais que a geraram. O grupo é dividido em aproximadamente dez subgrupos temáticos, entre eles um subgrupo histórico dedicado a reconstituir momentos políticos, outro que estudará o Ministério Público, o Poder Judiciário, a organização dos Poderes, o sistema federativo, direitos sociais e fundamentais. Há uma preocupação, no ambiente acadêmico do IDP, de não permitir que a teoria constitucional se descole da realidade, como por vezes se nota no Brasil.
ConJur — Como ocorre esse distanciamento?Rodrigo Mudrovitsch — Por importação irrefletida de teorias constitucionais dos Estados Unidos, da Alemanha, ou até por acomodação investigativa. O jurista acha que, ao meramente dominar alguns autores de fora, consegue resolver todos os problemas que englobam a aplicação do Direito Constitucional no Brasil. Nós até brincamos que os juristas estão acostumados a perquirir a constituição invisível, enquanto a visível, às vezes, é deixada de lado. A nossa ideia é trazer isso à tona.
ConJur — Qual foi o motivo principal que deu início à pesquisa?Rodrigo Mudrovitsch — Existe uma lacuna, especialmente de mapeamento de dados, de entrevistas, documentos e reportagens da época inicial da Constituinte. O IDP quer suprir essa lacuna abordando questões como: quais foram os debates? Quais foram as preocupações? O que se pensava naquela época? Não faz o menor sentido estudar o fenômeno da mutação constitucional, por exemplo, sem saber, de fato, qual era o retrato da época. O grupo de momentos históricos está produzindo uma linha do tempo que será eletrônica e interativa para que qualquer interessado tenha acesso aos discursos e fotos. Além disso, alguns personagens envolvidos com os bastidores da Constituinte estão dando palestras sobre o assunto. Entre os que já participaram, estão os ministros Nelson Jobim e Moreira Alves.
ConJur — O ministro Moreira Alves teve uma participação relevante na Constituinte e,depois, na interpretação do texto final, não é?Rodrigo Mudrovitsch — Sim. Entre outras questões, o ministro presidiu a sessão de abertura dos trabalhos da Constituinte. Fez um discurso genial. Perguntamos ao ministro se foi difícil escrevê-lo, já que é um discurso político e jurídico, além de ser uma fala de motivação e de atribuição de responsabilidade. O ministro terminou o discurso falando para os Constituintes: Tenham ciência de que esse é um momento no qual os acertos de vocês são esperados e os erros serão eternamente marcados. Ele disse que esse foi o texto mais difícil que ele já produziu. São momentos da nossa história que às vezes ficam de fora da análise jurídica.
ConJur — Quem mais foi convidado?Rodrigo Mudrovitsch — O professor Everardo Maciel, que participou indiretamente dos debates da Constituinte, além de ser referência em qualquer pensamento crítico sobre os sistemas federativo e tributário. Trouxemos também o senador Bernardo Cabral, conhecido como o relator geral da Constituinte, e o professor José Afonso da Silva, que foi um dos membros da Comissão dos Notáveis. Muitos não sabem ou não se lembram que existiu a Comissão dos Notáveis.
ConJur — Há pouca doutrina que aborda essa Comissão?Rodrigo Mudrovitsch — É, e é lugar comum na pouca doutrina que trata sobre o assunto dizer que o destino do trabalho da Comissão foi o arquivo do Ministério da Justiça. O professor José Afonso mostrou que a influência da Comissão dos Notáveis no texto constitucional é muito maior do que se imagina. Ele fez, inclusive, um comparativo entre o que foi produzido lá e o resultado final da Constituinte. Esse trabalho é interessante, porque, a partir dele, começamos a trazer elementos para alguns debates: foi uma constituição com ampla participação social ou foi um acordo de líderes?
ConJur — A intenção de vocês é tirar conclusões?Rodrigo Mudrovitsch — A nossa intenção é mais modesta. É permitir que a academia se dedique ao tema. Evidentemente que nós vamos fazer as nossas análises. Mas a nossa pretensão é suprir uma lacuna de pesquisa.
ConJur — É para contextualizar o momento, mais do que criticar?Rodrigo Mudrovitsch — Nós até podemos fazer isso, mas o nosso principal produto vai ser a organização do material de pesquisa, que está muito disperso. Organizá-lo de uma maneira que seja fácil de as pessoas olhar e, além disso, trazer um pouco do olho da teoria constitucional para a Constituição visível. É muito fácil se descolar do texto quando se trabalha com excesso de princípios. É comum ver julgamentos que propõem sentidos inovadores do texto constitucional. A ideia é dar arcabouço para que as pessoas possam refletir criticamente sobre isso. Há também planos com a TV Senado. Produziremos um documentário até o fim do ano. Estamos preparando também uma obra que será lançada este ano com todas as entrevistas concedidas ao grupo de pesquisa, juntamente com análises nossas do resultado final do trabalho.
ConJur — O senhor falava que para entender o fenômeno da mutação constitucional tem que entender a origem do próprio texto constitucional. Essa análise é feita do ponto de vista jurídico ou dos conflitos políticos e sociais?Rodrigo Mudrovitsch — A nossa percepção é a de que a análise estritamente jurídica é insuficiente para compreender um movimento dessa dimensão. Temos que atentar para outras questões.
ConJur — Essa Constituição é fruto de um momento histórico especifico?Rodrigo Mudrovitsch — Exato. E o pouco que a teoria constitucional faz é tentar racionalizar retrospectivamente isso. É um método equivocado de trabalho, porque, toda vez que se tenta extrair razão da complexidade dos debates políticos, perde-se o rigor na descrição da realidade. E isso é tudo o que nós não queremos.
ConJur — O Direito Constitucional brasileiro é genuinamente brasileiro ou é um conjunto de direitos constitucionais internacionais?
Rodrigo Mudrovitsch — Seria um desrespeito com a história constitucional brasileira ignorar nossas características e evolução próprias. A teoria muitas vezes se esquece disso. Não dá para dizer que não temos um Direito Constitucional brasileiro. Está na hora de deixar a discussão plenamente teórica um pouco de lado. Isso está gerando o descolamento da teoria com a realidade, com a facticidade. E é perigoso caminhar para esse descolamento total entre teoria e fato. Se isso acontecer, qualquer identidade própria de ordenamentos constitucionais será aniquilada.
ConJur — Como assim?Rodrigo Mudrovitsch – O pensamento que queremos combater passa a impressão de que existe uma única resposta possível para conflitos sobre direitos fundamentais no Brasil, na Alemanha e nos Estados Unidos. A preocupação, então, é trazer a necessidade de a teoria vir ao lado de uma hermenêutica que o ministro Gilmar Mendes chama de tópica, uma hermenêutica que é calcada na realidade. O IDP quer mudar essa preocupação teórica e também suprir uma lacuna. Evidentemente que de maneira modesta, mas é o que se busca.
ConJur — Isso reflete diretamente no “trabalho” do Supremo Tribunal Federal e a interpretação do Supremo também se converge nesse trabalho, não é?
Rodrigo Mudrovitsch — Sim, mas o projeto não é voltado ao STF. Evidentemente que o fruto disso pode ser utilizado para se louvar ou criticar decisões do Supremo, mas o foco primário do trabalho é político, especificamente o momento Constituinte de 1987 e 1988. A partir disso, será possível entender se o Supremo foi além em algum caso ou não, se foi necessário ir além para enfrentar uma questão e se de fato houve decisão aditiva ou não. Mas o nosso foco não é o STF.
ConJur  — E qual é?Rodrigo Mudrovitsch — Estamos trazendo outra crítica ao estudo do Direito Constitucional no Brasil, que é o excesso de atenção do jurista com relação aos magistrados. Há direito além da jurisdição constitucional. Há necessidade de se olhar a realidade, de se pensar fora da jurisdição constitucional, de se olhar para a própria história brasileira. Além disso, nosso foco primário nem é teórico. É mais modesto, até para que outros centros de pesquisas possam também dar as suas contribuições com relação ao tema. 
ConJur — Será feito o estudo comparado com constituições de outros países?
Rodrigo Mudrovitsch — Na busca por influências, é natural querer entender, por exemplo, se a nossa inspiração do controle da omissão inconstitucional foi portuguesa, assim como o motivo pelo qual estamos em um estágio nessa tarefa e eles estão em outro. Nesse sentido, tivemos, inclusive, a participação do Professor português Jorge Miranda, que discorreu sobre o momento constituinte português e sua influência no Brasil. Quando estudamos o fenômeno da mutação constitucional, por exemplo, estamos simplesmente repetindo a doutrina norte-americana e alemã ou será que descemos para a realidade brasileira? Porém, ainda assim, o nosso foco primário de estudo é simplesmente organizar dados. É nesse sentido que o IDP tenta aproveitar esse momento de celebração dos 25 anos da Constituição.
ConJur — O trabalho será disponibilizado na Internet e em forma de obra também?Rodrigo Mudrovitsch — Em forma de obra e na internet. O grupo é diretamente ligado às atividades do curso de mestrado do IDP. Mas o requisito para participar do grupo é apenas o interesse sério e comprometido com a pesquisa. Todos podem participar, mesmo quem não é jurista. Ficaríamos fascinados se tivéssemos um cientista político, uma pessoa da filosofia ou uma pessoa da sociologia no grupo. É um trabalho de pesquisa que realmente que não tem a intenção de se restringir aos juristas.
ConJur — Como são tratados os elementos que fizeram a Constituição? Por exemplo, os representantes dos advogados, os representantes dos servidores públicos, do Ministério Público, o que veio a ser a AGU. Essa questão faz parte da pesquisa?
Rodrigo Mudrovitsch — Temos um subgrupo de Defensoria. Esse subgrupo é dedicado exatamente a entender quais foram os fatores de poder que influenciaram as discussões, quais foram os diferentes modelos possíveis, os motivos políticos que conformaram a defensoria. Nós examinamos as atas das subcomissões, os artigos da época e quem foram as pessoas que fizeram discursos. Tudo isso para poder mapear as diferentes possibilidades institucionais.
ConJur — Perceber de onde veio?Rodrigo Mudrovitsch — Isso. Até porque a Constituição é uma seleção de possibilidades. Então, é interessante saber quais eram essas possibilidades, inclusive para se fazer uma avaliação sobre a plausibilidade de se repensar algum instituto. Estamos chegando a algumas conclusões extremamente interessantes, como no caso da ADPF. Você não consegue achar uma fundamentação expressa para ela nos debates da Constituinte, e nem o motivo de ela aparecer na constituição. É interessante descobrir questões como essa, pois, quando é feita a mera racionalização retrospectiva da política, o resultado da análise jurídica se torna extremamente limitado. Muitas vezes o jurista tenta fugir dessa dificuldade. Usa a teoria para fazer o estranho parecer normal.
ConJur — Como é feita a divisão de pesquisa? 
Rodrigo Mudrovitsch — Nós temos grupos que vão direto às fontes primárias. As palestras são um complemento da pesquisa. Há trabalhos feitos diretamente pelos alunos. E cada subgrupo tem um coordenador, geralmente vinculado ao curso mestrado do IDP. E nós, eu e Rodrigo Kaufmann, somos os coordenadores gerais. O ministro Gilmar Mendes é o líder do grupo. Seguimos uma metodologia rígida de pesquisa jurídica. Como o grupo é registrado no CNPQ, temos uma série de regramentos em relação aos quais temos que nos submeter.
ConJur — Quem fará a produção acadêmica?
Rodrigo Mudrovitsch — Cada subgrupo tem o seu espaço. Nós damos liberdade. Às vezes eles escrevem em grupo, as vezes não. Mas há sempre orientação nossa. Tentamos dar igual espaço aos subgrupos.
ConJur - Algumas coisas foram discutidas na Constituinte e chegaram a fazer parte do texto final da Constituição, mas que não são cumpridas hoje, como a Independência dos Poderes?
Rodrigo Mudrovitsch — Há várias questões que se imaginou que caminhariam em um sentindo e o resultado tem sido diverso. Mas tem que se tomar muito cuidado para não cair na tentação de fazer uma interpretação meramente originalista, de imaginar que temos que ficar presos ao que se pensava naquela época. Não é a nossa intenção formar substrato para a implantação do originalismo no Brasil. Como a Constituição tem pouco tempo, aliás, talvez esse seja até um debate a se fazer. Isso porque, talvez aqui, em que a Constituição tem 25 anos, possa fazer mais sentido o originalismo do que nos Estados Unidos.
ConJur — Não é o que dizem as 70 emendas que já foram feitas.
Rodrigo Mudrovitsch — É um pensamento interessante a se fazer, especialmente no que diz respeito ao ambiente político que gerou o movimento constituinte. Ao longo dos últimos 25 anos, houve um arrefecimento da política no Brasil, pelo menos da política que chamamos de transformativa. Embora a política constitucional tenha sido abundante nesse período, se nós formos examinar a qualidade das nossas emendas constitucionais, em termos de relevância dos assuntos debatidos, talvez tenha sido uma política constitucional menor. É interessante discutir isso: o que levou a esse arrefecimento? A análise pode ser feita até em comparação à esfera pública política que, segundo alguns, se tinha à época constituinte. Há livros extremamente interessantes sobre o assunto, como a tese de doutorado do professor Leonardo Barbosa que, entre outras questões, mostra que, em termos numéricos, 10% da população formalizaram sugestões à Constituinte.
ConJur — Dez por cento?Rodrigo Mudrovitsch — Ainda que essa questão possa ser discutida, é um fato que efetivamente mostra que houve participação popular na Constituinte. Então, acho que nem tanto ao céu nem tanto à terra. Não foi nem um acordo de líderes nem algo puramente popular. Trouxemos de volta esse debate e esperamos passar também a nossa visão. Mas, mais do que isso, queremos que as pessoas passem a olhar a questão por si mesmas.
ConJur — E pelo estudo, pelas pesquisas, tem algum ponto que é sempre questionado, que tem maior curiosidade dos estudantes, ou dos palestrantes e dos entrevistados?
Rodrigo Mudrovitsch — Há uma curiosidade maior dos participantes pelos direitos fundamentais e pela jurisdição constitucional. Porque a Constituição, de fato, reinventou a jurisdição constitucional, criou vários mecanismos novos e multiplicou o número de agentes participantes. Mas não percebo um ponto especifico. Existe uma discussão grande hoje, por exemplo, sobre guerra fiscal. Então, tem um grupo muito dedicado a isso, a investigar qual era a concepção de Federação que se tinha à época.
ConJur — É um grupo voltado para questões tributárias?
Rodrigo Mudrovitsch — Sim. Esse grupo é formado por advogados tributaristas, tem advogados de grandes escritórios do Brasil. E o foco deles é exatamente utilizar a pesquisa como substrato para discutir questões relevantes atuais. Várias delas relacionadas, por exemplo, ao papel do Confaz [Conselho Nacional de Política Fazendária] e a questões relacionadas ao fundo de participação dos estados.
ConJur — Houve o pensamento sobre o Pacto Federativo o momento da elaboração da Constituição? A guerra fiscal veio pouquíssimo tempo depois.Rodrigo Mudrovitsch — O que é interessante de se estudar isso concomitantemente com a política é entender, por exemplo, que a União estava em um momento mais frágil durante o nosso processo Constituinte. Há mais perguntas que tentamos levantar do que respostas.
ConJur — Qual é a previsão de término da pesquisa? 
Rodrigo Mudrovitsch — Pretendemos publicar a obra, finalizar a linha do tempo e o documentário até outubro.
Pedro Canário é repórter da revista Consultor Jurídico.
Livia Scocuglia é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 24 de fevereiro de 2013

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

JUIZ PUNE ADVOGADO QUE DISSE SER RIDÍCULA SUA DECISÃO

Quando começou a audiência, a promotora Danielle Pascucci informou o juiz James Booras que o réu se atrasou 22 minutos em sua apresentação semanal ao serviço de liberdade provisória. O advogado Robert Ritacca argumentou que o réu se atrasou porque a pessoa que ia levá-lo ao tribunal também se atrasou. Para o juiz, a explicação não foi boa. O juiz aumentou a fiança para responder o processo em liberdade, de US$ 2 mil para US$ 75 mil, de acordo com o Chicago Tribune, o Chicago Sun-Times e o jornal da ABA (American Bar Association).
"Isso é ridículo!", exclamou o advogado. O juiz não gostou do comentário, dobrou a fiança para US$ 150 mil e aplicou uma multa de US$ 500 ao advogado, por desacato ao tribunal. "Isso também é ridículo!", replicou o advogado. O juiz se embraveceu ainda mais e dobrou a multa para US$ 1 mil. O advogado foi algemado e levado para a cadeia, onde foi revistado, expropriado de seus pertences (cinto, sapatos, carteira e gravata) e questionado. Passou 30 minutos na cadeia.
Há divergências sobre as circunstâncias da ordem de prisão. O advogado disse que a iniciativa foi do juiz. A promotora, porém, disse que ele perguntou ao juiz: "Vai mandar me prender também?" e a resposta foi "sim".
Depois de se acalmar, o juiz mudou de ideia sobre a duplicação da fiança do réu, que não havia se manifestado de maneira alguma durante a audiência, e a fixou em US$ 75 mil. Mas não voltou aos US$ 2 mil.
O réu, Cesar Wence Cuevas, foi preso por posse de 2,81 gramas de "substância controlada", segundo o Chicago Tribune, ou cocaína, segundo o Chicago Sun-Times. Na audiência inicial, o juiz decidiu que o réu poderia responder o processo em liberdade, com a condição de que se apresentasse ao serviço de liberdade provisória uma vez por semana e obedecesse um horário de recolher.
O blog Simple Justice declarou, em um artigo, que concederia uma medalha ao advogado Robert Ritacca por haver dito a verdade ao juiz. "Mas um advogado não pode fazer isso", advertiu. Para o blog, é lamentável que o advogado não possa dizer ao juiz que sua decisão é ridícula, quando em um caso como esse — em que a fiança do réu foi aumentada de US$ 2 mil para US$ 75 mil por causa de 22 minutos de atraso — ela é "ridícula ao quadrado". No entanto, "infelizmente", é preciso medir as palavras.
Se em vez de "ridícula", ele tivesse caracterizado a decisão como "ultrajante", teria melhorado a situação? Talvez um pouco, mas não muito, diz o blog. O fato é que é melhor argumentar, por duas razões. Uma, existe Habeas Corpus, mas até que ele seja decidido, o réu vai passar um tempo na cadeia. E o sistema judiciário ainda não descobriu uma maneira de compensar tempo passado na cadeia indevidamente por réus. Cesar Cuevas, se não tiver US$ 75 mil, vai para a cadeia até que o caso seja solucionado.
Outra razão, é a de que é complicado lidar com juízes que se irritam facilmente e se sentem ofendidos. Também não é uma opção abaixar a cabeça e se calar, deixando o réu à mercê da ira do juiz. A argumentação é a melhor opção, "porque não se põe advogados na cadeia, nem se lhes impõe multas, por argumentar em favor de seus clientes", diz o blog. Em outras palavras, o advogado precisa mostrar ao juiz que sua decisão é ridícula — ou ultrajante — em uma linguagem "judiciosa".
Para o blog, Ritacca também poderia ter se saído melhor — e ajudado mais seu cliente — se não tivesse tentado justificar rapidamente o atraso de seu cliente atribuindo a culpa a outra pessoa (explica, mas não justifica). Melhor teria sido admitir o erro, declarar que o réu compartilhava as preocupações do serviço de liberdade provisória, que ele estava terrivelmente angustiado por essa falha, e que aprendera uma lição: a de que não deve contar com a ajuda de pessoas não confiáveis. Ele deveria deixar claro que providências já estão sendo tomadas para isso não acontecer mais.
João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
Revista Consultor Jurídico, 22 de fevereiro de 2013

HIPOSSUFICIÊNCIA E TV A CABO, FATOS OU INTERPRETAÇÃO?

Parte do título não é criação minha: é de Nietzsche. A partir dela — e, convenhamos, tem um belo apelo estético —, fomentou-se no imaginário jurídico uma espécie de niilismo pós-moderno. Há um vídeo no YouTube com uma aula Magna no STF, em que um importante professor inicia exatamente assim a sua exposição sobre “hermenêutica”: “Fatos não há; só há interpretações”. Vibração da plateia.
Ora, se não há fatos e só há interpretações, então posso dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa. Posso negar a história. Posso maquiar os “fatos” — afinal, eles não “existem”... Com isso, no âmbito do direito, pode-se dizer, por exemplo, que “a interpretação é um ato de vontade”. Claro. Mas, que vontade? Vontade de quem? Ora, o que querem dizer – os niilistas do direito – é que a interpretação é um ato de vontade... de poder, eu acrescentaria.
Aliás, foi Kelsen quem disse que a interpretação feita pelos juízes é um ato de vontade. E assim o fez para justificar a divisão de sua Teoria Pura do Direito em dois planos: o andar de cima, puro, límpido, asséptico, onde se localizaria a ciência do direito, neutral; já o andar de baixo é o da impureza, onde se localiza a decisão judicial. Ali, segundo o mestre de Viena, “faz-se politica jurídica”. Por isso, para ele, a sentença é um ato de vontade. Pronto. Está explicado porque Kelsen é um decisionista. A sentença é norma. E por isso seu positivismo é normativista.
Mas não são somente os “adeptos” da parte do andar de baixo da Teoria Pura do Direito que compreendem deste modo. Todos os axiologistas ou voluntaristas, que pensam que o positivismo é apenas o velho exegetismo, de um modo ou de outro acabam caindo nessa falácia relativista. Afinal, se o direito não é igual à lei, quem vai dizer o que é o direito é o juiz (ou o tribunal). Amarras para isso? Ora, lance-se mão da grande invenção contemporânea, a ponderação. Ou uma metodologia qualquer. E, pronto. Lá está um “pós-positivista” talhado à machado (não de Assis).
Aqui, antes de tudo, quero apenas replicar: disse tudo isso para afirmar minha posição, no sentido de que “só há interpretações porque há fatos”. Ou seja, sou antirrelativista. Da cepa.
O grau zero e o encobrimento de sentidoIntroduzi essa temática para falar de várias coisas. Mas, antes de entrar nas “várias coisas”, lembro da crítica mordaz feita por Orwell, em seu 1984 (escrito em 1948), em que o Ministério da Guerra era chamado de Ministério da Paz, o da Fome chamava-se da Fartura (e assim por diante). Era a novilíngua. A língua do poder, a linguagem politicamente correta. Isso se repete em outro livro de Orwell, A Revolução dos Bichos. Ali também os animais tem uma nova linguagem para tratar das coisas.
Esse grau zero é muito comum nos tempos de fragmentação “pós-moderna”, em que não há mais fundamento(s). Digo algo porque digo. E pronto. E isso valerá se tenho o lugar da fala. Se tenho o Skeptron (na Ilíada, o sujeito só pode falar da guerra se receber o Skeptron; no livro Lord of the Flies, os meninos repetem esse ritual, só podendo falar quem receber a concha), posso falar e, fundamentalmente, nominar. E posso até neonominar. Posso trocar o nome das coisas. Afinal, “fatos não há; só há interpretações”. A vontade do poder (Wille zur Macht), que Heidegger denominou de “O último princípio epocal da modernidade”. Manejado atualmente, produz algum estrago. E não é só no direito.
Mas, de forma consciente ou inconsciente — a questão da vontade aqui não importa, o fato é que, quando somos atirados no rio da história, a impossibilidade de recuperarmos todo o sentido produzido em tempos anteriores, algo que decorre de nossa finitude, acaba necessariamente por nos levar a um fenômeno que podemos nomear de “encobrimento do sentido”. Questões triviais explicam isso. É o que veremos a seguir.
A históriaA Folha de S.Paulo de 10 de fevereiro 2013 denuncia livros escolares (História do Brasil – Império e República e Quinhentos Anos de História do Brasil) utilizados em escolas militares, em que o golpe militar de 1964 é mostrado como uma “revolução” feita “por grupos moderados e respeitadores da lei e da ordem”. Ora, se fossem respeitadores da lei, não deveriam ter respeitado a Constituição? Patético. Outro erro é dizer que Castello Branco foi eleito pelo Congresso, como se houvesse sido declarada a vacância do cargo. Com relação à Guerrilha do Araguaia, não há uma linha sobre os desaparecimentos. Enfim, são exemplos de “grau zero”. A história é aquilo que “eu quero que ela seja”. Afinal, fatos não existem; o que existe são meras interpretações... Há pouco tempo, no Rio Grande do Sul, um sujeito escreveu uma porção de livros negando o holocausto. O STF, acertadamente, condenou-o por crime de racismo.
O cotidianoNo cotidiano é comum ver a publicidade maquiando “fatos”, redefinindo-os ao bel prazer dos intérpretes. A linguagem do politicamente correto é um bom exemplo. O sujeito que é careca é chamado de “indivíduo destituído de cobertura capilar”. Ascensorista vira “assessor vertical”. Motorista é oficial de transportes. Professor é trabalhador da educação. E trabalhador se transforma em “colaborador”. Por isso as seguidas tentativas de reescrever textos clássicos, como os de Monteiro Lobato. Aluno passa a ser “consumidor”. A aula vira “produto”. Já não se reforma um túnel; faz-se a “revitalização” (argh!). Como “fatos não há; só há interpretações”, tentaram criar uma imagem positiva do dono da boate Kiss. Como se fosse possível na vida real repetir o personagem de Robert de Niro no filme Mera Coincidência, que era um “maquiador” de fatos — por exemplo, no filme, para encobrir um assédio sexual a uma menor praticada pelo presidente dos EUA no Salão Oval, o cleaner de Niro cria uma guerra ficta contra a Albânia. Genial, não? Afinal, se tudo é relativo...
O direitoNo direito, o relativismo é a regra. Diz de boca cheia: “Não há verdades”. Cada um diz o “que pensa”, segundo sua interpretação. “O juiz boca da lei morreu”, dizem os jovens neopentecostais do direito. E eu pergunto: e no lugar deles o que colocam? “O juiz dono da lei?” Esse faz o que quer com o sentido da lei.
Com o relativismo, cria-se um grau zero de sentido: os sentidos das palavras ficam líquidos, fugidios. Anêmicos. A palavra “necessitados” — como veremos na sequencia — se transforma em seu contrário. Com esse “grau zero de sentido”, é possível fazer qualquer coisa. Algo como o cinema novo (ao contrário do que dizia Glauber Rocha – uma câmera na mão e uma ideia na cabeça —, tem-se “um manual ou livro simplificador na mão e nenhuma ideia na cabeça”). E tudo pode ser judicializado. Um aluno quer escrever sobre Jesus e os presos. O professor lhe diz que isso não é apropriado para uma monografia. E o que faz o aluno? Ingressa em juízo. Ainda bem que o Poder Judiciário barrou a pretensão. O aluno acreditou mesmo que “tudo é relativo”!
Na trilha do niilismo/relativismo, no Rio Grande do Sul uma mãe queria que um pai fosse obrigado a visitar os filhos sob pena de multa de R$ 2 mil por não visita. Corretamente, a 8ª Câmara Cível do TJ-RS rechaçou a pretensão. Ou seja, o TJ gaúcho não embarcou nessa novilíngua do politicamente correto.
Mas, há bem mais coisas. Já veremos.
“Querer o bem com demais força”Há uma passagem em Grande Sertão: Veredas, na qual Guimarães Rosa, pela boca de Riobaldo, diz o seguinte: “querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal por principiar.” Absolutamente genial! A lógica diz muita coisa aqui. Os excessos no desejo do bem, da vida boa, pode levar à sua total inversão, tornando-se um mal desejo.
Mas será que é só isso? Por certo que não. Sabemos que Grande Sertão:Veredas é uma teodicéia; uma busca pela prova da existência de Deus e, consequentemente, do diabo. Se estudarmos filosofia medieval, veremos que Duns Escoto, um importante nominalista, escreveu em uma de suas obras sobre a vontade e a sua busca. Perguntava-se: a vontade, entendida nos termos vigentes à época, deve buscar o justo ou o meramente útil? A resposta de Duns Escoto passava pela afirmação da busca pelo justo. Mas não “a todo o custo”. Explicava ele o “desvio” a que pode incorrer a vontade quando busca cegamente o justo. O Exemplo trazido pelo filósofo é o da “queda de Lúcifer”. Para Duns Escoto, a queda de Lúcifer ocorreu exatamente por isso, por um desejo descomedido para encontrar o bem. Ele deseja de forma descomedida ou exagerada o bem para alguém que ele amava ou que ele queria bem. Eis que o sentido se mostra, agora, des-coberto.
Essa é, portanto, uma situação interessante. Nossa relação com a história — com as pirâmides do espírito — pode ora encobrir, ora descobrir o sentido. É um jogo binário ao qual todas as disciplinas hermenêuticas estão sujeitadas. O direito, evidentemente, não fica fora disso.
Com efeito, vejamos o que acontece com recente notícia veiculada sobre a Defensoria pública do Estado de Mato Grosso. Segundo consta, os defensores daquele estado ajuizaram uma Ação Civil Pública em face de empresas de telecomunicações – entre elas, NET, Sky e Claro – visando a impedir (obrigação de não fazer) que elas cobrassem pela instalação do chamado “ponto extra” nas residências dos respectivos usuários. Alguém diria: belo gesto. Boníssima intenção.
No entanto, a principal questão, penso eu, não passa pela juridicidade ou não da cobrança do ponto extra (ou de qualquer eletrodoméstico ou similar que a classe média adquira). Posso considerar, por vários motivos, a cobrança injusta ou até mesmo ilegal e, como particular, posso buscar os meios adequados para fazer valer a minha pretensão.
Na verdade, devemos perguntar por outro aspecto do problema: a Defensoria é parte legítima para propor a referida ACP? Alguém poderia vir com uma pronta resposta, a partir da legislação aplicável ao caso, e responder: sim, a lei autoriza que a Defensoria pública seja parte autora em ACPs. Logo veremos isso.
O que é “necessitado”?Vamos avançar, quem sabe começando a discussão por outro diploma normativo, por exemplo... a Constituição? Nos termos do artigo 134 da CF a Defensoria Pública prestará orientação jurídica e defesa, em todos os graus, dos necessitados. Note-se a palavra empregada pelo texto: necessitados. Já o artigo 5o, inciso LXXIV, afirma que o Estado prestará assistência jurídica — privilegiadamente através das defensorias — aos que comprovarem insuficiência de recursos. Que outra leitura podemos fazer desse texto: “LXXIV — o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”? Tem de provar. Portanto, “necessitados” não é um conceito qualquer (Gadamer diz: "se queres dizer algo sobre um texto, deixe primeiro que o texto te diga algo!). Não é relativo. Não há niilismo que salve. Há que provar. Ou seja: o Estado somente prestará assistência judiciária gratuita a quem comprovar ser hipossuficiente. Para os demais o Estado não garante essa assistência. Fosse eu um exegeta do século XIX, invocaria o in claris cessat interpretatio...! Ou ainda adágios rasos como “não há palavras inúteis na lei”.
Assim, por uma questão de lógica elementar e de hermenêutica mesmo para iniciantes, tem-se que “se a CF diz que a Defensoria defende os necessitados, não pode defender os não necessitados”. Se eu quisesse ir mais fundo na questão, poderia dizer que não estamos em uma idealista/idealizada (não sei se seria bom ou ruim), em que, utopicamente, não haveria advogados privados. Logo, se jovens estudam direito, pagam para estudar nas mais de mil faculdades de direito de nossa Terra de Vera e Santa Cruz, não se lhes pode tirar o “emprego” de advogar para aqueles que a Constituição não incluiu como beneficiários da defesa gratuita feita pela Defensoria: a-valorosa-categoria-dos-não-necessitados. Ou seja, não quero ser um “originalista” (já me acusaram disso), mas onde está escrito “necessitados”, penso que devemos ler... “necessitados”, também denominados pós-modernamente de hipossuficientes (ou não privilegiados, para usar uma expressão em um voto do STF sobre a matéria).
Não estou descobrindo nada de novo, mas sigo a linha que o STF adotou quando dos julgamentos das ADIs 2903 e 3022 (também ADI 558-MC/RJ; RESP 912849-RS; AC 2008.70.00.014882-0/PR). Bem sei que há uma lei posterior às ADIs, dando legitimidade para a Defensoria Pública propor ACPs. Pois é nisso que reside o problema. Por isso, há uma ADI tramitando na Suprema Corte. E sei também que há uma Repercussão Geral já aceita (ARE 690838, relatada pelo ministro Dias Toffoli) em dezembro de 2012, portanto, bem recentemente. O processo chegou ao Supremo porque o município de Belo Horizonte recorreu de decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que reconheceu a legitimidade da Defensoria para propor ação civil pública na defesa de interesses e direitos difusos. Segundo a decisão do TJ-MG, a própria natureza dos direitos difusos, previstos no inciso I do parágrafo único do artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), torna “impraticável” que a Defensoria Pública tenha de demonstrar a hipossuficiência (indivíduo sem recursos para pagar um advogado particular) de cada pessoa envolvida na demanda para legitimar sua atuação. De acordo com o TJ-MG, em caso de defesa de interesses difusos (aqueles que pertencem a um grupo, classe ou categoria indeterminável de pessoas reunidas entre si pela mesma situação de fato), é “impossível individualizar os titulares dos direitos pleiteados”.
Pronto. Esse é o busílis da questão. Teria o TJ-MG razão ao dizer que, como é impossível provar a hipossuficiência de cada pessoa, logo, também os não necessitados podem vir a ser beneficiados? Ou teria razão o município de Belo Horizonte, que diz ser impossível provar quem é e quem não é hipossuficiente, é que a Defensoria não poderia ajuizar ACP? Mais: alega o município que, pelo fato de a CF falar em “necessitados”, a Defensoria não tem legitimidade para pleitear direitos que são difusos.
Chamo a atenção também para a matéria da ConJur, que trata de expediente que tramita no Conselho Nacional do Ministério Público (Defensoria não pode extrapolar funções institucionais). No expediente, consta manifestação do conselheiro Almino Afonso, observando que “há casos de membros da Defensoria Pública desempenhando o papel do MP não só em Minas, mas em todo o país”. O relator afirmou ainda que, além da insegurança jurídica provocada pela sobreposição de atividades, resta o “prejuízo ao atendimento individual e ao acesso à Justiça pela população desassistida”. Sem maior juízo de valor, alguma coisa está acontecendo, pois não? Não é implicância minha, por favor, mas vejam este caso: sempre achei que um cidadão — mesmo alguém tido por contraventor da lei — somente deve desocupar sua casa por ordem judicial. Pois descubro que no Tocantins, a Defensoria inventou a “Notificação para desocupação”. O que seria isto? Pior: como o cidadão — no caso em pauta, o marido acusado por delito da Lei Maria da Penha — é pobre, tem-se que ele, ao mesmo tempo em que é “tirado” da casa pela “notificação” (que ele cumpriu), na medida em que é hipossuficiente, será, inexoravelmente, defendido pela mesma Defensoria... Os leitores percebem o que quero dizer? Essa questão se complica mais ainda quando a Defensoria atua, em alguns casos, como assistente (de acusação) da vítima. Nesse sentido, temos de discutir coisas como ocorrem (ou ocorreram) em alguns municípios em que, antes de a Defensoria colocar um defensor para o acusado em casos da Lei Maria da Penha, destina(va) defensor para funcionar como assistente de acusação da mulher-vítima.
Ainda: o que dizer de uma ação (AP Cível 95.0134956-0/DF – TRF 1ª Região) para a defesa do direito de contribuintes do Imposto de Importação de automóveis?
Como estudioso da Constituição, penso que a resposta está, digamos assim, na sua “letra” (de novo, aceito o risco de ser chamado de “originalista”). Qual é o sentido que se projeta a partir do desenho institucional traçado pela Constituição para essa importantíssima Instituição chamada Defensoria? Cabe-lhe o assessoramento jurídico e a eventual defesa dos... necessitados. E que, conforme manda a Constituição, comprovem insuficiência de recursos. Claro, para justificar os gastos que o Estado tem com a manutenção do aparato que compõe a estrutura das defensorias, deve haver uma delimitação de sua atuação. Delimitação quer dizer: atuará de acordo com o que a Constituição estabeleceu como objeto de sua atuação: os necessitados que comprovem a hipossuficiência (nesse sentido, pode-se afirmar, inclusive, que há uma espécie de presunção, não de hipossuficiência, mas, ao contrário, uma vez que a Carta manda comprovar; fosse o contrário, provavelmente a Constituição teria invertido esse ônus, determinando, textualmente, que o Estado é que deveria provar o estado de não hipossuficiência). Desculpem-me por ser quase-tautológico.
A “viúva” e a eficiênciaHá que se ter claro que essa questão provém, inclusive, de uma necessidade de otimização da ação estatal: gente demais cuidando de um mesmo conjunto de atividades pode dar muito errado (lembrem-se do que disse Guimarães Rosa: querer demais o bem...). Eis que, seria de se perguntar, o que justificaria a movimentação de todo aparato da Defensoria do Estado do Mato Grosso para defender os usuários dos serviços daquelas empresas que, ao que consta, não atingem — primordialmente — os necessitados. Muito pelo contrário, em um país como o nosso, serviços de TV a cabo são quase que privativos da classe média. Talvez hoje, diante do novo milagre econômico — e que bom que estejamos vivendo isso —, também a classe média-baixa tenha acesso a esse tipo de serviço. Mas, de qualquer modo, convenhamos: alguém que contrata esse tipo de serviço e que possui mais de um televisor em sua residência não se enquadra, exatamente, nos limites semânticos da palavra “necessitados” (ou de hipossuficiente ou de não privilegiado). A menos que tenhamos como certo dizer que “o conceito de necessitados é aquilo que cada um disser que é”.
Alguém poderia dizer: mas isso é uma ofensa aos direitos do consumidor. Você é um conservador! Está contra o CDC etc. E, com certeza, a maioria dos moradores da cidade beneficiada dirá que a Defensoria agiu bem ao ingressar com a referida ação! Certo, certo... e certo. Mas, eis então que seria de se perguntar: o tal Código de Defesa do Consumidor não exige que haja, em cada Estado da Federação, uma delegacia e uma promotoria especializadas na apuração de infrações de consumo? O Ministério Público é, pela Constituição, parte legítima para propor ACP. Então, pelo “princípio” da eficiência —que faz parte da Constituição, posto lá por emenda constitucional —, por que a combalida "viúva" deve pagar duas instituições para fazer a mesma coisa?
É isso que quero discutir. Por que o Estado deve pagar duas instituições para fazer a mesma coisa e, pior, ficarem disputando quem melhor defenderá os pobres (ou até os não pobres)? Até arriscaria perguntar: por que razão o MP não fez ação civil nesse sentido? Claro que, fosse eu membro do MP do Mato Grosso, responderia: não fiz provavelmente porque há outras coisas mais importantes a fazer no Estado do que defender possuidores de mais de uma TV e que tenham pontos extras em suas casas”. Em um país em que milhões ainda não foram, sequer, inseridos no mercado de consumo e em que direitos sociais básicos como habitação, salubridade, transporte, educação e saúde ainda capengam, essa resposta seria bastante acertada. Provavelmente me dariam razão os habitantes de Cuiabá. Parece-me que são questões privadas que devem ser tratadas por cada morador que possui mais de uma TV. Aliás — e vou aqui fazer (mais) uma defesa dos advogados que tem seus escritórios espalhados por todo o Brasil —, para o que, então, serve tanta gente a se formar nas faculdades? Serão eles, no futuro, todos juízes, promotores, defensores, delegados, procuradores do Estado, da União, escrivães etc. —espero não esquecer nenhuma profissão e também nem estou hierarquizando? Quem (ainda) quer ser advogado “privado”?
A colonização do mundo da vidaTenho isso muito claro — e uma pitada de liberalismo às vezes faz bem: o sujeito que tem várias TVs, ao meu sentir, em um país carente de recursos, se quiser vá a juízo disputar se deve ou não pagar os ponto extras da TV a cabo... Mas que vá contratando o seu próprio advogado. E pagando-o. Por que temos que estatizar um montão de coisas que são de âmbito privado? Aliás, no fundo, paradoxalmente, há algumas ações que enfraquecem a cidadania. As pessoas já não reivindicam. Correm a juízo. Nem mesmo os vereadores legislam ou organizam a sociedade. Qualquer problema, correm ao MP e à Defensoria que, por sua vez, entrarão em juízo. Ao invés de fortalecermos a cidadania, fortalecendo as organizações de pessoas, substituímos elas... ingressando com ações. Espero que compreendam o que quero dizer. Não devemos terceirizar a cidadania a esse ponto. Não se deve tutelar as pessoas. E pessoas tuteladas não reivindicam. Por isso um autor do porte de Habermas faz uma crítica ao direito quando ele “coloniza o mundo da vida”. Substituir o cidadão — mormente em questiúnculas privadas — é colonizar seus direitos. E sua vida.
Lembro, por outro lado, que, na ADI 2.903, o STF declarou inconstitucional um dispositivo de lei estadual que determinava que a Defensoria defenderia os funcionários públicos acusados de processos administrativos e judicias. O STF disse que havia um problema fulcral na Lei: o fato de que, no meio dos funcionários públicos, por certo, estariam inúmeros que não se enquadravam no conceito de hipossuficientes (muitos, provavelmente, proprietários de várias TVs e assinantes de TV a cabo, com pontos extras, se me entendem a metaforização). Ou seja, os funcionários públicos do referido Estado federado que não comprovassem ser hipossuficientes, deveriam pagar seu próprio advogado. Simples, pois. E correto.
MP e Defensoria: stakeholdersDizendo de outro modo e resumindo. Desse jeito o prejuízo maior será mesmo do próprio consumidor que verá seu dinheiro ser gasto excessivamente duas vezes: para pagar o ponto extra e para pagar a Defensoria e o MP para atuarem na mesma esfera de competência. Minha proposta: vamos sentar em torno de uma mesa e vamos definir quem faz o que. Urgentemente. Parênteses: poderia falar aqui de outras situações (e há inúmeras). De todo modo, tratarei de outros exemplos em outra coluna. Minha intenção é aprofundar o debate e fortalecer o diálogo com – e entre - as Instituições envolvidas.
Portanto, na esteira do que vem ocorrendo em vários lugares do mundo e é objeto de profundas pesquisas aqui no Brasil, proponho um diálogo institucional (por exemplo, essa questão assume relevância em países como Nova Zelândia, Canadá, em que a “divisão de poderes” assume novas perspectivas, para além da judicialização). Não são instituições adversárias, são stakeholders.
Em suma, faço essas reflexões com toda a lhaneza. A Defensoria é instituição importantíssima. O Ministério Público também. Despiciendo dizer isso. Mas está na hora de discutirmos atribuições e competências, para que a população (necessitados e não necessitados) não tenha que pagar muita gente para fazer a mesma coisa. Por isso, o judiciário julga, o MP... bem, assim por diante. Já deveríamos saber o resto da frase. Mas parece que ainda não sabemos.
Numa palavra: essa discussão ocorre em um espaço no qual o sentido não pode ficar encoberto. Não há grau zero de sentido. Ou é, ou não é. Contra o niilismo de que “fatos não há, só há interpretações”, ouso dizer que “só há interpretações porque há fatos”. Portanto, estes “não são qualquer coisa”.
De outra banda, não basta simplesmente querer fazer o bem. Sempre é bom lembrar: “Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal por principiar...” Bem, esse Guimarães Rosa sabia um pouco das coisas!
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 21 de fevereiro de 2013

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

CONSULTOR APONTA 35 PRÁTICAS DE "ESTRELAS DA ADVOCACIA"

O consultor de marketing Trey Ryder tornou-se um profissional muito requisitado depois que encontrou seu próprio nicho: a advocacia. Ele desenvolveu a teoria de que o marketing para advogados deve se basear na "educação" do cliente — e não em esforços de vendas, como é comum em outras atividades.
Por "educação", ele entende: o advogado deve oferecer a seus clientes e possíveis clientes uma visão jurídica de seus empreendimentos e de sua vida; ensinar como se manter longe dos problemas; quando há problemas, explicar sua extensão, suas consequências e as soluções possíveis; instruí-los sobre os conhecimentos, as qualificações, a experiência e a competência dele e de sua firma.
Em outras palavras, o advogado deve, de certa forma, exercer o papel de um consultor, com capacidade para identificar problemas e apresentar soluções. Isso feito, qualquer esforço de venda de serviços jurídicos se torna desnecessário. O cliente "se vende" aos serviços.
O consultor estudou seus clientes e outros advogados que descreve como "estrelas da advocacia". Desse estudo, produziu uma lista de 35 ideias de estratégias de marketing para advogados. Na verdade, boa parte dessas ideias são hábitos que os advogados adquirem com a prática — e, depois de absorvidas, não exigem qualquer esforço de marketing. Outras são realmente técnicas de marketing, mas nem todas são praticadas por todos os advogados bem-sucedidos. Cada um pratica o que lhe convém.
As "estrelas da advocacia" tinham em comum algumas dessa características, segundo Trey Ryder. Conheça os hábitos, os comportamentos e as técnicas de marketing que o consultor identificou entre os advogados estudados e avalie o que pode ser útil em seu esforço para desenvolver sua prática ou sua firma de advocacia:
1. A prioridade número um é o marketing, a chave do sucesso. Contratam advogados altamente qualificados para se encarregar do trabalho jurídico, para que possam focar sua atenção no desenvolvimento de relacionamentos e no trabalho de conquistar os clientes que querem.
2. Sabem que nada é mais importante de que sua credibilidade. Evitam, portanto, o marketing baseado em vendas, o que lhe atribuiria o papel de vendedor. "Vender" serviços jurídicos mina a credibilidade e leva as pessoas a pensar se o "vendedor" realmente merece confiança. Em vez disso, preferem o marketing baseado na "educação" dos clientes. Esse tipo de marketing atrai clientes, porque eles admiram os conhecimentos, as qualificações, a experiência e a capacidade de discernimento do advogado.
3. Conquistam a posição número um em seu nicho. A "lei da liderança" estabelece que é melhor ser o número um do que ser o melhor. Há uma diferença. Todos sabem que Charles Lindbergh foi a primeira pessoa a fazer um voo solo sobre o Oceano Atlântico. Ninguém sabe quem foi o segundo ou quem o fez da melhor forma. Sob o ponto de vista de marketing, ocupar o segundo lugar não é muito diferente de ocupar o terceiro, o quarto ou o quinto. Para se obter a vantagem máxima, em termos de marketing, é preciso ocupar a primeira posição em seu nicho.
4. Se não conseguem ocupar a primeira posição em seu nicho, criam um novo nicho, no qual pode ocupar a posição número um. Você sabe quem foi a terceira pessoa a cruzar o Oceano Atlântico em voo solo? Se não sabe quem foi a segunda, você pode assumir que ninguém ouviu falar da terceira. Mas, muita gente ouviu. Foi Amelia Earhart. As pessoas se lembram dela porque ela foi a primeira mulher a fazer essa proeza. Portanto, quem não pode ser primeiro em uma categoria, cria uma nova categoria.
5. Tornam-se autoridades em uma área do Direito ou em um assunto, em todo o país. Sabem que, quando um possível cliente vê o advogado como uma autoridade em sua área de atuação, sente-se atraído a negociar com ele tanto em nível consciente, quanto inconsciente. Quanto mais ampliam a área geográfica de reconhecimento, mais os clientes valorizam seus conhecimentos, qualificações e experiência. Assim, procuram focar seus esforços de marketing em uma área geográfica cada vez maior.
6. Tomam partido do "mistério da distância". Sabem que, de quanto mais longe vem um cliente, mais isso significa que seus conhecimentos, qualificação e experiência o sensibilizam. Há uma expressão que define esse conceito: "você nunca é um especialista apenas em sua cidade". Para o verdadeiro especialista, não há fronteiras geográficas. Quanto mais amplo for o mercado, maiores serão as oportunidades de trabalhar em grandes casos.
7. Criam uma mensagem educativa única. Sabem que a educação é a maior e mais pura forma de marketing. Sua mensagem educativa contém uma explicação do problema do possível cliente, sua extensão e suas consequências, bem como uma descrição da capacidade ou qualificação do advogado (ou da firma), um relato de casos de sucesso com outros clientes e recomendações de medidas que podem ajudar o possível cliente a resolver seu problema e atingir seu objetivo. Quanto mais bem explicadas forem as qualificações e a experiência na mensagem, mais probabilidade haverá de resultar em contrato de serviços jurídicos.
8. Criam seu próprio método operacional e promovem sua singularidade no meio jurídico. Não há duas pessoas no mundo com a mesma coleção de conhecimentos, qualificações e experiência. Assim, duas pessoas não resolvem um problema jurídico da mesma maneira. Isso posto, desenvolve um método único de ajudar as pessoas a resolver seus problemas ou cumprir objetivos. Um método único de solucionar problemas jurídicos pode ter repercussão na comunidade jurídica e na imprensa.
9. Produzem material informativo para enviar suas mensagens de marketing a possíveis clientes, onde quer que estejam. Assim, podem colocar ideias de solução nas mãos do cliente, no momento em que ele menciona um problema. Muitos clientes em potencial ligam para o escritório, quando descobrem que o advogado oferece informações gratuitamente. Com esse material em mãos, os clientes dificilmente chamam outros advogados. Eles oferecem seu material informativo através de cartas, boletins, blogs e sites na internet.
10. Estabelecem uma presença na internet. Fazem com que sua mensagem educativa se torne facilmente encontrável por possíveis clientes, por colocá-la em um site. Sabem que o alcance da internet é tão amplo e o seu uso tão variado, que o "quebra-cabeça" de marketing não fica completo sem essa ferramenta. A internet vem se tornando, rapidamente, uma pedra fundamental do marketing das firmas de advocacia. A maioria das pessoas ainda busca advogados por recomendação, mas muitas pesquisam por advogados na internet. Advogados de outras cidades também podem buscar por um correspondente local na internet.
11. Transmitem sua mensagem em várias formas, para que possíveis clientes possam escolher a que lhe parecer mais adequada. Possíveis clientes podem comparecer a palestras ou oficinas (workshops) oferecidas por eles; podem assinar o boletim impresso ou eletrônico, na internet, que são distribuídos semanalmente; podem ler seus blogs ou ouvir fitas gravadas. Criam uma mensagem forte, que finca raízes e se desenvolve como o tronco de uma árvore frutífera. E a mensagem se espalha por todos os ramos dessa árvore, sejam eles o site na internet, os blogs, os boletins semanais, os artigos nos jornais, o relacionamento com os jornalistas ou o que for — todos eles dão frutos.
12. São altamente acessíveis. Fornecem a seus clientes e a possíveis clientes seus números de telefone direto do escritório, número do celular, endereço de e-mail, número de fax e do pager, etc. Podem dar aos clientes o número de telefone de casa. Certificam-se de que os clientes vão encontrá-los, quando precisarem, a qualquer tempo, estejam onde estiverem.
13. Prestam serviços aos clientes acima de qualquer comparação. Retornam chamadas que não podem atender rapidamente. Trabalham duro para concluir projetos. Têm um plano 2, para o caso do plano 1 não funcionar, e um plano 3, caso seja necessário. Dão valor à prudência. Contratam equipes de suporte competentes e responsivas. Sempre fazem um esforço maior do que o esperado. Sempre atendem às expectativas dos clientes, por mais complexa que seja a situação. Suas equipes são comprometidas com uma política de resultados, em tempo e dentro do orçamento.
14. Sempre dizem a todos que recebem com satisfação novos clientes e mais trabalho. Alguns advogados levam seus colegas de profissão a pensar que já têm clientes e casos suficientes — ou demais. Assim, não são recomendados pelos colegas. Ao trabalhar para conquistar novos clientes, acreditam que é melhor receber muitas consultas, do que poucas. Deixam claro a seus atuais clientes, a ex-clientes, a possíveis clientes e as suas fontes de recomendação que novos clientes são bem-vindos. Se há um excesso de consultas, escolhem os clientes com os quais quer trabalhar e recomenda os demais a colegas de profissão.
15. Transformam as pessoas em sua lista de mala direta em embaixadores da boa vontade. Cada pessoa na lista de mala direta conhece pelo menos mais duas ou três pessoas que podem precisar dos serviços do advogado. Estimulam as pessoas em sua mala direta a encorajar outras pessoas a ligar para o escritório e solicitar informações — ou seu material educativo.
16. Distribuem boletins (ou newsletters) periodicamente (semanal ou mensal). Procuram manter todas as pessoas (ou empresas) em sua mala direta bem informadas ou atualizadas. O boletim traz: 1) fatos e aconselhamentos sobre a legislação; 2) sumários de casos, descrevendo uma situação e sua resolução; 3) programação de palestras, oficinas e outros eventos; 4) artigos educacionais e comentários sobre legislação nova; 5) endereço do website da firma; 6) perguntas e respostas; 7) fatos sobre o advogado ou sobre a firma; 8) resumo de notícias importantes na imprensa, de preferência com algum comentário do advogado. E sempre mantém suas linhas de comunicação abertas, para obter retornos.
17. Mantêm um programa agressivo de publicidade. A melhor forma de buscar publicidade é a derivada de relações públicas (não de anúncios, que são proibidos). É a publicidade gratuita que resulta de publicação de press releases e artigos nos jornais. Ou de se tornar uma fonte de informações para jornalistas. São atividades normalmente exercidas com a ajuda de serviços de assessoria de imprensa especializados na área jurídica.
18. Promovem seminários, palestras e oficinas para informar clientes e possíveis clientes e também para distribuir seu material educativo. Esses eventos, que são ferramentas de marketing, podem ser feitos em um auditório, por telefone (teleconferência) ou pela Internet (videoconferência). As teleconferências e videoconferência são especialmente úteis para possíveis clientes de outras cidades ou, mesmo, de outros estados, com um custo considerável para comparecer a um evento.
19. Desenvolvem a poderosa capacidade de ouvir. Sempre que um cliente ou um possível cliente os contatam, por qualquer meio, fazem uma pausa no trabalho e dedicam toda sua atenção a ele, até que entendam seu problema e começem a arquitetar uma solução. Por sua atitude, passam ao cliente a mensagem de que cuidar dele e de seu problema é mais importante do que qualquer outra coisa.
20. Cobram honorários acima da média do mercado — muitas vezes, os mais altos. Sabem que uma das formas de possíveis clientes determinarem o valor de um advogado é pelo valor dos honorários que cobra. Sabem também que é melhor ser o advogado mais caro da cidade e ser respeitado por seus conhecimentos, qualificações e experiência, do que ser o mais barato e despertar desconfiança sobre sua capacidade.
21. Valorizam o comportamento, a postura e as atitudes profissionais, nobres e confiantes. Prestam muita atenção em detalhes e até mesmo na questão da aparência. Não querem que clientes possam ver qualquer coisa que reflita descaso ou que fira suas credibilidades. Sabem que os clientes se impressionam com a segurança, a autoconfiança e as convicções do advogado. Clientes podem imaginar, por exemplo, a "figura" do advogado, não diante deles, mas diante de um juiz ou de um desembargador.
22. São simpáticos e amigáveis. Sabem que a chance de ganhar um novo cliente aumenta consideravelmente se houver empatia e se o cliente gostar do advogado. Chamam cada possível cliente pelo nome, sorriem e mantêm contato visual, ao falar com ele; sabem que o contato visual denota honestidade e confiança. Desenvolvem laços de amizade, de confiança e de suporte mútuo que dificilmente podem se quebrar.
23. Realmente respeitam e cuidam dos clientes ou possíveis clientes. Sabem que as pessoas percebem quando um advogado está mais preocupado com o dinheiro, do que com elas. Elas se colocam em uma posição defensiva e passam a oferecer resistência, até quando o advogado tenta oferecer soluções para seus casos. Mas, quando o advogado realmente se importa com elas e com seus problemas, elas sentem isso bem claramente. O bom advogado mantém uma atitude de quem está disposto a resolver a situação apresentada pelo cliente. E isso faz o cliente a confiar nele e se sentir à vontade para discutir seus problemas. Essa é uma razão emocional forte para um cliente contratar um advogado.
24. Mantêm uma atitude positiva, agradecida e cortês. Sempre veem as coisas de uma forma positiva e otimista. Apreciam o sucesso e são gratos a todas as pessoas que o ajudaram em sua empreitada. Expressam, de uma maneira genuína, o refinamento que se espera de uma pessoa altamente educada, de um profissional altamente refinado. É uma pessoa agradável.
25. Mantêm distância de pessoas desonestas, negativas e preguiçosas. Sabem que o negativismo gera negativismo. As atitudes negativas, quando se convive com elas por muito tempo, tornam-se a norma. Preferem dispensar clientes que querem levar vantagem em tudo e clientes que os querem induzir a erro ou a procedimentos que desrespeitam a lei, a lisura profissional ou a ética. Clientes que tentam levar o advogado para o campo da desonestidade não merecem atenção.
26. Nunca usam técnicas de fechamento de vendas de empreendimentos comerciais para pressionar pessoas a contratá-los. Defendem suas boas reputações. Educam os possíveis clientes sobre seus conhecimentos, qualificações e experiência. Mencionam seus sucessos, se for necessário. E enfatizam a importância de se escolher um advogado competente para representá-los. Expressam sua vontade de ajudar, mas jamais pressionam possíveis clientes a tomar uma decisão. Ao contrário, deixam os clientes à vontade, para decidir. Isso leva qualquer cliente a respeitá-lo ainda mais e aumenta a possibilidade de iniciar um relacionamento duradouro.
27. Criam uma rede de empreendedores com mentalidade semelhante. Algumas pessoas nascem para exercer a liderança, outras para seguir um líder. Eles preferem criar uma rede de colegas de profissão e amigos (clientes, entre eles), que compartilham a mesma energia, motivação e determinação. Então, os integrantes da rede se apoiam e encorajam os esforços de cada um, de forma que não sejam inibidos por pessoas que não apreciam seus desejos de sucesso profissional e pessoal.
28. Contratam consultores que os ajudem a alcançar o sucesso. Há tantas coisas a fazer e tantas distrações no caminho dos advogados, que podem levá-los a se distanciar de seus objetivos. Uma espécie de "técnico do sucesso" pode levá-los a identificar o que é bom e o que não é, em meio a tantas atividades. E ajudá-los a se manter no curso do sucesso. Grandes estrelas esportivas dificilmente teriam feito o sucesso que fizeram, sem técnicos para orientá-los e para motivá-los.
29. Trabalham duro, mas valorizam o descanso. A prática da advocacia exige esforços acima da média, se comparada com outras profissões. Assim, para manter a saúde física e mental, esses advogados valorizam o tempo que dedicam ao descanso, aos exercícios físicos, à família, aos amigos, ao entretenimento, às férias e a todas as outras atividades fora do escritório ou dos tribunais. É preciso recarregar as baterias. O merecido descanso melhora o desempenho do profissional e evita que se torne uma pessoa rabugenta, com o tempo.
30. Desenvolvem relacionamentos que vão além da relação advogado/cliente. Sabem que clientes e possíveis clientes são, antes de tudo, pessoas. Sabem que muitos clientes não têm amigos em quem podem confiar e confidenciar seus problemas – a não ser o advogado e, quem sabe, uma ou outra pessoa. Se um cliente quer contar alguma de suas histórias de sucesso, eles as ouvem. Se quer discutir algum assunto fora da área jurídica, eles o fazem com prazer. Às vezes, um cliente precisa simplesmente de alguém que o ouça. E ouvi-lo com atenção pode ser a melhor coisa que um advogado pode fazer por ele, em um determinado dia. Faz parte da vida e da atividade profissional.
31. Formam organizações sem fins lucrativos para atrair clientes. Iniciar uma organização sem fins lucrativos, que atrai muita gente, rende muitos relacionamentos proveitosos e publicidade positiva – e gratuita. Por isso, instituem uma organização e convidam outros advogados, que atuam em áreas diferentes, para integrar o conselho. Convidam também pessoas influentes em sua área de atuação. O advogado, na condição de fundador da organização, é seu guardião. Convida membros do conselho para fazer palestras sobre assuntos de interesse de seu público. Então, envia press releases para a mídia sobre o que foi falado nas palestras e os palestrantes. Quanto mais colocar os holofotes sobre os palestrantes, mais clientes eles irão recomendar ao advogado. Quando precisam de um palestrante sobre assuntos jurídicos, o advogado é o preferido. E eles vão cuidar de colocar os holofotes sobre o advogado.
32. Nuncam para de educar sua audiência. Possíveis clientes, clientes e fontes de recomendação querem acreditar que o advogado tem os conhecimentos, as qualificações e a experiência para justificar os honorários que cobra. Se houver alguma dúvida sobre isso, podem hesitar em recomendar alguém. Por isso, se dedicam a esclarecer as pessoas sobre sua competência, sempre que há uma oportunidade — e sempre de uma forma sutil, inteligente e apropriada, que não se assemelhe de forma alguma a uma atividade de venda. Isso também reforça a sua credibilidade, o que é muito útil para atrair clientes.
33. Compartilham com os colegas de profissão o que aprenderam. Não têm medo de ensinar seus segredos e métodos aos colegas. Ao contrário, oferecem cursos de educação continuada ou promovem seminários para ajudá-los a desenvolver a carreira. Também com essa mesma finalidade, produzem material impresso ou em multimídia. Desfrutam muito a ideia de ser um mentor para outros advogados. Sabem que essa é uma árvore que dá frutos.
34. Fazem o que planejam. Não dormem em cima de planos de marketing e reuniões de gestão de escritório. Identificam os passos de um processo de marketing e entram em ação. Começam a trabalhar neles, um por vez. No início, é possível que alguns erros aconteçam. Aprendem com eles e vão em frente. Entendem que o resultado da ação é mais gratificante do que não ir além do planejamento.
35. Contratam ajuda profissional e aceitam orientações. Alguns advogados se tornam excelentes marqueteiros. Porém, a maioria dos programas de marketing requer mais tempo e energia do que ele pode empenhar. Mais que isso, algumas ferramentas de marketing exigem planejamento cuidadoso, atenção esmerada a detalhes e execução precisa. Entendem que mesmo o melhor cavalo de corrida precisa de um jóquei competente, para estimulá-lo e conduzi-lo até a linha final, em meio a concorrentes fortes. Sabem que é preciso ter a ajuda de alguém que entende bem o mercado. Mantêm esse relacionamento confidencial, mas aceita toda ajuda e orientação que pode vir de um especialista qualificado em marketing para advogados — desde que sua filosofia de marketing seja consistente com a sua e respeite os ditames da profissão.
João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
Revista Consultor Jurídico, 30 de janeiro de 2013

ARGUMENTAÇÃO NOS TRIBUNAIS DEVE SER FEITA POR ETAPAS

 
Demóstenes, na Grécia antiga, e Cícero, na Roma antiga, tiveram traços profissionais em comum. Ambos foram advogados competentes, políticos e estadistas consagrados e, acima de tudo, oradores brilhantes — estão entre os melhores da história. A oratória de Demóstenes talvez fosse mais admirada. Levava a audiência ao entusiasmo. A de Cícero talvez fosse mais eficiente. Levava o público à ação. Por isso, Cícero é o melhor exemplo de oratória para os advogados de todos os tempos, diz o advogado, professor e escritor Paul Sandler.
A oratória dos advogados e promotores, seja em sustentações orais, alegações iniciais ou finais deve ser talhada para atender, é óbvio, o resultado final desejado. Assim devem ser todos os argumentos apresentados em um tribunal, seja para juízes, ministros ou jurados, nas diversas etapas de um julgamento. Eles devem seguir o objetivo que o advogado ou promotor tem em mente. Todo o resto é dispensável, enfatiza Sandler.
No entanto, é importante lembrar: a argumentação de advogados e promotores não deve se basear na teoria da lógica, em que uma série de premissas são organizadas para se chegar a uma conclusão. O objetivo da argumentação em um tribunal não é chegar — ou levar a audiência — a conclusão alguma. É persuadir, diz o especialista, para levar a audiência a uma ação: decidir a favor do caso do profissional.
"Esse propósito deve orientar a preparação e a apresentação de todos os argumentos do advogado ou promotor no tribunal", afirma.
Por isso, antes de preparar a argumentação, o profissional precisa definir com clareza o resultado que quer obter. Muitas vezes, o objetivo pode ser descrito em uma frase óbvia: "Ora, obter uma sentença favorável". Nesse caso, a próxima etapa será definir a linha de argumentação que vai levar à decisão favorável. É um plano de ação que deve orientar toda a argumentação e todas as inquirições em qualquer julgamento.
O que ocorre é que, muitas vezes, definir o objetivo é uma tarefa mais complexa. Há casos em que o objetivo final da argumentação só vem depois de vencidos objetivos intermediários. Por exemplo: em uma ação judicial movida contra um motorista embriagado, que atropelou uma pessoa, o objetivo final não é necessariamente provar que ele é culpado. É conseguir uma indenização substancial por danos.
Nesse caso, poderá haver diversas etapas na linha de argumentação. Primeiro, é preciso estabelecer que o motorista atropelou o demandante. É uma etapa. Depois, que ele estava embriagado e que houve negligência. Essa é a etapa que estabelece a culpa ou responsabilidade do motorista. A seguir, é preciso demonstrar que a direção negligente do motorista provocou um dano físico e, quem sabe, danos morais. Ela impediu o demandante de trabalhar por dois anos e desestabilizou toda a sua vida e de sua família.

A parte contrária também tem um objetivo, que não é necessariamente provar a inocência do motorista. Mas também é importante conseguir uma sentença tão favorável quanto possível, o que é um alvo. Mas há mais uma finalidade: contestar, por meio de provas e argumentação, que o valor pedido pelo demandante como indenização está totalmente fora de proporções.
Assim, além de definir o objetivo final, é preciso definir os objetivos intermediários — as etapas do destino. "Se você não sabe aonde está indo, pode acabar em um destino inesperado", é uma frase muito citada de Casey Stengel, um antigo técnico de beisebol conhecido como "Velho Professor".
Para Paul Sandler, a melhor analogia para a preparação de uma argumentação com vários objetivos é a de um jogo de golfe com determinado número de buracos, em que o jogador vai fazendo jogadas e vencendo obstáculos por etapas, chegando a um buraco de cada vez. Mas nem passa pela cabeça do jogador fazer qualquer lance que o afaste do caminho para o último buraco, seu objetivo final.

João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
Revista Consultor Jurídico, 20 de fevereiro de 2013

PREVIDÊNCIA COMPLEMENTAR CABE À JUSTIÇA COMUM

Por maioria de votos, o Supremo Tribunal Federal decidiu nesta quarta-feira (20/2) que cabe à Justiça comum julgar processos decorrentes de contrato de previdência complementar privada. A decisão ocorreu em dois Recursos Extraordinários, um do fundo Petros, da Petrobras, e outro do Santander-Banespa. A matéria teve repercussão geral reconhecida e, portanto, passa a valer para todos os processos semelhantes que tramitam nas diversas instâncias do Poder Judiciário.
O Plenário também decidiu modular os efeitos dessa decisão e definiu que permanecerão na Justiça do Trabalho todos os processos que já tiverem sentença de mérito julgada até esta quarta. Dessa forma, todos os demais processos que tramitam na Justiça Trabalhista, mas ainda não tenham sentença de mérito, a partir de agora deverão ser remetidos à Justiça Comum. O ministro Marco Aurélio foi o único divergente nesse ponto, porque votou contra a modulação.
Tese vencedoraA tese vencedora foi aberta pela ministra Ellen Gracie (aposentada) ainda em 2010. Como relatora do Recurso do fundo Petros, a ministra entendeu que a competência para analisar a matéria é da Justiça Comum em razão da inexistência de relação trabalhista entre o beneficiário e a entidade fechada de previdência complementar.
De acordo com ela, a competência não pode ser definida levando-se em consideração o contrato de trabalho já extinto como no caso deste Recurso Extraordinário. Por essa razão, a ministra concluiu que a relação entre o associado e a entidade de previdência privada não é trabalhista, estando disciplinada no regulamento das instituições.
O Recurso foi interposto pela Petros contra acórdão do Tribunal Superior do Trabalho que reconheceu a competência da Justiça Trabalhista para julgar causas envolvendo complementação de aposentadoria por entidades de previdência privada. A Petros alegou que foram violados os artigos 114 e 122, parágrafo 2º, da Constituição Federal, tendo em vista que a competência para julgar a causa seria da Justiça Comum, pois a relação entre o fundo fechado de previdência complementar e o beneficiário não seria trabalhista.
Após o voto da ministra Ellen Gracie, o ministro Dias Toffoli manifestou-se no mesmo sentido do entendimento da relatora. Na sessão desta quarta, reafirmando seu voto, o ministro citou a Emenda Constitucional 20/1998, que deu nova redação ao parágrafo 2º do artigo 202 da Constituição Federal.
De acordo com essa regra, “as contribuições do empregador, os benefícios e as condições contratuais previstas nos estatutos e regulamentos e planos de benefícios das entidades de previdência privada não integram o contrato de trabalho dos participantes”.
Dias Toffoli também destacou que a proposta trazida pela ministra Ellen Gracie “dá solução ao problema”, porque outra alternativa manteria o critério de analisar se haveria ou não, em cada processo, relação de contrato de trabalho. Esse mesmo entendimento foi acompanhado pelos ministros Luiz Fux, Gilmar Mendes e Celso de Mello. O ministro Marco Aurélio também deu provimento ao recurso, mas por fundamento diverso.
O ministro Gilmar Mendes destacou que, por envolver a questão de competência, a indefinição e insegurança jurídica se projetam sobre a vida das pessoas que buscam a complementação nos casos determinados. "Acompanho o voto da ministra Ellen Gracie reconhecendo a competência da Justiça Comum e também subscrevendo a sua manifestação no que diz respeito à modulação de efeito, exatamente para dar encaminhamento a esses dolorosos casos que dependem, há tantos anos, de definição", afirmou o ministro Gilmar Mendes.
Também ao acompanhar a ministra Ellen Gracie, o decano da corte, ministro Celso de Mello, enfatizou que "é necessário estabelecer um critério objetivo que resolva a crescente insegurança e progressiva incerteza que se estabelece em torno dessa matéria".
Voto-vistaO presidente da corte, ministro Joaquim Barbosa, apresentou seu voto-vista na sessão e acompanhou o posicionamento do ministro Cezar Peluso (aposentado) em voto apresentado em março de 2010, no qual defendia a competência da Justiça do Trabalho para julgar os casos de complementação de aposentadoria no âmbito da previdência privada quando a relação jurídica decorrer do contrato de trabalho. Esse posicionamento ficou vencido e contou também com o voto da ministra Cármen Lúcia. O ministro Peluso era o relator do recurso de autoria do banco Santander-Banespa contra decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Conforme defendeu o ministro Peluso na ocasião do seu voto, caberia ao juiz da causa avaliar se determinados processos iriam tramitar na Justiça do Trabalho ou na Justiça Comum. De acordo com ele, se o processo fosse decorrente de contrato de trabalho, seria de competência da Justiça do Trabalho, mas se a matéria não estivesse relacionada ao contrato de trabalho, a Justiça Comum seria competente para análise do processo.
O ministro Joaquim Barbosa afirmou em seu voto que não vê como “segregar o contrato de previdência privada complementar das relações de direito de trabalho eventualmente existentes entre o indivíduo e o patrocinador, com repercussão no que tange à fixação da Justiça Comum como a competente para o julgamento dos conflitos decorrentes desse tipo de ajustes”.
“Refuto a tese de que o artigo 202, parágrafo 2º, poderia amparar a conclusão de que a Justiça do Trabalho não seria mais competente para decidir as ações que envolvem o pleito de complementação da aposentaria”, afirmou o presidente.
De acordo com a proclamação do julgamento, a maioria dos ministros — 6 votos a 3 — deu provimento ao Recurso do fundo Petros. Por outro lado, negou provimento ao do Santander-Banespa, sendo que o ministro Marco Aurélio foi o único vencido neste último.
ModulaçãoTambém na sessão desta quarta-feira, ao resolver uma questão de ordem, o Plenário do Supremo entendeu necessária a maioria de dois terços dos votos, conforme previsto no artigo 27 da Lei 9.868/1999 (Lei das ADIs), para a modulação dos efeitos de decisões em processos com repercussão geral reconhecida. Portanto, este entendimento formado pela maioria da Corte, quanto à exigência do quórum qualificado nestes casos, foi aplicado no julgamento do fundo Petros e será aplicado a partir de agora em matérias semelhantes.
Cinco ministros — Teori Zavascki, Rosa Weber, Cámen Lúcia, Marco Aurélio, Joaquim Barbosa — consideraram que deve ser cumprido o quórum qualificado para modulação de efeitos em recursos extraordinários com repercussão geral reconhecida. Ficaram vencidos quatro ministros: Luiz Fux, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Celso de Mello, os quais entenderam ser possível a modulação, nesses casos, por maioria absoluta do Tribunal. Com informações da Assessoria de Imprensa do STF.
REs 586.453 e 583.050
Revista Consultor Jurídico, 20 de fevereiro de 2013

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...