domingo, 17 de fevereiro de 2013

INFORMATIVO JURISPRUDENCIAL DO STJ Nº. 0511




Informativo n. 0511
Período: 6 de fevereiro de 2013.


As notas aqui divulgadas foram colhidas nas sessões de julgamento e elaboradas pela Secretaria de Jurisprudência, não consistindo em repositórios oficiais da jurisprudência deste Tribunal.





Corte Especial



DIREITO PROCESSUAL CIVIL. COMPETÊNCIA PARA JULGAR IMPUGNAÇÃO DE DECISÃO DO CJF.


Compete ao STJ analisar a legalidade de decisão tomada em processo administrativo no CJF. De acordo com o art. 105, parágrafo único, da CF, o Conselho da Justiça Federal – CJF é órgão que funciona junto ao STJ e, segundo entendimento consolidado, os atos do Conselho podem ser impugnados originariamente no STJ pela via do mandado de segurança. Essa hipótese difere da impugnação de atos da administração judiciária tomada com base em decisões ou orientações do CJF, situação que não atrai a competência originária do STJ, por não atacar diretamente decisão do Conselho. Nesse panorama, a decisão de primeiro grau que analisa diretamente legalidade de decisão do CJF viola o disposto no art. 1º, § 1º, da Lei n. 8.437/1992, que estabelece ser incabível, “no juízo de primeiro grau, medida cautelar inominada ou a sua liminar, quando impugnado ato de autoridade sujeita, na via de mandado de segurança, à competência originária de tribunal”. Entendimento diverso importaria em possibilidade de que os atos do CJF fossem controlados por seus próprios destinatários. Nessa medida, os atos do CJF, se nulos ou ilegais, devem ser apreciados obrigatoriamente pelo STJ. Precedentes citados: AgRg na Rcl 4.211-SP, DJe 8/10/2010; Rcl 4.298-SP, DJe 6/3/2012, e Rcl 4.190-AL, DJe 14/12/2011. Rcl 3.495-PE, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgada em 17/12/2012.



DIREITO PROCESSUAL PENAL. DENÚNCIA FORMULADA PELO MP ESTADUAL. NECESSIDADE DE RATIFICAÇÃO PELA PGR PARA PROCESSAMENTO NO STJ.


Não é possível o processamento e julgamento no STJ de denúncia originariamente apresentada pelo Ministério Público estadual na Justiça estadual, posteriormente encaminhada a esta corte superior, se a exordial não for ratificada pelo Procurador-Geral da República ou por um dos Subprocuradores-Gerais da República. A partir do momento em que houve modificação de competência para o processo e julgamento do feito, a denúncia oferecida pelo parquet estadual somente poderá ser examinada por esta Corte se for ratificada pelo MPF, órgão que tem legitimidade para atuar perante o STJ, nos termos dos arts. 47, § 1º, e 66 da LC n. 35/1979, dos arts. 61 e 62 do RISTJ e em respeito ao princípio do promotor natural. Precedentes citados: AgRg no Ag 495.934-GO, DJ 3/9/2007, e AgRg na SS 1.700-CE, DJ 14/5/2007. APn 689-BA, Rel. Min. Eliana Calmon, julgada em 17/12/2012.





Primeira Seção



DIREITO ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. DIREITO À NOMEAÇÃO. VAGAS QUE SURGEM DURANTE O PRAZO DE VALIDADE DO CONCURSO PÚBLICO.


O candidato aprovado fora das vagas previstas originariamente no edital, mas classificado até o limite das vagas surgidas durante o prazo de validade do concurso, possui direito líquido e certo à nomeação se o edital dispuser que serão providas, além das vagas oferecidas, as outras que vierem a existir durante sua validade. Precedentes citados: AgRg no RMS 31.899-MS, DJe 18/5/2012, e AgRg no RMS 28.671-MS, DJe 25/4/2012. MS 18.881-DF, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 28/11/2012.



DIREITO ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. INVIABILIDADE DE REVISÃO DA SANÇÃO ADMINISTRATIVA EM MS. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. REEXAME DO MÉRITO ADMINISTRATIVO.


É inviável em MS a revisão de penalidade imposta em PAD, sob o argumento de ofensa ao princípio da proporcionalidade, por implicar reexame do mérito administrativo.Precedentes citados: RMS 32.573-AM, DJe 12/8/2011; MS 15.175-DF, DJe 16/9/2010, e RMS 33.281-PE, DJe 2/3/2012. MS 17.479-DF, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 28/11/2012.





Segunda Seção



DIREITO PROCESSUAL CIVIL. COMPETÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO DO STJ. AÇÃO DE COBRANÇA. CADERNETA DE POUPANÇA.


A Segunda Seção do STJ é competente para julgar os feitos oriundos de ações de cobrança em que se busca o pagamento da diferença de correção monetária de saldo de caderneta de poupança. Os contratos de depósito em caderneta de poupança celebrados entre particulares e a instituição financeira são contratos de direito privado. Por sua vez, o Regimento Interno do STJ dispõe que a competência das Seções e das respectivas Turmas é fixada em função da natureza da relação jurídica litigiosa. Nesse contexto, conforme o art. 9º, § 2º, do Regimento, cabe à Segunda Seção processar e julgar os feitos relativos a obrigações em geral de direito privado, mesmo quando o Estado participar do contrato (inc. II), e os temas relacionados a direito privado em geral (inc. XIV). Precedentes citados: AgRg no REsp 1.066.112-MG, DJe 13/5/2009, e AgRg no REsp 1.081.582-MG, DJe 28/9/2009. REsp 1.103.224-MG, e REsp 1.103.769-MG, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgados em 12/12/2012.



DIREITO PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE COBRANÇA. EXPURGOS INFLACIONÁRIOS. CADERNETA DE POUPANÇA. MINAS CAIXA. PRESCRIÇÃO. RECURSO REPETITIVO (ART. 543-C DO CPC E RES. N. 8/2008-STJ).


É vintenário o prazo prescricional da ação individual de cobrança relativa a expurgos inflacionários incidentes sobre o saldo de caderneta de poupança proposta contra o Estado de Minas Gerais, sucessor da Minas Caixa, não se aplicando à espécie o Dec. n. 20.910/1932, que disciplina a prescrição contra a Fazenda Pública. A Minas Caixa, extinta autarquia estadual criada para atuação e exploração do mercado financeiro, por exercer atividade econômica, sujeitava-se ao regime aplicável às pessoas jurídicas de Direito Privado, não podendo ser beneficiada com a prescrição quinquenal do Dec. n. 20.910/1932, situação não alterada pela assunção do Estado. A ação de cobrança proposta em desfavor do Estado de Minas Gerais não atrai a regra da prescrição quinquenal prevista no Dec. n. 20.910/1932 porque a obrigação não é originariamente da pessoa jurídica de direito público, pois o Estado atua no feito na condição de sucessor da Caixa Econômica do Estado de Minas Gerais. Nessa hipótese, incide a regra de direito civil segundo a qual, cuidando-se de sucessão de obrigações, o regime de prescrição aplicável é o do sucedido e não o do sucessor (arts. 196 do CC/2002 e 165 do CC/1916). O negócio entre a extinta autarquia e o Estado de Minas Gerais constitui res inter allios acta, que não pode afetar terceiros (poupadores) de modo a diminuir-lhes direitos consolidados, entre os quais o prazo prescricional incrustado no contrato e a prescrição quinquenal, prevista pelo Dec. n. 20.910/1932, que não beneficia autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou qualquer outra entidade estatal que explore atividade econômica. Precedentes citados: AgRg no REsp 1.156.686-MG, DJe 31/8/2011, e AgRg no AREsp 189.921-MG, DJe 24/9/2012. REsp 1.103.769-MG e REsp 1.103.224-MG, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgados em 12/12/2012.





Terceira Seção



DIREITO PROCESSUAL PENAL. COMPETÊNCIA. USO DE DOCUMENTO FALSO JUNTO À PRF.


Compete à Justiça Federal o julgamento de crime consistente na apresentação de Certificado de Registro e Licenciamento de Veículo (CRLV) falso à Polícia Rodoviária Federal. A competência para processo e julgamento do delito previsto no art. 304 do CP deve ser fixada com base na qualificação do órgão ou entidade à qual foi apresentado o documento falsificado, que efetivamente sofre prejuízo em seus bens ou serviços, pouco importando, em princípio, a natureza do órgão responsável pela expedição do documento. Assim, em se tratando de apresentação de documento falso à PRF, órgão da União, em detrimento do serviço de patrulhamento ostensivo das rodovias federais, previsto no art. 20, II, do CTB, afigura-se inarredável a competência da Justiça Federal para o julgamento da causa, nos termos do art. 109, IV, da CF. Precedentes citados: CC 112.984-SE, DJe 7/12/2011, e CC 99.105-RS, DJe 27/2/2009.CC 124.498-ES, Rel. Min. Alderita Ramos de Oliveira (Desembargadora convocada do TJ-PE), julgado em 12/12/2012.



DIREITO PROCESSUAL PENAL. COMPETÊNCIA. CONTRAVENÇÃO PENAL.


É da competência da Justiça estadual o julgamento de contravenções penais, mesmo que conexas com delitos de competência da Justiça Federal. A Constituição Federal expressamente excluiu, em seu art. 109, IV, a competência da Justiça Federal para o julgamento das contravenções penais, ainda que praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União. Tal orientação está consolidada na Súm. n. 38/STJ. Precedentes citados: CC 20.454-RO, DJ 14/2/2000, e CC 117.220-BA, DJe 7/2/2011. CC 120.406-RJ, Rel. Min. Alderita Ramos de Oliveira (Desembargadora convocada do TJ-PE), julgado em 12/12/2012.





Primeira Turma



DIREITO ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE COBRANÇA DE VERBAS SALARIAIS. COMPROVAÇÃO DO VÍNCULO ENTRE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E O SERVIDOR.


Incumbe à Administração Pública demonstrar, enquanto fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito da parte autora (art. 333, II, do CPC), que não houve o efetivo exercício no cargo, para fins de recebimento da remuneração, na hipótese em que é incontroversa a existência do vínculo funcional. Isso porque o recebimento da remuneração por parte do servidor público pressupõe, além do efetivo vínculo entre ele e a Administração Pública, o exercício no cargo. Precedente citado: AgRg no AREsp 149.514-GO, DJe 29/5/2012.AgRg no AREsp 116.481-GO, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, julgado em 4/12/2012.



DIREITO ADMINISTRATIVO. POSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO DO FCVS EM MAIS DE UM CONTRATO DE FINANCIAMENTO IMOBILIÁRIO.


É possível a utilização do FCVS em mais de um contrato de financiamento imobiliário na mesma localidade aos contratos firmados até 5/12/1990. A Lei n. 8.110/1990, alterada pela Lei n. 10.150/2000, possibilitou a quitação de mais de um saldo remanescente por mutuário aos contratos firmados até 5/12/1990. Precedente citado: REsp 1.133.769-RN, DJe 18/12/2009 (REPETITIVO). AgRg no REsp 1.110.017-SP, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 4/12/2012.



DIREITO ADMINISTRATIVO E PENAL. SANÇÃO PENAL E ADMINISTRATIVA DECORRENTE DA MESMA CONDUTA. COMPETÊNCIA.


Se o ato ensejador do auto de infração caracteriza infração penal tipificada apenas em dispositivos de leis de crimes ambientais, somente o juízo criminal tem competência para aplicar a correspondente penalidade. Os fiscais ambientais têm competência para aplicar penalidades administrativas. No entanto, se a conduta ensejadora do auto de infração configurar crime ou contravenção penal, somente o juízo criminal é competente para aplicar a respectiva sanção. Precedente citado: AgRg no AREsp 67.254-MA, DJe 2/8/2012. REsp 1.218.859-ES, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, julgado em 27/11/2012.



DIREITO PREVIDENCIÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. TERMO A QUO PARA PAGAMENTO DE AUXÍLIO-ACIDENTE.


O termo inicial para pagamento de auxílio-acidente é a data da citação da autarquia previdenciária se ausente prévio requerimento administrativo ou prévia concessão de auxílio-doença. O laudo pericial apenas norteia o livre convencimento do juiz quanto a alguma incapacidade ou mal surgido anteriormente à propositura da ação, sendo que a citação válida constitui em mora o demandado (art. 219 do CPC). Precedentes citados: EREsp 735.329-RJ, DJe 6/5/2011; AgRg no Ag 1.182.730-SP, DJe 1º/2/2012; AgRg no AgRg no Ag 1.239.697-SP, 5/9/2011, e REsp 1.183.056-SP, DJe 17/8/2011. AgRg no AREsp 145.255-RJ, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 27/11/2012.



DIREITO PROCESSUAL CIVIL. CABIMENTO DE RECURSO ESPECIAL EM SUSPENSÃO DE LIMINAR.


Não cabe recurso especial em face de decisões proferidas em pedido de suspensão de liminar. Esse recurso visa discutir argumentos referentes a exame de legalidade, e o pedido de suspensão ostenta juízo político. O recurso especial não se presta à revisão do juízo político realizado pelo tribunal a quo para a concessão da suspensão de liminar, notadamente porque decorrente de juízo de valor acerca das circunstâncias fáticas que ensejaram a medida, cujo reexame é vedado nos termos da Súm. n. 7/STJ. Precedentes citados: AgRg no AREsp 103.670-DF, DJe 16/10/2012; AgRg no REsp 1.301.766-MA, DJe 25/4/2012, e AgRg no REsp 1.207.495-RJ, DJe 26/4/2011. AgRg no AREsp 126.036-RS, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 4/12/2012.



DIREITO TRIBUTÁRIO. INCIDÊNCIA DE JUROS DE MORA SOBRE MULTA FISCAL PUNITIVA.


É legítima a incidência de juros de mora sobre multa fiscal punitiva, a qual integra o crédito tributário. Precedentes citados: REsp 1.129.990-PR, DJe 14/9/2009, e REsp 834.681-MG, DJe 2/6/2010. AgRg no REsp 1.335.688-PR, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 4/12/2012.





Segunda Turma



DIREITO ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. CABIMENTO. CONFIGURAÇÃO DE PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA DA LIQUIDEZ E CERTEZA DO DIREITO À OBTENÇÃO DE MEDICAMENTOS E INSUMOS. LAUDO MÉDICO PARTICULAR.


A instrução de MS somente com laudo médico particular não configura prova pré-constituída da liquidez e certeza do direito do impetrante de obter do Poder Público determinados medicamentos e insumos para o tratamento de enfermidade acometida por ele. O laudo de médico particular, embora aceito como elemento de prova, não pode ser imposto ao magistrado como se a matéria fosse, exclusivamente, de direito. Esse parecer não é espécie de prova suprema ou irrefutável, ainda mais quando a solução da controvérsia, de natureza complexa, depende de conhecimento técnico-científico, necessário para saber a respeito da possibilidade de substituição do medicamento ou sobre sua imprescindibilidade. Além do mais, o laudo médico, como elemento de prova, deve submeter-se ao contraditório, à luz do que dispõe o art. 333, II, do CPC, principalmente quando, para o tratamento da enfermidade, o Sistema Único de Saúde ofereça tratamento adequado, regular e contínuo. Nesse contexto, o laudo médico particular, não submetido ao crivo do contraditório, é apenas mais um elemento de prova, que pode ser ratificado ou infirmado por outras provas a serem produzidas no processo instrutório, dilação probatória incabível no MS. Desse modo, as vias ordinárias, e não a via do MS, representam o meio adequado ao reconhecimento do direito à obtenção de medicamentos do Poder Público, uma vez que, como foi dito, apenas o laudo médico atestado por profissional particular sem o crivo do contraditório não evidencia direito líquido e certo para impetração de MS. RMS 30.746-MG, Rel. Min. Castro Meira, julgado em 27/11/2012.



DIREITO PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DEMOLITÓRIA. LEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. POSSUIDOR OU DONO DA OBRA.


O possuidor ou dono da obra, responsável pela ampliação irregular do imóvel, é legitimado passivo de ação demolitória que vise à destruição do acréscimo irregular realizado, ainda que ele não ostente o título de proprietário do imóvel. Embora o art. 1.299 do CC se refira apenas à figura do proprietário, o art. 1.312 prescreve que "todo aquele que violar as proibições estabelecidas nesta Seção é obrigado a demolir as construções feitas, respondendo por perdas e danos". A norma se destina, portanto, a todo aquele que descumprir a obrigação de não fazer construções que violem as disposições legais, seja na condição de possuidor seja como proprietário. Além do mais, o mesmo entendimento se confirma pelo recurso à analogia com as normas que disciplinam a ação de nunciação de obra nova. Ao prever esse procedimento especial, o CPC, em seu art. 934, III, atribui legitimidade ativa ao município, a fim de impedir que o particular construa em contravenção da lei, do regulamento ou de postura. Não há, pois, legitimidade passiva exclusiva do proprietário do imóvel. REsp 1.293.608-PE, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 4/12/2012.



DIREITO PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. COBRANÇA DE PENA PECUNIÁRIA POR INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA. CESSAÇÃO DA LIQUIDAÇÃO EXTRAJUDICIAL DA ENTIDADE DE PREVIDÊNCIA COMPLEMENTAR EXECUTADA. RETOMADA DA EXECUÇÃO FISCAL.


Não será extinta a execução fiscal que vise à cobrança de penalidade pecuniária por infração administrativa na hipótese em que, embora decretada a liquidação extrajudicial da entidade de previdência complementar executada, tal liquidação tenha cessado em razão do reconhecimento da viabilidade de prosseguimento das atividades societárias da executada. O inciso VII do art. 49 da LC n. 109/2001 estabelece que a decretação da liquidação extrajudicial produzirá, de imediato, a inexigibilidade de penas pecuniárias por infrações de natureza administrativa. Dessa forma, em consideração à mencionada redação legal, poder-se-ia, em princípio, imaginar que, com a decretação da liquidação extrajudicial, haveria a imediata extinção das penas pecuniárias por infrações administrativas sofridas pelo ente em liquidação, ainda que, posteriormente, as suas atividades societárias tenham sido retomadas com a extinção do procedimento liquidatório. Todavia, as situações citadas no art. 49 da LC n. 109/2001 não constituem um fim em si mesmas, mas apenas instrumentos voltados à ultimação do procedimento de liquidação extrajudicial, que nada mais é que um regime jurídico específico de concurso de credores. Dessa maneira, se for verificado que não mais subsiste a necessidade de realização do ativo (levantamento da liquidação extrajudicial) para liquidação do passivo, não mais se fazendo necessário o concurso de credores, haverá o levantamento da liquidação nos termos do art. 52 da LC n. 109/2001 e, por consequência, devem cessar os efeitos até então produzidos pelo procedimento. A inexigibilidade da penalidade pecuniária somente foi instituída para viabilizar, no procedimento da liquidação extrajudicial e da melhor forma possível, a satisfação conjunta dos diversos credores da instituição. A partir do momento em que se constata a desnecessidade de abertura do concurso universal de credores, com reconhecimento da viabilidade de prosseguimento das atividades societárias do ente, perde a razão de ser todo o arcabouço que o caracteriza perde a razão de ser. Assim, atribuir à expressão "inexigibilidade das penas pecuniárias" o mesmo efeito prático tanto no caso da extinção da entidade pela liquidação como na hipótese em que suas atividades tenham sido retomadas acabaria por instituir uma inconsistência no âmbito da própria LC n. 109/2001, que visa permitir a recuperação da entidade liquidanda e o prosseguimento de suas atividades. Além do mais, a LC n. 109/2001 deve se compatibilizar com o disposto no art. 29 da LEF, aplicável a dívidas tributárias e não tributárias executadas pelo Poder Público. Realizando-se uma interpretação lógico-sistemática dos preceitos legais em debate, conclui-se que a decretação da liquidação extrajudicial não extingue o executivo fiscal, mas apenas o condiciona ao resultado do concurso entre os credores. Logo: a) inexistindo bens suficientes para a satisfação dos créditos, a sociedade será extinta e a execução seguirá a mesma sorte em virtude da superveniente perda de objeto; b) havendo, contudo, o levantamento da liquidação, ou restando bens aptos à satisfação do débito, procede-se ao restabelecimento do feito executivo ante o exaurimento dos efeitos da regra insculpida no art. 49, VII, da LC n. 109/2001. REsp 1.238.965-RS, Rel. Min. Castro Meira, julgado em 14/8/2012.



DIREITO TRIBUTÁRIO. PRESCRIÇÃO. TERMO A QUO DO PRAZO PRESCRICIONAL QUINQUENAL PARA A COBRANÇA DE CRÉDITOS TRIBUTÁRIOS EXCLUÍDOS DO REFIS.


Quando interrompido pelo pedido de adesão ao Refis, o prazo prescricional de 5 anos para a cobrança de créditos tributários devidos pelo contribuinte excluído do programa reinicia na data da decisão final do processo administrativo que determina a exclusão do devedor do referido regime de parcelamento de débitos fiscais. O Programa de Recuperação Fiscal – Refis, regime peculiar de parcelamento dos tributos devidos à União, é causa de suspensão da exigibilidade do crédito tributário (art. 151, VI, do CTN) e, ao mesmo tempo, causa de interrupção da prescrição (art. 174, parágrafo único, IV, do CTN), na medida em que representa confissão extrajudicial do débito. Dessa forma, o crédito tributário submetido ao aludido programa será extinto se houver quitação integral do parcelamento, ou, ao contrário, retomará a exigibilidade em caso de rescisão do programa, hipótese em que o prazo prescricional será reiniciado, uma vez que, como foi dito, a submissão do crédito ao programa representa causa de interrupção, e não de suspensão, da prescrição. Ocorre que, no caso do Refis, o Fisco, atento aos princípios do contraditório e da ampla defesa, prevê a obrigatoriedade de instauração de processo administrativo para a exclusão de tal regime de parcelamento, nos moldes da Resolução CG/Refis 9/2001, com as alterações promovidas pela Resolução CG/Refis 20/2001 – editada conforme autorização legal do art. 9º da Lei n. 9.964/2000 para regulamentar a exclusão. Assim, considerando o fato de que o STJ possui entendimento de que a instauração do contencioso administrativo, além de representar causa de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, amolda-se à hipótese do art. 151, III, do CTN – razão pela qual perdurará a suspensão da exigibilidade até decisão final na instância administrativa –, deve ser prestigiada a orientação de que, uma vez instaurado o contencioso administrativo, a exigibilidade do crédito tributário – e, com ela, a fluência da prescrição – somente será retomada após a decisão final da autoridade fiscal. REsp 1.144.963-SC, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 20/11/2012.





Terceira Turma



DIREITO CIVIL. DPVAT. LIMITE MÁXIMO DO REEMBOLSO DE DESPESAS HOSPITALARES.


O reembolso pelo DPVAT das despesas hospitalares em caso de acidente automobilístico deve respeitar o limite máximo previsto na Lei n. 6.194/1974 (oito salários mínimos), e não o estabelecido na tabela expedida pelo Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP). A cobertura do DPVAT compreende o reembolso de despesas de assistência médica suplementares (DAMS) nos valores máximos indicados pela Lei n. 6.194/1974. Nessa hipótese, a vítima cede ao hospital o direito de receber a indenização da seguradora. Assim, o dever da seguradora é pagar por procedimento médico hospitalar de acordo com o art. 3º, c, da Lei n. 6.194/1974, ou seja, até oito salários mínimos. Esse valor não pode ser alterado unilateralmente pelo fixado na tabela da resolução do CNSP, que é inferior ao máximo legal, ainda que seja superior ao valor de mercado, pois não há permissão legal para adoção de uma tabela de referência que delimite as indenizações a serem pagas pelas seguradoras a título de DAMS. Portanto, o hospital tem o direito de receber o reembolso integral das despesas comprovadas, respeitado o limite máximo previsto na lei. REsp 1.139.785-PR, Rel. originário Min. Sidnei Beneti, Rel. para acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 11/12/2012.



DIREITO CIVIL. PLANO DE SAÚDE. CLÁUSULA LIMITATIVA. CIRURGIA BARIÁTRICA. OBESIDADE MÓRBIDA.


É abusiva a negativa do plano de saúde em cobrir as despesas de intervenção cirúrgica de gastroplastia necessária à garantia da sobrevivência do segurado. A gastroplastia, indicada para o tratamento da obesidade mórbida, bem como de outras doenças dela derivadas, constitui cirurgia essencial à preservação da vida e da saúde do paciente segurado, não se confundindo com simples tratamento para emagrecimento. Os contratos de seguro-saúde são contratos de consumo submetidos a cláusulas contratuais gerais, ocorrendo a sua aceitação por simples adesão pelo segurado. Nesses contratos, as cláusulas seguem as regras de interpretação dos negócios jurídicos estandardizados, ou seja, existindo cláusulas ambíguas ou contraditórias, deve ser aplicada a interpretação mais favorável ao aderente, conforme o art. 47 do CDC. Assim, a cláusula contratual de exclusão da cobertura securitária para casos de tratamento estético de emagrecimento prevista no contrato de seguro-saúde não abrange a cirurgia para tratamento de obesidade mórbida. Precedentes citados: REsp 1.175.616-MT, DJe 4/3/2011; AgRg no AREsp 52.420-MG, DJe 12/12/2011; REsp 311.509-SP, DJ 25/6/2001, e REsp 735.750-SP, DJe 16/2/2012.REsp 1.249.701-SC, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 4/12/2012.



DIREITO CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. PENSÃO PELA PERDA DA CAPACIDADE LABORAL.


É devido o pagamento de pensão à vítima de ilícito civil em razão da diminuição da capacidade laboral temporária, a contar da data do acidente até a convalescença, independentemente da perda do emprego ou da redução dos seus rendimentos. O art. 950 do CC, ao tratar do assunto, não cria outras condições para o pagamento da pensão civil além da redução da capacidade para o trabalho. Ademais, a indenização de cunho civil não se confunde com aquela de natureza previdenciária, sendo irrelevante o fato de que o recorrente, durante o período do seu afastamento do trabalho, tenha continuado a auferir renda. Entendimento diverso levaria à situação na qual a superação individual da vítima seria causa de não indenização, punindo o que deveria ser mérito. Precedentes citados: REsp 1.062.692-RJ, DJe 11/10/2011; REsp 869.505-PR, DJ 20/8/2007, e REsp 402.833-SP, DJ 7/4/2003. REsp 1.306.395-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 4/12/2012.



DIREITO DO CONSUMIDOR. ENVIO DE CARTÃO DE CRÉDITO À RESIDÊNCIA DO CONSUMIDOR. NECESSIDADE DE PRÉVIA E EXPRESSA SOLICITAÇÃO.


É vedado o envio de cartão de crédito, ainda que bloqueado, à residência do consumidor sem prévia e expressa solicitação. Essa prática comercial é considerada abusiva nos moldes do art. 39, III, do CDC, contrariando a boa-fé objetiva. O referido dispositivo legal tutela os interesses dos consumidores até mesmo no período pré-contratual, não sendo válido o argumento de que o simples envio do cartão de crédito à residência do consumidor não configuraria ilícito por não implicar contratação, mas mera proposta de serviço. REsp 1.199.117-SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 18/12/2012.



DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. DIREITO À INFORMAÇÃO E À DIGNIDADE. VEICULAÇÃO DE IMAGENS CONSTRANGEDORAS.


É vedada a veiculação de material jornalístico com imagens que envolvam criança em situações vexatórias ou constrangedoras, ainda que não se mostre o rosto da vítima. A exibição de imagens com cenas de espancamento e de tortura praticados por adulto contra infante afronta a dignidade da criança exposta na reportagem, como também de todas as crianças que estão sujeitas a sua exibição. O direito constitucional à informação e à vedação da censura não é absoluto e cede passo, por juízo de ponderação, a outros valores fundamentais também protegidos constitucionalmente, como a proteção da imagem e da dignidade das crianças e dos adolescentes (arts. 5°, V, X, e 227 da CF). Assim, esses direitos são restringidos por lei para a proteção dos direitos da infância, conforme os arts. 15, 17 e 18 do ECA. REsp 509.968-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 6/12/2012.



DIREITO PROCESSUAL CIVIL. LEGITIMIDADE ATIVA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MINISTÉRIO PÚBLICO. ECA.


O MP detém legitimidade para propor ação civil pública com o intuito de impedir a veiculação de vídeo, em matéria jornalística, com cenas de tortura contra uma criança, ainda que não se mostre o seu rosto. A legitimidade do MP, em ação civil pública, para defender a infância e a adolescência abrange os interesses de determinada criança (exposta no vídeo) e de todas indistintamente, ou pertencentes a um grupo específico (aquelas sujeitas às imagens com a exibição do vídeo), conforme previsão dos arts. 201, V, e 210, I, do ECA.Precedentes citados: REsp 1.060.665-RJ, DJe 23/6/2009, e REsp 50.829-RJ, DJ 8/8/2005. REsp 509.968-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 6/12/2012.



DIREITO PROCESSUAL CIVIL. ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA. IMPUGNAÇÃO DO BENEFÍCIO NOS AUTOS DO PROCESSO PRINCIPAL. AUSÊNCIA DE NULIDADE. NÃO DEMONSTRAÇÃO DE PREJUÍZO.


Não enseja nulidade o processamento da impugnação à concessão do benefício de assistência judiciária gratuita nos autos do processo principal, se não acarretar prejuízo à parte. A Lei n. 1.060/1950, ao regular as normas acerca da concessão da assistência judiciária gratuita, determina que a impugnação à concessão do benefício seja processada em autos apartados, de forma a evitar tumulto processual no feito principal e resguardar o amplo acesso ao Poder Judiciário, com o exercício da ampla defesa e produção probatória, conforme previsto nos arts. 4º, § 2º, e 6º e 7º, parágrafo único, do referido diploma legal. Entretanto, o processamento incorreto da impugnação nos mesmos autos do processo principal deve ser considerado mera irregularidade. Conforme o princípio da instrumentalidade das formas e dos atos processuais, consagrado no caput do art. 244 do CPC, quando a lei prescreve determinada forma sem cominação de nulidade, o juiz deve considerar válido o ato se, realizado de outro modo, alcançar sua finalidade. Assim, a parte interessada deveria arguir a nulidade e demonstrar a ocorrência concreta de prejuízo, por exemplo, eventual falta do exercício do contraditório e da ampla defesa. O erro formal no procedimento, se não causar prejuízo às partes, não justifica a anulação do ato impugnado, até mesmo em observância ao princípio da economia processual. Ademais, por ser relativa a presunção de pobreza a que se refere o art. 4º da Lei n. 1.060/1950, o próprio magistrado, ao se deparar com as provas dos autos, pode, de ofício, revogar o benefício. Precedente citado: REsp 494.867-AM, DJ 29/9/2003. REsp 1.286.262-ES, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 18/12/2012.



DIREITO PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO RESCISÓRIA. INDEFERIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL POR AUSÊNCIA DE RECOLHIMENTO DAS CUSTAS E DO DEPÓSITO PRÉVIO. POSSIBILIDADE DE EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM PRÉVIA INTIMAÇÃO PESSOAL DA PARTE.


É possível a extinção de ação rescisória sem resolução do mérito na hipótese de indeferimento da petição inicial, em face da ausência do recolhimento das custas e do depósito prévio, sem que tenha havido intimação prévia e pessoal da parte para regularizar essa situação. O art. 267, § 1º, do CPC traz as hipóteses em que o juiz, antes de declarar a extinção do processo sem resolução do mérito, deve intimar pessoalmente a parte para que ela possa suprir a falta ensejadora de eventual arquivamento dos autos. Assim, quando o processo ficar parado durante mais de um ano por negligência das partes, ou quando o autor abandonar a causa por mais de trinta dias por não promover os atos e diligências que lhe competirem (art. 267, II e III), deve a parte ser intimada pessoalmente para suprir a falta em 48 horas, sob pena de extinção do processo. Esse procedimento, entretanto, não é exigido no caso de extinção do processo por indeferimento da petição inicial, hipótese do inciso I do referido artigo. Precedente citado: AgRg na AR 3.223-SP, DJ 18/11/2010. REsp 1.286.262-ES, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 18/12/2012.





Quarta Turma



DIREITO PROCESSUAL CIVIL. ASTREINTES. EXECUÇÃO PROVISÓRIA.


O valor referente à astreinte fixado em tutela antecipada ou medida liminar só pode ser exigido e só se torna passível de execução provisória, se o pedido a que se vincula aastreinte for julgado procedente e desde que o respectivo recurso não tenha sido recebido no efeito suspensivo. A multa pecuniária arbitrada judicialmente para forçar o réu ao cumprimento de medida liminar antecipatória (art. 273 e 461, §§ 3º e 4º, do CPC) detém caráter híbrido, englobando aspectos de direito material e processual, pertencendo o valor decorrente de sua incidência ao titular do bem da vida postulado em juízo. Sua exigibilidade, por isso, encontra-se vinculada ao reconhecimento da existência do direito material pleiteado na demanda. Para exigir a satisfação do crédito oriundo da multa diária previamente ao trânsito em julgado, o autor de ação individual vale-se do instrumento jurídico-processual da execução provisória (art. 475-O do CPC). Contudo, não é admissível a execução da multa diária com base em mera decisão interlocutória, fundada em cognição sumária e precária por natureza, como também não se pode condicionar sua exigibilidade ao trânsito em julgado da sentença. Isso porque os dispositivos legais que contemplam essa última exigência regulam ações de cunho coletivo, motivo pelo qual não são aplicáveis às demandas em que se postulam direitos individuais. Assim, por seu caráter creditório e por implicar risco patrimonial para as partes, a multa diária cominada em liminar está subordinada à prolação de sentença de procedência do pedido, admitindo-se também a sua execução provisória, desde que o recurso seja recebido apenas no efeito devolutivo. Todavia, revogada a tutela antecipada, na qual estava baseado o título executivo provisório de astreinte, fica sem efeito o crédito derivado da fixação da multa diária, perdendo o objeto a execução provisória daí advinda. Precedentes citados: REsp 1.006.473-PR, DJe 19/6/2012, e EDcl no REsp 1.138.559-SC, DJe 1º/7/2011. REsp 1.347.726-RS, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 27/11/2012.



DIREITO PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS À ARREMATAÇÃO. NECESSIDADE DE AÇÃO PRÓPRIA PARA A DESCONSTITUIÇÃO DA ALIENAÇÃO.


Efetuada a arrematação, descabe o pedido de desconstituição da alienação nos autos da execução, demandando ação própria prevista no art. 486 do CPC. A execução tramita por conta e risco do exequente, tendo responsabilidade objetiva por eventuais danos indevidos ocasionados ao executado. Conforme o art. 694 do CPC, a assinatura do auto pelo juiz, pelo arrematante e pelo serventuário da justiça ou leiloeiro torna perfeita, acabada e irretratável a arrematação. Essa norma visa conferir estabilidade à arrematação, protegendo o arrematante e impondo-lhe obrigação, como também buscando reduzir os riscos do negócio jurídico, propiciando efetivas condições para que os bens levados à hasta pública recebam melhores ofertas em benefício das partes do feito executivo e da atividade jurisdicional na execução. Assim, ainda que os embargos do executado venham a ser julgados procedentes, desde que não sejam fundados em vício intrínseco à arrematação, tal ato se mantém válido e eficaz, tendo em conta a proteção ao arrematante terceiro de boa-fé. Precedentes citados: AgRg no CC 116.338-SE, DJe 15/2/2012; REsp 1.219.093-PR, DJe 10/4/2012, e AgRg no Ag 912.834-SP, DJe 11/2/2011. REsp 1.313.053-DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 4/12/2012.



DIREITO PROCESSUAL CIVIL. NULIDADE DE ATO PROCESSUAL DE SERVENTUÁRIO. EFEITOS SOBRE ATOS PRATICADOS DE BOA-FÉ PELAS PARTES.


A eventual nulidade declarada pelo juiz de ato processual praticado pelo serventuário não pode retroagir para prejudicar os atos praticados de boa-fé pelas partes. O princípio da lealdade processual, de matiz constitucional e consubstanciado no art. 14 do CPC, aplica-se não só às partes, mas a todos os sujeitos que porventura atuem no processo. Dessa forma, no processo, exige-se dos magistrados e dos serventuários da Justiça conduta pautada por lealdade e boa-fé, sendo vedados os comportamentos contraditórios. Assim, eventuais erros praticados pelo servidor não podem prejudicar a parte de boa-fé. Entendimento contrário resultaria na possibilidade de comportamento contraditório do Estado-Juiz, que geraria perplexidade na parte que, agindo de boa-fé, seria prejudicada pela nulidade eventualmente declarada. Assim, certidão de intimação tornada sem efeito por serventuário não pode ser considerada para aferição da tempestividade de recurso. Precedente citado: AgRg no AgRg no Ag 1.097.814-SP, DJe 8/9/2009.AgRg no AREsp 91.311-DF, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 6/12/2012.



DIREITO PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE TERCEIRO. LEGITIMIDADE ATIVA DO CONDÔMINO QUE NÃO PARTICIPA DA AÇÃO POSSESSÓRIA.


Condômino, que não for parte na ação possessória, tem legitimidade ativa para ingressar com embargos de terceiro. No sistema processual brasileiro, existem situações nas quais o meio processual previsto não admite escolha pelas partes. Doutro lado, se o sistema processual permite mais de um meio para obtenção da tutela jurisdicional, compete à parte eleger o instrumento que lhe parecer mais adequado, nos termos do princípio dispositivo. Assim, não havendo previsão legal que proíba o condômino que não seja parte da ação possessória – portanto, terceiro – de opor embargos de terceiro, deve-se reconhecer a possibilidade do seu manejo, sendo indevida a imposição de ingresso apenas como assistente litisconsorcial. Precedente citado: REsp 706.380-PR, DJ 7/11/2005. REsp 834.487-MT, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 13/11/2012.



DIREITO PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO DE TÍTULO JUDICIAL. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA.


Na fase de execução, a interpretação do título executivo judicial deve ser restritiva.Aplicam-se subsidiariamente as regras do processo de conhecimento ao de execução nos termos do art. 598 do CPC. O mesmo diploma determina, no art. 293, que o pedido deve ser interpretado de forma restritiva. Essa regra é aplicável na interpretação do título executivo judicial em observância aos princípios da proteção da coisa julgada, do devido processo legal e da menor onerosidade. REsp 1.052.781-PA, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 11/12/2012.





Quinta Turma



DIREITO PENAL. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. CONTRABANDO DE MATERIAIS LIGADOS A JOGOS DE AZAR.


Não se aplica o princípio da insignificância aos crimes de contrabando de máquinas caça-níqueis ou de outros materiais relacionados com a exploração de jogos de azar. Inserir no território nacional itens cuja finalidade presta-se, única e exclusivamente, a atividades ilícitas afeta diretamente a ordem pública e demonstra a reprovabilidade da conduta. Assim, não é possível considerar tão somente o valor dos tributos suprimidos, pois essa conduta tem, ao menos em tese, relevância na esfera penal. Permitir tal hipótese consistiria num verdadeiro incentivo ao descumprimento da norma legal, sobretudo em relação àqueles que fazem de atividades ilícitas um meio de vida. Precedentes citados do STF: HC 97.772-RS, DJe 19/11/2009; HC 110.964-SC, DJe 2/4/2012; do STJ: HC 45.099-AC, DJ 4/9/2006, e REsp 193.367-RO, DJ 21/6/1999. REsp 1.212.946-RS, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 4/12/2012.





Sexta Turma



DIREITO PENAL. ROUBO. MAJORANTE. PERÍCIA QUE CONSTATA INEFICÁCIA DA ARMA DE FOGO.


A majorante do art. 157, § 2º, I, do CP não é aplicável aos casos nos quais a arma utilizada na prática do delito é apreendida e periciada, e sua inaptidão para a produção de disparos é constatada. O legislador, ao prever a majorante descrita no referido dispositivo, buscou punir com maior rigor o indivíduo que empregou artefato apto a lesar a integridade física do ofendido, representando perigo real, o que não ocorre nas hipóteses de instrumento notadamente sem potencialidade lesiva. Assim, a utilização de arma de fogo que não tenha potencial lesivo afasta a mencionada majorante, mas não a grave ameaça, que constitui elemento do tipo “roubo” na sua forma simples. Precedentes citados: HC 190.313-SP, DJe 4/4/2011, e HC 157.889-SP, DJe 19/10/2012. HC 247.669-SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 4/12/2012.



DIREITO PENAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ART. 2º, II, DA LEI N. 8.137/1990. TERMO INICIAL DO PRAZO PRESCRICIONAL.


O termo inicial do prazo prescricional do crime previsto no art. 2º, II, da Lei n. 8.137/1990 é a data da entrega de declaração pelo próprio contribuinte, e não a inscrição do crédito tributário em dívida ativa. Segundo a jurisprudência do tribunal (Súm. n. 436/STJ), “a entrega de declaração pelo contribuinte reconhecendo débito fiscal constitui o crédito tributário, dispensada qualquer outra providência por parte do fisco”. A simples apresentação pelo contribuinte de declaração ou documento equivalente nos termos da lei possui o condão de constituir o crédito tributário, independentemente de qualquer outro tipo de procedimento a ser executado pelo Fisco. Assim, em razão de o crédito já estar constituído, é da data da entrega da declaração que se conta o prazo prescricional do delito previsto no art. 2º, II, da Lei n. 8.137/1990. HC 236.376-SC, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 19/11/2012.






FONTE: STJ

STJ APLICA NORMAS DE DIREITO DE VIZINHANÇA PARA SATISFAÇÃO DE INTERESSES DE PROPRIETÁRIOS EM CONFLITO




Quem nunca foi incomodado por algum vizinho? É bastante comum que a relação entre pessoas que moram em propriedades próximas (não necessariamente contíguas) passe por momentos conflitantes. Isso porque, muitas vezes, a satisfação do direito de um morador pode provocar restrições e até mesmo violação dos direitos do seu vizinho.




Para o ministro Sidnei Beneti, da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), “a casa é, em princípio, lugar de sossego e descanso, se o seu dono assim o desejar”. Apesar disso, interferências sempre haverá.




Algumas dessas interferências precisam ser toleradas para que o convívio entre vizinhos não vire uma guerra. Entretanto, nem todos têm a noção de que, para viver bem em comunidade, é necessário agir pensando no coletivo.




De acordo com a ministra Nancy Andrighi, também da Terceira Turma, “nosso ordenamento coíbe o abuso de direito, ou seja, o desvio no exercício do direito, de modo a causar dano a outrem”.




Plantio de árvores, uso do subsolo... Veja nesta matéria como o STJ tem resolvido as disputas entre vizinhos.




Limitações 

Para determinar limitações ao uso da propriedade, o Código Civil estabeleceu os direitos de vizinhança (artigos 1.277 a 1.313). De acordo com o professor universitário Carlos Edison do Rêgo Monteiro, “o direito de vizinhança é o ramo do direito civil que se ocupa dos conflitos de interesses causados pelas recíprocas interferências entre propriedades imóveis próximas” (O Direito de Vizinhança no Novo Código Civil).




Além disso, ele explica que o direito de vizinhança não tem o objetivo de criar vantagens para os proprietários, mas evitar prejuízos; ao contrário das servidões, que visam a conferir mais vantagens para os proprietários. “Procura-se, mediante as normas que compõem as relações de vizinhança, coibir as interferências indevidas nos imóveis vizinhos”, afirma o professor.




Vista panorâmica




Em 2008, a Terceira Turma resolveu um conflito surgido pela construção de muro no limite entre duas propriedades, localizadas no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro. O casal dono de um dos imóveis pretendia que o muro fosse derrubado, sob o argumento de que estaria atrapalhando a vista panorâmica para a Lagoa Rodrigo de Freitas.




No decorrer do processo, as partes celebraram acordo judicial, no qual fixaram condições para preservação da vista, iluminação e ventilação, a partir de um dos terrenos. A altura do muro foi reduzida, entretanto, foram plantadas trepadeiras e árvores que acabaram tapando novamente a visão da lagoa.




O juízo de primeiro grau determinou que as árvores limítrofes fossem podadas, para que não ultrapassassem a altura do muro divisório. Na apelação, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) reformou a sentença, pois entendeu que o acordo firmado entre as partes não havia garantido o direito à alegada “servidão de vista” – o que, segundo o tribunal, nem existe no sistema brasileiro.




No STJ, o relator do recurso especial, ministro Ari Pargendler, entendeu que o acordo havia sido integralmente cumprido e, além disso, que não havia proibição quanto ao plantio de árvores, “que é um direito assegurado ao proprietário, dentro de seu terreno”.




Legal ou convencional 

A ministra Nancy Andrighi divergiu do entendimento do relator. Quanto à alegada inexistência de servidão de vista, ela afirmou que o TJRJ fez confusão entre servidão predial legal e convencional. A Turma acompanhou o voto da ministra.




“As servidões legais correspondem aos direitos de vizinhança, tendo como fonte direta a própria lei, incidindo independentemente da vontade das partes. Nascem para possibilitar a exploração integral do imóvel dominante ou evitar o surgimento de conflitos entre os respectivos proprietários”, explicou Andrighi.




Segundo a ministra, as servidões convencionais, ou servidões propriamente ditas, não estão previstas em lei, decorrendo do consentimento das partes.




Ela mencionou que, embora não houvesse informações no processo acerca do registro do acordo em cartório, a transação poderia ser equiparada a uma servidão convencional, que representa uma obrigação a ser respeitada pelas partes.




Ao considerar a obrigação assumida, de preservação da vista da paisagem a partir do terreno vizinho, Andrighi verificou que o direito ao plantio de árvores foi exercido de forma abusiva, pois houve o descumprimento, ainda que indiretamente, do acordo firmado. Para ela, os vizinhos foram sujeitados aos mesmos transtornos causados pelo antigo muro de alvenaria (REsp 935.474).




Confusão 

No livro O Direito de Vizinhança, Aldemiro Rezende Dantas Júnior afirma que alguns autores denominam os direitos de vizinhança como sendo servidões legais – o entendimento da Terceira Turma na decisão anterior foi nesse sentido. Segundo ele, a nomenclatura é imprópria e a confusão decorre da influência do Código Civil francês, que “foi copiado por grande parte das legislações modernas”.




De acordo com o ministro Luis Felipe Salomão, “as servidões são direitos reais sobre coisas alheias”. Conforme a redação do artigo 695 do Código Civil de 1919 (CC/16), “por ela [servidão predial] perde o proprietário do prédio serviente o exercício de alguns de seus direitos dominicais ou fica obrigado a tolerar que dele se utilize, para certo fim, o dono do prédio dominante”.




Para o ministro, as servidões distinguem-se em inúmeros pontos dos direitos de vizinhança, “visto que estes são limitações impostas por lei ao direito de propriedade, restrições estas que são recíprocas e prescindem de registro”.




Parede




Em 2011, a Quarta Turma analisou um caso relacionado à servidão predial. Os donos de um imóvel construíram uma parede, que acabou por obstruir a ventilação e iluminação naturais do prédio vizinho.




Na ação demolitória ajuizada pelos vizinhos, o juízo de primeiro grau determinou o desfazimento da parede erguida. O tribunal de segunda instância manteve a decisão, pois verificou que a parede construída obstruía janelas que tinham sido abertas no prédio vizinho havia mais de 20 anos.




Nas razões do recurso especial, os responsáveis pela construção da parede alegaram violação aos artigos 573, parágrafo 2º, e 576 do CC/16. Entretanto, o ministro Luis Felipe Salomão afirmou que os dispositivos mencionados regulam as relações de vizinhança, não servindo para a solução de controvérsias relativas à servidão predial. Diante disso, a Turma negou provimento ao recurso especial (REsp 207.738).




Infiltração




De acordo com o ministro Sidnei Beneti, a jurisprudência do STJ tem caminhado no sentido de que os aborrecimentos comuns do dia a dia, “os meros dissabores normais e próprios do convívio social”, não são suficientes para dar origem a danos morais indenizáveis.




Há precedentes do STJ que afirmam tratar-se a infiltração em apartamento de um mero dissabor. Apesar disso, a Terceira Turma julgou uma situação de grande constrangimento, que perdurou durante muitos meses, como exceção à regra.




Em 2006, uma moradora ajuizou ação de indenização por danos materiais e morais contra a vizinha do apartamento acima do seu. Alegou que, cerca de um ano e meio antes, começou uma infiltração na laje do teto da sua área de serviço, proveniente do imóvel do andar de cima, que se alastrou por praticamente todo o teto do apartamento.




Segundo a autora, houve várias tentativas para solucionar amigavelmente o problema, mas a vizinha não tomou nenhuma providência.




Danos morais




Em primeira instância, o juiz fixou indenização por danos morais no valor de R$ 1.500. A autora apelou ao tribunal estadual para buscar a elevação da indenização. A vizinha também apelou, alegando que não poderia ser condenada ao pagamento de danos morais, já que, segundo ela, não tinha ciência das infiltrações.




Para o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a conduta da vizinha não provocou lesão aos direitos de personalidade da autora, de modo a justificar a pretendida reparação por danos morais.




No STJ, o ministro Sidnei Beneti, relator do recurso especial, mencionou que o constrangimento e os aborrecimentos pelos quais a mulher passou não poderiam ser considerados de menos importância.




“A situação descrita nos autos não caracteriza, portanto, um mero aborrecimento ou dissabor comum das relações cotidianas. Na hipótese, tem-se verdadeiro dano a direito de dignidade, passível de reparação por dano moral”, afirmou (REsp 1.313.641).




Passagem forçada 

Para se ter configurado o direito de passagem forçada – um dos temas do direito de vizinhança, previsto no artigo 1.285 do CC/02 – é necessário que o imóvel esteja encravado.




De acordo com Lenine Nequete, na obra Da Passagem Forçada, para haver encravamento é necessário: a) que o prédio não tenha saída para a via pública, nem possa buscar-se uma, ou, podendo, somente a conseguiria mediante excessiva despesa ou trabalhos desmesurados; b) ou que a saída de que disponha seja insuficiente e não se possa adaptá-la ou ampliá-la – ou porque isso é impossível, ou porque os reparos requereriam gastos ou trabalhos desproporcionados.




O ministro Ari Pargendler, atualmente membro da Primeira Turma, deu o conceito jurídico de imóvel encravado. “Encravado é o imóvel cujo acesso por meios terrestres exige do respectivo proprietário despesas excessivas para que cumpra a função social sem inutilizar o terreno do vizinho, que em qualquer caso será indenizado pela só limitação do domínio”.




Acidente geográfico 

O dono da fazenda São José, situada em Rio Negro (MS), moveu ação de constituição de passagem forçada contra os donos da fazenda vizinha, a Rancho Grande. Parte de sua propriedade é separada do restante devido a um acidente geográfico. O trecho encontra-se encravado.




A perícia constatou que a área tinha duas saídas: uma passando pela fazenda Rancho Grande e outra pelo próprio Rio Negro. Entretanto, para fazer a ligação por terra, era preciso construir estrada que, devido aos acidentes geográficos locais, seria muito dispendiosa e, para sair à via pública, percorreria cerca de 30 quilômetros.




O juízo de primeiro grau julgou o pedido improcedente. A decisão foi mantida no tribunal estadual, para o qual o encravamento do imóvel é relativo: por meio de obras, embora dispendiosas, o autor poderia ter acesso à via pública.




Interesse público 

De acordo com o ministro Ari Pargendler, relator do recurso especial, não existe encravamento absoluto. “Numa era em que a técnica dominou a natureza, a noção de imóvel encravado já não existe em termos absolutos e deve ser inspirada pela motivação do instituto da passagem forçada, que deita raízes na supremacia do interesse público”, comentou.




Ele considerou que o dono da fazenda São José tinha direito à passagem forçada, visto que o trecho encravado não tem saída para a via pública e a comunicação por via terrestre só seria possível se fosse construída estrada a custos elevados. Além disso, o laudo pericial constatou que seria necessário construir duas pontes, aterro e drenagem em alguns pontos.




Para Pargendler, o reconhecimento de que o custo das obras seria elevado foi suficiente para reconhecer o direito de passagem forçada. Entretanto, ele lembrou que o vizinho que iria tolerar a passagem teria direito de receber indenização, que poderia ser fixada em liquidação de sentença (REsp 316.336).




Ruídos 

O morador de uma quitinete, localizada em área comercial do Sudoeste, em Brasília, ajuizou ação possessória contra o Condomínio do Edifício Avenida Shopping. Alegou que sua vizinha, uma empresa comercial, instalou, sobre o teto do edifício e acima de sua residência, equipamento que funcionava ininterruptamente, produzindo vibrações e ruídos que afetavam sua qualidade de vida.




Pediu que a empresa fosse proibida de utilizar o equipamento, além de ressarcimento pelos danos morais sofridos. O juízo de primeiro grau verificou que a convenção de condomínio estabelecia a finalidade exclusivamente comercial do edifício e que só havia barulho acima do tolerável no período noturno.




O morador recorreu ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal, que deu parcial provimento ao recurso, para condenar a empresa e o condomínio, solidariamente, ao pagamento de indenização por danos morais, no valor de R$ 15 mil. No curso do processo, o morador deixou o imóvel, por isso, o outro pedido ficou prejudicado.




Imóvel comercial




Inconformada, a empresa interpôs recurso especial no STJ. Afirmou que o morador residia irregularmente em imóvel comercial e que, por essa razão, não teria direito ao sossego e silêncio típicos de área residencial.




Para a ministra Nancy Andrighi, relatora do recurso especial, o tribunal de justiça superou as regras condominiais e reconheceu que, naquele edifício, havia uma área de uso misto. Ela verificou que o imóvel tinha sido anunciado como uma quitinete e, ainda, que a tarifa de luz e o IPTU cobrado levavam em conta o caráter residencial do imóvel.




Verificou ainda que o condomínio tolerou a utilização do edifício para fins diversos daqueles estipulados em sua convenção. “Se os próprios construtores do prédio anunciavam que certas unidades ali comercializadas poderiam destinar-se à habitação, todos, condomínio, adquirentes e locatários, não poderiam ignorar essa realidade”, afirmou.




Andrighi explicou que o artigo 187 do CC reconhece que a violação da boa-fé objetiva pode corresponder ao exercício inadmissível ou abusivo de posições jurídicas. “Assim, o condômino não pode exercer suas pretensões de forma anormal ou exagerada com a finalidade de prejudicar seu vizinho”, mencionou.




A Terceira Turma manteve a condenação em danos morais no valor arbitrado pelo tribunal de segunda instância (REsp 1.096.639).




Uso indevido




No caso de imóvel alugado, o locador (proprietário) tem o dever de zelar pelo uso adequado de sua propriedade, assegurando-se da correta destinação dada pelo inquilino, principalmente no que se refere à higiene e limpeza da unidade objeto da locação. Esse entendimento é da Terceira Turma.




No Condomínio Residencial Suite Service há uma regra que obriga os condôminos a permitir o acesso às suas unidades para que sejam realizados serviços de limpeza. Mesmo notificada dessa obrigação, uma locatária não permitiu que os funcionários responsáveis pela limpeza entrassem em seu apartamento.




Diante disso, o condomínio moveu ação cominatória contra a locatária. Sustentou que as condições precárias de higiene da unidade afetaram os demais condôminos, causando-lhes riscos à saúde e ao bem-estar no prédio.




Responsabilidade 

O juízo de primeiro grau determinou a citação da locatária, mas verificou que ela estava impossibilitada de comparecer, pois precisava passar por avaliação médica antes. Diante disso, autorizou o pedido do condomínio, para incluir o proprietário no polo passivo da demanda.




Após ser citado, o proprietário apresentou contestação, na qual sustentou que não havia responsabilidade solidária pelas obrigações condominiais entre locatário e locador. Como não obteve sucesso nas instâncias ordinárias, ele interpôs recurso especial perante o STJ.




De acordo com o ministro Massami Uyeda, relator do recurso especial, “o locador mantém a posse indireta do imóvel, entendida como o poder residual concernente à vigilância, à conservação ou mesmo o aproveitamento de certas vantagens da coisa, mesmo depois de transferir a outrem o direito de usar o bem objeto da locação”.




Ele explicou que, tratando-se de direito de vizinhança, a obrigação decorre da propriedade da coisa. “Por isso, o proprietário, com posse indireta, não pode se eximir de responder pelos danos causados pelo uso indevido de sua propriedade”, afirmou.




A Terceira Turma negou provimento ao recurso especial, pois concluiu que o proprietário possui legitimidade para responder por eventuais danos relativos ao uso de sua propriedade (REsp 1.125.153).




Subsolo




O artigo 1.229 do CC estabelece que a propriedade do solo abrange a do subsolo correspondente. Contudo, a segunda parte do dispositivo limita o alcance desse subsolo a uma profundidade útil ao seu aproveitamento. Com esse entendimento, a Terceira Turma impediu que proprietários de um imóvel se opusessem às atividades realizadas pelos vizinhos em seu subsolo.




Na origem, um casal moveu ação indenizatória por danos materiais e morais contra seus vizinhos. Alegaram que o seu imóvel havia sofrido danos decorrentes de obras, principalmente escavações, realizadas em sua propriedade.




Em primeira instância, o juiz determinou que os vizinhos pagassem indenização por danos materiais e também que retirassem os tirantes utilizados na ancoragem da parede de contenção erguida. Na apelação, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul manteve a indenização, mas afastou a determinação de remoção dos tirantes.




No recurso especial, os proprietários alegaram violação aos artigos 1.229 e 1.299 do CC, que tratam, respectivamente, da propriedade do subsolo e do direito de construir.




Utilidade




De acordo com a ministra Nancy Andrighi, “o legislador adotou o critério da utilidade como parâmetro definidor da propriedade do subsolo, limitando-a ao proveito normal e atual que pode proporcionar, conforme as possibilidades técnicas então existentes”.




Ela explicou que tal critério tem a ver com a proteção conferida pela Constituição Federal à função social da propriedade, “incompatível com atos emulativos ou mesquinhos do proprietário, desprovidos de interesse ou serventia”, afirmou.




A relatora verificou no processo que não houve nenhum prejuízo ou restrição ao direito de uso, gozo e fruição da propriedade e, ainda, que a parcela do subsolo utilizada para a realização de obras (a quatro metros do nível do subsolo) não devia ser considerada parte integrante da outra propriedade. A turma negou provimento ao recurso especial (REsp 1.233.852). 






FONTE: STJ


A ANÁLISE DE MONTESQUIEU SOBRE A TRIBUTAÇÃO



Em L’Espirit des Loix (O Espírito das Leis) Montesquieu dedicou o livro décimo terceiro para comparar modelos tributários. O referido excerto denomina-se Das relações que a arrecadação dos tributos e a grandeza das rendas públicas têm com a liberdade. Montesquieu comparou modelos de tributação para questionar imposições fiscais e exercício de liberdades. O ponto de partida identifica teorização referente às finanças públicas:
As rendas do Estado são uma parcela que cada cidadão dá de seu bem para ter a segurança da outra ou para fruí-la agradavelmente. Para fixar corretamente essas rendas, cumpre considerar as necessidades do Estado e as necessidades dos cidadãos. Não se deve tirar das necessidades reais do povo para suprir as necessidades imaginárias do Estado. Necessidades imaginárias são as exigidas pelas paixões e fraquezas dos que governam, a atração de um projeto extraordinário, o desejo doentio de uma glória inútil e uma certa impotência do espírito contra os caprichos. Amiúde, os que, com um espírito inquieto, estavam na direção dos negócios sob o governo do príncipe julgaram que as necessidades do Estado eram as necessidades de suas almas insignificantes. A sabedoria e a prudência devem regulamentar tão bem como a porção do que se retira e a porção que se deixa aos súditos (MONTESQUIEU, 1982, p. 241).
O filósofo francês investigou vários modelos tributários de modo a evidenciar alguns equívocos que se praticavam em solo francês. Montesquieu identificou circunstâncias que assinalou como casos semelhantes. O autor de O Espírito das Leis procurou tirar conclusões, a partir de juízos de comparação e assim, por exemplo:
Quando uma república reduziu uma nação a cultivar as terras para ela, não se deve permitir que o cidadão possa aumentar o tributo do escravo. Isso não era permitido na Lacedemônia [Esparta]; imaginava-se que os helotas cultivariam melhor as terras se soubessem que sua servidão não seria aumentada ainda mais; acreditava-se que os senhores seriam melhores cidadãos quando só aspirassem ao que estavam acostumados a possuir (MONTESQUIEU, 1982, p. 243). 
Observando as várias práticas exacionais que então se conhecia, Montesquieu desenhou quadro elegante da tributação em seu tempo, aparentemente buscando o que seria melhor para a França. Por exemplo:
Pedro I, pretendendo imitar a prática da Alemanha e arrecadar seus tributos em dinheiro, estabeleceu um regulamento muito sábio que ainda hoje é observado na Rússia. O gentil-homem cobra a taxa de seus camponeses e a paga ao czar. Se o número de camponeses diminui, ele pagará do mesmo modo; se o número aumentar, ele não pagará mais; está portanto interessado em não vexar seus camponeses (MONTESQUIEU, 1982, p. 243).
Ainda teoricamente, Montesquieu questionava as melhores fórmulas de tributação, adiantando-se em discussão contemporânea, relativa à tributação dos salários ou do consumo. Afirmou que em um Estado, quando todos os indivíduos são cidadãos, e quando cada um possui por seu domínio o que o príncipe possui por seu império, pode-se taxar as pessoas, as terras ou as mercadorias; duas delas ou todas as três (MONTESQUIEU, 1982, p. 243). O pensador francês também problematizou questões que lembram temas de tributação indireta. De tal modo,
Os direitos sobre as mercadorias são os que os povos menos sentem, porque não se lhe faz uma arrecadação formal. Podem eles ser tão sabiamente manipulados que o povo quase ignorará que os paga. Por isso, é muito importante que quem vende a mercadoria seja quem pague o direito. Ele saberá muito bem que não é ele quem paga e o comprador, que é quem efetivamente paga, o confunde com o preço. Alguns autores disseram que Nero suprimira o direito do vigésimo quinto escravo vendido; entretanto, não fizera ele outra coisa senão ordenar que seria o vendedor que o pagaria e não o comprador; este regulamento que conservara todo o imposto pareceu suprimi-lo(MONTESQUIEU, 1982, p. 244).
As observações de Montesquieu indicavam a necessidade de se implementarem modelos simplificados de arrecadação. Para o filósofo do iluminismo francês:
Os tributos devem ser facilmente compreendidos e tão claramente estabelecidos que não possam ser aumentados nem diminuídos pelos que os arrecadam. Uma porção sobre os frutos da terra, uma taxa por cabeça, um tributo por tanto por cento sobre as mercadorias, são os únicos convenientes (MONTESQUIEU, 1982, p. 246).
O método comparativo de Montesquieu avaliava também a prestabilidade das penas fiscais. É disso que trata o seguinte excerto:
É uma particularidade das penas fiscais serem, contra a prática geral, mais severas na Europa do que na Ásia. Na Europa, confiscam-se as mercadorias e, algumas vezes, inclusive os navios e os meios de transporte; na Ásia, não se faz nem uma coisa nem outra. É que na Europa os comerciantes têm juízes que podem garanti-los contra a opressão; na Ásia, os juízes despóticos são os próprios opressores. Que faria um comerciante contra um paxá que resolvesse confiscar-lhe as mercadorias? É a vexação que supera a si própria e vê-se constrangida a uma certa brandura. Arrecada-se, na Turquia, apenas um único direito de entrada; e depois disso, todo o país está aberto aos mercadores. Não implicam falsas declarações nem confisco, nem aumento dos direitos. Na China, não se abrem os fardos das pessoas que não são comerciantes. A fraude, entre os mongóis, não é punida com o confisco, mas com a duplicação dos direitos. Os príncipes tártaros, que na Ásia habitam as cidades, quase nada arrecadam sobre as mercadorias em trânsito. No Japão, o crime de fraude no comércio é considerado crime capital, é porque há motivos para proibir toda comunicação com os estrangeiros e porque a fraude é, aí, antes uma contravenção às leis de segurança do Estado do que às leis da segurança do Estado e às leis do comércio (MONTESQUIEU, 1982, p. 246).
Montesquieu interessava-se por todos os sistemas tributários que tinha notícias e em relação a eles montava interessante painel que lhe possibilitava pensar o sistema fiscal francês. Assim,
Regra geral: pode-se arrecadar tributos mais elevados, na proporção da liberdade dos súditos, e é-se forçado a moderá-los na medida em que a servidão aumenta. Isso sempre aconteceu e acontecerá sempre. É uma regra extraída da natureza que nunca varia; encontramo-la em todos os países, na Inglaterra e na Holanda e em todos os Estados em que a liberdade vai se degradando, até na Turquia. A Suíça parece ser uma exceção porque lá não pagam tributos. Não sabemos o motivo específico disso, mas esse país confirma também o que afirmo. Nas suas montanhas estéreis, os víveres são tão caros e o país tão povoado que um suíço paga quatro vezes mais à Natureza do que um turco paga a um sultão (MONTESQUIEU, 1982, p. 247).
Montesquieu abriu capítulo próprio para tratar da isenção de tributos e também para prever questões orçamentárias, conjeturando que:
A máxima dos grandes impérios do Oriente de dispensar do pagamento de tributos as províncias arruinadas, deveria ser muito imitada nos Estados monárquicos. Em alguns, de fato, ela já existe, porém oprime mais do que se não existisse porque, não arrecadando o príncipe nem mais nem menos, todo o Estado torna-se solidário. Para aliviar uma aldeia que paga com dificuldade, sobrecarrega-se outra que paga melhor; não se restabelece a primeira, destrói-se a segunda. O povo fica desesperado entre a necessidade de pagar, o medo das exações, o perigo de pagar e o temor das sobrecargas. Um Estado bem governado deve colocar, como primeiro artigo de sua despesa, uma soma regulamentada para os casos inesperados. Ocorre com o público a mesma coisa que ocorre com os indivíduos: arruínam-se quando despendem exatamente a renda de suas terras(MONTESQUIEU, 1982, p. 250).
Insistindo na formalidade e na boa organização do modelo de arrecadação, Montesquieu imaginava modelo fiscal marcado pela transparência e pela racionalidade:
A arrecadação oficial é a administração de um pai de família que obtém, ele próprio, com economia e ordem, as suas rendas. Pela arrecadação oficial, o príncipe está em condições de apressar ou retardar a arrecadação dos tributos, de acordo com suas necessidades, ou de acordo com a necessidade de seus povos. Pela arrecadação oficial ele poupa ao Estado os imensos lucros dos contratadores que o empobrecem de mil maneiras. Pela arrecadação oficial, poupa ao povo o espetáculo das fortunas súbitas que afligem. Pela arrecadação oficial, o dinheiro arrecadado passa por poucas mãos, indo diretamente ao príncipe e, consequentemente, retorna mais rapidamente ao povo. Pela arrecadação oficial, o príncipe poupa ao povo uma infinidade de leis nefastas que a avareza importuna dos contratadores sempre lhe exige, e que mostram uma vantagem presente nos regulamentos funestos do futuro (MONTESQUIEU, 1982, p. 251).
O contratador criticado por Montesquieu era quem comprava adiantadamente os direitos de cobrar impostos, enviando aos príncipes parcelas calculadas sobre os valores que seriam arrecadados. Contratadores eram figuras odiadas. O Brasil conheceu a figura do contratador das minas, que muita fúria promovia nas populações que pagavam tributos à coroa portuguesa, por meio do referido cobrador de impostos. Montesquieu não perdoava os contratadores e os atacava de forma veemente:
Tudo está perdido quando a profissão lucrativa dos contratadores consegue, por suas riquezas, ser uma profissão honrada. Isto pode ser conveniente nos Estados despóticos em que, amiúde, seu emprego é uma parte das funções dos próprios governantes. Mas não é conveniente na república; e algo semelhante destruía a república romana. Isso também não é melhor na monarquia; nada é mais contrário do que isso ao espírito desses governos. A mágoa apodera-se de todos os outros Estados; a honra perde toda sua consideração, os meios lentos e naturais de ascensão perdem seu prestígio e o governo é afetado em seu princípio (MONTESQUIEU, 1982, p. 252).
Montesquieu vinculou a cobrança dos tributos à atuação do homem público em relação ao bem comum. E assim encerrou o referido capítulo sobre tributação:
Há um prêmio para cada profissão. O prêmio dos que arrecadam os tributos são as riquezas, e as recompensas dessas riquezas são as próprias riquezas. A glória e a honra cabem a esta nobreza que só conhece, que só vê, que só sente como verdadeiro bem a honra e a glória. O respeito e a consideração cabem a esses ministros e magistrados que, só encontrando trabalho sobre trabalho, velam pela noite e dia pela felicidade do império (MONTESQUIEU, 1982, p. 252).
Montesquieu compreendeu a importância da tributação e, de certa forma, insinuou que o bom gasto público é, certamente, o antídoto mais potente e o termômetro mais fiel para todos os regimes tributários que há. E porque não há direitos sem recursos que os garantam, e nem serviços públicos sem fontes de financiamento, não se tem, até hoje, outra fórmula de obtenção de recursos, que não a tributação, ou a inflação. Nesta última, vinga o descontrole e a baixa-estima; naquela primeira, tem-se oportunidade para o controle e para a discussão pública. 
Bibliografia
MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat, Barão de. O Espírito das Leis. Brasília: UnB, 1982.
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP.
Revista Consultor Jurídico, 17 de fevereiro de 2013

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

DIREITOS HUMANOS NO DIÁLOGO ENTRE OS CAMPOS DE CONHECIMENTO

Os artigos deste número da Revista Katálysis enfocam o tema dos direitos humanos a partir de diferentes quadros teóricos, o que constitui uma riqueza e contribui para eliminar de antemão muitas objeções hoje vigentes em relação à problemática em questão. Isto porque os diferentes quadros nos oferecem óticas diferenciadas, e não, necessariamente, excludentes, de abordar o tema. O que, certamente, irá contribuir para a percepção de que a maioria das objeções levantadas provém do fato de não se levar em consideração a ótica em que a problemática é tratada e, sobretudo, da não consideração de que, a partir de sua estruturação interna, os diversos quadros teóricos podem dar na abordagem da questão.
Numa perspectiva mais genérica, pode-se dizer que é muito diferente, de um lado, considerar a problemática dos direitos humanos dentro do quadro teórico das ciências sociais, que analisam as condições da vida humana nos contextos específicos das sociedades contemporâneas, e de outro, procurar trabalhar esta problemática no contexto de uma teoria da realidade em seu todo, portanto, no contexto de uma teoria filosófica.
A abordagem em distintas óticas pode contribuir para mostrar como estas podem ser complementares, mesmo guardando seus níveis teóricos diferenciados para a consideração de um tema que se transformou numa das questões centrais do mundo em que vivemos, tanto do ponto de vista teórico como do ponto de vista de sua efetivação nos diversos níveis e dimensões da vida humana, pessoal e coletiva.
Um dos problemas básicos que emergem no debate contemporâneo sobre os direitos humanos, e que têm grandes consequências para sua compreensão, é a concepção de ser humano, normalmente implícita, presente nos debates e determinante para a compreensão e a avaliação do que se pretende dizer quando se fala de direitos humanos.
Um elemento decisivo para uma compreensão adequada dos direitos humanos, enquanto "exigências morais" (direitos pré-positivos) que se radicam na constituição ontológica do ser humano e se distinguem dos "direitos positivados" (direitos positivos), é o fato de que o ser humano, ser corporal-espiritual, como indivíduo, constitui-se como um ser situado numa forma específica de configuração do conjunto de seus relacionamentos com os outros indivíduos e com a natureza da qual ele faz parte. Esta estruturação marca e condiciona as diversas dimensões de suas vidas individuais. Mesmo como um ser, em princípio capaz de transcendência a qualquer configuração de seu ser, ele não existe para além de qualquer estruturação sócio-histórica. Desta forma, a compreensão do ser humano como um ser essencialmente aberto à alteridade e histórico implica em compreender a vida humana como um processo de condicionamento recíproco entre indivíduos e estruturas da vida social.
Assim, a conquista efetiva de seu ser passa pela forma de configuração destas relações na medida em que delas depende, se os mundos históricos por ele construídos constituem-se, ou não, como espaços de possibilitação do reconhecimento dos seres humanos enquanto sujeitos, seres corporal-espirituais chamados à liberdade.
A tese fundamental neste contexto é que o indivíduo só pode efetivar-se através da mediação de um mundo de instituições que assegura o espaço de liberdade: é no espaço de mundos de seres livres e iguais que ele se realiza como tal. Por esta razão, é decisiva a forma de estruturação dos mundos intersubjetivos para a efetivação dos direitos humanos que são constitutivamente sempre individuais e sociais. O debate atual sobre os direitos humanos precisa, por isto, partir de um questionamento básico que se situa no quadro teórico específico das ciências: como se configura nosso mundo histórico hoje e que lugar têm aí os direitos humanos?
Em sua dinâmica atual, o capital conquistou para si um espaço de ação para além do espaço dos estados nacionais, constituindo uma economia global através de uma onda de desregulamentações, fusões e privatizações, reestruturação empresarial e produtiva. Fomentou a expansão das empresas transnacionais, estruturadas a partir de seus interesses corporativos que se subtraem cada vez mais ao controle dos estados nacionais e pagam cada vez menos impostos em seus países de origem. Aumentaram a produção e a riqueza mundiais, com distribuição desigual de seus resultados, já que privilegia elites hegemônicas, marcadas por um produtivismo consumista ilimitado, e degrada os ecossistemas, desperdiçando matéria-prima e energia, destruindo a biodiversidade, exaurindo os solos e as águas, realidades que hoje já ameaçam obstruir todo o sistema.
A globalização transformou profundamente nos últimos 20 anos a organização econômica, as relações sociais, os modelos de vida e cultura, os Estados e a política, e acelerou enormemente as mudanças e a geração de novos paradigmas. Recorre-se hoje à lógica da globalização para legitimar o desmantelamento das instituições de proteção social e de controle de mercados, do exercício do papel equilibrador do Estado e da proteção dos direitos dos cidadãos, já que as instituições políticas dispõem de pouca margem de manobra frente aos mecanismos dominadores do mercado, de modo especial frente aos organismos financeiros internacionais.
O resultado deste processo escancara a violação dos direitos elementares do ser humano, gerando: pobreza, miséria, dependência econômica, ditadura política, opressão policial, sequestro, tortura, exílio, assassinato. Acontece com clareza aquilo que Franz Hinkelammert (El sujeto y la ley: El retorno del sujeto reprimido. Heredia: EUNA, 2003, p. 79) chamou de "inversão dos direitos humanos", onde "a história moderna dos direitos humanos é a história de sua inversão, a qual, transforma a violação dos direitos humanos em imperativo categórico da ação política."
Age-se em nome dos direitos humanos contra a pessoa humana o que normalmente vem acoplado à criminalização dos defensores dos direitos humanos que desmascaram a hipocrisia.
Há grandes massas de indivíduos que são os perdedores deste processo e há completa ausência de uma autoridade global efetiva para enfrentar as questões que emergem desta nova situação.
No contexto atual do mercado total, os direitos humanos, fundados na liberdade, são vistos como distorções, pois tudo se reduz ao indivíduo e à sua competência, o que tem conduzido a uma perda acentuada do sentido da coisa pública, do bem comum. O que rege a vida social é a "lei da selva", do "cada um por si", do "levar vantagem em tudo". Cabe ao indivíduo prover a sua vida e as suas necessidades. Daí porque acima dos direitos do ser pessoal, agora desqualificados como privilégios, se põem os "direitos" do grande capital.
A política macroeconômica opta por empreendimentos que levam à exclusão progressiva e à flexibilização do mercado de trabalho em favor da grande empresa. Uma vez que o objetivo básico é submeter a vida social em sua totalidade às leis do mercado, tudo é avaliado de acordo com sua funcionalidade, ou não, ao mercado livre.
Estas experiências dolorosas de degradação da vida humana abriram a muitos um horizonte que lhes permitiu aceder a uma nova consciência da significação dos direitos humanos na vida humana.
Numa outra perspectiva, uma das respostas, talvez desesperada, a esta situação que se apresenta em nosso contexto é o terrorismo que levanta a pretensão de uma legitimação ética; o terror emerge aqui como a resposta dos povos ou grupos oprimidos à arrogância dos poderosos, como penalidade justificada em virtude de sua petulância e crueldade.
A história humana, examinada do ponto de vista normativo (portanto, no nível da reflexão ética, da filosofia da política e do direito), revela-se como o espaço de luta pela efetivação da dignidade específica do ser humano enquanto ser pessoal dotado de corporeidade, inteligência, vontade e liberdade. Isto significa a efetivação de direitos e, como tarefa histórica, implica o enfrentamento de todo tipo de desigualdade e servidão, possibilidades constantes na vida humana, e produz a negação de seu caráter de sujeito e sua redução a objeto, em diferentes formas.
A humanização, portanto, é algo construído, conquistado, o que pressupõe sujeitos ativos e conscientes de sua dignidade que se efetiva em direitos. Enquanto tais, estes sujeitos se fazem autores de seu próprio desenvolvimento, que passa pelo reconhecimento mútuo, o qual por sua vez se faz através da mediação de instituições, que regulam a convivência entre os seres humanos e suas relações com a natureza no sentido de superar todo tipo de instrumentalização e opressão.
Nesta perspectiva, manifesta-se que a igualdade básica dos seres humanos é, antes de tudo, uma igualdade de direitos, por conseguinte normativa, cuja efetivação na história humana pressupõe o estabelecimento de "instituições universalistas" que possam garantir a criação do espaço do reconhecimento universal, o que se traduz em democracia radical e justiça socioeconômica.
Mais do que nunca, neste contexto, os direitos do ser humano, enquanto direitos essenciais, pré-positivos, devem constituir o alicerce de uma convivência racional; e, já que eles são a decorrência da liberdade, isto significa dizer que a liberdade deve ser o fundamento da ordem social.
Desta forma, a efetivação dos direitos humanos significa a garantia de uma vida humana verdadeiramente sustentável e digna. Consequentemente, o poder e o mercado não podem constituir o valor supremo e os controladores incontestáveis da vida humana, mas, antes, só têm sentido na medida em que se submetem aos direitos essenciais do ser humano e se põem a seu serviço, portanto, a serviço da justiça.
A norma decisiva do direito pré-positivo objetivo é precisamente que os direitos subjetivos dos portadores de direito devem ser protegidos com coerção.
Isto significa efetivar a razão como a instância que rege a existência social, na qual os seres humanos conduzem suas vidas a partir de princípios da justiça e se reconhecem reciprocamente como membros de uma entidade de seres livres e iguais.
Toda ação de indivíduos ou estruturas de instituições que entrem em contradição com estas exigências básicas do ser humano devem ser rejeitadas a partir da "medida" de referência que são os direitos humanos.
Por outro lado, um direito moral precisa também garantir a segurança jurídica e, enquanto tal, exige um "Estado de Direito", capaz de unir justiça e segurança legal e, portanto, de reconhecer e garantir a efetivação dos direitos fundamentais do ser humano. São estes direitos que possibilitam a efetivação do ser humano como ser livre, e o Estado só pode ser considerado um Estado de direito quando ele mesmo se submete a estes direitos. Assim, o Estado não constitui a fonte da vida coletiva, mas é um instrumento criado pela sociedade em função da efetivação dos direitos que decorrem da dignidade do ser humano. É a efetivação dos direitos humanos que tornará possível configurar a vida humana de tal forma que ninguém seja excluído de sua dignidade.
Manfredo Araújo de Oliveira, Fortaleza, julho 2011.

Manfredo Araújo de Oliveira manfredo.oliveira@uol.com.brDoutorado em Filosofia pelo Universität München
Ludwig Maximilian, Alemanha
Professor titular da Universidade Federal do Ceará (UFC)

UFC - Centro de Humanidades Departamento de Filosofia
Avenida da Universidade, 2995
Benfica Fortaleza - Ceará - Brasil
CEP: 60020-181


Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-49802011000200001&lang=pt

ATENTADOS EM SANTA CATARINA, ENTRE CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE

 

 
História que se repeteA história se repete, normalmente como farsa. O caso da violência em Santa Catarina é uma crônica do que pode acontecer a qualquer momento em qualquer estado da Federação. Basta os bandidos quererem. Basta que eles deem a ordem. Eles param e reiniciam. São Paulo não perde por esperar. Aliás, o poder está nisso: as autoridades nunca sabem quando reiniciarão os ataques. Noventa e cinco atentados é algo a ser considerado, pois não? Mormente quando se vive plena democracia. Logo, qual é o papel do Estado (Estado no sentido de Instituição da modernidade)?
Escrevi recentemente um artigo sobre a violência em São Paulo. Falava, então, do “acadelamento” do Estado. Entre civilização e barbárie, vence a barbárie. Hobbes e Freud não são chamados para essa “festa macabra”. Se o são, é pelo lado do “homem é o lobo do homem” ou do “ID” e não pelo Estado estatuidor e pelo super-ego que impede o ID de “farrear”.
Na verdade, acostumados a reverenciar o “deus” Rousseau (a responsabilidade é sempre da estrutura), as autoridades — historicamente — foram deixando o papel da interdição da lei (no sentido legal e psicanalítico da palavra) afrouxar. Quem deveria ser o protagonista, acaba sendo um coadjuvante. De péssima performance, aliás (pelo menos com relação a esse tipo de violência e com relação aos crimes do colarinho branco...!).
Os ataquesPor que ocorrem esses ataques? Vou me repetir. As cadeias são máquinas biopolíticas. São campi criados pelo Estado. E, para fazer isso, o Estado suspendeu a lei. Sim: precisamos admitir que o tipo de prisão que temos é decorrente de um “Estado de exceção” (sem clichês, mas sempre é bom recordar da obra de G. Agambem), entendido esse quando há uma suspensão da lei (não é necessário dizer quantas leis — e em especial a LEP — que foram suspensas de há muito).[1] Ou seja, quem possui o monopólio da coerção legítima o exerce sem respeitar aquilo que lhe é condição de possibilidade: a própria Lei.
Pois é. Masmorras medievais — ou “quetais” — produzem coisas... De lá sai a “vida nua”, de que fala Agambem. Lá dentro estão os “matáveis”. Estão aqueles que estão à disposição... de um Estado de exceção permanente. Mas, fora da masmorra, há outra máquina de produção, que retroalimenta esse “sistema”. São as periferias produtoras da violência. Periferias não exatamente geopolíticas, mas “periferias da lei, isto é, à margem da lei”. A perfeita imbricação da ausência do Estado (e/ou da sua leniência) e da falta de interdição da lei produz uma nova presença: aquele que se apresenta como o “preenchedor do vácuo”.
Veja-se: o teórico Agambem nunca pensou que o homo sacer (esse produto biopolítico) fosse se voltar contra os construtores da “máquina biopolítica”. Nesse contexto, não há lei. Há um continuum de pequenos soberanos, que suspendem a lei a todo momento. Quando querem, suspendem a lei. É o troco que é dado para quem produziu tanta vida nua. Um “bando soberano”. É esse o conceito dos que colocam em pânico (e em constante risco físico) a população de São Paulo e tantas cidades de Santa Catarina (por enquanto).
Como combater esse “bando soberano”? Por certo não será com a repristinação da velha Lei de Segurança Nacional, que sequer foi recepcionada pela Constituição de 1988. Suspender a lei (garantias), ou seja, fazer um combate como se fosse uma guerra, a partir de um “oficial-estado-de-exceção”?[2] Penso que não. O Estado não pode ser tornar também uma coisa fora da lei. Seria um retrocesso. E seria o reconhecimento de que ali do outro lado está alguém que é simplesmente um inimigo, quando, na verdade, ele é mais do que isso. Nessa vida nua, “suspende-se” a tese de “amigo-inimigo”, enfim, essas dicotomias que forja(ra)m a modernidade.
Para mim, há direito suficiente; o que há de pouco é “Estado”. Sim, há pouco Estado (Staat). Estado que não constrói presídios, deixa os que aí estão em petição de miséria e não fornece segurança pública aos utentes. O ovo da serpente pode ter estado lá atrás, quando o governo de São Paulo fez um acordo com o PCC, que, a meu pensar, naquele momento ainda não era o “bando soberano” aqui tratado, cuja estratégia de “luta” espalha-se agora em Santa Catarina. Ele foi se construindo nesse tempo todo. Não nos surpreendamos. Em alguns dias, é provável que os ataques parem. Um mimo nos presídios, um acordozinho aqui e ali, e, bingo. Resolvido? Ledo engano. É só o “bando soberano” não gostar de alguma coisa ou for contrariado nas administrações prisionais e ele volta a dar o tom.
O Senhor das MoscasNada desculpa o Estado. E nada desculpa a ação dos bandidos. Deixemos isso bem claro. Onde começa o esgarçamento do Estado e do poder de interdição da lei? Esse é o busílis da questão. Houve o esgarçamento da interdição. Como no livro O Senhor das Moscas (prêmio Nobel para William Golding) — não me canso de falar desse livro[3]—, em que meninos da aristocracia inglesa são levados, no período da Guerra Fria, para uma ilha deserta, para salvá-los de um conflito nuclear e ali pudessem começar uma nova sociedade. No caminho, caiu o avião. Morreu o piloto; morreu o instrutor. Cada um por si... nenhum por todos. Sem Deus, sem Estado, sem nada... Em uma semana, organizam-se em pequenos bandos e se matam. Somente com a volta do “Estado” — da lei — é que aqueles meninos em estado de natureza voltam à civilização, abandonando a barbárie. O final do filme, para quem não quiser ler o livro, é bastante significativo...
Pois é isso. Entre civilização e barbárie, não (mais) interditamos. Daí a pergunta que costumo fazer, a partir do psicanalista Alfredo Jeruzalinski: “Como combater o gozo da sociedade sem ser tirânico”? Na verdade, eis aí o problema: o Estado não combateu o “gozo” (no sentido psicanalítico) na hora certa. Mais que um estado-de-natureza, o Estado deixou que surgissem personagens (penso que são vários; não há apenas um chefe) que se aproveitam da vida nua, do homo sacer. Usam os “matáveis” para matar outros — estes considerados “não-matáveis” (ainda).
Como dizia Nelson Rodrigues, com seu sarcasmo mordaz, a ineficiência, a corrupção etc., não vieram do nada. São produtos de “muito trabalho” e “muita dedicação”. Quando o Estado, lá atrás, abriu mão de construir presídios porque não era um bom “investimento”, usou como escudo uma velha máxima falaciosa do tipo “quem constrói um presídio fecha uma escola” (ou algo chato similar). Além disso, fomos invadidos/tomados por uma espécie de “culpa por punir”.
Consequentemente, falta pouco para sairmos por aí pichando as ruas com jargões do estilo “é proibido proibir” (paradoxalmente, não nos importamos quando o Estado transforma a embriaguez em um conceito jurídico e institucionaliza a responsabilidade objetiva na condução de automóveis; mas o mesmo Estado deixa que se fabriquem automóveis sem air bags e com chassis de “papelão”).
“Fora com o Direito Penal.” Crime hediondo, então, é uma palavra maldita (isso dá boas repercussões em palestras... todo mundo vira garantista e crítico). Muitos chegam a esquecer que a palavra "hediondo" está na Constituição, como garantidora de direitos fundamentais (art. 5º, XLIII), que, aliás, possui mandamentos de criminalização, também ao contrário que muita gente boa por aí diz. Gostemos disso ou não. Aliás, de há muito devíamos ter adaptado a legislação penal à Constituição, por exemplo, com uma nova teoria do bem jurídico... Ou alguém acha que isso que está acontecendo não tem nenhuma relação com absurdos do tipo “furto qualificado tem pena equivalente à lavagem de dinheiro”? E a lista é longa... Ou alguém acha que não repercute no imaginário da massa carcerária as benesses concedidas pelo establishment, por exemplo, ao sonegador de tributos?
Libertários com a liberdade alheiaMesmo assim, como as prisões foram enchendo, nos últimos 7 ou 8 anos, dobramos o número de prisioneiros, começamos a fazer paliativos, como afrouxar o cumprimento das penas (um sexto etc. — um homicídio simples vale um ano de prisão...). O trabalho externo dos apenados nunca foi vigiado. Chegamos ao cúmulo de conceder indulto para crime hediondo. Achamo-nos muito progressistas quando concedemos um dia de remição para cada três livros lidos (quem analisa as fichas de leitura?). Ninguém no mundo teve uma “ideia tão brilhante” para remir penas... Pindorama sempre está à frente!
Se pena não regenera — e alguém poderia acreditar nessa balela?![4] — ela é castigo (necessário) e serve para prevenção geral. É retribuição. Há que ser um pouco kantiano nisso, pois não? Nenhum país do mundo abriu mão da pena de prisão. E não pensemos que a questão da monetarização do Direito Penal — com cestas básicas, penas de multa, etc., defendidas por vários setores do Direito Penal (mormente após o mensalão) — foi uma grande “invenção garantista”. Neste ponto, calha registrar a objeção feita por Ferrajoli à “monetarização” do Direito Penal: “Ningún bien considerado fundamental hasta el punto de justificar la tutela penal puede ser monetarizado, de modo que la previsión misma de delitos sancionados con penas pecuniarias evidencia o un defecto de punición (si el bien protegido es considerado fundamental) o, más frecuentemente, un exceso de prohibición (si tal bien no es fundamental).”
Mas nós inovamos. Queremos ser libertários com a liberdade alheia. Com a insegurança da patuleia. Quando promulgamos a Lei dos Juizados Criminais, todas as pequenas infrações passaram a ter penas alternativas (cesta básica, que é uma espécie de monetarização, queiramos ou não). Na sequência, veio uma nova lei, na carona (Lei 10.259), pela qual todos os delitos cujas penas máximas não passassem de dois anos, passariam ao patamar de “menor potencial ofensivo”. Com isso, mais de 70 modos diferentes de delinquir passaram a ser punidos com a mesma pena: o pagamento de cesta básica. E todos (ou maioria) disseram: agora vai! E foi?
Será que não havia um componente simbólico-psicanalítico nesse afrouxamento? Abuso de autoridade, desacato, desobediência (vejam a sutiliza desses crimes) passaram a ser tratados como “menor potencial ofensivo” (sic). E invasão de domicílio com armas? Hein?! Não há aspecto simbólico nisso? Fraude às licitações? Pode? Esses crimes são, mesmo, de menor potencial ofensivo? Não estou dizendo como devem ser punidos... mas que não são de menor potencial ofensivo, ah, isso não são!
Como venho insistindo, e não estou descobrindo a pólvora com isso, a sociedade é uma rede simbólica. Como dizia Castoriadis, o gesto do carrasco, real por excelência, é simbólico na sua essência. E o que mais importa no gesto do carrasco é o aspecto simbólico. Enfim: o que importa é o que os outros pensam sobre esse gesto... Qual é a simbologia? Vejamos: onde fica a autoestima da sociedade? 90% dos crimes não são investigados; 90% das denúncias são fruto de auto de prisão em flagrante... E alguém tem dúvida de que a impunidade lato sensu influencia no imaginário da violência? O simbólico e o simbolismo, nesse contexto, é “fatal”!
Pois bem. Os cases de São Paulo e Santa Catarina são resultado de uma construção simbólica das diversas teias de poder que surgiram em face de ausência que redundaram em (novas) presenças. Quem constrói vida nua recebe o troco. Dele mesmo, desse homo sacer. Que de “matável” se transforma em “matador”... a serviço dele mesmo. Pronto. E na hora em que quiser.
Insisto: o Estado deve retomar o seu papel de interditor. Direito há; o que falta é Estado (no seu papel interditor). Pensem bem: um Estado que admite que o crime de abuso de autoridade merece ser punido com cesta básica é porque não conhece o sentido da interdição fundante da modernidade. Todos os gatos ficaram pardos. Não há diferença (no sentido psicanalítico).
É claro que o Estado não necessita fazer um “Estado de exceção” para alcançar seu desiderato. Ele não precisa se igualar aos “comancheros” pós-modernos. Precisa tomar medidas profiláticas e, depois, preventivas. Voltar a ser “Estado”. Estatuir. Definir onde está o limite entre civilização e barbárie. E se dar ao respeito.
Afinal, foi assim que começou a modernidade! Está lá em Hobbes. Necessitamos apenas usar os mecanismos institucionais que estão à disposição. Sem abrir mão das garantias — como em qualquer democracia avançada (e penso que somos uma) — enfrentar o “bando soberano” que atormenta (neste momento) o ente federativo Santa Catarina. Antes que esse “bando” crie filhotes, em outros estados.
Se o Estado não voltar a “interditar” (no duplo sentido de que falo), teremos de tomar cuidado com a formação de milícias. Este é o caminho para a barbárie. Um enfrentamento ad hoc. Fora das redes oficiais. Aí, sim, veremos a guerra.
Numa palavra: e depois de acabar com o “bando soberano”... o que fará o Estado? Parece que há uma coisa presente (ou ausente) desse debate: o direito fundamental à segurança pública. Que está na Constituição. Poderíamos falar até de descumprimento de preceito fundamental, pois não? Quem aciona a Justiça? Afinal, um país que aposta no ativismo judicial... (não posso deixar de ser irônico e sarcástico nisso).
O triângulo dialéticoNão somos pós-modernos. Estamos na alta-modernidade, como diria Giddens. As promessas incumpridas da modernidade devem ser resgatadas. Urgentemente. E uma delas é a segurança (penso, aqui, no Triângulo Dialético propalado por JJ Gomes Canotilho, onde um dos vértices é a segurança). Sem discursos do tipo “o crime é produto social”; ou “a culpa é da estrutura”; “o homem nasce bom, a sociedade o corrompe”; e sem a chatice do “é proibido proibir”, de certos setores que parecem estar no século XIX, como se houvesse a dicotomia “Estado mau-cidadão bom”.
Pois é. Com esse tipo de procedimento, de grão em grão, não somente não fornecemos segurança como também “fabricamos” a vida nua. E temos aí o nosso homo sacer. A opção pela civilização deve ser o modo de combatê-lo. Ele também é produto. Mas, um produto com o qual ninguém contava. Quando prendermos ele(s), vamos ver se não reproduzimos os mesmos erros.
O que fazer, concretamente? Primeiro, tudo dentro da lei. Rigorosamente na forma da lei. Sem qualquer suspensão. Sem qualquer Estado de exceção (oficial ou oficioso). Prender os sediciosos. Além disso, construir presídios. Dignos. Acabar com as milícias. E exercer efetivamente o controle externo da atividade policial, para impedir que, por uma “vontade de miliciamento”, essa “guerra” seja retroalimentada. Interessante o paradoxo: no Brasil não se controla a atividade externa da Polícia (por razões que todos sabemos) e, ao mesmo tempo, quer-se passar o monopólio da investigação para... a Polícia. E veja-se o sucesso da PEC da Insensatez.
Para o presente, o Estado deve “estatuir”. E não se “acadelar”. Como já fiz quando escrevi o artigo sobre a violência em São Paulo, encerro com uma citação do jurista-sociólogo Luciano de Oliveira (Segurança: Um direito humano para ser levado a sério, in Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Direito 11. Recife, 2000, p. 244/245), a partir de sua tese de doutoramento defendida na Sorbonne, para quem, às vezes, esquecemos da relevante circunstância de que a segurança é, ela também, direito humano:
Está lá, já no artigo 2º da primeira Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: os direitos ‘naturais e imprescritíveis do homem’ são ‘a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão’. Declaração tipicamente burguesa, dir-se-ia. Mas é bom não esquecer (ou lembrar) que em 1793, no momento em que a Revolução empreende uma guinada num sentido social ausente na primeira — uma guinada à esquerda, na linguagem de hoje —, uma nova Declaração aparece estabelecendo, em idêntico artigo 2º, praticamente os mesmos direitos: ‘a igualdade, a liberdade, a segurança, a propriedade’ (in Fauré, 1988: 373)” — grifei.
E acrescenta o jurista pernambucano:
“Cento e cinqüenta anos depois a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU — na qual figuram, ao lado dos direitos civis da tradição liberal clássica, vários direitos sócio-econômicos do movimento socialista moderno — repetia no seu artigo 3º: ‘Todo indivíduo tem o direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal’. E,no entanto, esse é um direito meio esquecido. No mínimo, pouco citado.”
Numa palavra, não podemos esquecer que “o cidadão comum tem também direito à segurança, violada com crescente e preocupante freqüência pelos criminosos”.
Ao que disse Luciano Oliveira, nada tenho a acrescentar.
Post ScriptumSei que me repeti em muitos pontos, porque já havia falado disso no case São Paulo. Pois é. Mas repito também um de meus autores favoritos, Umberto Eco, para quem nada mais inédito do que repetir aquilo que já dissemos alhures e antanho. Afinal, Santa Catarina não repetiu São Paulo? Pois então...

[1] Quando não cumprimos uma lei que não é considerada inconstitucional, estamos praticando “estado de exceção”. Daí que determinadas posturas ativistas se caracterizam como “estado de exceção”.
[2] Como se um estado de exceção pudesse ser chamado de "oficial". Mas, prossigamos.
[3] Há um programa Direito e Literatura sobre o livro. Ver em www.unisinos.br/direitoeliteratura.
[4] Conforme Ferrajoli – e trago o mestre à colação exatamente para demonstrar o ponto ao qual me refiro - , o Estado não tem o direito de forçar os cidadãos a não serem malvados, senão só o de impedir que se danem entre si. Mas o Estado tampouco tem o direito de alterar - reeducar, redimir, recuperar, ressocializar ou outras ideias semelhantes - a personalidade dos réus. E o cidadão, embora tenha o dever jurídico de não cometer fatos delitivos, tem, no entanto, o direito de ser interiormente malvado e de seguir sendo o que é. Assim, para ele, as penas não devem perseguir fins pedagógicos ou correcionais, senão que devem consistir em sanções taxativamente predeterminadas, e não agraváveis com tratamentos diferenciados e personalizados do tipo ético ou terapêutico.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 14 de fevereiro de 2013

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