quinta-feira, 21 de junho de 2012

DECISÕES JUDICIAIS DEVEM FAZER DIFERENÇA


Decisões judiciais devem fazer diferença


Saber “como” os juízes decidem é uma questão fundamental em um Estado Democrático de Direito que propugna pela proteção dos Direitos Fundamentais. Sabemos que, diferentemente do Estado Liberal e do Estado de Bem-Estar, no Estado Democrático de Direito (Democratic Rule of Law) (1) há uma grande preocupação não apenas com a declaração de direitos, mas também com garantir formas de se proteger os mesmos.

Entre as “garantias constitucionais”, os meios judiciais assumem singular importância. Daí porque sabermos a “forma” em que a decisão se dá (ou como deveria) é fundamental na promoção dos Direitos Fundamentais. Entretanto, se por um lado, deve-se superar concepções positivistas, que reduzem a aplicação do direito à mera subsunção, não se deve, por outro lado, transpor o “código” próprio do Direito e transformar a resolução de casos jurídicos em sopesagem de valores, como se direitos fossem “bens” que pudessem ser “maximizados” ou “minimizados”, tal qual propõe Alexy e vem se utilizando o STF, através do princípio da proporcionalidade.

Para responder às exigências do Estado Democrático de Direito, propomos no presente mostrar as respostas que, a partir de Habermas e de Luhmann podem ser dadas. Com Habermas e Luhmann chamaremos a atenção para o caráter deontológico do Direito, que, como subsistema social, se move por um código próprio (direito/não direito) — e não por códigos graduais de valor, como propõe a teoria alexyana. A partir de Luhmann, vemos que Direito e Política são subsistemas sociais autopoiéticos, cada um se reproduzindo a partir de seus códigos próprios e que a Constituição se revela como acoplamento estrutural (Luhmann) — ou, em Habermas, como “dobradiça” — que permite que haja comunicação entre aqueles sistemas, de tal forma que ambos podem prestar serviços mútuos um ao outro, sem, contudo, perderem suas respectivas identidades.

Tomando-se os postulados de Habermas, entendemos que qualquer decisão judicial deve ser o produto de uma reconstrução do caso concreto, tomado como evento único e irrepetível e do Ordenamento Jurídico como “mar revolto de normas”, em sua “integridade”, é dizer, deve o magistrado mostrar como foi formado seu convencimento, tendo em mira a conformidade ou não das pretensões a direito levantadas pelas partes face às especificidades do caso sub judice — de tal forma que a decisão seja o produto daquilo que foi produzido em contraditório pelas partes, com a cooperação do magistrado, de modo racional.

Sobre o conceito de racionalidade, Habermas faz uma diferença entre a “razão prática”, própria da filosofia da consciência e a “razão comunicativa”, própria da filosofia da linguagem. Para ele, após Auschwitz não há mais como continuar se acreditando no poder emancipador da razão (prática), tal como defendido pelo cartesianismo e kantismo (2). Por outro lado, Habermas não entende que a crítica pura e desconstrutiva (como Nietzsche e Derrida) à razão seja possível, já que toda crítica da razão também é produto da razão (HABERMAS, 1998, página 59) por razões semelhantes não acredita em uma pós-modernidade, já que também acredita que há promessas ainda não cumpridas pela mesma. Sua alternativa é a ideia de “razão comunicativa”, em uma perspectiva procedimental, haja vista que, se de um lado há a crítica aos excessos da razão solipsista, por outro não há nada “mais alto” para além de nós mesmos, mas agora não considerados isoladamente, mas entendendo que compartilhamos formas de vida que são estruturadas (intesubjetiva e) linguisticamente (HABERMAS, 1998, página 59).

O que é problemático, para alguns no Direito, isto é, enxergar que a crença cega no absolutismo da razão não faz mais sentido após os excessos vivenciados nos dois últimos séculos, onde, ao invés de gerar “libertação e igualização” gerou exploração e genocídio instrumentalizados. Assim, quando se aprovam mecanismos como “Súmulas Vinculantes” e “efeitos vinculantes” em controle concentrado de constitucionalidade de leis o que se tem ainda é a crença cartesiana de que a realidade é um dado objetivo, estático, que possa ser “presa” através de fórmulas — de forma semelhante como se pensou ser possível com o Código Civil francês. Complementar a isso estão outras reformas no processo nada mais fazem do que diminuir a esfera de discussão, na ideia de que a diminuição gerará celeridade, quando, na verdade, o efeito é justamente contrário, ou seja, que é justamente a possibilidade do amplo debate e esclarecimento no primeiro grau que pode, potencialmente, reduzir a possibilidade de recursos desnecessários (NUNES; BAHIA, 2009).

A razão comunicativa supõe que o entendimento sobre algo no mundo se dá intersubjetivamente, a partir de um conjunto de condições contrafácticas possibilitantes; supõe, por isso, compreender o outro como igual portador dos mesmos direitos (3).

Entretanto, a possibilidade do entendimento fica “prejudicada” por uma sociedade descentrada e pós-metafísica, onde não há mais homogeneidade sobre conceitos de moral, ética, etc. (HABERMAS, 2001, página 94) Há que se atentar, no entanto, que, mesmo não compartilhando as mesmas expectativas, existem “consensos de fundo”, isto é, temas não questionados que possibilitam o mínimo de entendimento (a esse pano de fundo de silêncio Habermas reutiliza a ideia de mundo da vida) (HABERMAS, 1998, página 83).

A todo momento, no entanto, quaisquer temas podem sair do “silêncio” e adentrar a arena pública de discussão, o que, mais uma vez, faz ressurgir a possibilidade do dissenso (HABERMAS, 1998, página 87 e OLIVEIRA, 1989, página 32), que deve ser compensado por arenas públicas de integração social (4). O meio institucional que, contingencialmente, surgiu na modernidade para fazer frente a isso foi a constituição do Direito como medium de integração social, possibilitando a estabilização de expectativas de comportamento (5).

O Direito não apenas possibilita que tenha curso a ação comunicativa, mas também possui o poder de conter ações estratégicas (isto é, orientadas apenas ao próprio êxito)(6). Ele aparece, então, como coerção (facticidade), mas também como conjunto de normas legítimas (validade), de forma que os destinatários das normas podem obedecê-las por lhes reconhecer sua validade ou então simplesmente por temer a coação. A validade do Direito advém do reconhecimento, por parte dos destinatários das normas, como também sendo normas feitas por eles (através de seus representantes) — o processo legislativo é o meio institucional através do qual se gera “solidariedade social”, de forma que a possibilidade de obtenção de consenso pode se dar não porque todos concordem sobre (isto é, compartilhem) certos valores, mas porque concordam sobre a forma (o procedimento) de discordar (FARIA, 1978, página 65).

Esse Direito, na Modernidade, se origina a partir da tensão entre Soberania Popular (autonomia pública) e Direitos Humanos (autonomia privada). Os cidadãos de um Estado, através do processo legislativo (autonomia pública) se dão direitos, mas eles apenas podem fazer isso porque, ao mesmo tempo, se reconhecem como livres e iguais portadores dos mesmos direitos (autonomia privada). O conjunto desses direitos de participação política e dos direitos individuais forma o que Habermas chama de “Sistema de Direitos”, ou seja, aqueles direitos que os indivíduos reconhecem reciprocamente quando decidem regular sua convivência através do Direito (HABERMAS, 1998, página 164ss.).

Através da institucionalização de um procedimento legislativo democrático, cria-se uma arena institucional para onde temas fundados nos mais diversos tipos de argumentos (éticos, morais, econômicos, pragmáticos, etc.), têm a possibilidade de adentrar e, após discussão, virem a ser transformados em normas (e, a partir daí, serem regidos pelo código próprio do Direito) (HABERMAS, 1998, páginas 94 e 175). O mencionado Sistema de Direitos é fundado através da Constituição e pode garantir coerção às suas normas através do Estado de Direito, meio institucional que possui o poder de garantir institucionalmente a co-originalidade das autonomias públicas e privadas: sua atuação protege e faz cumprir normas garantidoras da autonomia privada (direitos “humanos”) ao mesmo tempo em que cria uma arena pública institucionalizada na qual influxos comunicativos da periferia podem adentrar e “influenciar” a formação da opinião e da vontade pública vinculante (legislativa, administrativa e judicial) na medida em que influenciam a agenda do procedimento legislativo institucionalizado e este, por sua vez, fornece subsídios às decisões dos outros poderes (7).

Ao contrário do que se tradicionalmente pensava, o Ordenamento jurídico não era um sistema “completo”, possuindo “lacunas e antinomias”. Para solucioná-las foram propostos uma série de “métodos”: literal, histórico, sistemático, etc. (além de regras para solução de antinomias: lei superior derroga inferior, etc.). A partir do uso destes métodos, acreditava-se, achar-se-ia “o verdadeiro” sentido da lei, seja isso significando a mens legislatoris, seja a mens legis. A percepção de que tal intento não era realizável se tornou mais evidente quando o Direito passou a regular profundamente novos temas (economia, contratos, trabalho, previdência e mesmo família). Isso levou autores como Kelsen e Hart a proporem que, caso o juiz tivesse diante de si um caso sobre o qual não houvesse clareza quanto à norma aplicável ou o sentido dessa norma (ou, de qualquer modo, não houvesse norma), estaria o juiz “autorizado” a dar a solução que entendesse melhor (HABERMAS, 1998, página 271; BAHIA, 2004). Esse “decisionismo” se tornou inevitável para concepções do Direito como sistema fechado de regras.

Para Habermas, há que se repensar o Judiciário, desde uma perspectiva procedimental do Estado Democrático de Direito. Todo processo judicial se move na tensão entre a segurança jurídica (dada pela positivação das regras que regem o procedimento, bem como pelas normas que geram direitos levados a juízo) e a pretensão de se obter decisões corretas (isto é, racionalmente aceitáveis) (HABERMAS, 1998, página 267) — para isso o procedimento judicial toma as normas como dados e cria uma estrutura que possibilita a argumentação (sem, contudo, interferir no conteúdo da argumentação mesma).

Entretanto, essa é uma tarefa complexa. Se já não mais é possível afirmar-se que a aplicação do Direito consista em mera subsunção, por outro lado, não se pode pretender do Judiciário que seja colocado como o guardador das “virtudes” (pressupostamente compartilhadas) da comunidade. De um lado, desde Kelsen já não se acredita mais que o uso de “métodos de interpretação” nos faz alcanças “o verdadeiro” sentido da norma (BAHIA, 2004). De outro lado, não é possível sustentar teorias que supõem valores compartilhados (como ALEXY, por exemplo), haja vista que confundem o caráter deontológico do direito com a graduação, própria dos valores e ainda supõe a existência de valores que, por serem compartilhados, poderiam ser escalonados. Sabemos que tal compartilhamento não existe em sociedades pós-tradicionais, o que poderia levar o Judiciário — caso adotasse tal método — a um puro decisionismo (8).

Garantido-se a estrutura do processo de argumentação, a decisão judicial se consubstancia no resultado daquilo que os sujeitos do processo, em simétrica paridade, trouxeram; é dizer, a sentença será legítima se, obedecido o contraditório, for ela o produto da reconstrução do caso e do ordenamento, dessa forma respondendo às pretensões a direito levantadas pelas partes (NUNES, 2008).

Em Niklas Luhmann podemos encontrar um tipo diferente de intelecção a respeito de como os juízes decidem. No âmbito da sua teoria dos sistemas sociais autopoiéticos, a investigação da decisão jurídica é realizada por meio de uma análise das operações de decisão como formas de distinção. Decisões são, nessa perspectiva, operações de indicação e distinção (SPENCER-BROWN, 1979, página 1) que produzem uma diferença no sistema. E que assim produzem também uma atualização do sistema dentro da sua dinâmica de clausura operativa (autoreferência) e abertura cognitiva (hetero-referência).

Importante ter presente, antes disso, que a teoria dos sistemas de Niklas Luhmann procura observar a sociedade como formas de comunicação funcionalmente diferenciadas (1998; 2003 e 2007). Formas de comunicação diferenciadas em sistemas/função dotados de clausura operativa e de autopoiese, como são os sistemas/função direito, política, economia, arte, ciência, religião, meios de comunicação de massa etc. Cada sistema disponibiliza uma racionalidade diferente para as decisões. Cada sistema estrutura formas de comunicação que produzem sentido de modo diferente. E ao se transitar, como um observador externo, de um sistema de referência para outro, os diversos sentidos são reconstruídos de modo contingente, de modo policontextural.

No caso específico do sistema/função do direito, essa estruturação da comunicação ocorre através do código da diferença entre direito e não-direito. Assim, toda comunicação da sociedade que faz referência a essa diferença entre direito e não-direito fica atribuída ao sistema jurídico, quer dizer, ganha o sentido já estruturado simbolicamente pelo sistema do direito. Um evento qualquer da sociedade pode ser observado em termos de verdade e falsidade (código da ciência), como também pode ser observado em termos de pagamento ou não-pagamento (código da economia) e igualmente pode ser observado em termos de governo ou oposição ao governo (código da política) ou entre informação nova e redundância (código dos meios de comunicação de massa), entre outros inúmeros contextos de significação possíveis. Mas se esse evento for observado em termos de direito ou não-direito, então já se está fazendo referência ao sistema jurídico da sociedade.

Uma decisão jurídica, portanto, é toda decisão que faz referência à diferença entre direito e não-direito. Nessa perspectiva da teoria dos sistemas, torna-se possível observar a produção de decisões jurídicas em todos os contextos da sociedade e não apenas nos tribunais. Qualquer decisão que utiliza o direito como sistema de referência já é uma decisão jurídica, ainda que decidida no âmbito de sistemas de organização que não fazem parte das instituições jurídicas tradicionais, como o Estado ou mais especificamente os tribunais. Uma empresa ou sujeito qualquer pode decidir entre o lucro e o prejuízo em uma determinada situação, como também pode decidir entre a verdade e falsidade. Pode decidir também por salvar sua alma evitando o pecado em um contexto de referência religioso. Pode também julgar uma situação segundo um código moral de bondade ou maldade. Mas sempre que usar, como sistema de referência para a sua decisão, o código do direito, já se está decidindo segundo a estrutura sistêmica do direito.

O nível inusitado de abstração dessa conceituação luhmanniana exige uma aproximação prévia. Pode-ser partir, a título de ilustração, da explicação tradicional da doutrina jurídica sobre como se decide uma questão jurídica. Com efeito, na doutrina jurídica tradicional pode ser encontrada uma técnica de decisão que parte daquele silogismo aristotélico entre premissa maior (a lei, geral e abstrata), premissa menor (o caso, especial e concreto) e conclusão (o resultado, o comando de eficácia da decisão).

Mas por trás dessa operação nós podemos ver uma série de pressupostos que já estão previamente decididos na estrutura do sistema jurídico mesmo: a escolha da premissa maior já é uma decisão contingente, que precisaria ser decidida e justificada; a definição do caso concreto também já é uma decisão por ressaltar algumas e não outras características do fato; como também a conclusão é uma decisão que recomenda uma ou algumas eficácias normativas que poderiam ser diferentes. E alguém poderia então contestar: mas então uma decisão jurídica é impossível! E é exatamente nessa impossibilidade que começa a idéia de decisão jurídica.

A decisão jurídica é impossível de ser decidida e, paradoxalmente, exatamente por ser impossível, é que ela exige uma decisão. Se não fosse impossível, não exigiria uma decisão, exigiria apenas uma operação de reprodução de decisões anteriores, sem nenhum conteúdo inovador, sem nenhuma exigência de argumentação da escolha decidida e sem nenhuma produção de diferença no âmbito do sistema jurídico.

Existem portanto decisões jurídicas que apenas reproduzem as operações anteriores do sistema, sem produzir nenhuma diferença, produzindo apenas redundância, confirmação de decisões pretéritas. Mas existem também decisões jurídicas que inovam as operações anteriores, que produzem diferença, produzem variações. As decisões reprodutoras são operações de comunicação jurídica, mas não são decisões no sentido que queremos destacar a partir da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. Já as decisões que introduzem uma diferença nas operações do sistema, estas sim são decisões, porque não apenas decidiram entre esta ou aquela regra ou princípio, esta ou aquela solução, este ou aquele argumento. E também não se tratam de decisões que decidem apenas entre manter a tradição jurisprudencial ou inová-la com um novo precedente diferente, inaugurando uma nova corrente jurisprudencial. A decisão jurídica é mesmo aquela que era impossível de ser decidida e, precisamente por ser impossível de ser decidida, teve que ser criada, inventada, decidida. E como tal, também, justificada.

A decisão está, portanto, na impossibilidade da decisão. Porque se a decisão fosse possível, já não seria uma decisão, seria apenas uma operação de reprodução da diferença já distinguida na história do sistema. Exatamente quando não é possível decidir, quando não é possível a reprodução redundante de uma operação, é que temos então a autêntica decisão jurídica: a introdução de uma diferença que produz variação, que mexe com a redundância do sistema e que, por isso, pode – não necessariamente – provocar transformações estruturais no sistema se essa variação for tolerada (selecionada) pelas próprias estruturas e assimiladas como re-estabilização[9]. Já se pode ver, portanto, que as próprias transformações no sistema só ocorrem em níveis toleráveis pelo próprio sistema, como se fossem pre-adaptative advances.

Por isso que, por mais inovadora que seja uma decisão jurídica, ela só passa a constituir-se como referência para novas operações jurídicas se o próprio sistema do direito a tolerar dentro de suas estruturas. A decisão inovadora, portanto, sempre será uma decisão já esperada pelo sistema, tolerada pelo sistema e estruturalmente compatível com o estado imediatamente anterior da rede de operações do sistema. Ela inova em relação às operações anteriores, mas não inova em relação às potencialidades desde já sempre projetadas pelo sistema[10].

Com isso fica claro que a decisão jurídica — gize-se: decisão realizada com base no código da diferença entre direito e não-direito —, é uma operação do sistema jurídico. É uma operação que faz parte do direito. É uma operação que se endereça, ela mesma, ao sistema jurídico como sistema/função de referência. Por mais que se possa ver, do ambiente do sistema jurídico, uma decisão jurídica como sorte, como inspiração divina (religião), como bela (arte), como pagamento (economia), como um ato de poder (política), como verdade (ciência) etc., ela continua a possuir a identidade da decisão jurídica na medida em que decidida com base no código “direito/não-direito”.

Nesse contexto da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, então, podemos compreender de um modo diferente a pergunta pelo como os juízes decidem. A decisão jurídica decide sempre em condições de incerteza e, ao mesmo tempo, pressionada pela regra do non liquet. Isso faz com que a decisão jurídica tenha que decidir inclusive quando não pode decidir. Como então a decisão torna possível a sua própria impossibilidade? A resposta que Luhmann coloca a esse paradoxo é a metáfora do décimo segundo camelo (LUHMANN, 2004), quer dizer, a introdução de uma referência externa para completar a ausência da possibilidade da decisão. A introdução de um valor lógico do ambiente do sistema para completar a incompletude do teorema. Para isso servem os recursos argumentativos a valores exteriores ao sistema de referência.

Junto com Jacques Derrida, também podemos chamar esses recursos argumentativos externos ao sistema jurídico de “suplementos” (11). Nós encontramos “suplementos” em todas as decisões jurídicas que recorrem a valores lógicos exteriores ao sistema jurídico para suplementar a ausência de um fundamento jurídico unívoco na decisão, para tornar “presente” o fundamento “ausente”, para completar a falta de justificação com um suplemento argumentativo. Esses suplementos, na prática das decisões judiciais, podem ser observados quando a decisão recorre a princípios morais, valores éticos ou religiosos etc. E também podem ser observados quando a decisão recorre àquilo que se convencionou chamar de “orientação às conseqüências”, isto é, o uso do recurso à previsão dos prováveis efeitos colaterais ou impactos da decisão jurídica na economia, na ciência, na política, na educação etc.

Um dos aspectos mais interessantes dessa operação é que sobre esse uso de suplementos argumentativos não há nenhum tipo de controle. Não há nenhuma regra ou princípio positivo que permita controlar, nem mesmo há um procedimento que permita monitorar o uso legítimo desses suplementos argumentativos na práxis das decisões jurídicas.

Assim a decisão passa a constituir-se, a si mesma, como fundamento do próprio sistema jurídico. Não no sentido de Carl Schmitt (1984), mas no sentido de que a validade das normas jurídicas encontra a sua referência de sentido na decisão, que por sua vez encontra nas normas jurídicas a sua validade. Uma relação circular de validação então acontece: a decisão baseia a sua validade nas normas jurídicas que ela mesma afirma serem válidas. Ou em termos circulares: a decisão valida as normas que validam a decisão.

A introdução de uma referência externa então assimetriza esse paradoxo. Há princípios, há valores, há conseqüências etc. Mas o paradoxo não se resolve, apenas se desdobra para novas configurações: a referência aos princípios cria, ela mesma, a projeção de conseqüências para serem usadas na fundamentação da decisão judicial. Como também a referência às conseqüências da decisão cria, por si só, a projeção de princípios e valores normativos. Claro que, no nível das autodescrições do sistema jurídico, esses princípios e valores são fundamentados com independência da positividade do direito e também com autonomia em relação aos casos concretos. E é exatamente esse o ponto: um fundamento externo para ser introduzido argumentativamente na decisão, um “terceiro incluído”, um “suplemento”.

A partir de Habermas, compreendemos que o Direito hoje deve ser concebido como um sistema aberto de princípios, sendo insustentáveis quaisquer propostas positivistas ou literalistas de aplicação do Direito. E por meio da teoria dos sistemas de Luhmann, pode-se entender que a decisão jurídica sempre constitui um ato criativo de desdobramento de paradoxos que, exatamente por esse motivo, exige graus mais sofisticados de justificação.

Habermas e Luhmann chamam a atenção para o caráter deontológico do Direito, que, como subsistema social, se move por um código próprio (direito/não direito) — e não por códigos graduais de valor, como propõe a teoria alexyana. A partir de Luhmann, vemos que Direito e Política são subsistemas sociais autopoiéticos, cada um se reproduzindo a partir de seus códigos próprios e que a Constituição se revela como acoplamento estrutural (Luhmann) — ou, em Habermas, como “dobradiça” — que permite que haja comunicação entre aqueles sistemas, de tal forma que ambos podem prestar serviços mútuos um ao outro, sem, contudo, perderem suas respectivas identidades.

No contexto dos ideais políticos e normativos do Estado Democrático de Direito, temos que esperar, portanto, que as decisões jurídicas levem à sério os valores e princípios constitucionais atualmente importantes para a sociedade. Não que o direito possa efetivamente substituir a política na concretização dos objetivos políticos do Estado Democrático de Direito, mas que pelo menos as decisões jurídicas possam criar diferenças no sentido desses ideais.

Referências
1. A expressão não é nova, como nos lembra Fix-Zamudio (1968, p. 11) já a Lei Fundamental de Bonn (1949) prescrevia que a República Federal alemã se constituía em um “Estado de derecho democrático de carácter social” (art. 20, I). Entretanto, o Estado que (res)surgia após a 2ª Guerra será marcadamente “Social” (Welfare State), como FIX-ZAMUDIO (idem) lembra, fazendo menção ao que afirmou Forsthoff, para quem, só como Estado Social um Estado de Direito se mantém. Sabemos, no entanto, que é da crise do Welfare State que surgirá um novo paradigma de Estado, o Estado Democrático de Direito, que possui como referenciais legais, as Constituições de Portugal – 1976 (Estado de direito democrático, art. 2º) e Espanha – 1978 (Estado social y democrático de Derecho, art. 1º, I). Sobre os paradigmas constitucionais da Modernidade e suas implicações sobre a interpretação do Direito, cf. BAHIA (2004).
2. Vale lembrar que é a Modernidade que cria o conceito de indivíduo, ao mesmo tempo em que lhe atribui uma razão inata capaz de conhecer todas as coisas. Daí afirmar Manfredo de Oliveira (1989, p. 29) que na tradição racionalista da filosofia da consciência “a subjetividade emerge como a fonte de todo sentido”, logo, a partir do “eu” se constrói um “outro”, que se objetualiza — “o processo de subjetivação coincide com o processo de objetivação universal” (idem). Daí a perfeita formulação de uma ciência assentada no tripé: “sujeito, objeto e método”. São justamente essas verdades cartesianas, baluartes da Modernidade que sofrerão duros golpes no século XX.
3. Sobre isso ver SALCEDO REPOLÊS (2003, p. 49-50) e BAHIA (2006a).
4. “A cada novo impulso de modernização abrem-se os mundos da vida divididos de modo intersubjetivo para se reorganizarem e novamente fecharem” (HABERMAS, 2001, p. 105).
5. Na verdade, além do Direito, há dois outros sistemas de integração social: Mercado e Poder Administrativo. Entretanto, apenas o Direito se move por ações comunicativas (cf. HABERMAS, 1998, p. 89; 2001, p. 194 e 1987, p. 112).
6. Sobre a diferença que Habermas estabelece entre Ação Comunicativa e Estratégica, cf. HABERMAS (1990, p. 75)
7. Este Estado de Direito passou por variadas (re)leituras, desde o advento da Modernidade, no movimento de mudanças de paradigmas do constitucionalismo, ou seja, a forma como “liberdade e igualdade” foram compreendidas ao longo do tempo. Sobre o tema ver BAHIA; NUNES, 2009.
8. Percebe-se tal fato quando juízes, a partir do princípio da proporcionalidade, passam a “julgar as opções do legislador” não tendo em vista sua constitucionalidade e sim a “razoabilidade” da lei. O que se tem aí é uma perda dos limites do Judiciário (perda, inclusive, dos limites à crítica, já que a decisão, teoricamente, se funda em argumentos racionais de custo-benefício sobre o que é “melhor” para a sociedade). Cf. BAHIA (2006b e 2005).
9. A teoria da evolução de Luhmann explica como ocorre esse processo de variação, seleção e re-estabilização sistêmica, para a qual remetemos o leitor (LUHMANN, 2003 e 2007b). E no caso específico do Direito, ver-se Luhmann (2005).
10. Talvez seja necessário destacar, contra uma grande quantidade de críticas inadequadas a essa perspectiva sistêmica, que essas potencialidades já projetadas pela estrutura do sistema não tem nada a ver com a idéia da quadratura do direito de Hans Kelsen. Dizer que o sistema projeta para o futuro potenciais de sentido que podem se confirmar /condensar ou não nas operações jurídicas não significa dizer que há uma discricionariedade na interpretação de normas. Até porque entender o direito como um sistema é vê-lo como uma estrutura social muito mais complexa do que apenas um conjunto sistemático de normas.
11. Para Derrida (2004, p. 178), “acrescentando-se ou substituindo-se, o suplemento é exterior, fora da positividade à qual se ajunta, estranho ao que, para ser por ele substituído, deve ser distinto dele. Diferentemente do complemento, afirmam os dicionários, o suplemento é uma ‘adição exterior’”. Observa-se também esta passagem de Derrida (2007, p. 109-110): “sem estar aí imediatamente presente, ela [a violência] aí está substituída (vertreten), representada pelo suplemento de um substituto. O esquecimento da violência originária se produz, se abriga e se estende nessa différance, no movimento que substitui a presença (a presença imediata da violência identificável como tal, em seus traços e em seu espírito), nessa representatividade différantielle.”

Referências
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Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia é advogado em Minas Gerais e mestre e doutor em Direito Constitucional (UFMG), professor universitário na Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM) e Faculdade Batista de Minas Gerais

Rafael Lazzarotto Simioni é doutor em Direito Público, mestre em Direito, professor e pesquisador da Faculdade de Direito do Sul de Minas.

Revista Consultor Jurídico, 12 de maio de 2010


O SISTEMA DE COTAS

 

O sistema de cotas

Letícia Simões Ribeiro, Fernanda Dias Soares

Resumo: O artigo aborda a questão, de grande polêmica jurídica, da política de quotas, em especial, a de negros nas Universidades, como Ação Afirmativa necessária para inclusão social e, como efeito, para diminuição das discriminações e preconceitos advindos do fator deficiência, raça, origem, etc. Também, abarca, como principal argumento, os princípios constitucionais da igualdade e dignidade da pessoa humana dentro de um contexto de transformação pós-positivista em contrapartida ao pensamento legalista.
Palavras-chave: cotas- pós-positivismo- dignidade- igualdade- negros

Sumário: Introdução. I. O contexto pós-positivista. II- princípio da dignidade da pessoa humana. III. Princípio da igualdade. IV. Ações afirmativas e suas previsões legais. V. ADI 3330, Caso regentes da Universidade da Califórnia X Allan Bakke e o Filme “Separados mas iguais”, de George Stevens Jr. VI. Política de cotas. Conclusão. Bibliografia.
INTRODUÇÃO
À medida que a sociedade clama ativamente por direitos fundados em princípios constitucionais - como o da igualdade e da dignidade da pessoa humana, esta começa a exigir do poder público mecanismos e ações para a efetiva inclusão social.
Uma destas ações é a política de cotas, que, em nível nacional, tem sido proposta, por exemplo, para deficientes, negros, índios, para os que possuem recursos financeiros insuficientes.
A implantação de cotas, com o intuito de oportunizar a todos os indivíduos meios de desenvolvimento e progresso, levando-se em conta as suas condições peculiares, tem sido discutida e empreendida em um cenário jurídico favorável.
I. O CONTEXTO PÓS-POSITIVISTA
No contexto brasileiro, a partir de 1988, seguindo a tendência jurídica mundial, renovado o pensamento jurídico – ou melhor, a forma de pensar o direito, e a hermenêutica, a Constituição ganhou força normativa e vinculativa, e o direito passou a ser extraído dos grandes e basilares princípios e direitos fundamentais, movimento ao que se chamou de Neoconstitucionalismo ou Pós-positivismo.
O Positivismo – que pregava a legalidade estrita e segundo o qual princípios e normas eram considerados como espécies distintas, tornou-se doutrina ultrapassada, pois não acompanhava a evolução social e, portanto, não atendia aos interesses de parcelas da sociedade, que ansiavam incessantemente pela efetivação de seus direitos.
Passou-se gradativamente ao Pós-positivismo, onde as normas passaram a ser consideradas gênero, tendo como espécies os princípios e as regras.
Os princípios, como expressão jurídica de valor e dos fins de uma sociedade, antes considerados como mero norteadores abstratos do ordenamento jurídico, passaram a ser tratados como espécie de norma jurídica, possibilitando a sua aplicação direta e imediata ao caso concreto (aplicação do princípio puro) e a conseqüente reinvenção e criação de direitos e deveres.
Assim, a tendência do ordenamento jurídico mundial e nacional é superar a técnica jurídica tradicional, aplicando direta e imediatamente os princípios constitucionais, com vistas a construir um direito que vai além do ordenamento posto, buscando efetividade e legitimidade social.
II- PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Dentro deste contexto, os princípios de grande destaque e repercussão são os da igualdade e o da dignidade da pessoa humana.
O princípio da dignidade da pessoa humana, como fundamento do Estado, eleva os valores intrínsecos e extrínsecos dos seres humanos, considerados como seres racionais e que possuem fim em si mesmo, merecedores, portanto, de respeito e de proteção.
Além disso, não só reconhece o valor do homem em sua liberdade, como também que o próprio Estado deve se revestir deste princípio.
A dignidade significa o individuo poder realizar as suas necessidades básicas, dentro de um contexto histórico. Assim, conceitua o autor Ingo Wolgang Sarlet, a seguir:
“qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existentes mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunh[1]”.
Este princípio tem abrangência ampla, a exemplo, no setor econômico, social e cultural. Na econômica assim prevê a constituição federal, “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” (art.170); na ordem social, o artigo 193 declara “a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”. Reforçando, temos o art. 5º, inc. III, “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”; o inc. X, que garante a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas; o inc. XLI, que pune, por lei, a discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais; e o art. 7º que institui, no inciso IV, direitos aos trabalhadores urbanos e rurais o salário mínimo, fixado em lei, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família.
III. PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Já o princípio da igualdade compreende dois aspectos: um formal, que estabelece que todos os homens nascem e permanecem iguais em direitos, e o outro, no sentido material, que considera a diferença dos sujeitos, que se encontram em situação de desvantagem.
Este último aspecto é o que interessa para este trabalho.
É fácil notar que um deficiente físico, um negro, um índio, etc., fazem parte de um contexto de repressão, desfavorecimento e discriminação. Não podem, portanto, ser igualados a um homem branco e sadio em sua atividade social, econômica e cultural, devendo-lhes aplicar o princípio da igualdade em termos materiais.
Marcelo Neves segue, então, esses parâmetros para verificar que:
"quanto mais se sedimenta historicamente e se efetiva a discriminação social negativa contra grupos étnico-raciais específicos, principalmente quando elas impliquem obstáculos relevantes ao exercício de direitos, tanto mais se justifica a discriminação jurídica positiva em favor dos seus membros, pressupondo-se que esta se oriente no sentido da integração igualitária de todos no Estado e na sociedade". (Op. cit., p. 262)[2].
No entendimento de Celso Antônio Bandeira de Mello, o reconhecimento das diferenciações se divide em três questões:
a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação;
b) a segunda reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado;
c) a terceira atina à consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados”.[3]
Podemos verificar, neste caso, que há legitimidade das cotas para deficientes em concursos públicos, não ofendendo o princípio da isonomia, se partimos da seguinte análise:
a) o fato gerador é a deficiência física que limita suas ações;
b) a correlação lógica caracteriza pela existência de preconceitos em relação à sua capacidade contributiva devido ao desconhecimento acerca das reais possibilidades do portador de deficiência, gerando, como conseqüência, a sua exclusão do mercado de trabalho;
c) os interesses constitucionais são norteados pelos princípios de não discriminação e igualdade de oportunidades, baseados em conceitos amplos de inclusão social, visando a dar apoio e suporte ao portador de deficiência para a vida em comunidade.
IV. AÇÕES AFIRMATIVAS E SUAS PREVISÕES LEGAIS
Tomando por base todo este contexto de transformação e desenvolvimento social, não podemos negar a importância das políticas de inclusão chamadas de Ações Afirmativas, que são medidas especiais e temporárias, tomadas pelo Estado, com o fim de eliminar desigualdades historicamente acumuladas, garantindo a igualdade de oportunidades e tratamento, bem como de compensar perdas provocadas pela discriminação, advindos de motivos raciais, étnicos, religiosos e outros.
As ações afirmativas, assim, visam a combater os efeitos acumulados em virtude das discriminações ocorridas no passado e buscam de forma imediata igualar os desiguais e levar dignidade aos grupos desfavorecidos.
A Constituição Brasileira de 1988, em seu art. 37, inc. VII, prevê a reserva de vagas de cargos públicos para deficientes físicos, in verbis
"37 - A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...)
VII - a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão;”
Já o Projeto de Lei 73/99, que institui Sistema Especial de Reserva de Vagas para estudantes egressos de escolas públicas, em especial negros e indígenas, nas instituições públicas federais de educação superior, em seu art. 5º assim descreve:
“Art. 5º - O Poder Executivo promoverá, no prazo de dez anos, a contar da publicação desta Lei, a revisão do sistema especial para o acesso de estudantes negros, pardos e indígenas, bem como daqueles que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, nas instituições de educação superior.”
Com efeito, o legislador pátrio já editou diversas leis e outros tipos normativos que reconhecem o direito à diferença de tratamento legal para diversos grupos vulneráveis. Destacamos ainda:
I. Decreto-Lei 5.452/43 (CLT), que prevê, em seu art. 354, cota de dois terços de brasileiros para empregados de empresas individuais ou coletivas;
II. Lei 8.112/90, que prescreve, em art. 5º, § 2º, cotas de até 20% para os portadores de deficiências no serviço público civil da União;
III. Lei 8.213/91, que fixou, em seu art. 93, cotas para os portadores de deficiência no setor privado;
IV. Lei 8.666/93, que preceitua, em art. 24, inc. XX, a inexigibilidade de licitação para contratação de associações filantrópicas de portadores de deficiência;
V. Lei 9.504/97, que preconiza, em seu art. 10, § 2º, cotas para mulheres nas candidaturas partidárias;
VI. MP Nº 213, de 10 de setembro de 2004, que institui o Programa Universidade para Todos - PROUNI, regula a atuação de entidades beneficentes de assistência social no ensino superior, e dá outras providências:
“Art. 7º- As obrigações a serem cumpridas pela instituição de ensino superior serão previstas no termo de adesão ao PROUNI, no qual deverão constar as seguintes cláusulas necessárias: (...) II - percentual de bolsas de estudo destinado à implementação de políticas afirmativas de acesso ao ensino superior de auto declarados negros e indígenas.”
Muitas indagações surgem no ponto que tange em ser ou não justo um negro possuir uma porcentagem para o ingresso em universidades já que se leva em conta o critério da cor.
Para alguns, essa reserva de vagas e a introdução na universidade pelo critério da raça poderão gerar situações sociológicas imprevisíveis e efeitos ainda mais discriminatórios, já que o favorecimento a uma raça inevitavelmente levará à exclusão de parte de outras.
V. ADI 3330, CASO REGENTES DA UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA X ALLAN BAKKE E O FILME “SEPARADOS MAS IGUAIS”, DE GEORGE STEVENS JR.
Nesse sentido, temos a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3330, ajuizada pela Confederação Nacional de Estabelecimentos de Ensino (CONFENEN), perante o Supremo Tribunal Federal, pretendendo ver declarada a inconstitucionalidade da MP Nº 213, de 10 de setembro de 2004, acima citada.
Em seus fundamentos, a impetrante argumenta não haver dúvidas sobre a condição sócio-econômica do aluno como critério apto a concessão de bolsas, mediante financiamento oficial, como forma de implementação de políticas públicas, mas discorda quanto à reserva de vagas em ensino superior para preenchimento com base em critério racial, haja vista que constitucionalmente todos são iguais perante a lei, não podendo prevalecer, no Brasil, quaisquer diferenciações fundadas na raça.
Todavia, em outra análise, em que se reafirma a necessidade de implantação de uma política de cotas para negros, Ronald Dworkin se refere ao caso Regentes da Universidade da Califórnia contra Allan Bakke, um branco que foi rejeitado da escola de medicina, mesmo tendo tirado notas altas, no vestibular, isso, devido a um programa de ação afirmativa - PROGRAMA DE FORÇA TAREFA - com o intuito de admitir mais estudantes negros e de outras minorias:
“A recomendação pode significar, por outro lado, que a escola deveria adotar algum objetivo que não se baseasse em critérios raciais, como aumentar o número de estudantes desfavorecidos de todas as raças, e, então, esperar que esse objetivo produza, como efeito colateral, um aumento no número de negros. Contudo, mesmo que essa estratégia seja menos hipócrita (o que está longe de ser claro), ela quase certamente fracassará, pois nenhum objetivo diferente, escrupulosamente administrado, sem consciência de raça, aumentará significativamente o número de estudantes negros de medicina”.[4]
Sobre este enfoque, alguns efeitos positivos podemos aqui mencionar como: (a) o aumento do número de negros nas salas de aula geraria maiores discussões sobre problemas sociais, proporcionando a melhoria da qualidade da educação; (b) com o crescimento de profissionais negros, outros negros se sentiriam estimulados a candidatar-se aos vestibulares; (c) e é certo que um negro prestaria melhores serviços a comunidades negras pela identidade de história, contribuindo para reduzir as tensões sociais.
Outro caso é o retratado pelo filme “Separados mas Iguais”, de George Stevens Jr., que conta a história verídica ocorrida em 1951, quando Oliver Brown de Topeka, Kansas, processou a direção da escola da cidade em favor de sua filha de oito anos com o objetivo de ela freqüentar a escola de crianças brancas, que ficava a cinco quarteirões da sua casa, e não a de crianças negras a 21 quarteirões de distância. Por achar que as escolas eram praticamente iguais, o Tribunal Federal deliberou contra Brown.
Entretanto, os pais de outras crianças negras da Carolina do Sul, Virgínia e Delaware entraram com outros processos no mesmo sentido. O tribunal de Delaware concluiu que as escolas de crianças negras eram realmente inferiores às de crianças brancas e ordenou a transferência para outra escola, mas as autoridades escolares apelaram da decisão à Suprema Corte.
Esta apreciou os argumentos de todos os casos. As provas apresentadas pelos impetrantes negros incluíam dados e depoimentos de psicólogos e cientistas sociais sobre os males causados pela segregação às crianças negras.
Foi em 1954, quando a Suprema Corte decidiu por unanimidade que “... na área da educação não havia lugar para a doutrina ‘separados, mas iguais’” e concluiu que a segregação nas escolas públicas nega às crianças negras “a igual proteção das leis garantida pela Décima-Quarta Emenda à Constituição”.
Com efeito, a cor da pele não diferencia as pessoas enquanto seres humanos, ou seja, elas não se tornam inferiores ou superiores umas em relação às outras por causa da raça ou da cor da pele.
Assim, não há justificativa plausível para a adoção de medidas de segregação ou de exclusão, o que impõe tratamento digno e igual entre as pessoas, seja de qual raça forem.
Como visto no filme supracitado, a diferenciação de tratamento gera um efeito individual devastador, de baixa estima, de submissão, e compromete o desenvolvimento e progresso de todo o grupo, já historicamente marginalizado.
VI. POLÍTICA DE COTAS
A política de cotas implementada pelo Estado tem levado a grandes discussões no cenário jurídico e social. Há quem as aprovam por completo, há os que discordam totalmente e há quem busca um meio termo para a questão.
Porém, partindo da premissa de que existem diferenças sociais que decorrem de um nível significativo de discriminação, menosprezo, deficiência, dentre outros, é necessário que o Estado programe ações afirmativas como forma de minimizar as desigualdades do corpo social.
Impõe-se, assim, a medida com relação a cotas e bolsas em universidades para deficientes, índios e negros porque é de cunho histórico que predomina a existência de marginalização destes grupos, situação esta que exige do Estado uma prestação imediata.
Como dito, trata-se de uma ação imediata de inclusão que, em que pese as opiniões em contrário, trará efeitos sociológicos positivos, à medida que a discussão no seio da sociedade fomentará a melhoria da educação como um todo, propiciará que os beneficiados revertam os conhecimentos profissionais em prol, não só de toda a sociedade, mas também das demais minorias, levando ao reconhecimento e valorização de todas as raças, até que em médio e longo prazo os resultados positivos de tais medidas suplantarão as desconfianças e todos os problemas apontados na fase inicial de sua adoção.
Paralelamente, o Estado deverá promover a melhoria da educação como um todo, principalmente nas sérias básicas e fundamentais do ensino público, de forma que futuramente qualquer pessoa, independentemente da cor ou da raça, possa ingressar nas universidades exclusivamente pelas regras normais do processo seletivo.
Deverá também promover ações de conscientização da necessidade e utilidade da política de cotas, demonstrando os resultados positivos, afastando a idéia de que tais políticas públicas mantêm um caráter discriminatório ao favorecer certas raças, de forma que toda a sociedade abrace esta causa e reconheça a necessidade de integração, inclusão e harmonização social.
Afinal, não é possível que em um país de sociedade tão miscigenada haja a perpetuação de discussões e problemas decorrentes da própria variedade de raças. Urge um trabalho social de conscientização e afirmação de nossa identidade e valorização de nosso povo. A política de quotas, portanto, é apenas uma de várias medidas necessárias.
Sob outro aspecto, devido à miscigenação do povo brasileiro, deverão ser mais bem acertados os critérios de definição de raças para que o uso deste mecanismo de inclusão social seja realmente utilizado de forma justa.
Com o desenvolvimento da medicina e da genética, por exemplo, não se torna difícil definir critérios objetivos para a identificação de pardos e negros que poderão ser beneficiados pelas políticas públicas.
E, assim, o Estado não pode deixar de agir aduzindo serem questionáveis os critérios de avaliação de quem é ou não negro ou se são consideradas as gerações passadas e o caráter genético, podendo lançar mão da própria genética para a definição de critérios objetivos de seleção.
CONCLUSÃO
Enfim, por todos os fatores acima abordados, concluímos que justa se faz a adoção da política de cotas uma vez que a verdadeira sociedade democrática se funda em bases sólidas de justiça e de eqüidade, levando oportunidades para todos em igualdade de condições.
Bibliografia
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3ª ed. 16ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2005.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito constitucional didático. Revista e Atualizada 6ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1999.
AFONSO DA SILVA, José. Curso de direito constitucional positivo. 17ª ED. São Paulo: Malheiros, 2000.
CROSARA, Hélida. Dignidade da pessoa humana. http://www.direitonet.com.br/artigos/x/23/69/2369/, acesso 04.11.2008.
DOMINGUES, Sérgio. Cotas na universidade: sobre racismo enrustido e a exceção no lugar da regra. http://www.espacoacademico.com.br/026/26cdomingues.htm, acesso 04.11.2008.
SILVEIRA E OLIVEIRA, Antonia Soares. Política de cotas: uma análise do programa, e permanência de deficientes na universidade. http://www.catedra.ucb.br/sites/100/122/00000198.pdf#page=159, acesso 04.11.2008.
SILVA, Luiz F. M.,e outros , ADIN contra a lei de quotas para negros no vestibular:intervenção de entidades afro-brasileiras como "amicus curiae". http://www.google.com.br/search?hl=ptBR&q=+Bibliografia+bandeira+de+mello+Conte%C3%BAdo+Jur%C3%ADdico&meta=, acesso 04.11.2008.
Notas:
[1] Sarlet, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constiuição Federal de 1988, pág 60.
[2] NEVES, Marcelo. Estado democrático de direito e discriminação positiva: um desafio para o Brasil".In MAIO, Marcos C; SANTOS, Ricardo V. (orgs). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz/Centro Cultural Banco do Brasil, 1996, p. 262.
[3] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3.ed. 16ª Tiragem. São Paulo: Malheiros, 2005, p.21.
[4] DWORKIN, Ronald Uma Questão de Princípio. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 441
 
 
 
Artigo publicado na Revista Ambito Jurídico

STJ aprova sete novas súmulas sobre Direito Privado

A 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça aprovou sete súmulas relativas a matérias de Direito Privado. As súmulas do STJ não têm efeito vinculante, mas servem de resumo e consolidação do entendimento consensual do tribunal.
Veja quais são elas:
Comissão de permanência
A Súmula 472 trata da cobrança de comissão de permanência. Diz o enunciado: “A cobrança de comissão de permanência — cujo valor não pode ultrapassar a soma dos encargos remuneratórios e moratórios previstos no contrato — exclui a exigibilidade dos juros remuneratórios, moratórios e da multa contratual.”
Seguro habitacional
A Súmula 473 dispõe que “o mutuário do SFH não pode ser compelido a contratar o seguro habitacional obrigatório com a instituição financeira mutuante ou com a seguradora por ela indicada”.
DPVAT
O seguro DPVAT é objeto da Súmula 474: “A indenização do seguro DPVAT, em caso de invalidez parcial do beneficiário, será paga de forma proporcional ao grau da invalidez.”
Protesto indevido
A responsabilidade do endossatário por protesto indevido é abordada nas Súmulas 475 e 476. Diz o texto aprovado para a Súmula 475: “Responde pelos danos decorrentes de protesto indevido o endossatário que recebe por endosso translativo título de crédito contendo vício formal extrínseco ou intrínseco, ficando ressalvado seu direito de regresso contra os endossantes e avalistas.”
Já a Súmula 476 dispõe que “o endossatário de título de crédito por endosso-mandato só responde por danos decorrentes de protesto indevido se extrapolar os poderes de mandatário”.
Prestação de contas
A aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) em ação de prestação de contas é tratada na Súmula 477: “A decadência do artigo 26 do CDC não é aplicável à prestação de contas para obter esclarecimentos sobre cobrança de taxas, tarifas e encargos bancários”.
Preferência de crédito
Já a Súmula 478 aborda a questão da preferência dos créditos condominiais sobre o hipotecário. Diz o enunciado: “Na execução de crédito relativo a cotas condominiais, este tem preferência sobre o hipotecário.” Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.
Revista Consultor Jurídico, 21 de junho de 2012

quarta-feira, 20 de junho de 2012

DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS: SISTEMAS REGIONAIS

Helio Bicudo



RESUMO
O texto discorre sobre a institucionalização dos sistemas de promoção dos Direitos Humanos, ao longo do século XX. Tomando a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, como base e ponto de partida, o articulista aborda as três principais vertentes dos sistemas de promoção desses direitos: a européia, a americana e a africana. A evolução de cada uma delas descrita analógica e epistemologicamente, de forma a salientar singularidades sem perder de vista as influências recíprocas ou mesmo as determinantes próprias do contexto espaço-social. Para finalizar, o articulista destaca a importância do Tribunal Penal Internacional no estabelecimento de uma justiça ecumênica. Concomitantemente, alerta para o perigo contido na ameaça de os EUA não o ratificarem.

ABSTRACT
The text underlines the institutional character acquired by the main systems to promote Human Rights in the twentieth century. Taking the Universal Human Rigths Declaration, of 1948, as the basis for analysis, the author brings up three different approaches to promote these rights: the European, the American and the African. The evolution of each of them is described using its procedure as a basic reference. Besides, an analogical analysis, brings to the fore singularities, without ignoring reciprocal influences dictated by particular contexts, though. The author stresses the importance of the International Penal Court, as a means to establish ecumenical justice. At the same time, he reminds the reader of the risks implicit in the possible non-ratification of the IPC by United States.

Declaração universal dos Direitos Humanos. O marco zero e os pactos subseqüentes.
OS SISTEMAS de promoção e proteção dos Direitos Humanos foram instituídos à medida que os Estados dos continentes europeu, americano e africano assumiam a relevância dos direitos humanos, como fundamento para a construção e a sobrevivência de um Estado Democrático.
É o que se pode ler nas atas dos trabalhos que, na Europa, nas Américas ou na África, levaram à elaboração das chamadas Cartas de Direitos Humanos. Depois, vieram as Convenções especificamente dirigidas à proteção e à defesa desses direitos, primeiro, mediante o funcionamento das instituições dos Estados-partes e, em seguida e subsidiariamente, falhando estas ou se tornando omissas, pelos sistemas regionais de defesa dos direitos humanos.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948 - declaração de princípios em forma solene, estava destinada, desde a sua origem, a ser complementada por outros textos. Assim se lhe seguiram, depois de difícil elaboração, os dois pactos relativos aos direitos do homem, adotados pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 16 de novembro de 1966. Posteriormente, tivemos o Pacto Internacional sobre direitos econômicos, sociais e culturais. O Pacto Internacional sobre direitos civis e políticos entrou em vigor em 23 de março de 1976. O Protocolo Facultativo, que se lhe seguiu, foi adotado no mesmo dia e nessa mesma data entrou, igualmente, em vigor. O Pacto foi ainda complementado por um segundo Protocolo Facultativo, de 15 de novembro de 1989, visando a abolir a pena de morte, o qual entrou em vigor em 11 de junho de 1991. O conjunto desses textos forma o que costumamos chamar de "carta internacional dos direitos do homem". Ela pressupõe uma unidade de inspiração e de conteúdo dos textos que, em realidade, não existiu.
Assim, os pactos de 1966 e dos anos seguintes traduzem outras preocupações além daquelas da Declaração Universal de 1948 e contêm uma inflexão da ideologia dos direitos do homem em busca de maiores espaços. Resta recordar que a Assembléia Geral das Nações Unidas contava, naquele ano, com 58 membros. Em 1966, esse número subiu para 122. A ideologia majoritária não pode, portanto, ser considerada a mesma.
Enquanto a Declaração Universal se esforça por conciliar concepções liberais e marxistas entre liberdades formais e reais, "esquecendo que se o nazismo ignorou as primeiras, é em nome das segundas que o estalinismo suprimiu a todas", os pactos consagraram um fenômeno de coletivização dos direitos do homem. A Declaração Universal é inteiramente voltada para a pessoa: os direitos humanos são, antes de tudo, os direitos do indivíduo e a Declaração é endereçada aos indivíduos e não aos Estados ("Todo o indivíduo, ou toda a pessoa, tem direito [...]"). Os pactos são dirigidos aos Estados e não aos indivíduos ("Os Estados se obrigam à [...]") e a dimensão social do indivíduo é a pedra de toque a ser considerada. O homem não pode encontrar a realização dos seus direitos senão no interior de uma sociedade livre de toda contenção externa (colonização) ou interna (opressão): o interesse do indivíduo se confunde com aquele da sociedade em que vive.
Os três sistemas hodiernos
Contamos, hoje, com três sistemas distintos, que possuem os mesmos objetivos, mas com práticas diversas. Todos eles, entretanto, buscando a preeminência dos Direitos Humanos, segundo as regras internacionalmente admitidas. Permitem, assim, que entidades instituídas pela vontade dos povos atuem para corrigir desvios no campo desses direitos, consentidos em ações ou omissões dos Estados, para restabelecer o Direito e a Justiça. A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, que, aliás, precede a Declaração Universal, tem como sujeito a pessoa humana ("Todo ser humano tem direito [...]"). Da mesma forma, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e os pactos e protocolos que se lhe seguiram, são endereçados aos Estados e não aos indivíduos ("Os Estados-partes nesta Convenção [...] Os Estados Americanos, conscientes do disposto na Convenção [...]).
Em verdade, a proclamação regional dos direitos do homem, circunscrita de início à Europa e à América, alcançando depois a África e até mesmo o mundo árabe-islâmico, é obra das organizações regionais concernentes: o Conselho da Europa, a Organização dos Estados Americanos, a Organização da Unidade Africana e a Liga dos Estados Árabes. Diga-se, de passagem, que o continente asiático apresenta a particularidade, contrariamente às outras regiões, de não ter adotado convenção regional alguma e mecanismo institucional algum destinado a promover e a proteger os direitos humanos, sobre uma base regional ou sub-regional.
Se olharmos para o nosso hemisfério, o que aqui se elaborou em nada difere daquilo que se debateu nos países-membros da União Africana. Esses países preocuparam-se com a concretização de um programa comum que obtivesse, no continente africano (respeitando, naturalmente, as grandes distâncias étnicas, ali existentes), a integração de seus povos na linha de um ideal comum de solidariedade. Destarte, erigiram a pessoa humana como a principal preocupação ética, acima dos governos ou das religiões ou mitos cultuados na região.
O sistema europeu
Do ponto de vista europeu, o Conselho da Europa e a Convenção Européia de salvaguarda dos direitos do homem e das liberdades fundamentais expressam a vontade de promover e defender a liberdade e a democracia, vontade essa que permeia o Estatuto do Conselho da Europa. Segundo preâmbulo desse Estatuto, os Estados signatários estão, sem dúvida, ligados aos valores morais e espirituais que são o patrimônio comum de seus povos e que estão na origem dos princípios de liberdade individual, de liberdade política e da preeminência do Direito, sobre os quais se funda a verdadeira Democracia. O artigo 3º do Estatuto precisa que todo membro do Conselho da Europa reconheça o princípio da preeminência do Direito e o princípio em virtude do qual toda a pessoa sob sua jurisdição deve gozar dos direitos do homem e das liberdades fundamentais. Esse liame estabelecido entre o respeito dos direitos do homem e o regime democrático aparece reforçado pela Convenção Européia, que entrou em vigor em 3 de setembro de 1953 e que se constitui no primeiro tratado multilateral concluído no quadro do Conselho da Europa.
A adesão, após 1989, dos Estados "pós-comunistas" ao Conselho da Europa, traz sua subordinação à prevalência do Estado de Direito, ao regime democrático e parlamentar "verdadeiro" e à garantia dos direitos do homem.
Contudo, o alargamento do Conselho da Europa operado em benefício de Estados como a Armênia, Azerbaijão, Bielo-Rússia, Bósnia-Herzegóvina e a Geórgia, que se mostram incapazes de respeitar o engajamento fundamental inscrito no aludido artigo 3º do Estatuto do Conselho da Europa, determina uma diminuição de seus padrões, circunstância que põe em causa a própria credibilidade do sistema europeu.
Anunciando que a União respeita os direitos fundamentais, como são garantidos pela Convenção Européia e que bem assim resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados-membros, como dos princípios gerais do direito consuetudinário, o tratado sobre a União Européia, de 7 de fevereiro de 1992, nada mais faz do que constitucionalizar a construção pretoriana operada pela Corte de Justiça das Comunidades Européias, em matéria de respeito dos direitos do homem.
O Tratado de Amsterdam, de 2 de outubro de 1997, que entrou em vigor em 1º de maio de 1999, traz uma revisão do Tratado da União Européia e daquele que institui a comunidade européia. Ele inscreve a questão dos direitos fundamentais em uma outra perspectiva. Em primeiro lugar, o Tratado da União Européia revisado, ao afirmar que a União está fundada sobre os princípios da liberdade, da democracia, do respeito aos direitos do homem e das liberdades fundamentais, como do Estado de Direito, princípios que são comuns aos Estados-membros, erige os três princípios (respeito dos direitos do homem, democracia, preeminência dos direitos) que formam "o patrimônio comum" de valores, segundo o Estatuto do Conselho da Europa e a Convenção Européia, considerados verdadeiros princípios constitucionais da União Européia, do que resulta que seu respeito se torna uma condição estatutária de adesão à União. Em segundo lugar, o Tratado de Amsterdam contém uma garantia dos direitos fundamentais que, até esse instante, fazia falta: a garantia jurisdicional e política. Ademais, o Tratado de Amsterdã procede à consolidação normativa dos direitos fundamentais.
O sistema europeu sofreu profunda modificação. Funcionando, anteriormente, com uma Comissão e uma Corte, com a emenda adotada pelo protocolo de 11 de maio de 1994, que entrou em vigor em 1º de novembro de 1998, passou a contar com apenas uma Corte, reestruturando-se os mecanismos originários. O protocolo 11 jurisdicionaliza o sistema de proteção, permitindo o ingresso direto das vítimas à Corte. Essa jurisdicionalização total do processo de proteção - necessariamente acompanhada pelo direito de qualquer indivíduo, que se encontre em um dos Estados-parte, a demandar diretamente contra os Estados ante um Tribunal internacional - entrou em vigor na Europa ao mesmo tempo em que ocorriam avanços substanciais no processo de unificação de alguns países, tais como a eliminação total de barreiras impositivas e a adoção de uma moeda única.
Entretanto, a incorporação dos países do Este ao sistema europeu determinou grandes tensões como conseqüência da grande avalanche de casos, que passaram a ser apresentados, a tal ponto que o Secretário Geral da Corte Européia, falando por ocasião dos atos comemorativos dos trinta anos da Convenção Americana de Direitos Humanos, celebrados em novembro de 1999, em São José da Costa Rica, assinalou que o sistema europeu de proteção e defesa dos Direitos Humanos encontrava-se em crise. Em verdade, já no seminário sobre o sistema interamericano de defesa e proteção dos Direitos Humanos, que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos fez realizar em Washington, em 1996, os participantes europeus questionavam a sabedoria de reduzir-se a flexibilidade do sistema europeu para abri-lo a tensões, até então, ignoradas. Valorizavam altamente o sistema dos órgãos em nosso hemisfério, que permite um filtro de petições, que de outro modo perturbariam o melhor funcionamento do sistema.
É certo que o mecanismo europeu de controle sofria, desde sua origem, de duas deficiências: sua complexidade tornava o procedimento de controle pouco visível para os peticionários; seu caráter híbrido, meio jurisdicional, meio político, afetava sua credibilidade. A verdade, entretanto, é que o sistema inicial adotado (Comissão, Corte, Comitê de Ministros do Conselho da Europa) não se adaptou ao volume de denúncias individuais apresentadas.
Vejamos: de 1955 (data de entrada em funcionamento da Comissão) a 31 de outubro de 1998, foram registrados 44.056 pedidos na Comissão, dos quais 5.006 no ano de 1988. Se a média anual de pedidos registrados é de 444, de 1975 a 1984, ela atinge 3.102, de 1990 a 1998; o ano de 1988 vê o limite de mil petições anuais ser ultrapassado sucessivamente, nos anos de 1993, 1995, 1996 e 1998, com duas, três, quatro e cindo mil petições, respectivamente. Segundo informa o professor Cançado Trindade, presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Corte Européia se vê, hoje em dia, às voltas com cerca de 26 mil demandas em diferentes níveis de processamento.
O protocolo suprime as cláusulas facultativas de aceitação do direito de recurso individual e da jurisdição da Corte e abre, de pleno direito ao indivíduo, o acesso ao órgão judiciário de controle. Em seguida, procede a uma unificação orgânica ao substituir os três órgãos de decisões existentes (Comissão, Corte e Comitê de Ministros do Conselho da Europa) por um só órgão - permanente - a Corte Européia dos Direitos do Homem.
Uma Câmara, constituída de três juízes, módulo ordinário de julgamento da Corte, passa a exercer as funções, precedentemente, atribuídas à Comissão: exame de admissibilidade, estabelecimento dos fatos, conciliação e decisão de mérito. O procedimento, cuja transparência é, todavia, relativa, é o seguinte: filtrada por um Comitê de três juízes (que, por unanimidade, poderá declarar a petição inadmissível), a petição individual será encaminhada a uma Câmara de sete juízes, que decidirá sobre sua admissibilidade e, depois de uma tentativa de conciliação, decidirá sobre o mérito. Essa decisão, porém, não é definitiva, pois uma das partes pode pedir que o processo seja enviado a uma grande Câmara, de dezessete juízes. Esse reexame está, porém, subordinado à aceitação de um colégio de cinco juízes e só poderá ter lugar, excepcionalmente, quando se tratar, por exemplo, de uma questão grave de interpretação ou de aplicação da Convenção.
A reestruturação, como se vê, deixa que subsista a diversidade funcional que existia (admissibilidade, conciliação, duplo exame do mérito) e não muda, fundamentalmente, o procedimento.
Essas alterações tiveram por conseqüência principal a exclusão do Comitê de Ministros como órgão de decisão. Ele continua a fiscalizar a execução das decisões da Corte, mas deixa a jurisdição do sistema de controle. Extingue-se a Comissão, ou seja, o órgão que permitia uma filtragem dos procedimentos, antes de considerá-los ou de submetê-los à Corte.
A Corte Européia conta, na sua organização atual, com 41 juízes e cerca de cinqüenta advogados. Uma estrutura que parecia atender aos reclamos de uma maior celeridade e eficiência está, entretanto, comprometida por um verdadeiro risco de explosão, acrescido pela extensão já mencionada da Convenção Européia aos países pós-comunistas, com a perspectiva de um formidável fluxo de novas demandas individuais, pois ela terá, doravante, cerca de 750 milhões de jurisdicionados virtuais.
O sistema americano
O continente americano nos dá o segundo exemplo de regionalização dos Direitos Humanos, no âmbito da OEA e da cooperação interamericana, ao instituir um mecanismo de proteção sofisticado, fortemente inspirado no modelo europeu. A qualidade do discurso de proclamação contrasta - deve-se afirmar - singularmente, com a situação real dos Direitos Humanos na América Central ou na América do Sul.
A carta constitutiva da OEA foi adotada em Bogotá, em 30 de abril de 1948, pela IX Conferência Internacional Americana (depois emendada pelo Protocolo de Buenos Aires, de 27 de fevereiro de 1967). O preâmbulo da Carta afirma que "o verdadeiro sentido da solidariedade americana e de boa vizinhança não se pode conceber senão consolidando, no continente e no quadro das instituições democráticas, um regime de liberdade individual e de justiça social baseado no respeito aos direitos fundamentais do homem". A carta prevê, por outro lado, a criação de uma Comissão Interamericana dos Direitos do Homem, órgão consultivo da OEA sobre a matéria.
A convenção americana relativa aos direitos do homem, de 22 de novembro de 1969, adotada pelos Estados-membros da OEA em São José (Costa Rica), entrou em vigor em 18 de julho de 1978, com o depósito do 11º instrumento de ratificação. Vinte e cinco Estados ratificaram a Convenção até 1º de julho de 1998. Hoje são 35 Estados. Convém ressaltar que os Estados Unidos e o Canadá não ratificaram até hoje a Convenção, questão que está na ordem do dia das reuniões, em sede das Américas, segundo o princípio da universalidade dos Direitos Humanos. É bem verdade que nos termos da Convenção de Viena sobre o direito dos tratados, os países signatários de um tratado, mesmo que não o tenham ratificado, devem abster-se de qualquer ato contrário a seu objeto e propósito, até que tenham decidido anunciar sua intenção de não tornar-se parte do tratado. No caso, apesar de os Estados Unidos da América não serem parte da convenção de Viena, o Departamento de Estado Americano a reconhece como texto básico, na área de tratados e atos processuais. Segundo a premissa de que a reserva é incompatível com o objeto e a finalidade de um tratado e que os Estados Unidos da América não são parte da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, o Departamento de Estado desse país entende que as normas da Convenção de Viena se constituem numa declaração do direito internacional costumeiro e, nesse caso, devem ser reconhecidas. Isto porque, segundo, ainda, a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, deve-se reconhecer a importância progressiva dos tratados como fonte do direito internacional e como meio do desenvolvimento pacífico e cooperativo entre as nações, quaisquer que sejam suas Constituições e sistemas sociais. Não é o caso, porém, do Canadá, que sequer firmou a Convenção Americana.
A convenção Americana reflete a mesma inspiração ideológica da Convenção Européia, quando afirma, em seu preâmbulo, que os direitos fundamentais do homem, não obstante o fato de pertencer a um dado Estado, repousam sobre os atributos da pessoa humana e que um regime de liberdade individual e de justiça social não pode ser estabelecido senão no quadro das instituições democráticas. Os direitos proclamados são similares e, sobretudo, o mecanismo institucional de proteção estava decalcado no então sistema europeu: a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na forma do que dispõe a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, é um órgão autônomo da OEA, que tem como função principal promover a observância, a defesa e a promoção dos Direitos Humanos e servir como órgão consultivo da OEA sobre a matéria. Ela se compõe de sete membros, eleitos a título pessoal, para um mandato de quatro anos, renovável por mais quatro, pela Assembléia Geral da Organização, dentre pessoas de alta autoridade moral, que se tenham destacado na área do conhecimento dos direitos humanos. A Corte é composta também por sete membros com as mesmas qualificações, com um mandato de seis anos (renovável por mais seis).
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos tem uma função quase jurisdicional, pois é ela que recebe as denúncias de violações que lhe são apresentadas pelas vítimas ou por quaisquer pessoas ou organizações não-governamentais, contra atos violatórios de direitos fundamentais por parte dos Estados ou que não tenham encontrado reconhecimento ou proteção por parte dos mesmos Estados. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos processa essas denúncias, procede ao seu exame e, depois de admiti-las, faz recomendações aos Estados e, ao final, decide se apresenta ou não o caso à Corte. Assim, a Corte só passa a decidir sobre os casos que lhe são apresentados pela Comissão ou por um Estado-parte.
A Comissão de Direitos Humanos da OEA é, ao mesmo tempo, um órgão ou etapa "processual" no sistema de petições individuais estabelecido sob a Declaração e a Convenção Americanas e um órgão de "vocação geral" na região americana, em matéria de Direitos Humanos. Nesse sentido, ela é uma mescla de Comitê de direitos civis e políticos do Pacto Internacional de 1966 e de Comissão de Direitos Humanos da Nações Unidas. Sua riqueza vem justamente do caráter parcialmente público e parcialmente judicial. A salvaguarda de sua imparcialidade e da correção de seu funcionamento é o caráter "supervisor" da Corte Interamericana.
Para os Estados que não aceitaram a cláusula de jurisdição obrigatória da Corte Interamericana, a Comissão é o único órgão de solução de litígios do sistema e deriva sua competência da carta da OEA e do estatuto da Comissão, além da Convenção Americana (para os estados que a ratificaram). Ela concentra, em um único órgão, a investigação dos fatos, a apreciação dos argumentos jurídicos e a imposição de sanções.
Assim, é fundamental para a vitalidade do sistema interamericano de Direitos Humanos, como a Comissão de Direitos Humanos asseverou na Assembléia Geral da OEA, que teve lugar na Guatemala, no mês de junho de 1999, e reiterou, ante a mesma Assembléia, realizada em Windsor (Canadá), em junho de 2000, o cumprimento pelos Estados-partes das sentenças da Corte e recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Os órgãos políticos da Organização devem cumprir com o objetivo central de assegurar o cumprimento das decisões dos órgãos de proteção. O fortalecimento do sistema não depende, pois, unicamente e nem se esgota no funcionamento dos órgãos de supervisão.
Em última instância, sua efetividade está vinculada à ação que os órgãos políticos estejam dispostos a empreender ante quantos ignoram suas obrigações internacionais. Os Estados e os órgãos apontados constituem-se na garantia coletiva do cumprimento das normas de direitos humanos. Passados, ainda, poucos dias da Assembléia de Windsor, em resposta a colocações feitas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos perante o Comitê de Direitos Políticos e Sociais da OEA, o representante dos Estados Unidos assinalou a conveniência de estabelecer-se um órgão encarregado de acompanhar o cumprimento das decisões e das recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
O sistema africano
Vejamos, em seguida, o sistema africano de proteção dos direitos humanos.
A Carta Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos foi adotada pela Assembléia dos representantes da Organização da Unidade Africana (OUA), em 27 de junho de 1981, em Nairobi, Quênia, tendo em vista a decisão 115 (inciso XVI) da Assembléia dos representantes, adotada em sessão ordinária, que teve lugar em Monróvia, de 17 a 20 de julho de 1979. A iniciativa visava a preparar um um draft preliminar para a elaboração de uma Carta Africana sobre os direitos do homem e dos povos, estabelecendo instrumentos para a luta contra o colonialismo e o racismo.
A Carta constitui um aporte importante ao desenvolvimento do direito regional africano e cobre uma lacuna essencial em matéria de direitos humanos. Ela entrou em vigor somente em 21 de outubro de 1996 com o objetivo de priorizar os direitos dos povos. Tais direitos são concebidos como um direito à independência e não como um direito à secessão, ao qual a prática da União Africana é totalmente contrária, em nome do princípio da intangibilidade das fronteiras da integridade territorial. As disposições da Carta relativas ao direito dos povos são também a expressão, a mais clara, da tendência moderna à coletivização dos direitos do homem. Sob esse aspecto, a Carta apresenta a singularidade de fazer coabitar conceitos aparentemente antagônicos: indivíduo e povo, direitos individuais e direitos coletivos, direitos da chamada "terceira geração" (direitos sociais, econômicos e culturais) e direitos clássicos (civis e políticos).
A Carta Africana criou, em seu artigo 30, uma Comissão africana do homem e dos povos. Trata-se de um órgão técnico independente, composto por catorze membros escolhidos por suas qualidades pessoais, encarregado da promoção e da proteção dos direitos do homem. Para esse efeito, a Comissão pode ser solicitada pelas faltas de um Estado às disposições convencionais, provocada por outro Estado ou por particulares.
No plano regional, a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos põe em prática um procedimento sumário e comunicações estatais que permitem a um Estado-parte a denúncia de violações da carta cometidas por outro Estado-parte.
O regimento interno da Comissão, adotado em 13 de fevereiro de 1988, distingue dois tipos de comunicação individual: a apresentada por um indivíduo que se pretende vítima de uma violação de um dos direitos enunciados pela Carta e aquela apresentada por um indivíduo da "Organização da Unidade Africana", alegando uma situação de violação grave ou massiva dos direitos do homem e dos povos. Esse sistema de comunicação não tem, realmente, por objeto, remediar violações individuais dos direitos do homem. A carta (art. 55) estabelece, nesse caso, que a denúncia constará de uma lista de comunicações similares, que é transmitida aos membros da Comissão, que indicarão quais deles deverão ser considerados. Ademais, a carta não prevê o tratamento individual de petições admissíveis.
Nos termos de seu artigo 58, a Comissão, assim como o acordo da Assembléia dos Chefes de Estado e da direção da Organização da União Africana, poderá promover estudos aprofundados, em decorrência de comunicações relativas a situações reveladoras da existência de violações graves ou massivas dos direitos do homem e dos povos. De outro lado, a Comissão poderá afirmar essa vocação de órgão protetor dos direitos individuais, à semelhança da evolução constatada na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O mecanismo, entretanto, é fortemente restritivo. Assim, as recomendações da Comissão não podem ser dirigidas diretamente aos Estados concernentes, mas devem ser feitas ao órgão supremo da Organização da União Africana, que decide da oportunidade de publicar as recomendações da Comissão (art. 59, § 3º). O órgão intergovernamental da Organização da União Africana desempenha, portanto, o papel de intermediário obrigatório e protetor da soberania estatal: a eficácia do sistema parece, assim, bastante duvidosa.
O protocolo adotado em Ovagadongou, em 9 de junho de 1998, já em vigor, trata da criação de uma Corte Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, cuja intervenção pode ser solicitada pelos indivíduos e pelas organizações não-governamentais, sob a reserva da aceitação prévia de sua competência pelo Estado-parte. A decisão da corte é revestida da autoridade de coisa julgada definitiva (art. 30 do Protocolo sobre a criação de um Tribunal Africano dos Direitos do Homem e dos Povos); o acompanhamento de sua execução é confiada ao Comitê de Ministros da Organização da União Africana (art. 29, n. 2, do mesmo Protocolo).
Três sistemas e um objetivo comum
Como se vê, os três sistemas têm um objetivo comum - a proteção e a defesa dos Direitos Humanos - que é alcançado segundo as peculiaridades de cada um. Não se trata aqui de concluirmos qual seja o melhor, mas de encontrarmos em todos eles a maior eficiência segundo o mandato que lhes é determinado. A plena jurisdicionalização do sistema será a solução?
Se o objetivo, buscado pelo Conselho da Europa, está encontrando dificuldades, dada a avalanche de solicitações que acorrem à Corte Européia, no nosso hemisfério, o sistema se ressente da imprescindível universalização e de um mecanismo que imponha, aos Estados-partes, o cumprimento das decisões da Corte e das recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Por outra parte, o sistema africano, implantado faz pouco tempo, terá sua eficiência comprovada no correr dos próximos anos.
Mas o que me parece fundamental é que, a par da universalização dos sistemas - o que ainda não aconteceu no caso das Américas e do Caribe - aperfeiçoando-se, com a experiência já acumulada as práticas na apuração das violações e responsabilização dos Estados e do cumprimento obrigatório das decisões e recomendações dos órgãos, guardando sempre o princípio de que o primeiro combate pela implementação dos Direitos Humanos deve ocorrer nos Estados-partes, mediante sua própria atuação, segundo os princípios que conformam o Estado de Direito Democrático, tenha-se em consideração que os sistemas assinalados são subsidiários e só atuam quando os Estados negam esses direitos fundamentais, que qualificam a cidadania de nossas mulheres, homens e crianças.
TPI - sob a espada de Dâmocles
Para completar o exame sucinto ora feito, dos sistemas regionais de defesa e proteção dos Direitos Humanos, valeria, ainda, menção ao Tribunal Penal Internacional. Ele foi criado pelo Estatuto de Roma, em julho de 1998, e entrou em vigor no dia 1º de julho de 2002.
O Tribunal em questão, com competência para julgar pessoas pelos crimes mais graves de transcendência internacional, tem caráter complementar das jurisdições penais nacionais. Ele surgiu depois das experiências dos Tribunais de Nuremberg e de Tóquio, adequadamente denominados tribunais dos vencedores e mais prosaicamente dos Tribunais instituídos para julgar os crimes praticados em Ruanda e nos territórios da antiga Iugoslávia. Trata-se, sem dúvida, de um relevante marco no progresso do estabelecimento de uma justiça mundial. Nada menos do que 76 países o subscreveram e ratificaram e se empenham, agora, na sua instalação. O Brasil já ratificou o Estatuto e depositou o instrumento de ratificação na Secretaria das Nações Unidas.
O Tribunal Penal Internacional encerra a promessa de um mundo no qual os responsáveis por genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade não mais restarão impunes. Seus autores serão submetidos à Corte Internacional, nos casos em que os Estados-partes não conseguirem ou não se dispuserem a submetê-los à Justiça. Cumpre assinalar, entretanto, que os Estados Unidos da América, por decisão de 6 de maio de 2002, anunciaram oficialmente que não pretendem ratificar o estatuto da Corte Penal Internacional e se consideram desobrigados de todos os ônus decorrentes de sua anterior adesão. A esse respeito, a União Européia observou que esse ato unilateral poderá ter conseqüências lastimáveis sobre a conclusão multilateral dos tratados e, de uma maneira geral, sobre o princípio da preeminência do direito nas relações internacionais.
Com esta consideração, de relevante oportunidade, a comunidade internacional tem a esperança de, num futuro próximo, segundo diálogo a ser aberto com os Estados Unidos, encontrar o caminho para abrigar a cooperação americana na inteira aplicação da justiça, alcançando a abrangência do Estatuto de Roma.
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Hélio Bicudo é advogado, jornalista e vice-prefeito de São Paulo. Foi deputado federal entre 1991 e 1994; Membro-fundador da Comissão Justiça e Paz de São Paulo em 1972; Membro da Comissão Teotônio Vilela de Defesa dos Direitos Humanos em 1983; presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados em 1996, da Comissão Municipal de Direitos Humanos em 2002, do Centro Santo Dias de Direitos Humanos em 1998, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos-OEA em 2000. Atualmente, atua como Delegado para o Brasil da Organização Mundial contra a Tortura e Conselheiro da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança. É ainda autor de vários livros, dentre eles Cem anos de Direito e Justiça no Brasil.

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