Democracia e exclusão social em face da globalização
Friedrich Müller
Professor Catedrático Emérito em Direito Constitucional, Filosofia do Direito e do Estado e Teoria Geral do Direito na Universidade de Heidelberg "Democracia" é uma expressão bastante indeterminada, isto é, utilizada de vários modos, freqüentemente opostos. A história do termo oferece os significados de "governo" e "povo"; mas se isso resulta em algo como "governo do povo", é, justamente, a questão.
Ocorre que a referência ao povo é necessária às diferentes concepções
de democracia, pois elas precisam legitimar-se. O sistema deve poder
representar-se como se funcionasse com base na soberania popular, na
autodeterminação do povo, na igualdade de todos e no direito de decidir de
acordo com a vontade da maioria. Devem haver, também, chances iguais para os
partidos políticos chegaram ao poder e o direito à oposição legal. Só que a
teoria tradicional da democracia não deixa claro como o exercício do poder
estatal pode ser retroreferido "ao povo", concretamente.
Para definir um sistema democrático, pode-se começar verificando
empiricamente os modos lingüísticos de utilização da palavra "povo"
nos textos das normas do direito vigente, sobretudo nas constituições. Dessa
análise, resultam vários modos de utilização. O primeiro deles é, também, o
único que, até agora, foi usado na bibliografia da Ciência do Direito como
conceito jurídico de "povo": os titulares dos direitos eleitorais.
Denomino esse modo de utilização "povo ativo". Isso basta para o
Poder Legislativo, na medida em que se compreende, graças à idéia de
representação, que "o povo" é, indiretamente, a fonte da
legislação. Mas isso não funciona no caso das atividades dos Poderes
Executivo e Judiciário, que, afinal de contas, também devem ser
"demo"craticamente justificadas. O povo ativo decide diretamente ou
elege os seus representantes, os quais co-atuam, em princípio, nas
deliberações sobre textos de normas legais que, por sua vez, devem ser
implementadas pelo governo e controladas pelo Judiciário.
Na medida em que isso é feito corretamente em termos do Estado de Direito, aparece, no entanto, uma contradição no discurso da democracia: por um lado, faz sentido dizer que os governantes, os funcionários públicos e os juízes estariam democraticamente vinculados; mas não faz sentido dizer que, aqui, o povo ativo ainda estaria atuando "por intermédio" de seus representantes. Onde funcionários públicos e juízes não são eleitos pelo povo, a concretização de leis não basta para torná-los representantes deste mesmo povo. O ciclo da legitimação foi rompido, ainda que de forma democrática; mas ele foi rompido. Os vínculos são cortados de forma não-democrática quando a decisão executiva ou judicial for ilegal; aqui, o povo invocado pelo titular do respectivo cargo ("em nome do povo, profiro a seguinte sentença...") produz somente o efeito de um ícone, de um mero passepartout ideológico. No caso já mencionado, ou seja, na decisão defensável em termos do Estado de Direito, o papel do povo apresenta-se diferentemente: como instância de uma atribuição global de legitimidade. Tal papel transcende, na sua abrangência, o povo ativo; abrange todos os que pertencem à nação.
Além disso, as decisões dos órgãos que instituem, concretizam e
controlam as normas afetam a todos aqueles aos quais dizem respeito: o
"povo" enquanto população efetiva. Uma democracia legitima-se a
partir do modo pelo qual ela trata as pessoas que vivem no seu território -
não importa se elas são ou não cidadãs, ou titulares de direitos eleitorais.
Isso se aproxima, finalmente, da idéia central de democracia:
autocodificação, no direito positivo, ou seja, elaboração das leis por todos
os afetados pelo código normativo. O princípio "one man, one vote"
(pensado em outra acepção) também pode ser compreendido não com vistas a uma
camada social específica, mas com vistas à qualidade humana de cada pessoa
afetada, independentemente da cidadania. Desse povo-destinatário, ao qual se
destinam todos os bens e serviços providos pelo Estado Democrático de
Direito, fazem parte todas as pessoas, independentemente, também, de idade,
estado mental e status em termos de direitos civis.
Democracia é direito positivo de toda e qualquer pessoa, no âmbito da
sua "- cracia". Nesse contexto, aqueles que não consideram o
problema da exclusão social, usam a expressão "povo" de forma
meramente icônica; eles não são democratas, não participam do discurso
democrático.
A exclusão desenvolve uma dinâmica fatal. Já em 1821, Hegel, ao
analisar a sociedade capitalista nos seus primórdios, estabeleceu, em Princípios
da Filosofia do Direito, que a pauperização econômica acarretaria enormes
desvantagens em termos de educação, formação profissionalizante, cultura,
grau de informação, sentimento de justiça e autoestima. Resta acrescentar que
um padrão de vida excessivamente baixo, o empobrecimento da família e o
estigma do bairro residencial errado; a comunicação, pela gerência do banco,
do encerramento da conta corrente; a exclusão crescente da vida social,
cultural e política; enfim, o enfraquecimento do sentimento de valor próprio,
a falta de "reconhecimento", têm como um de seus efeitos mais
perversos a paralisação, enquanto seres políticos, das pessoas afetadas. O
descenso econômico leva rapidamente à privação sócio-cultural e à apatia
política – o que, quase sempre, satisfaz aos desígnios das esferas dominantes
da sociedade. O "desfavorecimento, mesmo em apenas uma área parcial,
produz uma "reação em cadeia de exclusão" que resulta, não em
último lugar, na "pobreza política".
A dimensão mais perigosa desse escândalo estrutural está,
provavelmente, no fato de que as batalhas no terreno da economia política e
da política ainda têm que ser complementadas por batalhas no campo jurídico,
pois a injustiça econômica, social e política é acrescida da falta de
eqüidade jurídica. Assim, os indefesos, pobres e marginais não podem mais
contar com proteção jurídica; são, por assim dizer, liberados para a caça. O
resultado é a violência nas cidades (contra meninos de rua, favelados e
outros), no campo (contra posseiros, sem-terra, índios e outros) e, em toda
parte, contra grupos e minorias (por exemplo, crianças, adolescentes,
mulheres, homossexuais, população negra, comunidades indígenas, migrantes
nordestinos), como diagnóstico característico dos conflitos em torno dos
direitos humanos no Brasil.
Esse horror é efetivamente institucionalizado no direito penal pela
impunidade sistemática dos agentes estatais e empresariais; e, na política e
na burocracia, pela corrupção. As vítimas não são apenas as pessoas; com
elas, vitima-se também a democracia, o Estado de Direito, o Estado de
Bem-Estar Social e o direito de defesa contra o Estado, bem como os direitos
de participação e, sobretudo, a centralidade do princípio da "igualdade
perante a lei".
A exclusão, nesse sentido forte do termo, ultrapassa a não-filiação e
a não-integração, se se quiser entender por isso apenas a
"marginalização" ou a "heterogeneidade estrutural".
Sociedades modernas geram inclusão e exclusão como diferença funcional.
Existem, então, diferenças de classe ou entre camadas sociais no âmbito de
uma inclusão geral, ainda que mais ou menos desigual (paradigma do Estado de
Bem-Estar Social). Mas, com a exclusão no sentido forte do termo, aqui
analisada, a sociedade industrial se torna parcialmente disfuncional, entra
em grave regressão, deixando que a ordem social e jurídica seja fragmentada.
Grandes parcelas da população, por um lado, dependem dos sistemas funcionais
vitais, mas, simultaneamente, não têm, a priori (no caso da exclusão
primária), acesso às suas prestações materiais, ou deixam de tê-lo, como
ocorre no caso da exclusão secundária, do empobrecimento e do descenso social
maciço, tão nítido nos países do Grupo dos Sete.
O Brasil é estigmatizado amplamente pela exclusão primária. A práxis
estatal, para-estatal e econômica ab-roga aos excluídos a dignidade humana e
mesmo, na atuação do aparelho repressivo, a qualidade de seres humanos:
assim, verificam-se a negação das garantias jurídicas e processuais, a
perseguição física, as "execuções" sem processo e a impunidade dos
agentes da opressão e das chacinas.
De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), dois
bilhões de pessoas estão desempregadas ou subempregadas, e mais de um bilhão
vivem na pobreza. O número de analfabetos chega a um bilhão, mais de 800
milhões experimentam fome aguda e o exército dos desabrigados aumenta
praticamente em todos os países. Quase quatro bilhões de pessoas vivem em
países com uma renda per capita anual inferior a mil e quinhentos dólares.
Essa miséria não cai do céu; e cada vez menos ela pode ser atribuída
ao chamado subdesenvolvimento. A desregulamentação em escala mundial,
designada de forma semanticamente inofensiva com o termo
"globalização", elimina, por exemplo, tarifas alfandegárias
destinadas a proteger produtores e mercados locais e regionais. Assim,
produtores de países pequenos submetem-se a uma concorrência internacional
que, muitas vezes, não conseguem enfrentar. Fica minada a possibilidade de os
governos nacionais protegerem sua economia e monitorarem com autonomia os
seus sistemas financeiros.
A tendência à ampliação do mercado de trabalho esvazia a influência
dos sindicatos e neutraliza o efeito de padrões normativos para a proteção ao
trabalhador. Os agricultores do chamado Terceiro Mundo são inseridos na
produção para o mercado mundial, enquanto seus próprios países passam a
depender de importações de gêneros alimentícios. A concorrência internacional
destrói o artesanato local; a quantidade de empregos eliminados supera a
quantidade dos empregos criados por investimentos estrangeiros. Os recursos
naturais são devastados em grau alarmante.
Muitas normas jurídicas dos países afetados surgiram em meio a longas
lutas do movimento operário e de outras formas de legítima defesa, para
limitar o abuso desenfreado por parte dos sistemas de exploração e
colonização dos séculos XIX e XX. Tais normas são enfraquecidas ou abolidas,
inclusive aquelas mais recentes sobre a proteção ao meio ambiente e aos
fundamentos elementares da vida de todas as pessoas (direitos sociais) - o
que equivale a uma nova transformação (proveniente dos Estados Unidos) dos
mercados financeiros e comerciais internacionais, que pode ser caracterizada
como uma nova forma de colonialismo acirrado. As crises de importantes
economias asiáticas, da economia mexicana e, depois, da sulafricana – e,
agora, da Argentina – mostram quão frágeis e vulneráveis se tornam economias
nacionais individuais. Indiretamente, também se enfraquece todo o conjunto de
economias, em decorrência da monetarização global, que leva à adequação
forçada dos países individuais a uma monocultura econômica ocidental,
motivada, exclusivamente, pela maximização do lucro.
A democracia tem instrumentos para superar tal crise, mas, atualmente,
os ataques ao potencial democrático de monitoramento das crises vêm de todos
os lados: a soberania dos parlamentos e governos nacionais se reduz e faltam
meios político-democráticos para estabilizar, em escala mundial, o frágil
sistema de uma economia de livre mercado. Esse sistema de capitalismo
"avançado" revela ser absolutamente destrutivo: a fome e a miséria
aumentam e a extensão do consumo de recursos e da destruição do meio ambiente
produz, cada vez mais, o colapso do planeta. Nas palavras de Niklas Luhmann,
com referência à Índia, à África e ao Brasil, mas também a partes dos Estados
Unidos, exclusão crescente significa a "produção" de milhões de
corpos humanos que sao expulsos de todas as redes de comunicação socialmente
necessárias: "Ao passo que na esfera da inclusão as pessoas contam
enquanto pessoas, na esfera da exclusão parece que somente os seus corpos têm
importância".
A miséria maciça cresce, também, nos países ricos, em forma de êxodos
maciços em escala mundial, terrorismo e reimportação, pela via dos ciclos
ecológicos, de lixo tóxico "exportado", bem como por meio de
catástrofes climáticas generalizadas; pela formação de guetos de miséria nas
áreas de alta densidade demográfica dos países industrializados; e pelo
crescimento da criminalidade organizada que, praticamente, não pode ser
combatida apenas com sanções penais. O capital que age legalmente "se
confunde" com o capital que age criminosamente.
Do ponto de vista econômico, a concentração da renda aumenta cada vez
mais. Em nenhuma região do mundo a distância entre os mais ricos e os mais
pobres se acetua tanto como nos países emergentes da América Latina: situa-se
entre seis vezes (Costa Rica) a quinze vezes (Brasil), o que quer dizer que
os 10% dos brasileiros mais ricos percebem uma renda quinze vezes superior à
dos 40% mais pobres. Pode-se constatar que essa desproporção é maior no
Brasil, em comparação com todos os países do mundo acerca dos quais dispomos
de dados estatísticos.
A seguir, apresento alguns outros pontos importantes para o tema desta conferência: o núcleo operativo da "globalização"; as especificidades da América Latina e, especialmente, do Brasil; o estatuto histórico da política globalizadora; o papel do Estado nessa política e os efeitos desta sobre a democracia.
Se podemos falar de "globalização", trata-se de uma
globalização sob a lei do capital; em outras palavras, a mundialização é uma
monetarização.
Na América Latina, o capitalismo tem raízes essencialmente mais tênues
do que nos países industrializados da Ásia; por isso, os habitantes dessa
região já se viram obrigados a acumular mais experiências com suas crises,
sobretudo no sentido do "entra e sai" dos investidores
internacionais. Até a ocorrência da crise mexicana e, em medida menor, também
depois dela, o subcontinente era considerado uma boa localização para
investimentos. No momento, o capital está novamente batendo em retirada – com
grandes turbulências, conforme se deve temer.
A democracia exige que processos econômicos sejam inseridos em
processos sociais. Contrariamente ao que afirma o ultraliberalismo, há fortes
razões para supor que pelo menos uma determinada classe de problemas –
aqueles relativos a políticas de redistribuição - necessita da intervenção do
Estado, tanto hoje, como no passado. Na situação atual, isso parece requerer
a ajuda de conjuntos de regras internacionais, na medida em que o
Estado-nação não pode mais, sozinho, produzir e impor suas regras. Assim, os
processos de mercado, livres do controle estatal, tendem a fazer com que a
soberania dos estados constitucionais, e até sua legitimidade democrática,
degenerem, paulatinamente, em farsa.
As chamadas "forças do mercado" não são nem leis da
natureza, nem leis históricas com dignidade superior, às quais a política
deveria sujeitar-se. A polêmica ultraliberal tenta fazer esquecer que a
corrupção e o nepotismo não são estranhos a grandes formações econômicas e
que amplas partes do setor privado, por sua vez, são superdimensionadas e
burocratizadas. Assim, "a conhecida crítica do Estado formulada pelos
ideólogos do mercado traduz o temor de que o Estado possa vir a representar o
interesse público de forma excessivamente eficiente".
Ao contrário do que apregoam os meios de comunicação controlados por
grandes grupos econômicos, a dominação dos mercados, cada vez mais
desenfreada, não leva a sociedades liberais - no sentido etimológico do
termo, já que liberalismo vem do vocábulo latino "líber" (livre) -
e comprometidas com a democracia e com os princípios do Estado de Direito. Na
verdade, só a duras penas um Estado constitucional se constitui e se afirma
política e juridicamente como Estado livre. De qualquer modo, um
Estado constitucional democrático deve regular e influenciar os
mercados tão amplamente que a sociedade possa continuar sendo razoavelmente livre
e justa.
Os modos pelos quais a monetarização global ameaça a democracia já
foram mencionados. Cumpre salientar que o ataque mais profundo nessa direção
provém da exclusão social, a qual se amplia e agrava graças à globalização,
como indicam as evidências empíricas. A exclusão se afirma inequivocamente às
expensas do Estado Democrático de Direito e do Estado de Bem-Estar Social;
ela deslegitima o governo, pois faz com que o povo ativo, o povo enquanto
instância de atribuição e o povo-destinatário degenerem em "povo"
como ícone.
Num grau mais acentuado, a exclusão chega até a
"desestatizar" o Estado constitucional exigente, que só pode ser
justificado como Estado universal e não como um Estado ao qual se sobrepõe
tiranicamente o metacódigo inclusão/exclusão. E no grau no qual os mercados
globais ditam a política e tornam inoperantes as chances de monitoramento por
parte dos governos, o conceito de democracia cai no vazio, como
freqüentemente tem ocorrido.
Especificamente, com vistas ao caso brasileiro, Celso Furtado, para
citar um exemplo, afirmou que a sujeição ao capital estrangeiro causaria um
"risco crescente de ingovernabilidade do país". Num mercado global
sem Estado(s), o capital móvel sobrepõe-se a parlamentos e governos eleitos,
minando, conseqüentemente, o comprometimento destes com o Estado de Direito e
o Estado de Bem-Estar Social, com a proteção ambiental e a distribuição
defensável e responsável de bens escassos. A concretização da ameaça de
"mudança de localização" depende somente do cálculo de benefícios
do respectivo grupo empresarial; mas ela solapa (eventuais) motivações e
compromissos dos governos destarte chantageados, com o bem-estar da
coletividade. E com isso se subtrai o fundamento, precisamente, àqueles
métodos democráticos pelos quais conquistas – como, por exemplo, os direitos
humanos - e objetivos políticos – como, por exemplo, a proteção ambiental -
deveriam ser tratados e assegurados.
Nos países pouco desenvolvidos e nos países emergentes, cresce a
consciência de que um crescimento econômico global, contabilizado em termos
meramente monetários e estatísticos e destituído de padrões condizentes com o
Estado de Direito, quer dizer, sem "good governance", longe de
contribuir para pacificar essas sociedades, agrava seu potencial conflitivo e
contribui para a desestabilização política.
Com vistas aos EUA, o decano da economia liberal de esquerda, John
Kenneth Galbraith, prognostica a ruptura da sociedade, caso o mercado sem
freios possa continuar cindindo o país em três partes: os ricos, a camada
média em via de desaparecimento e os excluídos, cujo número cresce dia a dia.
Autores como William Lewis e Lester Thurow percebem que nos EUA e nos países
industrializados restantes a estrutura social está se rompendo em pedaços, no
prazo mais longo: "O capitalismo pode conviver com isso, mas a
democracia, não", escreve o professor do Massachussetts Institute of
Technology.
Um tema especial, que nos limites desta conferência pode apenas ser
sugerido, consiste nos efeitos da exclusão sobre a democratização,
especialmente em casos mais complexos de transições políticas para sistemas
que, a priori, poderiam ser definidos como "democráticos".
O Brasil teve de distanciar-se de um regime militar precedente e a
elaboração e promulgação de sua constituição, como se sabe, ocorreram no
contexto de uma transição pactuada, e não revolucionária. O peso quase
opressivo do seu regime presidencialista conduz, em uma sociedade civil ainda
insuficientemente organizada e mobilizada, ao que se chama, nas pesquisas
sobre os processos de transição, democracia "defeituosa", uma vez
que a exeqüibilidade de uma política democrática fica prejudicada pela falta
de estruturas próprias ao Estado de Direito. Infelizmente, o País já
experimentou formas intermediárias entre a democracia e a dominação mais ou
menos autoritária; felizmente, os brasileiros não carecem de reflexão acerca
dessas experiências, como indicam termos como ditabranda ou democradura.
Uma base ainda forte dessas formas híbridas é a estrutura política, em grande
parte arcaica: ela é constituída por uma casta de régulos estaduais,
"caciques" que agem de forma clientelista nos Estados-Membros; por
"representantes do povo", cujo comportamento político nestes
Estados, e também no plano da federação é, praticamente, não-controlável e
que, por sua vez, conformam-se ao clientelismo regional e presidencialista.
Para fazer frente a esse quadro, é importante que na esfera das
"massas" mais ou menos organizadas, ou organizáveis, existam um
interesse e um empenho reais pela democratização exitosa, ao menos com vistas
ao longo prazo. Sem comunicação e cooperação com esse fator, nenhuma elite
consegue manter-se no poder, indefinidamente. A democratização, que se
constrói com mais chances de êxito «de baixo » do que « de cima »,
processa-se precisamente a partir de uma multiplicidade de iniciativas de
auto-ajuda, de auto-proteção, de afirmação dos direitos civis e de outras
formas de resistência. Mas, justamente aqui a exclusão social é gravemente
impeditiva e deve ser combatida com todas as forças, com vistas à realidade
(futura) de um sistema democrático.
A questão colocada pelo tema deste texto não deve ser respondida
apenas em termos éticos; daí que tenha sido necessário operacionalizar melhor
conceitos centrais, de modo a possibilitar enunciados quantitativos. Nessa
perspectiva, a miséria maciça, primordialmente econômica, diz respeito ao
povo-destinatário; a miséria sócio-cultural, que acarreta a apatia política,
diz respeito ao povo ativo; e a exclusão jurídica em acepção mais estrita
(violência ilegal, desigualdade inconstitucional, negação da proteção
jurídica, impunidade dos responsáveis pela opressão) consiste em violações do
status do povo como instância de atribuição.
No campo das causas, os sistemas democráticos não podem tolerar um
"mais" da forma até agora existente da monetarização mundialmente
desregulamentada nem, por princípio, seu grau atingido até o presente. Os
processos de democratização em países pouco desenvolvidos e em países
emergentes podem, com isso, sofrer danos – talvez irreparáveis. Nos países
centrais, a democracia, por sua vez, já está em vias de sofrer danos
visíveis.
Com relação aos efeitos estáticos, isto é, dificilmente elimináveis da
exclusão nos países individuais, em relação aos seus sintomas cotidianos, se
somarmos todos os indicadores no âmbito da « cadeia » descrita, inclusive a
apatia política, que se expressa também no comportamento eleitoral, o limite
do que ainda se pode tolerar é a maioria qualificada para a alteração da
constituição do respectivo sistema político. Se ela for atingida ou
ultrapassada, a democracia desse país, temporária ou permanentemente,
existirá apenas no papel; então, o sistema democrático será apenas « law in
the books », não mais « law in action ». Esta é uma situaçao que nenhum
democrata pode tolerar.
Tal evolução não pode coexistir com uma democracia dotada de
vitalidade. A democracia justifica-se a partir do povo, deve servir ao povo
ativo, ao povo enquanto instância de atribuição e ao povo-destinatário, quer dizer,
aos titulares dos direitos eleitorais, acrescidos de todos os cidadãos,
acrescidos de todas as pessoas no âmbito do seu ordenamento constitucional. A
democracia é a forma estatal da inclusão.
A democracia é um direito positivo de todo e qualquer ser humano. Mais
globalização da espécie que conhecemos até o momento seria letal para a
democracia; o grau atingido já è altamente perigoso. Como podemos sair
novamente desse abismo?
Muitas medidas são discutidas. Quero mencionar aqui algumas poucas,
atinentes às políticas jurídica e social : objetivos mais claros de uma
compensação nos termos de Estado de Bem-Estar Social ; finalmente, uma
reforma agrária eficaz ; créditos fiscais sistemáticos para os working
poor, investimentos dramaticamente mais elevados na educação, na formação
escolar e adacêmica e na formação profissionalizante, não apenas por parte do
Estado, mas - mediante ordens juridicamente formuladas – também por parte das
empresas ; levar a sério e implementar coerentemente o direito vigente ( not
last, os direitos humanos, o Direito Trabalhista e Previdenciário, a
tutela jurídica processual em todas as áreas ).
Outras medidas jurídico-institucionais da maior urgência são um
combate enérgico em favor da igualdade de todas as pessoas perante a lei, a
ser realizado concretamente em prol da equiparação das mulheres, dos grupos
excluídos da população, do status jurídico de crianças e adolescentes,
em prol do desenvolvimento de regiões negligenciadas. É também de central
importância eliminar a impunidade na aplicação do Direito Penal e tornar
eficazes as garantias processuais e outras garantias procedimentais para cada
pessoa afetada, independentemente da sua camada social.
E tudo isso necessita de uma reforma enérgica do aparelho judiciário.
O Judiciário deve tornar-se inteiramente independente do Poder Executivo,
deve poder aparecer, no pleno sentido desse termo, como "Terceiro
Poder". O Estado deve ser arrancado finalmente da sua
privacidade, estruturalmente ainda feudal, deve tornar-se público no sentido
moderno do termo, deve, para dizê-lo em termos jurídicos, ser tratado
como ente de Direito Público. E essa qualidade fundamental de uma república
com uma efetiva divisão dos poderes e um efetivo controle dos poderes deve
ser fiscalizada por uma práxis independente dos tribunais, cuidadosamente e
em estrita fidelidade à constituição.
A partir da nova situação política no Brasil, com um novo exercício da
Presidência, vivemos talvez – a mais longo prazo - um novo começo histórico,
ainda a se denominar: esperançoso e, mais que isso, com uma oportunidade real
de mudança democrática pacífica, ou seja, uma mudança de uma sociedade que
até o momento se caracterizava pela desigualdade, pela injustiça e, em parte,
detentora de conformação pré-democrática. As expectativas que emanam do
Brasil, vão muito além do País, alcançando mesmo o cenário internacional.
Contra a globalização do capital oligopolista, há que globalizar a
democracia – em formas estruturadas democraticamente em si mesmas,
enquanto auto-organização móvel, com um "povo" global a ser criado,
paulatinamente, por meio da resistência, enquanto ator e veículo da
comunicação na esfera pública mundial, da crítica e da formulação de opcões
melhores: com vistas a uma sociedade mundial futura, na qual a economia
exista novamente em função das pessoas, e onde a estas seja possível decidir
democraticamente seus destinos na condição de membros iguais de uma sociedade
não excludente.
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segunda-feira, 18 de junho de 2012
DEMOCRACIA E EXCLUSÃO SOCIAL EM FACE DA GLOBALIZAÇÃO
sexta-feira, 15 de junho de 2012
Video Aula 2 - O estado nacional e o estado plurinacional - com José Luiz Quadros de Magalhães
Aula com o professor José Luiz Quadros de Magalhães sobre a formação do estado nacional (estado moderno) do direito moderno e das transformações do estado plurinacional.
http://www.youtube.com/watch?v=68nPoKIC3sk&feature=plcp
Disponível em: http://joseluizquadrosdemagalhaes.blogspot.com.br/2012/06/1200-video-aula-estado-plurinacional-2.html
Comentário: tive o prazer e a gratificação de conhecer pessoalmente o professor José Luiz Quadros no curso de Mestrado da Faculdade de Direito do Sul de Minas. Suas aulas são fantásticas. Sugiro que assista. Estarei postando todas as suas aulas neste blog.
http://www.youtube.com/watch?v=68nPoKIC3sk&feature=plcp
Disponível em: http://joseluizquadrosdemagalhaes.blogspot.com.br/2012/06/1200-video-aula-estado-plurinacional-2.html
Comentário: tive o prazer e a gratificação de conhecer pessoalmente o professor José Luiz Quadros no curso de Mestrado da Faculdade de Direito do Sul de Minas. Suas aulas são fantásticas. Sugiro que assista. Estarei postando todas as suas aulas neste blog.
quinta-feira, 14 de junho de 2012
OBSTÁCULOS HISTÓRICOS À VIDA DEMOCRÁTICA EM PORTUGAL E NO BRASIL
Artigo publicado:
DESDE a Antigüidade Clássica até a segunda metade do século XIX, a democracia sempre foi tida, entre os pensadores políticos, como um regime político subversor da hierarquia social. Montesquieu sustentava que, numa sociedade democrática, as mulheres, as crianças e os escravos já não se submeteriam a ninguém; não haveria mais bons costumes, amor à ordem, virtude enfim1. James Madison, por sua vez, sublinhou que a democracia, por ele entendida como "a sociedade consistente num pequeno número de cidadãos que se reúnem e administram o governo diretamente", incentivaria o espírito de facção, pondo em constante risco a ordem social2.
No mundo contemporâneo, contudo, o juízo de valor que se faz sobre a democracia é exatamente o inverso. Com raras exceções, já nenhum partido ou movimento político ousa dizer-se antidemocrático. Todos, ao contrário, esforçam-se por se apresentar como os únicos verdadeiros defensores do "governo do povo, pelo povo e em prol do povo".
Essa unanimidade atual, construída em torno do conceito de democracia, é evidentemente suspeita. Ela revela, sem sombra de dúvida, uma formidável confusão semântica, ao fazer do elogio universal do regime democrático um simples chavão do jogo político. O povo, que afinal, pelo próprio sentido etimológico, seria o principal beneficiário dessa forma de organização política, parece ter sérias dificuldades em entender, exatamente, o que está por trás das palavras encantatórias da propaganda. Numa pesquisa realizada em 1999 com mais de cinqüenta mil pessoas em sessenta países, citada no Relatório das Nações Unidas de 2002 sobre o Desenvolvimento Humano, apurou-se que apenas dez por cento dos entrevistados reconheceram que o governo do seu país obedecia à vontade do povo3.
Ora, Portugal e Brasil - que sofreram durante o último século regimes autoritários e ditatoriais por dezenas de anos - têm hoje o seu Estado organizado segundo o vigente padrão consensual do regime democrático: ambos contam com governantes eleitos pelo voto popular, em pleitos livres e multipartidários, e ostentam uma separação formal de Poderes. Mas seria esta, efetivamente, a percepção que os nossos povos têm do regime político em vigor? Reconheceriam eles, contra a maioria esmagadora dos consultados na pesquisa mencionada, que os seus respectivos governos cumprem, zelosamente, os ditames da vontade popular?
A indagação parece pertinente e importante, se se quiser sair do terreno pantanoso das ficções políticas. O que se pretende trazer aqui, neste breve excurso, não é evidentemente uma resposta cabal à pergunta, mas apenas alguns elementos de reflexão sobre a matéria.
Comecemos, segundo a boa lógica, por precisar os conceitos.
Democracia e Feudalismo: o conteúdo histórico dos conceitos
Democracia: voltando às origens
Um dos grandes princípios metodológicos das ciências humanas é o do caráter histórico dos conceitos. Nesse vasto campo do saber, os conceitos não refletem, como em matéria de ciências exatas, a essência abstrata e invariável da realidade; eles exprimem antes, de modo sintético, determinada experiência histórica.
Temos, pois, que, para examinar o caráter democrático ou não da vida política portuguesa e brasileira, é indispensável cotejá-la com o modelo de democracia criado originalmente em determinado momento histórico, e ao qual todos os desenvolvimentos ulteriores se referem. Esse modelo é, incontestavelmente, o regime ateniense de governo popular, que durou pouco mais de dois séculos (de 501 a 338 a.C.).
A classificação dos regimes políticos, no pensamento grego clássico, adotou desde cedo, como critério de ordem, o número de titulares da soberania ou poder político supremo (kyrion). De acordo com esse critério, reconheceu-se a existência de três grandes regimes primários, conforme o poder supremo fosse atribuído a uma só pessoa, a poucos cidadãos ou a todos eles4. Cada um desses modelos, por sua vez, comportava uma modalidade pura, em que o titular do poder supremo governava em vista do bem comum, e outra correspondente modalidade degenerada, na qual o soberano, de modo exclusivo ou preferencial, exercia o poder no seu próprio interesse. Teríamos, assim, em contraposição à realeza, a tirania; como degeneração da aristocracia (em que o poder supremo pertence aos melhores, aristoi), a oligarquia (soberania dos ricos); e, finalmente, como desvio daquele que, à míngua de um termo específico, Aristóteles denominava genericamente organização ou constituição política (politéia), a democracia5.
No tocante à diferença entre oligarquia e democracia, Aristóteles insistiu na necessidade de se analisar a realidade "com o método filosófico" (methodos philosophounti), o que significa, segundo a lição que o estagirita recolheu de seu mestre Platão, buscar a essência das coisas, sem se contentar com o simples aspecto prático (me monon apobleponti pros to pratteo); ou seja, satisfazendo-se com a mera a aparência. A oligarquia, observou ele, ao contrário do que o sentido literal da palavra insinua, não é propriamente o regime político em que a soberania pertence a poucos, mas sim aquele em que os titulares do poder supremo formam a classe rica ("os que têm riqueza", oi tas oussias ekhontes); ao passo que, na democracia, soberana é a classe dos pobres (aporoi), ou, segundo uma fórmula eufêmica, os que "não possuem muitos bens" (oi me kektemenoi plethos oussias)6.
É evidente que essa classificação dos regimes políticos conforme ao número de detentores da soberania significa, implicitamente, o reconhecimento de que há uma escala decrescente de concentração de poderes pessoais, da monarquia à oligarquia e desta à democracia. Ora, tanto Platão como Aristóteles, fiéis à sua concepção de que a realidade ética deve ser considerada conjuntamente pelo aspecto objetivo e subjetivo (as instituições e os homens), e aplicando a cada um dos regimes políticos a sua visão contraditória ou dialética entre a boa e a má modalidade, entendem que o melhor (ou "mais divino": theiotatos)7 de todos os regimes é a realeza. Todavia, como a corrupção do ótimo é sempre o péssimo8, a tirania é, de modo correspondente, o pior deles. Ou seja, quanto maior a concentração pessoal de poder político, mais deletério se torna para a pólis o exercício desse poder no interesse do próprio titular.
Daí decorre que, para Aristóteles, a democracia é o menos maléfico dos maus regimes, ou, como prefere qualificar o filósofo, o mais moderado (metriotatos) deles9. Nessa mesma linha de análise, sustentou também que a politéia, por ele classificada entre as boas formas de organização política, nada mais seria do que um misto de oligarquia e democracia, com predominância das instituições democráticas10.
Em suma, no pensamento do grande estagirita, se o ótimo é inimigo do bom, se não se pode organizar a pólis da melhor maneira para propiciar a felicidade geral, é preferível optar por uma constituição em que se reduza ao máximo a possibilidade de abuso de poder. E essa constituição é, inequivocamente, a de natureza democrática, pois nela, ao deter cada cidadão igual prerrogativa de participar diretamente da vida política, em especial o igual direito de manifestação nas assembléias do povo (isegoria), o eventual abuso de poder só se torna grave quando praticado conjuntamente pela maioria dos cidadãos. Contra essa eventualidade, de resto, a democracia ateniense dispunha de um antídoto eficaz: a soberania da lei (nomos), em lugar da soberania do demos. O sentido e a importância política que os clássicos atribuíam ao nomos eram incomparavelmente mais amplos e profundos que os conferidos pela lei moderna. Juridicamente, tratava-se muito mais de uma norma de nível constitucional, irreformável pelo povo, do que de uma lei ordinária.
Além disso, o poder dos governantes, pelo menos na democracia praticada em Atenas por mais de dois séculos, foi estritamente limitado por um complexo de instituições de cidadania ativa, graças às quais o povo, pela primeira vez na História, pôde governar-se a si mesmo. As grandes decisões políticas - a introdução de novas leis, a declaração de guerra, a conclusão de tratados de paz ou de aliança - eram tomadas diretamente pelo conjunto dos cidadãos reunidos na Ekklésia. E quanto aos órgãos do que chamamos hoje Poder Executivo, eles eram singularmente fracos: os principais dirigentes políticos, os estrategos, deviam ter suas funções confirmadas, todos os meses, pelo Conselho (Boulê).
Por isso mesmo, como reconheceu Aristóteles, a democracia é o regime em que se garante a maior liberdade e a maior igualdade de todos os cidadãos11.
O que o filósofo, porém, não discutiu, foi a questão que ocupa, hoje, um lugar central na análise política e que, efetivamente, domina todo o debate sobre a possibilidade de eficiente funcionamento das instituições democráticas em países subdesenvolvidos: - a igualdade básica de condições sociais de vida é um pressuposto de existência da democracia, ou, diversamente, representa um objetivo a ser alcançado pelo regime no curso do tempo?
Feudalismo e senhorio na Idade Média: a distinção necessária
O mesmo cuidado metodológico, lembrado acima para o uso do conceito de democracia, deve ser aplicado agora no tocante ao conceito de feudalismo.
É que este último, como bem advertiu um autor, tornou-se, desde os embates revolucionários contra o ancien régime, mais uma invectiva do que a designação geral de um sistema de instituições sociopolíticas12. Os líderes do movimento de 1789 assimilaram, abusivamente, o feudalismo à monarquia absoluta, quando, na verdade, as instituições feudais só puderam prosperar na Europa na época de esfacelamento do Estado, conseqüente à extinção do Império Romano do Ocidente. A civilização feudal provocou, por conseguinte, o exato oposto de uma concentração do poder político: a sua fragmentação em todo o território da Europa Ocidental.
A razão de ser desse desvio semântico foi uma lamentável confusão - a qual persiste de forma subentendida até hoje - entre feudalismo e senhorio, duas instituições que conviveram e se interligaram durante um certo período histórico, mas que eram perfeitamente distintas em suas origens e em sua estrutura.
O feudalismo organizou-se em torno da relação vassálica de natureza pessoal, fundada na homenagem (do latim bárbaro hominium ou homagium) e na fidelidade (fides), ao passo que o senhorio era simplesmente uma posição dominante sobre servos ou clientes, estribada na posse de terras. O senhor, além dos poderes econômicos decorrentes da propriedade, gozava ainda de prerrogativas políticas, como a jurisdição sobre todos os que viviam em suas terras, o direito de portar armas e o de cobrar tributos.
O pacto de vassalagem, celebrado entre duas pessoas livres, compreendia, de um lado, o reconhecimento da superioridade moral (reverentia) de uma delas sobre a outra e, em contrapartida, a obrigação de auxílio (militar e material) do superior ao inferior.
Conforme o grau de predominância de uma dessas instituições sobre a outra, a organização social como um todo recebeu um molde bem diverso. Enquanto na sociedade predominantemente feudal, as pessoas, embora em posição desigual, mantinham relações de direitos e deveres recíprocos, a sociedade predominantemente senhorial foi toda estruturada em torno do poder do proprietário, diante do qual não há propriamente sujeitos de direito, mas simples dependentes.
Temos, assim, que na organização feudal o rei é primus inter pares, não exercendo poder sobre os outros senhores do estamento nobre. Era-lhe vedado, tal como numa organização federativa, invadir a esfera de competência territorial de cada titular de feudo. Philippe de Beaumanoir registrou, em sua compilação sobre o direito costumeiro vigente na baronia francesa de Beauvais, no século XI, que "cada barão é soberano em sua baronia", sendo "o rei soberano sobre todos"13. No senhorio, em contraste, o proprietário não estava obrigado, no interior de seu domínio, a respeitar os direitos de ninguém. Os vilãos mantinham relações individuais com o senhor, do qual dependiam integralmente para a sua subsistência e, por isso, jamais conseguiram desenvolver relações de solidariedade entre si. Fora dos limites de suas terras, o titular do senhorio via, nos demais senhores, unicamente rivais, cujo apetite de conquista precisava ser sempre refreado.
O elemento histórico de ligação (e também de confusão) entre o contrato vassálico e o senhorio foi, sem dúvida, o fato de que o vassalo costumava receber do seu superior, para seu sustento e também para permitir-lhe suportar os ônus dos serviços de vassalagem, um feudo, isto é, a concessão de um bem patrimonial sob a forma de domínio útil, reservando-se o superior para si o domínio eminente. Esse feudo geralmente consistia num trato de terra, mas nem sempre: havia também "feudos de bolsa" ou "feudos-pensões", de natureza mobiliária. Seja como for, o contrato de vassalagem, em si, nada tinha de econômico. Ele só deu margem a lucros tardiamente, por incontestável desvio de seu sentido primitivo, com a transformação dos feudos em senhorios autônomos14.
Na verdade, os senhorios já existiam de há muito, antes de se iniciar a Idade Média. Os latifundia romanos, que prosperaram em toda a extensão do império, eram posições de senhorio, no fundo e na forma. Com o enfraquecimento dos laços de vassalagem, os antigos feudos tornaram-se autênticos senhorios, os quais subsistiram ainda por vários séculos após o desaparecimento do feudalismo, e acabaram por transformar-se, com a abolição da servidão pessoal e a simplificação dos direitos reais, na propriedade rural regulada pelos Códigos do século XIX.
Foi justamente por confundir feudalismo com senhorio, que Karl Marx pôde sustentar que as relações feudais constituíram uma etapa intermédia entre o escravismo antigo e o capitalismo moderno. Ora, como a história de Portugal e de suas colônias no-lo confirma de modo cabal, o regime capitalista desde cedo transformou a antiga servidão da gleba, típica do regime de senhorio, em escravidão pura e simples, organizando-a empresarialmente na produção de gêneros agrícolas para o mercado.
Seja como for, o que importa salientar para os propósitos desta exposição, é que, enquanto o feudalismo foi uma organização social de fracionamento e, em certa medida, de equilíbrio de poderes (confiram-se, por exemplo, as estipulações da Magna Carta de 1215), o senhorio rural, bem ao contrário, representou o modelo e a fonte de um tipo de organização política com absoluta concentração de todos os poderes na pessoa do titular do domínio.
A formação da sociedade portuguesa e os obstáculos à vida democrática
Estrutura da sociedade portuguesa medieval
Não é preciso grande esforço de análise histórica para perceber que a sociedade portuguesa apresentou, durante todo o período crucial de formação na nacionalidade (1096-1325), características distintas, não só em relação às regiões européias situadas além dos Pirineus, como até mesmo em comparação com Leão e Castela. E as razões para tanto foram basicamente quatro, a saber:
Em contraste com essa debilidade das instituições propriamente feudais, o regime do senhorio sempre foi pujante em terras portuguesas. Deve-se observar que ele deita raízes na colonização romana da península, com a criação de múltiplos latifúndios atribuídos aos chefes militares como prêmio de campanha. É sabido que a Espanha foi a província mais romanizada do Ocidente e, dentro dela, especialmente a Bética e as planícies da Lusitânia17.
Pois foi nesse largo espaço senhorial que se desenvolveu, muito antes das demais regiões da Europa, a escravidão ligada à agricultura. Assim é que, se os servos da gleba já eram uma categoria quase que totalmente extinta na época da fundação da nacionalidade portuguesa, a partir de meados do século XI o número de escravos mouros cresceu constantemente, na medida da progressiva reconquista do território18. O aumento constante da mão-de-obra escrava, obviamente, influiu poderosamente sobre o trabalho livre. É isto que explica a antecipada transformação dos pequenos lavradores, proprietários ou arrendatários, em assalariados agrícolas, quando se compara Portugal com as demais regiões ocidentais da Europa. Já em 1253, ao baixar o regimento dos preços, Afonso III impôs um tributo sobre os salários pagos a todos os trabalhadores agrícolas, o que denota a relativa importância da economia salarial à época19.
A economia fundada no trabalho escravo já existia há pelo menos dois séculos, quando a partir de 1444 iniciou-se o tráfico regular de negros africanos, o qual iria crescer extraordinariamente com o estabelecimento dos primeiros engenhos de açúcar no litoral brasileiro, na centúria seguinte. Com o incremento substancial da escravidão africana, o assalariado agrícola, que havia sido precocemente introduzido na península, quase que desapareceu.
Em pouco tempo, o tráfico de escravos africanos tornou-se uma das mais importantes fontes de receita para o tesouro régio, com a multiplicação de tributos de efeito cumulativo, denominados "donativos", "subsídios", "preferências", "alcavalas". Em 1473, as Cortes pedem ao monarca que estabeleça a proibição de levar para fora os negros oriundos da Guiné, porque só com eles se faziam terras novas, rompiam-se as matas e drenavam-se os pântanos20. Mas o interesse pecuniário da Coroa, diretamente beneficiada pela arrecadação desses impostos, falou mais alto.
A terceira grande marca estrutural de formação da sociedade portuguesa foi a precoce concentração de poderes na pessoa do rei.
A verdadeira causa do fenômeno foi, sem dúvida, a guerra de reconquista territorial aos mouros, seguida pela luta de independência contra os espanhóis. O monarca português, desde cedo, assumiu as funções de chefe militar supremo, transformando os antigos nobres em comandados, dos quais exigia, mais que a fidelidade vassálica, a estrita obediência castrense.
Asssinale-se que as famosas leis de Afonso II, de 1211, anteciparam pioneiramente na Europa a instituição da soberania monárquica, quer em relação à nobreza, quer perante a autoridade eclesiástica. O rei dispensa, nesses ditames, o plural majestático e fala na primeira pessoa, como um general comandante a dirigir-se aos seus subordinados.
O rei era, também, naqueles primeiros tempos, o principal senhor de terras no reino. Os lucros da terra em cultura, como salientou um historiador, formavam a parte permanente e mais segura das rendas do soberano21. Os privilégios usufruídos pelos demais titulares de senhorios não se consideravam como fundados em direito próprio, mas como resultantes de atos gratuitos do rei, suscetíveis, por isso, de revogação. Foi o que fez D. João I, seguindo o alvitre de João das Regras, quando reconheceu o estado de dilapidação do seu patrimônio. As terras que ele havia cedido aos nobres (dentre eles o próprio Condestável do Reino), em recompensa pelos feitos militares na guerra contra os espanhóis, foram retrocedidas ao monarca mediante o estipêndio de um soldo permanente aos expropriados. O mesmo fez D. Duarte, ao promulgar a Lei Mental. E ulteriormente, D. Manuel, com a reforma dos forais, avançou no mesmo sentido. Como se sabe, o sistema de doação de senhorios territoriais pelo monarca foi desde logo aplicado no Brasil, quando se resolveu superar a fase de economia extrativa da madeira e dar início ao empreendimento colonial pela exploração agrícola: foram as capitanias hereditárias.
Tudo isso contribuiu para moldar, duradouramente, a estrutura da sociedade portuguesa em torno do poder monárquico. Os senhores, em lugar de autênticos vassalos, ligados por um pacto de honra ao soberano, reconheceram-se desde cedo como clientes deste, reproduzindo-se com isso a situação vigorante na sociedade romana em torno do latifundiário. Com a passagem do poder pessoal do rei ao poder impessoal do Estado moderno, a velha clientela tornou-se burocrática, capturando para si empregos, rendas públicas ou privilégios de negócio.
O processo de centralização absoluta do poder político na pessoa do rei não se limitou, porém, a reduzir a autonomia dos nobres em seus respectivos senhorios. Ele se estendeu também à Igreja. Desde o século XIII, instituiu-se o padroado, pelo qual o soberano se reservava o poder exclusivo de nomeação de párocos e abades, primeiro nas igrejas régias e em seguida em todas as igrejas e mosteiros que até então não tinham senhor conhecido. À mesma época, mais exatamente a partir de 1266, reduziu-se a liberdade de eleição de bispos, passando o monarca a ter influência direta sobre a sua nomeação.
Um último ponto a assinalar para a recapitulação do processo de reforço contínuo do poder monárquico, no quadro da organização política do Portugal medievo, é a limitação da autonomia dos concelhos, como órgãos de administração municipal. Desde o início, a criação de municípios dependeu do reconhecimento régio, estabelecendo-se a necessária contrapartida de sua sujeição ao poder do monarca22.
Com a conjugação de todos esses fatores, formou-se uma sociedade cujo equilíbrio orgânico pendia inteiramente da cúpula, em vez de se fundar na base; ou seja, o exato oposto da estrutura social que enseja o funcionamento do regime democrático.
Como conseqüência da predominante estrutura senhorial e dessa persistente macrocefalia política, nas sociedades ibéricas em geral, e na portuguesa em particular, como já foi tantas vezes observado, nunca houve coesão ou solidariedade na base. A ordem é sempre exaltada como valor supremo, mas trata-se de uma ordem que nada tem em comum com o kosmos pitagórico, no seu sentido de ordenação harmônica do universo. A ordem naturalmente concebida pelos povos ibéricos corresponde à sujeição completa dos comandados aos comandantes, tanto na vida privada, como na pública. Vale dizer, uma relação de obediência análoga à que se estabelece no seio dos corpos militares. O princípio social unificador não foi nunca a colaboração em nível horizontal entre indivíduos, famílias e grupos sociais mais vastos, mas sim a dependência de uns em relação a outros na dimensão vertical da imposição de ordens, a exigir estrita e cega obediência. Daí a razão decisiva, como salientou com argúcia Sérgio Buarque de Holanda23, pela qual a histórica política dos povos ibéricos sempre oscilou entre a anarquia dissolvente e a rigidez mecânica do despotismo. Não foi, pois, reconheça-se, por mera coincidência histórica que a companhia inaciana, fundada no lema da submissão ao chefe perinde ac cadaver, tenha sido concebida na mente de um ibérico.
A monarquia portuguesa pós-medieval e o capitalismo
Encerrada prematuramente a Idade Média portuguesa já em fins do século XIV - outra característica original da monarquia lusitana em comparação com os demais reinos do Ocidente europeu - a organização política sofre a influência decisiva dos grandes empreendimentos marítimos, moldados em termos nitidamente capitalistas.
O monarca torna-se, desde logo, o primeiro mercador do reino. Ele é não só o maior negociante de escravos africanos e o monopolista da pimenta, como será, mais adiante, o beneficiário exclusivo do estanco do tabaco.
Sob D. João II, entre 1486, ano em que se fundou a Casa dos Escravos, departamento régio integrado à Casa da Mina e Tratos da Guiné, e 1493, registrou-se a entrada no reino de 3.589 escravos da Guiné, de propriedade da coroa. No século seguinte, em apenas três anos, de 1511 e 1513, passaram pela Casa dos Escravos, segundo as contas do Almoxarife, 1.265 escravos de ambos os sexos, pertencentes ao rei. Esses cativos, atribuídos em propriedade ao soberano, provinham umas vezes do negócio direto por conta dele com os negreiros indígenas, outras vezes de rendas cobradas em espécie. Assim é que, em 1510, foram arrematados os direitos de cobrança das rendas régias à razão de novecentos mil reais por ano, pagáveis em negros. O tráfico, de resto, era estritamente regulado pelo monarca em seu próprio benefício24.
A introdução em massa de escravos no país era imprescindível em razão da aguda carência de mão de obra agrícola, provocada pela aventura marítima. O rei sempre foi o principal interessado no negócio de exportação de escravos, notadamente para Castela. No reinado de Afonso V as Cortes pediram para que fosse proibida a saída de cativos para o estrangeiro, pois a agricultura carecia agudamente de braços. O monarca rejeitou liminarmente a súplica, pois ela vinha contrariar os seus interesses patrimoniais25.
Com o progressivo enfraquecimento do comércio com o Extremo Oriente, o império ultramarino português concentra-se no Atlântico Sul, onde Portugal exerceu, efetivamente, uma dominação econômica exclusiva, graças ao tráfico de africanos26. Entre Angola e Brasil, teceu-se uma forte rede de interesses mercantis, sob a proteção política de Lisboa. Angola fornecia o grande e indispensável fator de produção para o tipo de agricultura desenvolvido no Brasil: o braço escravo. E a exclusividade desse fornecimento permitia, ao mesmo tempo, o controle de toda a economia em terras brasílicas. Entre a África Ocidental e o Brasil estabeleceram-se, durante três séculos, fortes laços econômicos e políticos.
Quanto à malagueta, seu comércio não tardou a ser instituído monopólio da coroa, o que tornou o soberano português conhecido depreciativamente em toda a Europa como "o rei da pimenta", ou le Roi-Epicier, como disse Francisco I de D. Manuel, o Venturoso.
Na verdade, a febre especulativa já de há muito tomara conta dos nobres, empenhados em comprar habitualmente gêneros de consumo para revendê-los com lucro. O que fez com que, já nas Cortes de Leiria de 1372, os representantes dos povos os increpassem, todos eles, de mercadores e regatões27. E embora persistisse bem viva a anima versão da plebe por todos os que, intitulando-se fidalgos, faziam da mercancia o seu modo de vida habitual, o pendor mercantil da nobreza, equiparável ao da burguesia, permaneceu inabalado nos séculos posteriores, tendo sido vivamente reacendido com a exploração colonial. Nas colônias, aliás, a pretensa fidalguia confundia-se em regra com a riqueza pessoal. "Viver à lei da nobreza", segundo a expressão consagrada, significava, pura e simplesmente, ser homem de posses.
Nos demais grupos e classes superiores da sociedade colonial, a cupidez praticamente não conhecia limites. Entre os governantes, fossem eles civis ou militares, era normal complementar os estipêndios ou soldos com toda sorte a de traficâncias e exações patrimoniais. Escrevendo do Rio de Janeiro em 6 de novembro de 1710 ao Duque de Cadaval, Frei Francisco de Menezes observou: "Sua Majestade deu liberdade aos governadores para negociarem [...] Até agora sempre governavam e negociavam, mas era com receio; sempre tinham mão em si, agora vão pondo isto em tais termos que já não há negócio senão o seu"28. De onde a conhecida diatribe de Vieira no Sermão de Santo António aos Peixes: "Porque os grandes, que têm o mando das Cidades e das Províncias, não se contenta a sua fome de comer os pequenos um por um, ou poucos, a poucos, senão que devoram e engolem os povos inteiros". Ou, de maneira mais incisiva, ao saudar em julho de 1640, o Marquês de Montalvão, novo Vice-Rei do Brasil, que acabara de chegar à Bahia: "Perde-se o Brasil, senhor (digamo-lo em uma palavra) porque alguns ministros de Sua Majestade não vêm cá buscar nosso bem, vêm cá buscar nossos bens"29.
Nem mesmo o clero fugia desse padrão mercantil de vida. A atuação dos clérigos no contrabando ou descaminho de ouro, diamantes e tabaco no Brasil colonial é bem sabida. E contraditoriamente, ao mesmo tempo em que se entregavam, contra a mais autorizada tradição eclesiástica, à faina mundana do trato comercial, os padres seculares e as diferentes ordens religiosas timbravam em invocar contra o Fisco o privilégio medieval da imunidade tributária. Quando, em 1656, a Coroa baixou ordens estritas para que os religiosos assumissem a sua parte contributiva no pagamento dos impostos lançados para fazer face às despesas militares na campanha contra os holandeses no Brasil, a Câmara de Salvador queixou-se, em ofício apresentado a Sua Majestade, que as ordens clericais, que possuíam na capitania vastas propriedades agrícolas, abastecidas com gado e abundante escravaria, além de muitos engenhos de açúcar, persistiam na recusa do pagamento desses impostos, de tal maneira que o peso tributário recaía sobre o restante da população, já por demais onerada30.
Não há dúvida de que o longo conúbio entre política e comércio em Portugal teve início na segunda metade do século XIV, antes mesmo do advento da dinastia de Aviz ao trono real, com a edição por D. Fernando - portanto quase três séculos antes de Cromwell! - das leis destinadas a estimular a indústria nacional da navegação e do seguro marítimo. O apoio da burguesia do Porto e de Lisboa ao Mestre d'Aviz em 1385 - a primeira revolução burguesa no Ocidente - fez com que o soberano português passasse a gerir o reino como se fora a sua própria casa de comércio, empregando seus ministros como autênticos prepostos do estabelecimento régio.
Ora, é mais do que provável que o precoce nascimento e a rápida expansão do capitalismo em Portugal vincule-se à estrutura predominantemente senhorial da sociedade durante toda a Idade Média. Nesse sentido, nunca é demais salientar que o capitalismo, ao contrário do sistema feudal, conduz inevitavelmente à concentração de poder na sociedade. Ao contrário, pois, do que comumente se pensa e divulga, o sistema capitalista, pela sua própria natureza, é visceralmente contrário ao funcionamento de um autêntico regime democrático, dado que a soberania do povo representa, em si mesma, a dispersão do poder político, inclusive e notadamente o de regulação das atividades econômicas no seio da coletividade.
Com a expansão colonial do reino, a figura do rei mercador vai sendo, pouco a pouco, substituída pela impessoalidade do Estado capitalista, empenhado diretamente na exploração em monopólio do comércio ultramarino. Enquanto a Corte ensejava, por vezes, à burguesia mercantil a compra do título de nobreza - lembre-se que nas companhias de comércio pombalinas o titular de mais de dez ações tornava-se nobre de pleno direito - a classe senhorial como um todo abandonou sem pesar a antiga condição de vassalagem ao rei, para assumir a posição, muito mais lucrativa, de cliente do Estado monárquico e depois republicano. Em lugar dos tradicionais privilégios, surgem novas rendas de situação, fundadas em relações contratuais exclusivas e ligações pessoais com o estamento burocrático.
O lamentável mal-entendido da democracia representativa
A partir de 1578, com o desastre de Alcácer Quibir, tem início o longo período de agonia do poder real. As remissões experimentadas com a Restauração de 1640, ou o despotismo modernizante de Pombal, mal encobriram a fatalidade da moléstia: o país estava em vias de perder, definitivamente, o seu ponto de equilíbrio, tradicionalmente situado na cúpula do edifício social. Não é à toa que a mentalidade popular deixou-se embalar, durante séculos, pelo mito consolador do sebastianismo: o herói nacional haveria de ressuscitar, como Cristo, para salvar o seu povo.
Portugal entrou, assim, no século XIX inteiramente despreparado para enfrentar as transformações políticas e econômicas provocadas pela ascensão da idéia democrática e o desenvolvimento do capitalismo industrial. Faltava-lhe o protagonista, capaz de levar avante a formidável empresa de modernização das estruturas sociais: uma burguesia voltada para o futuro, desafiadora do risco, bem preparada tecnologicamente e consciente de que o estado de miserabilidade em que se encontravam as massas proletárias era um empecilho à expansão do nível geral de consumo, sem a qual o sistema capitalista não pode subsistir.
Na verdade, a idéia de democracia representativa, introduzida na vida política pela vez primeira com a Revolução de 1820, não passou, para usarmos da expressão famosa de Sérgio Buarque de Holanda para o caso brasileiro, de "um lamentável mal-entendido"31. Imaginou-se que o regime político, em que o povo soberano aceita exercer o poder por meio de representantes livremente escolhidos em eleições periódicas, podia funcionar numa sociedade marcada por profundas desigualdades e habituada há séculos a respeitar situações objetivas de poder sem reivindicar direitos civis e políticos. O resultado é que, nos breves momentos em que o sistema atuou, a vida política e administrativa desenrolou-se no equívoco. Sob a égide do empenho e do compadrio, o povo fingia votar, os deputados proclamavam-se legitimamente eleitos, os juízes confundiam dominação com justiça e os funcionários públicos recebiam estipêndios sem saber exatamente onde estava o bem público.
Numa sucessão de revoltas e proclamações revolucionárias, do setembrismo ao cartismo, do levante da Maria da Fonte à proclamação da República em 1910, passando por todo o movimento dito regenerador, iniciado em 1851, o país vai de tropeço em tropeço até reencontrar o antigo ponto de equilíbrio na longa submissão à ditadura salazarista. Mas, encerrada esta, com a Revolução dos Cravos de 1974, Portugal viu-se enfim claramente confrontado com a questão democrática, já não podendo confiar na tradicional solução macrocefálica. A reconstrução do venerando edifício nacional em ruínas há de fundar-se doravante, inevitavelmente, nos princípios da soberania popular efetiva e no respeito integral aos direitos humanos.
O caso brasileiro: democracia impossível?
Na formação da sociedade brasileira, vemos reproduzidos e adaptados à realidade tropical os mesmos fatores que representaram, no Portugal metropolitano, um claro obstáculo à instauração da vida democrática. Tocqueville observou, em certa passagem de seu estudo sobre o antigo regime e a revolução francesa32, que "é nas colônias que se pode melhor julgar da fisionomia do governo da metrópole, porque é aí que de ordinário todos os traços que a caracterizam se encontram ampliados e tornam-se mais visíveis".
Vejamos.
Soberania senhorial v. soberania estatal durante o Império
Foi no Brasil que, desembaraçado do ornamento feudal que o ataviava na metrópole, o regime do senhorio desenvolveu-se em toda a sua pujança.
Graças à farta distribuição de sesmarias, desde cedo despidas da obrigação de cultivo da terra, e à precoce organização da economia colonial no sentido da monocultura agrícola dirigida à exportação, o território brasileiro foi desde logo partilhado em grandes domínios rurais, cujos proprietários concentravam em sua pessoa a plenitude dos poderes, tanto de ordem privada, como política, assim os de natureza civil, como os de índole eclesiástica. Pode-se afirmar, sem risco de exagero, que do senhor dependia o presente e o futuro de todos os que viviam no território fundiário, fossem eles familiares, agregados, clientes ou escravos.
O sacerdote, representante oficial da Igreja, não passava no grande domínio rural de um agregado doméstico, autorizado pelo senhor a celebrar missa, batizados e casamentos na capela da casa grande, bem como a sepultar os mortos no cemitério da fazenda.
A grande propriedade rural brasileira, que economicamente vivia em regime quase autárquico, era uma espécie de território soberano, onde o proprietário, como nos velhos senhorios europeus, fazia justiça e mantinha força militar própria, para defesa e ataque. Entre o senhor e as autoridades do Estado, como no plano internacional, estabeleciam-se relações de potência a potência, fundadas na convenção bilateral de que o Estado se comprometia a respeitar a autonomia local do senhor, ao passo que este, como coronel da Guarda Nacional33, obrigava-se a manter a ordem na região, emprestando à autoridade pública o concurso de seus homens de armas para a eventual guerra contra o estrangeiro, ou a episódica repressão aos levantes urbanos.
No meio urbano, justamente, a classe dos que se dedicavam ao grande comércio de exportação e importação, tanto quanto os principais banqueiros, atuavam em estreito relacionamento com o grande senhorio rural.
Numa análise linearmente marxista, dir-se-ia que o conjunto da máquina estatal nada mais seria do que o simples reflexo dessas classes dominantes, atuando sempre por conta e no benefício exclusivo delas. Em sentido diametralmente oposto, como foi sustentado por Raymundo Faoro34, a burocracia estatal, antes e depois da independência do país, formaria uma espécie de estamento weberiano, dotado de plena autonomia de mando.
A realidade, contudo, parece ter sido bem mais complexa do que esses esquemas unidimensionais supõem. Entre as classes dominantes e o Estado, tanto antes, como depois de 1822, estabeleceu-se uma co-relação de forças, em que ambas as partes se confrontavam periodicamente, de modo aberto ou oculto, naquilo que o historiador José Murilo de Carvalho35, utilizando-se de uma expressão do sociólogo Guerreiro Ramos, denominou com razão a dialética da ambigüidade. Nem as classes dominantes podiam impor quando quisessem a sua vontade ao Estado, nem este era livre de agir, como bem entendesse, contra o interesse econômico daquelas. Durante todo o seu longo reinado, D. Pedro II usou com prodigalidade do seu poder constitucional de "conceder títulos, honras, ordens militares e distinções em recompensa de serviços feitos ao Estado" (Constituição de 1824, art. 102, XI), para conquistar pessoalmente a lealdade das classes dominantes. Assim é que, do total de títulos nobiliárquicos outorgados durante o segundo reinado, 77% foram de barão, sabendo-se que o baronato era reservado pelo imperador, quase que exclusivamente, aos grandes proprietários rurais e aos comerciantes de maior cabedal. Quando, em 1888, o Ministério João Alfredo preparava-se para fazer votar a abolição da escravatura, ao sentir que se multiplicavam as defecções dos grandes senhores rurais do sudeste no apoio ao regime monárquico, ainda tentou em vão reter a lealdade do Conselheiro Antonio Prado à Coroa, concedendo-lhe o título de Visconde de São Paulo, por ele recusado.
Mas por "Estado", como dito acima, em se tratando do Brasil imperial, deve-se entender mais exatamente o Poder Executivo e, dentro dele, como é óbvia, a figura do imperador. Neste ponto, fomos e continuamos sendo legítimos herdeiros de Portugal. "É o traço saliente do nosso sistema político", enfatizou Joaquim Nabuco a propósito da vida política no império, "essa onipotência do Executivo, de fato o Poder único do regime"36.
Seja como for, o resultado do confronto permanente entre os senhores locais e o governo central dava satisfação, ora a uma parte, ora a outra.
Durante toda a fase da monarquia imperial, o Estado logrou impor a sua vontade - sem dúvida laboriosamente, ao cabo de mais de meio século de esforços - em matéria de trabalho escravo. Mas no tocante ao regime da propriedade fundiária, o senhorio rural obteve plena satisfação de seus interesses. A Lei do Ventre Livre de 1871 só pôde ser aprovada porque a Câmara dos Deputados era composta, em sua maioria, de funcionários públicos e magistrados, uns e outros estritamente dependentes do Governo. Já na votação da Lei de Terras, em 1850, as principais propostas governamentais, notadamente a criação do imposto territorial rural, foram derrotadas.
Em ambos esses episódios, como em todas as demais decisões legislativas que interessavam à nação como um todo, as classes inferiores foram tratadas como um elemento perfeitamente supérfluo do jogo político. O Brasil, observou um viajante francês no final do século XIX, dava a estranha impressão de um país desprovido de povo37.
A primeira fase da "democracia republicana": 1889-1930
Enquanto vigorou o regime monárquico, a democracia foi tida por todos, corretamente, como a antítese da autocracia. Por isso mesmo, a elite dirigente do país, a começar, escusa dizê-lo, pelo próprio monarca, considerou o regime democrático como uma clara subversão da ordem política.
Menos de um ano após a independência, quando se elaborava a Constituição do novo Estado, o jovem imperador lançou, em proclamação datada de 19 de julho de 1823 "sobre o procedimento de várias câmaras", um brado de alerta:
Finda a guerra do Paraguai, porém, e com a crescente prosperidade da cultura do café na região sudeste, as oligarquias rurais passaram a contestar o poder central e a reivindicar maior autonomia de atuação local, tanto no terreno econômico, como no político.
É a partir desse momento que a idéia de democracia, ou de república democrática, vê-se recuperada como fórmula política e purgada de suas conotações negativas. Em vez de favorecer a anarquia, apregoa-se, ela assegura o estabelecimento da ordem e dá mais eficiência à ação dos Poderes Públicos no plano local.
A palavra democracia e expressões cognatas, como solidariedade democrática, liberdade democrática, princípios democráticos ou garantias democráticas, aparecem nada menos do que 28 vezes no Manifesto Republicano de 1870. Um dos seus tópicos é intitulado a verdade democrática.
Uma análise menos superficial do documento, no entanto, mostra que os próceres republicanos entendiam por democracia não exatamente o regime da soberania popular (expressão substituída, no Manifesto, por soberania nacional), mas sim a federação, tomado este conceito em sentido diametralmente oposto àquele com que fora empregado pelos constituintes de Filadélfia em 1787. Com efeito, federação, para os brasileiros, não queria dizer união de unidades políticas anteriormente soberanas, mas sim a descentralização de poderes num Estado unitário. O Manifesto, aliás, encerra-se, segundo o estilo farfalhante da época, "arvorando resolutamente a bandeira do partido republicano federativo", e não a bandeira do partido republicano democrático.
O que, na verdade, constituía a razão de ser desse movimento descentralizador, o documento de 1870 fez questão de deixar na sombra: nenhuma palavra disse sobre aquilo que a elite política da época denominava, eufemisticamente, "a questão do estado servil".
O partido republicano paulista, contudo, não pôde prosseguir por muito tempo nesse jogo político sem abrir as cartas. No manifesto lançado por ocasião do encerramento de seu congresso de 1873, os republicanos de São Paulo, evitando ladinamente uma tomada de posição sobre o mérito da questão, assim se pronunciaram:
Derrubada a monarquia, o Governo Provisório, em seu primeiro decreto de 15 de novembro de 1889, declarou proclamada "como forma de governo da Nação Brasileira a República Federativa", omitindo toda e qualquer referência à democracia.
Ora, enquanto o povo assistiu a tudo aquilo "bestializado", segundo a expressão famosa de Aristides Lobo, as oligarquias locais, aparentemente vitoriosas no seu primeiro apelo aos quartéis, tiveram que atravessar alguns anos de grave incerteza e apreensão, diante do caráter centralizador e autoritário dos primeiros governos militares. O episódio repetir-se-ia, três quartos de século depois, com a derrubada do governo João Goulart. Com a diferença de que, nessa quadra política, o regime militar não durou apenas cinco, mas vinte anos.
A Constituição de 1891 organizou, efetivamente, o Estado sob a forma federativa, como queriam os republicanos históricos. Mas no tocante à forma de governo, em lugar de seguir o alvitre parlamentarista do Manifesto de 187039, preferiu instituir, segundo o modelo norte-americano, o sistema presidencial de governo.
Ora, o que parecia, a princípio, a mera reprodução da fórmula ianque, acabou por revelar-se, com o tempo, o regresso integral à velha tradição luso-brasileira, com a concentração maciça de todos os poderes na pessoa do Chefe de Estado.
O processo de retorno à macrocefalia estatal não se deu, porém, de um só golpe e sim em duas etapas.
Durante a primeira delas, que perdurou até 1930, o Presidente da República atuou como árbitro supremo das rivalidades entre os Estados federados, assim como cada Chefe do Poder Executivo estadual incumbia-se de arbitrar os conflitos entre os senhores locais. A chamada "política dos Governadores" desdobrava-se, pois, num pacto coronelista em cada unidade da federação. Em ambas as situações, estabelecia-se uma espécie de contrato político bilateral. No plano da federação, o Presidente da República comprometia-se a dar mão forte aos governos estaduais, desde que estes sufragassem o candidato à sucessão presidencial indicado por ele próprio, Presidente. No plano estadual, os senhores rurais, atuando ou não, oficialmente, como coronéis da Guarda Nacional, faziam sempre dos candidatos governistas os vencedores dos pleitos eleitorais, obrigando-se os Governadores, em contrapartida, a garantir, mediante o concurso da Polícia, da Magistratura e do Ministério Público, a soberania de cada senhor no território de sua propriedade40.
Analisada, assim, em toda a sua crueza, é preciso reconhecer que a "democracia federativa" estabelecida pela República Velha estava longe de ser o "lamentável mal-entendido" de que falou Sérgio Buarque de Holanda. A elite política da época jamais se deixou iludir sobre o sentido real dos conceitos de soberania popular ou de direitos de cidadania. A retórica democrática, nos seus escritos e discursos, não passava de grosseiro disfarce ideológico.
Esse equilíbrio sinalagmático entre as oligarquias locais e o poder central, à revelia do povo, foi afinal vencido, não de dentro, mas de fora, com o advento da depressão econômica mundial desencadeada pela quebra da Bolsa de Nova York em 1929. O setor de exportação de produtos primários, no campo e nas cidades, duramente golpeado pela crise, retirou seu apoio a ambos os pactos, o estadual e o federal, e o sistema político veio abaixo.
Avatares da "democracia republicana" a partir de 1930
A marginalização, que se acreditava temporária, das classes dominantes ligadas à agricultura de exportação, deixou o Estado brasileiro como ator único na cena política. Ora, após a revolução de 1930, o aparelho estatal submeteu-se ao poder incontrastável do chefe do governo provisório, rapidamente legitimado como Presidente da República. Investido nessa posição, o novo Chefe de Estado pôs desde logo em marcha, com a política de industrialização substitutiva de importações, um processo de reestruturação das posições de mando na sociedade brasileira, ao criar de toutes pièces uma nova classe dominante: o grupo dos empresários industriais.
O restabelecimento do confronto político entre Estado e sociedade civil, ou, se se quiser, segundo os conceitos da análise gramsciana, entre o grupo hegemônico e a classe dominante, fez-se, porém, com um acréscimo de monta: o Chefe de Estado criou junto à nova classe industrial, como delegado pessoal dele, Presidente da República, o também novo setor do sindicalismo oficial.
O povo, todavia, continuava a ser o que sempre fora: o grande ausente. Sua entrada em cena só viria a dar-se com a queda do ditador em 1945, seguida da reconstitucionalização do Estado no ano seguinte. Iniciou-se, então, um novo jogo político, caracterizado agora pelo regular funcionamento daquilo que um largo setor da intelectualidade considerava e ainda considera como a quinta essência da democracia: separação oficial entre os Poderes do Estado, eleições livres e pluralidade partidária.
Não é difícil demonstrar que, em países afetados por uma abissal desigualdade, como é o caso do Brasil, o cumprimento formal desses rituais democráticos nada tem que ver com a efetiva soberania popular e o integral respeito aos direitos humanos.
Seria, contudo, um grave erro de análise pretender que o povo, quando chamado a eleger periodicamente seus representantes, figura como elemento meramente passivo no quadro geral da ação política. Da mesma forma que a dominação social de classe não significa, ipso facto, o controle absoluto do aparelho estatal, assim também a aliança da classe dominante com a elite dirigente no Estado tampouco significa uma manipulação mecânica do voto popular nas eleições. Por mais eficazes que sejam hoje os métodos de direção da opinião pública, subsiste sempre um grau mais ou menos elevado de incerteza nas decisões eleitorais. O sistema é, portanto, deficiente, quer para levar, por si só, o povo ao exercício do poder soberano em seu benefício, quer para garantir a plena satisfação dos interesses das classes dominantes.
Foi, sem dúvida, essa incerteza ínsita em todo regime de democracia formal que levou as classes dominantes nacionais, apoiadas pelo governo norte-americano, a suspender, a partir de 1964, o funcionamento do sistema. Ele só veio a ser recomposto, ao ser promulgada, em 1988, com a Constituição atualmente em vigor. Mas, então, o quadro mundial já se achava inteiramente modificado, com o rápido avanço do processo de globalização capitalista. Em todos os países da chamada periferia do globo, os dois agentes tradicionais da política - o Estado nacional e as classes dominantes internas - foram singularmente enfraquecidos, senão afastados de todo.
Restou, pois, o povo, em função do qual - não se esqueça - foi cunhada há vinte e cinco séculos, na Grécia, a denominação clássica do regime político. Saberá o povo, hoje, assumir o efetivo exercício daquele poder supremo sobre todos os cidadãos (to kurion tôn poleôn)41, que a teoria lhe reserva?
É o que se passa a conjecturar per summa capita, à guisa de conclusão.
Conclusão
Como vimos na primeira parte desta exposição, Aristóteles considerava a democracia como corrupção do regime político em que o conjunto dos cidadãos exerce a soberania em função do bem comum (pros to koinon supheron), regime esse que, à míngua de denominação específica, ele preferiu chamar pelo gênero "organização da cidade" (politéia). A corrupção democrática consistiria no exercício do poder supremo pela maioria pobre em seu exclusivo benefício.
Ora, a realização do bem comum do conjunto dos cidadãos supõe a eliminação da desigualdade social no tocante às condições de uma vida digna, entendida esta como o comum respeito ao conjunto dos direitos humanos, tanto os de natureza civil e política, como os de ordem econômica, social e cultural. Se a justiça é fundamentalmente uma relação de igualdade, a sua realização social corresponde, como é óbvio, à supressão de toda desigualdade preexistente.
Segue-se daí que a ação política dirigida a elevar as camadas mais carentes do povo, de forma a equipará-las, em matéria de direitos humanos, às classes mais ricas e poderosas, vai claramente no sentido do bem comum.
Na verdade, o critério mais adequado para a classificação dos regimes políticos não parece ser o do número de sujeitos que exercem a soberania, como pensaram os clássicos, mas sim o da finalidade objetiva com que esta é exercida. De acordo com este critério, a verdadeira essência da democracia consiste na ação prioritária dos Poderes Públicos em favor das classes pobres e dominadas, ou seja, a realização sistemática da justiça proporcional (to dikáion análogon), como a denominou Aristóteles42, na qual os que têm menos recebem mais e vice-versa.
Com efeito, numa sociedade marcada por profundas desigualdades de nível e de qualidade de vida, o conjunto dos mais pobres não se acha em condição de exercer autonomamente os seus direitos de cidadania. No caso brasileiro, essa situação é ainda mais grave, em razão da tradicional carência de coesão social no seio do povo43, oriunda, como vimos, da persistente dominação senhorial, desde os tempos medievais em Portugal. As classes social e economicamente dominadas encontram-se numa situação semelhante à das pessoas juridicamente incapazes para o exercício dos atos da vida civil: elas carecem de proteção legal, pela designação de pessoas ou órgãos incumbidos de exercerem, em seu nome e benefício, os poderes inerentes aos seus direitos subjetivos.
Tal significa dizer que a ação política prioritária em favor dos fracos e pobres, numa autêntica democracia, supõe a existência de um Estado forte e bem organizado, constitucionalmente competente para impor a sua vontade às classes dominantes no interior do país e às potências dominantes no plano internacional. Ou seja, exatamente o oposto do Estado subserviente, engendrado pelo atual capitalismo globalizante.
Ao contrário do que postula uma certa análise marxista, como assinalado acima, o poder das classes dominantes nunca chega a anular completamente a autonomia dos órgãos estatais. E é bem por isso que, em sua maior parte, os golpes de Estado contemporâneos têm sido fomentados pelas classes ou grupos economicamente fortes, com o oportuno auxílio dos agentes do poder capitalista internacional.
Todavia, como ninguém ignora, o fortalecimento imprudente do poder estatal acaba fatalmente por suscitar o despotismo, com a supressão das liberdades civis e políticas.
Uma solução para esse dilema poderia ser encontrada a partir do princípio fundamental de que a função precípua do Estado, numa democracia, consiste no amparo econômico e na formação cívica das classes e grupos mais pobres do país, a fim de que eles se tornem capazes de exercer, de modo pleno e autônomo, a sua cidadania.
Essa ação pedagógica dos governantes, tão enfatizada por Aristóteles no último livro da Política, obedeceria a duas diretrizes.
De um lado, a ampliação da competência dos órgãos estatais, cujo preenchimento não está sujeito à influência direta das classes dominantes, como o Judiciário e o Ministério Público, para que eles imponham ao Executivo e ao Legislativo a elaboração e aplicação de políticas públicas destinadas à realização dos direitos econômicos, sociais e culturais.
De outro lado, a criação de instâncias de participação popular obrigatória no funcionamento do Estado, em todos os níveis, fundadas logicamente no pressuposto da prévia aprovação por referendo da Constituição e suas emendas. São exemplos dessa participação ativa dos cidadãos no exercício do governo a autorização popular para a tomada de decisões políticas de longo e profundo alcance, como a celebração de tratados internacionais instituidores de zonas de livre comércio ou mercado comum; a desoligarquização do sistema eleitoral, mediante a aprovação, por referendo popular, das suas linhas diretrizes; o controle social dos meios de comunicação de massa; a elaboração conjunta de orçamentos com os órgãos de representação popular; a ampla legitimação de agir em juízo atribuída a associações civis, na defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais; o reforço da ação popular cível e a reintrodução da ação popular criminal44; a dissolução por sufrágio popular de assembléias parlamentares, ou a destituição pelo mesmo mecanismo de chefes do Poder Executivo.
Em suma, a civilização humanista com que sonhamos não pode contentar-se com o medíocre programa de fazer da democracia o menos mau dos regimes políticos. Seria um escárnio se os espíritos autenticamente democratas se conformassem, hoje, com a supremacia mundial do sistema capitalista, reservando aos Estados nacionais e às organizações internacionais humanitárias, tão só, a tarefa ancilar de pensar as chagas que esse sistema de exploração econômica abriu na humanidade. A missão política que nos incumbe é bem outra, muito mais exaltante: trata-se de construir um mundo novo, em que todos os seres humanos, em qualquer parte do globo terrestre em que se encontrem, possam, enfim, nascer e viver, livres e iguais em dignidade e direitos.
Notas
1 Montesquieu, De l'esprit des lois, livro VIII, cap. 2.
2 James Madison, The Federalist, nº 10.
3 Human Development Report 2002 - Deepening Democracy in a Fragmented World, Oxford, Oxford University Press, p. 1.
4 Platão, República, livro I, 338 d.
5 Platão, O Político, 302 c e ss.; Aristóteles, A Política, 1279 a, 25 e ss.
6 Idem, 1279 b, 11 e ss. No mesmo sentido, sempre na Política, 1281 a, 12-19; 1289 b, 29-32; 1290 a, 30; 1290 b, 20; 1291 b, 2-13; 1296 a, 22-32; 1296 b, 24-34; 1315 a, 31-33; 1317 b, 2-10; 1318 a, 31-32.
7 Aristóteles, A Política, 1289 a, 40.
8 Xenofonte, Memoriabilia, IV, 1, 3.
9 Idem, 1289 b, 5.
10 Idem, 1293 b, 34-41.
11 Idem, 1290 b, 1.
12 Guy Fourquin, Senhorio e Feudalidade na Idade Média, Lisboa, Edições 70, p. 12.
13 Philippe de Beaumanoir, Coutumes de Beauvaisis, ed. por Am. Salmon, t. 2º, Paris, Alphonse Picard et Fils, 1900, nº 1043.
14 Cf. Marc Bloch, A Sociedade Feudal, 2ª ed., Lisboa, Edições 70, p. 254.
15 Vejam-se as judiciosas considerações feitas pelo grande historiador português José Mattoso, Identificação de um País - Ensaio sobre as origens de Portugal, t. I, 5ª ed., Lisboa, Referência/Editorial Estampa, pp. 224 e ss.
16 Cf. Da existencia ou não existencia do feudalismo em Portugal, in Opúsculos, tomo V, Controvérsias e estudos históricos, tomo II, 4ª ed., Lisboa Rio de Janeiro, Bertrand/Francisco Alves, pp. 189 e ss.
17 Cf. Michel I. Rostovtseff, Histoire économique et sociale de l'empire romain, Paris, Robert Laffont, 1988, pp. 165-166.
18 José Mattoso, op. cit., t. I, pp. 260-261.
19 J. Lúcio de Azevedo, Épocas de Portugal Económico - Esboços de história, 4ª ed., Lisboa, Livraria Clássica Editora, p. 18.
20 Idem, p. 20.
21 Idem, p. 32.
22 Idem, p. 165.
23 Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, 5ª ed., Livraria José Olympio, Rio de Janeiro, p. 11.
24 Cf. J. Lúcio de Azevedo, op. cit., pp. 70 e ss.
25 Idem, p. 74.
26 É a tese sustentada por Luiz Felipe de Alencastro, em O trato dos viventes - formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII, São Paulo, Companhia das Letras.
27 J. Lúcio de Azevedo, op. cit., p. 82.
28 Citado por C. R. Boxer, The Golden Age of Brazil, 1695 -1750, University of California Press, 1962, p. 393, nota 4 ao capítulo V.
29 Sermão da Visitação de Nossa Senhora, in Sermões, Porto, Lello & Irmãos, 1951, vol. IX, p. 346.
30 Cf. C. R. Boxer, The Portuguese Seaborne Empire 1415-1825, Carcanet, em associação com a Fundação Caloute Gulbenkian e a Comissão Os Descobrimentos, Lisboa, 1991, p. 328.
31 Sérgio Buarque de Holanda, op. cit., p. 119.
32 Aléxis de Tocqueville, L'Ancien Régime et la Révolution, Paris, Gallimard, 1952, p. 286.
33 A Guarda Nacional, criada por lei de 18 de agosto de 1831 como auxiliar do Exército, foi uma revivescência da antiga corporação das ordenanças, existente durante a época colonial. Todos os cidadãos brasileiros maiores de dezoito anos eram obrigatoriamente inscritos na Guarda Nacional. A corporação tornou-se, no final do império, meramente decorativa ou honorífica. Sobre o assunto, cf. Victor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto, 3ª ed., 1976, pp. 211 e ss.
34 Raimundo Faoro, Os Donos do Poder - A formação do patronato político brasileiro, 3ª ed., São Paulo, Globo.
35 José Murilo de Carvalho, I - A Construção da Ordem, II - Teatro de Sombras, 2ª ed., Rio de Janeiro, UFRJ/Relume Dumará.
36 Joaquim de Nabuco, Um Estadista do Império, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, Biblioteca Luso-Brasileira, Série Brasileira, p. 239.
37 "La situation fonctionnelle de cette population peut se résumer d'un mot: le Brésil n'a pas de peuple". Apud Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, 34ª ed., Rio de Janeiro e São Paulo, Record, p. 35.
38 Cf. Robert Conrad, Os últimos anos da escravatura no Brasil, 2ª ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, p. 267.
39 "A soberania nacional só póde existir, só póde ser reconhecida e praticada em uma nação cujo parlamento, eleito pela participação de todos os cidadãos, tenha a suprema direcção e pronuncie a ultima palavra nos publicos negocios."
40 Veja-se a monografia, ainda insuperada, de Victor Nunes Leal, citada na nota 29.
41 Aristóteles, A Política 1279 a, 27-28.
42 Ética a Nicômaco 1131 a, 29-30.
43 Cf. Sérgio Buarque de Holanda, op. cit., cap. I; Caio Prado Jr., Formação do Brasil Contemporâneo, 16ª ed., São Paulo, Brasiliense, pp. 341 e ss.
44 Deve-se lembrar que a Carta Política de 1824 admitia que "por suborno, peita, peculato e concussão", pudesse ser intentada contra os juízes ação popular, "pelo próprio queixoso, ou por qualquer do Povo" (art. 157).
Fábio Konder Comparato é professor-titular da Faculdade de Direito da USP. Doutor em Direito da Universidade de Paris e Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142003000100015&lang=pt
Estud. av. vol.17 no.47 São Paulo Jan./Apr. 2003
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142003000100015
Fábio Konder ComparatoDESDE a Antigüidade Clássica até a segunda metade do século XIX, a democracia sempre foi tida, entre os pensadores políticos, como um regime político subversor da hierarquia social. Montesquieu sustentava que, numa sociedade democrática, as mulheres, as crianças e os escravos já não se submeteriam a ninguém; não haveria mais bons costumes, amor à ordem, virtude enfim1. James Madison, por sua vez, sublinhou que a democracia, por ele entendida como "a sociedade consistente num pequeno número de cidadãos que se reúnem e administram o governo diretamente", incentivaria o espírito de facção, pondo em constante risco a ordem social2.
No mundo contemporâneo, contudo, o juízo de valor que se faz sobre a democracia é exatamente o inverso. Com raras exceções, já nenhum partido ou movimento político ousa dizer-se antidemocrático. Todos, ao contrário, esforçam-se por se apresentar como os únicos verdadeiros defensores do "governo do povo, pelo povo e em prol do povo".
Essa unanimidade atual, construída em torno do conceito de democracia, é evidentemente suspeita. Ela revela, sem sombra de dúvida, uma formidável confusão semântica, ao fazer do elogio universal do regime democrático um simples chavão do jogo político. O povo, que afinal, pelo próprio sentido etimológico, seria o principal beneficiário dessa forma de organização política, parece ter sérias dificuldades em entender, exatamente, o que está por trás das palavras encantatórias da propaganda. Numa pesquisa realizada em 1999 com mais de cinqüenta mil pessoas em sessenta países, citada no Relatório das Nações Unidas de 2002 sobre o Desenvolvimento Humano, apurou-se que apenas dez por cento dos entrevistados reconheceram que o governo do seu país obedecia à vontade do povo3.
Ora, Portugal e Brasil - que sofreram durante o último século regimes autoritários e ditatoriais por dezenas de anos - têm hoje o seu Estado organizado segundo o vigente padrão consensual do regime democrático: ambos contam com governantes eleitos pelo voto popular, em pleitos livres e multipartidários, e ostentam uma separação formal de Poderes. Mas seria esta, efetivamente, a percepção que os nossos povos têm do regime político em vigor? Reconheceriam eles, contra a maioria esmagadora dos consultados na pesquisa mencionada, que os seus respectivos governos cumprem, zelosamente, os ditames da vontade popular?
A indagação parece pertinente e importante, se se quiser sair do terreno pantanoso das ficções políticas. O que se pretende trazer aqui, neste breve excurso, não é evidentemente uma resposta cabal à pergunta, mas apenas alguns elementos de reflexão sobre a matéria.
Comecemos, segundo a boa lógica, por precisar os conceitos.
Democracia e Feudalismo: o conteúdo histórico dos conceitos
Democracia: voltando às origens
Um dos grandes princípios metodológicos das ciências humanas é o do caráter histórico dos conceitos. Nesse vasto campo do saber, os conceitos não refletem, como em matéria de ciências exatas, a essência abstrata e invariável da realidade; eles exprimem antes, de modo sintético, determinada experiência histórica.
Temos, pois, que, para examinar o caráter democrático ou não da vida política portuguesa e brasileira, é indispensável cotejá-la com o modelo de democracia criado originalmente em determinado momento histórico, e ao qual todos os desenvolvimentos ulteriores se referem. Esse modelo é, incontestavelmente, o regime ateniense de governo popular, que durou pouco mais de dois séculos (de 501 a 338 a.C.).
A classificação dos regimes políticos, no pensamento grego clássico, adotou desde cedo, como critério de ordem, o número de titulares da soberania ou poder político supremo (kyrion). De acordo com esse critério, reconheceu-se a existência de três grandes regimes primários, conforme o poder supremo fosse atribuído a uma só pessoa, a poucos cidadãos ou a todos eles4. Cada um desses modelos, por sua vez, comportava uma modalidade pura, em que o titular do poder supremo governava em vista do bem comum, e outra correspondente modalidade degenerada, na qual o soberano, de modo exclusivo ou preferencial, exercia o poder no seu próprio interesse. Teríamos, assim, em contraposição à realeza, a tirania; como degeneração da aristocracia (em que o poder supremo pertence aos melhores, aristoi), a oligarquia (soberania dos ricos); e, finalmente, como desvio daquele que, à míngua de um termo específico, Aristóteles denominava genericamente organização ou constituição política (politéia), a democracia5.
No tocante à diferença entre oligarquia e democracia, Aristóteles insistiu na necessidade de se analisar a realidade "com o método filosófico" (methodos philosophounti), o que significa, segundo a lição que o estagirita recolheu de seu mestre Platão, buscar a essência das coisas, sem se contentar com o simples aspecto prático (me monon apobleponti pros to pratteo); ou seja, satisfazendo-se com a mera a aparência. A oligarquia, observou ele, ao contrário do que o sentido literal da palavra insinua, não é propriamente o regime político em que a soberania pertence a poucos, mas sim aquele em que os titulares do poder supremo formam a classe rica ("os que têm riqueza", oi tas oussias ekhontes); ao passo que, na democracia, soberana é a classe dos pobres (aporoi), ou, segundo uma fórmula eufêmica, os que "não possuem muitos bens" (oi me kektemenoi plethos oussias)6.
É evidente que essa classificação dos regimes políticos conforme ao número de detentores da soberania significa, implicitamente, o reconhecimento de que há uma escala decrescente de concentração de poderes pessoais, da monarquia à oligarquia e desta à democracia. Ora, tanto Platão como Aristóteles, fiéis à sua concepção de que a realidade ética deve ser considerada conjuntamente pelo aspecto objetivo e subjetivo (as instituições e os homens), e aplicando a cada um dos regimes políticos a sua visão contraditória ou dialética entre a boa e a má modalidade, entendem que o melhor (ou "mais divino": theiotatos)7 de todos os regimes é a realeza. Todavia, como a corrupção do ótimo é sempre o péssimo8, a tirania é, de modo correspondente, o pior deles. Ou seja, quanto maior a concentração pessoal de poder político, mais deletério se torna para a pólis o exercício desse poder no interesse do próprio titular.
Daí decorre que, para Aristóteles, a democracia é o menos maléfico dos maus regimes, ou, como prefere qualificar o filósofo, o mais moderado (metriotatos) deles9. Nessa mesma linha de análise, sustentou também que a politéia, por ele classificada entre as boas formas de organização política, nada mais seria do que um misto de oligarquia e democracia, com predominância das instituições democráticas10.
Em suma, no pensamento do grande estagirita, se o ótimo é inimigo do bom, se não se pode organizar a pólis da melhor maneira para propiciar a felicidade geral, é preferível optar por uma constituição em que se reduza ao máximo a possibilidade de abuso de poder. E essa constituição é, inequivocamente, a de natureza democrática, pois nela, ao deter cada cidadão igual prerrogativa de participar diretamente da vida política, em especial o igual direito de manifestação nas assembléias do povo (isegoria), o eventual abuso de poder só se torna grave quando praticado conjuntamente pela maioria dos cidadãos. Contra essa eventualidade, de resto, a democracia ateniense dispunha de um antídoto eficaz: a soberania da lei (nomos), em lugar da soberania do demos. O sentido e a importância política que os clássicos atribuíam ao nomos eram incomparavelmente mais amplos e profundos que os conferidos pela lei moderna. Juridicamente, tratava-se muito mais de uma norma de nível constitucional, irreformável pelo povo, do que de uma lei ordinária.
Além disso, o poder dos governantes, pelo menos na democracia praticada em Atenas por mais de dois séculos, foi estritamente limitado por um complexo de instituições de cidadania ativa, graças às quais o povo, pela primeira vez na História, pôde governar-se a si mesmo. As grandes decisões políticas - a introdução de novas leis, a declaração de guerra, a conclusão de tratados de paz ou de aliança - eram tomadas diretamente pelo conjunto dos cidadãos reunidos na Ekklésia. E quanto aos órgãos do que chamamos hoje Poder Executivo, eles eram singularmente fracos: os principais dirigentes políticos, os estrategos, deviam ter suas funções confirmadas, todos os meses, pelo Conselho (Boulê).
Por isso mesmo, como reconheceu Aristóteles, a democracia é o regime em que se garante a maior liberdade e a maior igualdade de todos os cidadãos11.
O que o filósofo, porém, não discutiu, foi a questão que ocupa, hoje, um lugar central na análise política e que, efetivamente, domina todo o debate sobre a possibilidade de eficiente funcionamento das instituições democráticas em países subdesenvolvidos: - a igualdade básica de condições sociais de vida é um pressuposto de existência da democracia, ou, diversamente, representa um objetivo a ser alcançado pelo regime no curso do tempo?
Feudalismo e senhorio na Idade Média: a distinção necessária
O mesmo cuidado metodológico, lembrado acima para o uso do conceito de democracia, deve ser aplicado agora no tocante ao conceito de feudalismo.
É que este último, como bem advertiu um autor, tornou-se, desde os embates revolucionários contra o ancien régime, mais uma invectiva do que a designação geral de um sistema de instituições sociopolíticas12. Os líderes do movimento de 1789 assimilaram, abusivamente, o feudalismo à monarquia absoluta, quando, na verdade, as instituições feudais só puderam prosperar na Europa na época de esfacelamento do Estado, conseqüente à extinção do Império Romano do Ocidente. A civilização feudal provocou, por conseguinte, o exato oposto de uma concentração do poder político: a sua fragmentação em todo o território da Europa Ocidental.
A razão de ser desse desvio semântico foi uma lamentável confusão - a qual persiste de forma subentendida até hoje - entre feudalismo e senhorio, duas instituições que conviveram e se interligaram durante um certo período histórico, mas que eram perfeitamente distintas em suas origens e em sua estrutura.
O feudalismo organizou-se em torno da relação vassálica de natureza pessoal, fundada na homenagem (do latim bárbaro hominium ou homagium) e na fidelidade (fides), ao passo que o senhorio era simplesmente uma posição dominante sobre servos ou clientes, estribada na posse de terras. O senhor, além dos poderes econômicos decorrentes da propriedade, gozava ainda de prerrogativas políticas, como a jurisdição sobre todos os que viviam em suas terras, o direito de portar armas e o de cobrar tributos.
O pacto de vassalagem, celebrado entre duas pessoas livres, compreendia, de um lado, o reconhecimento da superioridade moral (reverentia) de uma delas sobre a outra e, em contrapartida, a obrigação de auxílio (militar e material) do superior ao inferior.
Conforme o grau de predominância de uma dessas instituições sobre a outra, a organização social como um todo recebeu um molde bem diverso. Enquanto na sociedade predominantemente feudal, as pessoas, embora em posição desigual, mantinham relações de direitos e deveres recíprocos, a sociedade predominantemente senhorial foi toda estruturada em torno do poder do proprietário, diante do qual não há propriamente sujeitos de direito, mas simples dependentes.
Temos, assim, que na organização feudal o rei é primus inter pares, não exercendo poder sobre os outros senhores do estamento nobre. Era-lhe vedado, tal como numa organização federativa, invadir a esfera de competência territorial de cada titular de feudo. Philippe de Beaumanoir registrou, em sua compilação sobre o direito costumeiro vigente na baronia francesa de Beauvais, no século XI, que "cada barão é soberano em sua baronia", sendo "o rei soberano sobre todos"13. No senhorio, em contraste, o proprietário não estava obrigado, no interior de seu domínio, a respeitar os direitos de ninguém. Os vilãos mantinham relações individuais com o senhor, do qual dependiam integralmente para a sua subsistência e, por isso, jamais conseguiram desenvolver relações de solidariedade entre si. Fora dos limites de suas terras, o titular do senhorio via, nos demais senhores, unicamente rivais, cujo apetite de conquista precisava ser sempre refreado.
O elemento histórico de ligação (e também de confusão) entre o contrato vassálico e o senhorio foi, sem dúvida, o fato de que o vassalo costumava receber do seu superior, para seu sustento e também para permitir-lhe suportar os ônus dos serviços de vassalagem, um feudo, isto é, a concessão de um bem patrimonial sob a forma de domínio útil, reservando-se o superior para si o domínio eminente. Esse feudo geralmente consistia num trato de terra, mas nem sempre: havia também "feudos de bolsa" ou "feudos-pensões", de natureza mobiliária. Seja como for, o contrato de vassalagem, em si, nada tinha de econômico. Ele só deu margem a lucros tardiamente, por incontestável desvio de seu sentido primitivo, com a transformação dos feudos em senhorios autônomos14.
Na verdade, os senhorios já existiam de há muito, antes de se iniciar a Idade Média. Os latifundia romanos, que prosperaram em toda a extensão do império, eram posições de senhorio, no fundo e na forma. Com o enfraquecimento dos laços de vassalagem, os antigos feudos tornaram-se autênticos senhorios, os quais subsistiram ainda por vários séculos após o desaparecimento do feudalismo, e acabaram por transformar-se, com a abolição da servidão pessoal e a simplificação dos direitos reais, na propriedade rural regulada pelos Códigos do século XIX.
Foi justamente por confundir feudalismo com senhorio, que Karl Marx pôde sustentar que as relações feudais constituíram uma etapa intermédia entre o escravismo antigo e o capitalismo moderno. Ora, como a história de Portugal e de suas colônias no-lo confirma de modo cabal, o regime capitalista desde cedo transformou a antiga servidão da gleba, típica do regime de senhorio, em escravidão pura e simples, organizando-a empresarialmente na produção de gêneros agrícolas para o mercado.
Seja como for, o que importa salientar para os propósitos desta exposição, é que, enquanto o feudalismo foi uma organização social de fracionamento e, em certa medida, de equilíbrio de poderes (confiram-se, por exemplo, as estipulações da Magna Carta de 1215), o senhorio rural, bem ao contrário, representou o modelo e a fonte de um tipo de organização política com absoluta concentração de todos os poderes na pessoa do titular do domínio.
A formação da sociedade portuguesa e os obstáculos à vida democrática
Estrutura da sociedade portuguesa medieval
Não é preciso grande esforço de análise histórica para perceber que a sociedade portuguesa apresentou, durante todo o período crucial de formação na nacionalidade (1096-1325), características distintas, não só em relação às regiões européias situadas além dos Pirineus, como até mesmo em comparação com Leão e Castela. E as razões para tanto foram basicamente quatro, a saber:
1. predominância da posição senhorial sobre as relações feudo-vassálicas; 2. importância crescente da escravidão, relativamente à servidão territorial;É inegável que, em Portugal, os vínculos de vassalagem sempre foram tênues, fragmentários e instáveis, e nunca chegaram a ligar os grandes senhores entre si15. Relações feudo-vassálicas só existiram, em plenitude, entre o rei e a nobreza. Foi o que levou alguns historiadores de vulto, a começar por Alexandre Herculano, a sustentar a tese extremada de que nunca houve autêntico feudalismo em Portugal16.
3. precoce concentração de poderes feudais e senhoriais na pessoa do rei;
4. marcada orientação mercantil da dominação político-social.
Em contraste com essa debilidade das instituições propriamente feudais, o regime do senhorio sempre foi pujante em terras portuguesas. Deve-se observar que ele deita raízes na colonização romana da península, com a criação de múltiplos latifúndios atribuídos aos chefes militares como prêmio de campanha. É sabido que a Espanha foi a província mais romanizada do Ocidente e, dentro dela, especialmente a Bética e as planícies da Lusitânia17.
Pois foi nesse largo espaço senhorial que se desenvolveu, muito antes das demais regiões da Europa, a escravidão ligada à agricultura. Assim é que, se os servos da gleba já eram uma categoria quase que totalmente extinta na época da fundação da nacionalidade portuguesa, a partir de meados do século XI o número de escravos mouros cresceu constantemente, na medida da progressiva reconquista do território18. O aumento constante da mão-de-obra escrava, obviamente, influiu poderosamente sobre o trabalho livre. É isto que explica a antecipada transformação dos pequenos lavradores, proprietários ou arrendatários, em assalariados agrícolas, quando se compara Portugal com as demais regiões ocidentais da Europa. Já em 1253, ao baixar o regimento dos preços, Afonso III impôs um tributo sobre os salários pagos a todos os trabalhadores agrícolas, o que denota a relativa importância da economia salarial à época19.
A economia fundada no trabalho escravo já existia há pelo menos dois séculos, quando a partir de 1444 iniciou-se o tráfico regular de negros africanos, o qual iria crescer extraordinariamente com o estabelecimento dos primeiros engenhos de açúcar no litoral brasileiro, na centúria seguinte. Com o incremento substancial da escravidão africana, o assalariado agrícola, que havia sido precocemente introduzido na península, quase que desapareceu.
Em pouco tempo, o tráfico de escravos africanos tornou-se uma das mais importantes fontes de receita para o tesouro régio, com a multiplicação de tributos de efeito cumulativo, denominados "donativos", "subsídios", "preferências", "alcavalas". Em 1473, as Cortes pedem ao monarca que estabeleça a proibição de levar para fora os negros oriundos da Guiné, porque só com eles se faziam terras novas, rompiam-se as matas e drenavam-se os pântanos20. Mas o interesse pecuniário da Coroa, diretamente beneficiada pela arrecadação desses impostos, falou mais alto.
A terceira grande marca estrutural de formação da sociedade portuguesa foi a precoce concentração de poderes na pessoa do rei.
A verdadeira causa do fenômeno foi, sem dúvida, a guerra de reconquista territorial aos mouros, seguida pela luta de independência contra os espanhóis. O monarca português, desde cedo, assumiu as funções de chefe militar supremo, transformando os antigos nobres em comandados, dos quais exigia, mais que a fidelidade vassálica, a estrita obediência castrense.
Asssinale-se que as famosas leis de Afonso II, de 1211, anteciparam pioneiramente na Europa a instituição da soberania monárquica, quer em relação à nobreza, quer perante a autoridade eclesiástica. O rei dispensa, nesses ditames, o plural majestático e fala na primeira pessoa, como um general comandante a dirigir-se aos seus subordinados.
O rei era, também, naqueles primeiros tempos, o principal senhor de terras no reino. Os lucros da terra em cultura, como salientou um historiador, formavam a parte permanente e mais segura das rendas do soberano21. Os privilégios usufruídos pelos demais titulares de senhorios não se consideravam como fundados em direito próprio, mas como resultantes de atos gratuitos do rei, suscetíveis, por isso, de revogação. Foi o que fez D. João I, seguindo o alvitre de João das Regras, quando reconheceu o estado de dilapidação do seu patrimônio. As terras que ele havia cedido aos nobres (dentre eles o próprio Condestável do Reino), em recompensa pelos feitos militares na guerra contra os espanhóis, foram retrocedidas ao monarca mediante o estipêndio de um soldo permanente aos expropriados. O mesmo fez D. Duarte, ao promulgar a Lei Mental. E ulteriormente, D. Manuel, com a reforma dos forais, avançou no mesmo sentido. Como se sabe, o sistema de doação de senhorios territoriais pelo monarca foi desde logo aplicado no Brasil, quando se resolveu superar a fase de economia extrativa da madeira e dar início ao empreendimento colonial pela exploração agrícola: foram as capitanias hereditárias.
Tudo isso contribuiu para moldar, duradouramente, a estrutura da sociedade portuguesa em torno do poder monárquico. Os senhores, em lugar de autênticos vassalos, ligados por um pacto de honra ao soberano, reconheceram-se desde cedo como clientes deste, reproduzindo-se com isso a situação vigorante na sociedade romana em torno do latifundiário. Com a passagem do poder pessoal do rei ao poder impessoal do Estado moderno, a velha clientela tornou-se burocrática, capturando para si empregos, rendas públicas ou privilégios de negócio.
O processo de centralização absoluta do poder político na pessoa do rei não se limitou, porém, a reduzir a autonomia dos nobres em seus respectivos senhorios. Ele se estendeu também à Igreja. Desde o século XIII, instituiu-se o padroado, pelo qual o soberano se reservava o poder exclusivo de nomeação de párocos e abades, primeiro nas igrejas régias e em seguida em todas as igrejas e mosteiros que até então não tinham senhor conhecido. À mesma época, mais exatamente a partir de 1266, reduziu-se a liberdade de eleição de bispos, passando o monarca a ter influência direta sobre a sua nomeação.
Um último ponto a assinalar para a recapitulação do processo de reforço contínuo do poder monárquico, no quadro da organização política do Portugal medievo, é a limitação da autonomia dos concelhos, como órgãos de administração municipal. Desde o início, a criação de municípios dependeu do reconhecimento régio, estabelecendo-se a necessária contrapartida de sua sujeição ao poder do monarca22.
Com a conjugação de todos esses fatores, formou-se uma sociedade cujo equilíbrio orgânico pendia inteiramente da cúpula, em vez de se fundar na base; ou seja, o exato oposto da estrutura social que enseja o funcionamento do regime democrático.
Como conseqüência da predominante estrutura senhorial e dessa persistente macrocefalia política, nas sociedades ibéricas em geral, e na portuguesa em particular, como já foi tantas vezes observado, nunca houve coesão ou solidariedade na base. A ordem é sempre exaltada como valor supremo, mas trata-se de uma ordem que nada tem em comum com o kosmos pitagórico, no seu sentido de ordenação harmônica do universo. A ordem naturalmente concebida pelos povos ibéricos corresponde à sujeição completa dos comandados aos comandantes, tanto na vida privada, como na pública. Vale dizer, uma relação de obediência análoga à que se estabelece no seio dos corpos militares. O princípio social unificador não foi nunca a colaboração em nível horizontal entre indivíduos, famílias e grupos sociais mais vastos, mas sim a dependência de uns em relação a outros na dimensão vertical da imposição de ordens, a exigir estrita e cega obediência. Daí a razão decisiva, como salientou com argúcia Sérgio Buarque de Holanda23, pela qual a histórica política dos povos ibéricos sempre oscilou entre a anarquia dissolvente e a rigidez mecânica do despotismo. Não foi, pois, reconheça-se, por mera coincidência histórica que a companhia inaciana, fundada no lema da submissão ao chefe perinde ac cadaver, tenha sido concebida na mente de um ibérico.
A monarquia portuguesa pós-medieval e o capitalismo
Encerrada prematuramente a Idade Média portuguesa já em fins do século XIV - outra característica original da monarquia lusitana em comparação com os demais reinos do Ocidente europeu - a organização política sofre a influência decisiva dos grandes empreendimentos marítimos, moldados em termos nitidamente capitalistas.
O monarca torna-se, desde logo, o primeiro mercador do reino. Ele é não só o maior negociante de escravos africanos e o monopolista da pimenta, como será, mais adiante, o beneficiário exclusivo do estanco do tabaco.
Sob D. João II, entre 1486, ano em que se fundou a Casa dos Escravos, departamento régio integrado à Casa da Mina e Tratos da Guiné, e 1493, registrou-se a entrada no reino de 3.589 escravos da Guiné, de propriedade da coroa. No século seguinte, em apenas três anos, de 1511 e 1513, passaram pela Casa dos Escravos, segundo as contas do Almoxarife, 1.265 escravos de ambos os sexos, pertencentes ao rei. Esses cativos, atribuídos em propriedade ao soberano, provinham umas vezes do negócio direto por conta dele com os negreiros indígenas, outras vezes de rendas cobradas em espécie. Assim é que, em 1510, foram arrematados os direitos de cobrança das rendas régias à razão de novecentos mil reais por ano, pagáveis em negros. O tráfico, de resto, era estritamente regulado pelo monarca em seu próprio benefício24.
A introdução em massa de escravos no país era imprescindível em razão da aguda carência de mão de obra agrícola, provocada pela aventura marítima. O rei sempre foi o principal interessado no negócio de exportação de escravos, notadamente para Castela. No reinado de Afonso V as Cortes pediram para que fosse proibida a saída de cativos para o estrangeiro, pois a agricultura carecia agudamente de braços. O monarca rejeitou liminarmente a súplica, pois ela vinha contrariar os seus interesses patrimoniais25.
Com o progressivo enfraquecimento do comércio com o Extremo Oriente, o império ultramarino português concentra-se no Atlântico Sul, onde Portugal exerceu, efetivamente, uma dominação econômica exclusiva, graças ao tráfico de africanos26. Entre Angola e Brasil, teceu-se uma forte rede de interesses mercantis, sob a proteção política de Lisboa. Angola fornecia o grande e indispensável fator de produção para o tipo de agricultura desenvolvido no Brasil: o braço escravo. E a exclusividade desse fornecimento permitia, ao mesmo tempo, o controle de toda a economia em terras brasílicas. Entre a África Ocidental e o Brasil estabeleceram-se, durante três séculos, fortes laços econômicos e políticos.
Quanto à malagueta, seu comércio não tardou a ser instituído monopólio da coroa, o que tornou o soberano português conhecido depreciativamente em toda a Europa como "o rei da pimenta", ou le Roi-Epicier, como disse Francisco I de D. Manuel, o Venturoso.
Na verdade, a febre especulativa já de há muito tomara conta dos nobres, empenhados em comprar habitualmente gêneros de consumo para revendê-los com lucro. O que fez com que, já nas Cortes de Leiria de 1372, os representantes dos povos os increpassem, todos eles, de mercadores e regatões27. E embora persistisse bem viva a anima versão da plebe por todos os que, intitulando-se fidalgos, faziam da mercancia o seu modo de vida habitual, o pendor mercantil da nobreza, equiparável ao da burguesia, permaneceu inabalado nos séculos posteriores, tendo sido vivamente reacendido com a exploração colonial. Nas colônias, aliás, a pretensa fidalguia confundia-se em regra com a riqueza pessoal. "Viver à lei da nobreza", segundo a expressão consagrada, significava, pura e simplesmente, ser homem de posses.
Nos demais grupos e classes superiores da sociedade colonial, a cupidez praticamente não conhecia limites. Entre os governantes, fossem eles civis ou militares, era normal complementar os estipêndios ou soldos com toda sorte a de traficâncias e exações patrimoniais. Escrevendo do Rio de Janeiro em 6 de novembro de 1710 ao Duque de Cadaval, Frei Francisco de Menezes observou: "Sua Majestade deu liberdade aos governadores para negociarem [...] Até agora sempre governavam e negociavam, mas era com receio; sempre tinham mão em si, agora vão pondo isto em tais termos que já não há negócio senão o seu"28. De onde a conhecida diatribe de Vieira no Sermão de Santo António aos Peixes: "Porque os grandes, que têm o mando das Cidades e das Províncias, não se contenta a sua fome de comer os pequenos um por um, ou poucos, a poucos, senão que devoram e engolem os povos inteiros". Ou, de maneira mais incisiva, ao saudar em julho de 1640, o Marquês de Montalvão, novo Vice-Rei do Brasil, que acabara de chegar à Bahia: "Perde-se o Brasil, senhor (digamo-lo em uma palavra) porque alguns ministros de Sua Majestade não vêm cá buscar nosso bem, vêm cá buscar nossos bens"29.
Nem mesmo o clero fugia desse padrão mercantil de vida. A atuação dos clérigos no contrabando ou descaminho de ouro, diamantes e tabaco no Brasil colonial é bem sabida. E contraditoriamente, ao mesmo tempo em que se entregavam, contra a mais autorizada tradição eclesiástica, à faina mundana do trato comercial, os padres seculares e as diferentes ordens religiosas timbravam em invocar contra o Fisco o privilégio medieval da imunidade tributária. Quando, em 1656, a Coroa baixou ordens estritas para que os religiosos assumissem a sua parte contributiva no pagamento dos impostos lançados para fazer face às despesas militares na campanha contra os holandeses no Brasil, a Câmara de Salvador queixou-se, em ofício apresentado a Sua Majestade, que as ordens clericais, que possuíam na capitania vastas propriedades agrícolas, abastecidas com gado e abundante escravaria, além de muitos engenhos de açúcar, persistiam na recusa do pagamento desses impostos, de tal maneira que o peso tributário recaía sobre o restante da população, já por demais onerada30.
Não há dúvida de que o longo conúbio entre política e comércio em Portugal teve início na segunda metade do século XIV, antes mesmo do advento da dinastia de Aviz ao trono real, com a edição por D. Fernando - portanto quase três séculos antes de Cromwell! - das leis destinadas a estimular a indústria nacional da navegação e do seguro marítimo. O apoio da burguesia do Porto e de Lisboa ao Mestre d'Aviz em 1385 - a primeira revolução burguesa no Ocidente - fez com que o soberano português passasse a gerir o reino como se fora a sua própria casa de comércio, empregando seus ministros como autênticos prepostos do estabelecimento régio.
Ora, é mais do que provável que o precoce nascimento e a rápida expansão do capitalismo em Portugal vincule-se à estrutura predominantemente senhorial da sociedade durante toda a Idade Média. Nesse sentido, nunca é demais salientar que o capitalismo, ao contrário do sistema feudal, conduz inevitavelmente à concentração de poder na sociedade. Ao contrário, pois, do que comumente se pensa e divulga, o sistema capitalista, pela sua própria natureza, é visceralmente contrário ao funcionamento de um autêntico regime democrático, dado que a soberania do povo representa, em si mesma, a dispersão do poder político, inclusive e notadamente o de regulação das atividades econômicas no seio da coletividade.
Com a expansão colonial do reino, a figura do rei mercador vai sendo, pouco a pouco, substituída pela impessoalidade do Estado capitalista, empenhado diretamente na exploração em monopólio do comércio ultramarino. Enquanto a Corte ensejava, por vezes, à burguesia mercantil a compra do título de nobreza - lembre-se que nas companhias de comércio pombalinas o titular de mais de dez ações tornava-se nobre de pleno direito - a classe senhorial como um todo abandonou sem pesar a antiga condição de vassalagem ao rei, para assumir a posição, muito mais lucrativa, de cliente do Estado monárquico e depois republicano. Em lugar dos tradicionais privilégios, surgem novas rendas de situação, fundadas em relações contratuais exclusivas e ligações pessoais com o estamento burocrático.
O lamentável mal-entendido da democracia representativa
A partir de 1578, com o desastre de Alcácer Quibir, tem início o longo período de agonia do poder real. As remissões experimentadas com a Restauração de 1640, ou o despotismo modernizante de Pombal, mal encobriram a fatalidade da moléstia: o país estava em vias de perder, definitivamente, o seu ponto de equilíbrio, tradicionalmente situado na cúpula do edifício social. Não é à toa que a mentalidade popular deixou-se embalar, durante séculos, pelo mito consolador do sebastianismo: o herói nacional haveria de ressuscitar, como Cristo, para salvar o seu povo.
Portugal entrou, assim, no século XIX inteiramente despreparado para enfrentar as transformações políticas e econômicas provocadas pela ascensão da idéia democrática e o desenvolvimento do capitalismo industrial. Faltava-lhe o protagonista, capaz de levar avante a formidável empresa de modernização das estruturas sociais: uma burguesia voltada para o futuro, desafiadora do risco, bem preparada tecnologicamente e consciente de que o estado de miserabilidade em que se encontravam as massas proletárias era um empecilho à expansão do nível geral de consumo, sem a qual o sistema capitalista não pode subsistir.
Na verdade, a idéia de democracia representativa, introduzida na vida política pela vez primeira com a Revolução de 1820, não passou, para usarmos da expressão famosa de Sérgio Buarque de Holanda para o caso brasileiro, de "um lamentável mal-entendido"31. Imaginou-se que o regime político, em que o povo soberano aceita exercer o poder por meio de representantes livremente escolhidos em eleições periódicas, podia funcionar numa sociedade marcada por profundas desigualdades e habituada há séculos a respeitar situações objetivas de poder sem reivindicar direitos civis e políticos. O resultado é que, nos breves momentos em que o sistema atuou, a vida política e administrativa desenrolou-se no equívoco. Sob a égide do empenho e do compadrio, o povo fingia votar, os deputados proclamavam-se legitimamente eleitos, os juízes confundiam dominação com justiça e os funcionários públicos recebiam estipêndios sem saber exatamente onde estava o bem público.
Numa sucessão de revoltas e proclamações revolucionárias, do setembrismo ao cartismo, do levante da Maria da Fonte à proclamação da República em 1910, passando por todo o movimento dito regenerador, iniciado em 1851, o país vai de tropeço em tropeço até reencontrar o antigo ponto de equilíbrio na longa submissão à ditadura salazarista. Mas, encerrada esta, com a Revolução dos Cravos de 1974, Portugal viu-se enfim claramente confrontado com a questão democrática, já não podendo confiar na tradicional solução macrocefálica. A reconstrução do venerando edifício nacional em ruínas há de fundar-se doravante, inevitavelmente, nos princípios da soberania popular efetiva e no respeito integral aos direitos humanos.
O caso brasileiro: democracia impossível?
Na formação da sociedade brasileira, vemos reproduzidos e adaptados à realidade tropical os mesmos fatores que representaram, no Portugal metropolitano, um claro obstáculo à instauração da vida democrática. Tocqueville observou, em certa passagem de seu estudo sobre o antigo regime e a revolução francesa32, que "é nas colônias que se pode melhor julgar da fisionomia do governo da metrópole, porque é aí que de ordinário todos os traços que a caracterizam se encontram ampliados e tornam-se mais visíveis".
Vejamos.
Soberania senhorial v. soberania estatal durante o Império
Foi no Brasil que, desembaraçado do ornamento feudal que o ataviava na metrópole, o regime do senhorio desenvolveu-se em toda a sua pujança.
Graças à farta distribuição de sesmarias, desde cedo despidas da obrigação de cultivo da terra, e à precoce organização da economia colonial no sentido da monocultura agrícola dirigida à exportação, o território brasileiro foi desde logo partilhado em grandes domínios rurais, cujos proprietários concentravam em sua pessoa a plenitude dos poderes, tanto de ordem privada, como política, assim os de natureza civil, como os de índole eclesiástica. Pode-se afirmar, sem risco de exagero, que do senhor dependia o presente e o futuro de todos os que viviam no território fundiário, fossem eles familiares, agregados, clientes ou escravos.
O sacerdote, representante oficial da Igreja, não passava no grande domínio rural de um agregado doméstico, autorizado pelo senhor a celebrar missa, batizados e casamentos na capela da casa grande, bem como a sepultar os mortos no cemitério da fazenda.
A grande propriedade rural brasileira, que economicamente vivia em regime quase autárquico, era uma espécie de território soberano, onde o proprietário, como nos velhos senhorios europeus, fazia justiça e mantinha força militar própria, para defesa e ataque. Entre o senhor e as autoridades do Estado, como no plano internacional, estabeleciam-se relações de potência a potência, fundadas na convenção bilateral de que o Estado se comprometia a respeitar a autonomia local do senhor, ao passo que este, como coronel da Guarda Nacional33, obrigava-se a manter a ordem na região, emprestando à autoridade pública o concurso de seus homens de armas para a eventual guerra contra o estrangeiro, ou a episódica repressão aos levantes urbanos.
No meio urbano, justamente, a classe dos que se dedicavam ao grande comércio de exportação e importação, tanto quanto os principais banqueiros, atuavam em estreito relacionamento com o grande senhorio rural.
Numa análise linearmente marxista, dir-se-ia que o conjunto da máquina estatal nada mais seria do que o simples reflexo dessas classes dominantes, atuando sempre por conta e no benefício exclusivo delas. Em sentido diametralmente oposto, como foi sustentado por Raymundo Faoro34, a burocracia estatal, antes e depois da independência do país, formaria uma espécie de estamento weberiano, dotado de plena autonomia de mando.
A realidade, contudo, parece ter sido bem mais complexa do que esses esquemas unidimensionais supõem. Entre as classes dominantes e o Estado, tanto antes, como depois de 1822, estabeleceu-se uma co-relação de forças, em que ambas as partes se confrontavam periodicamente, de modo aberto ou oculto, naquilo que o historiador José Murilo de Carvalho35, utilizando-se de uma expressão do sociólogo Guerreiro Ramos, denominou com razão a dialética da ambigüidade. Nem as classes dominantes podiam impor quando quisessem a sua vontade ao Estado, nem este era livre de agir, como bem entendesse, contra o interesse econômico daquelas. Durante todo o seu longo reinado, D. Pedro II usou com prodigalidade do seu poder constitucional de "conceder títulos, honras, ordens militares e distinções em recompensa de serviços feitos ao Estado" (Constituição de 1824, art. 102, XI), para conquistar pessoalmente a lealdade das classes dominantes. Assim é que, do total de títulos nobiliárquicos outorgados durante o segundo reinado, 77% foram de barão, sabendo-se que o baronato era reservado pelo imperador, quase que exclusivamente, aos grandes proprietários rurais e aos comerciantes de maior cabedal. Quando, em 1888, o Ministério João Alfredo preparava-se para fazer votar a abolição da escravatura, ao sentir que se multiplicavam as defecções dos grandes senhores rurais do sudeste no apoio ao regime monárquico, ainda tentou em vão reter a lealdade do Conselheiro Antonio Prado à Coroa, concedendo-lhe o título de Visconde de São Paulo, por ele recusado.
Mas por "Estado", como dito acima, em se tratando do Brasil imperial, deve-se entender mais exatamente o Poder Executivo e, dentro dele, como é óbvia, a figura do imperador. Neste ponto, fomos e continuamos sendo legítimos herdeiros de Portugal. "É o traço saliente do nosso sistema político", enfatizou Joaquim Nabuco a propósito da vida política no império, "essa onipotência do Executivo, de fato o Poder único do regime"36.
Seja como for, o resultado do confronto permanente entre os senhores locais e o governo central dava satisfação, ora a uma parte, ora a outra.
Durante toda a fase da monarquia imperial, o Estado logrou impor a sua vontade - sem dúvida laboriosamente, ao cabo de mais de meio século de esforços - em matéria de trabalho escravo. Mas no tocante ao regime da propriedade fundiária, o senhorio rural obteve plena satisfação de seus interesses. A Lei do Ventre Livre de 1871 só pôde ser aprovada porque a Câmara dos Deputados era composta, em sua maioria, de funcionários públicos e magistrados, uns e outros estritamente dependentes do Governo. Já na votação da Lei de Terras, em 1850, as principais propostas governamentais, notadamente a criação do imposto territorial rural, foram derrotadas.
Em ambos esses episódios, como em todas as demais decisões legislativas que interessavam à nação como um todo, as classes inferiores foram tratadas como um elemento perfeitamente supérfluo do jogo político. O Brasil, observou um viajante francês no final do século XIX, dava a estranha impressão de um país desprovido de povo37.
A primeira fase da "democracia republicana": 1889-1930
Enquanto vigorou o regime monárquico, a democracia foi tida por todos, corretamente, como a antítese da autocracia. Por isso mesmo, a elite dirigente do país, a começar, escusa dizê-lo, pelo próprio monarca, considerou o regime democrático como uma clara subversão da ordem política.
Menos de um ano após a independência, quando se elaborava a Constituição do novo Estado, o jovem imperador lançou, em proclamação datada de 19 de julho de 1823 "sobre o procedimento de várias câmaras", um brado de alerta:
Algumas Camaras das Provincias do Norte deram instruções aos seus Deputados, em que reina o espirito democratico. Democracia no Brazil! Neste vasto, e grande Imperio é um absurdo; e não é menor absurdo o pretenderem ellas prescrever leis, aos que as devem fazer, comminando-lhes a perda, ou derogação de poderes, que lhes não tinham dado, nem lhes compete dar.Sem dúvida, o sistema de concentração do poder político no governo central, como emanação da vontade pessoal do imperador, foi um fator decisivo para que se lograsse vencer a tendência separatista, manifestada em várias regiões do país na primeira metade do século XIX, bem como para a defesa da nação contra o inimigo externo.
Finda a guerra do Paraguai, porém, e com a crescente prosperidade da cultura do café na região sudeste, as oligarquias rurais passaram a contestar o poder central e a reivindicar maior autonomia de atuação local, tanto no terreno econômico, como no político.
É a partir desse momento que a idéia de democracia, ou de república democrática, vê-se recuperada como fórmula política e purgada de suas conotações negativas. Em vez de favorecer a anarquia, apregoa-se, ela assegura o estabelecimento da ordem e dá mais eficiência à ação dos Poderes Públicos no plano local.
A palavra democracia e expressões cognatas, como solidariedade democrática, liberdade democrática, princípios democráticos ou garantias democráticas, aparecem nada menos do que 28 vezes no Manifesto Republicano de 1870. Um dos seus tópicos é intitulado a verdade democrática.
Uma análise menos superficial do documento, no entanto, mostra que os próceres republicanos entendiam por democracia não exatamente o regime da soberania popular (expressão substituída, no Manifesto, por soberania nacional), mas sim a federação, tomado este conceito em sentido diametralmente oposto àquele com que fora empregado pelos constituintes de Filadélfia em 1787. Com efeito, federação, para os brasileiros, não queria dizer união de unidades políticas anteriormente soberanas, mas sim a descentralização de poderes num Estado unitário. O Manifesto, aliás, encerra-se, segundo o estilo farfalhante da época, "arvorando resolutamente a bandeira do partido republicano federativo", e não a bandeira do partido republicano democrático.
O que, na verdade, constituía a razão de ser desse movimento descentralizador, o documento de 1870 fez questão de deixar na sombra: nenhuma palavra disse sobre aquilo que a elite política da época denominava, eufemisticamente, "a questão do estado servil".
O partido republicano paulista, contudo, não pôde prosseguir por muito tempo nesse jogo político sem abrir as cartas. No manifesto lançado por ocasião do encerramento de seu congresso de 1873, os republicanos de São Paulo, evitando ladinamente uma tomada de posição sobre o mérito da questão, assim se pronunciaram:
Fique portanto bem firmado que o Partido Republicano, tal como consideramos, capaz de fazer a felicidade do Brasil, quanto a questão do estado servil, fita desassombrado o futuro, confiado na índole do povo e nos meios de educação, os quaes unidos ao todo harmonico de suas reformas e do seu modo de ser hão de facilitar-lhe a solução mais justa, mais pratica e moderada, sellada com o cunho da vontade nacional.Oito anos depois, ao discursar na Câmara dos Deputados, o republicano paulista Prudente de Morais, futuro Presidente da República, preferiu, em lugar de defender a introdução do regime republicano, propor a federalização do império, segundo o modelo alemão da época. Uma adequada distribuição de competências às províncias, argumentou, excluiria o perigo, que ele pressentia iminente, de que uma maioria de deputados, eleitos pelas províncias já desembaraçadas de escravos, impusesse a abolição da escravatura a todo o país38.
Parece que esta declaração seria sufficiente para apagar todas as duvidas.
A questão não nos pertence exclusivamente porque é social e não politica: está no dominio da opinião nacional e é de todos os partidos, e dos monarchistas mais do que nossa, porque compete aos que estão na posse do poder, ou aos que pretendem apanhalo amanhã, estabelecer os meios do seu desfecho pratico.
[...]
Entretanto como quer que seja, se o negocio fôr entregue a nossa deliberação, nós chegaremos a elle do seguinte modo:
1º - Em respeito ao princípio da união federativa cada provincia realizará a reforma de accôrdo com os seus interesses peculiares mais ou menos lentamente, conforme a maior ou menor facilidade na substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre.
2º - Em respeito aos direitos adquiridos e para conciliar a propriedade de facto com o principio da liberdade, a reforma se fará tendo por base a indemnização e o resgate.
Derrubada a monarquia, o Governo Provisório, em seu primeiro decreto de 15 de novembro de 1889, declarou proclamada "como forma de governo da Nação Brasileira a República Federativa", omitindo toda e qualquer referência à democracia.
Ora, enquanto o povo assistiu a tudo aquilo "bestializado", segundo a expressão famosa de Aristides Lobo, as oligarquias locais, aparentemente vitoriosas no seu primeiro apelo aos quartéis, tiveram que atravessar alguns anos de grave incerteza e apreensão, diante do caráter centralizador e autoritário dos primeiros governos militares. O episódio repetir-se-ia, três quartos de século depois, com a derrubada do governo João Goulart. Com a diferença de que, nessa quadra política, o regime militar não durou apenas cinco, mas vinte anos.
A Constituição de 1891 organizou, efetivamente, o Estado sob a forma federativa, como queriam os republicanos históricos. Mas no tocante à forma de governo, em lugar de seguir o alvitre parlamentarista do Manifesto de 187039, preferiu instituir, segundo o modelo norte-americano, o sistema presidencial de governo.
Ora, o que parecia, a princípio, a mera reprodução da fórmula ianque, acabou por revelar-se, com o tempo, o regresso integral à velha tradição luso-brasileira, com a concentração maciça de todos os poderes na pessoa do Chefe de Estado.
O processo de retorno à macrocefalia estatal não se deu, porém, de um só golpe e sim em duas etapas.
Durante a primeira delas, que perdurou até 1930, o Presidente da República atuou como árbitro supremo das rivalidades entre os Estados federados, assim como cada Chefe do Poder Executivo estadual incumbia-se de arbitrar os conflitos entre os senhores locais. A chamada "política dos Governadores" desdobrava-se, pois, num pacto coronelista em cada unidade da federação. Em ambas as situações, estabelecia-se uma espécie de contrato político bilateral. No plano da federação, o Presidente da República comprometia-se a dar mão forte aos governos estaduais, desde que estes sufragassem o candidato à sucessão presidencial indicado por ele próprio, Presidente. No plano estadual, os senhores rurais, atuando ou não, oficialmente, como coronéis da Guarda Nacional, faziam sempre dos candidatos governistas os vencedores dos pleitos eleitorais, obrigando-se os Governadores, em contrapartida, a garantir, mediante o concurso da Polícia, da Magistratura e do Ministério Público, a soberania de cada senhor no território de sua propriedade40.
Analisada, assim, em toda a sua crueza, é preciso reconhecer que a "democracia federativa" estabelecida pela República Velha estava longe de ser o "lamentável mal-entendido" de que falou Sérgio Buarque de Holanda. A elite política da época jamais se deixou iludir sobre o sentido real dos conceitos de soberania popular ou de direitos de cidadania. A retórica democrática, nos seus escritos e discursos, não passava de grosseiro disfarce ideológico.
Esse equilíbrio sinalagmático entre as oligarquias locais e o poder central, à revelia do povo, foi afinal vencido, não de dentro, mas de fora, com o advento da depressão econômica mundial desencadeada pela quebra da Bolsa de Nova York em 1929. O setor de exportação de produtos primários, no campo e nas cidades, duramente golpeado pela crise, retirou seu apoio a ambos os pactos, o estadual e o federal, e o sistema político veio abaixo.
Avatares da "democracia republicana" a partir de 1930
A marginalização, que se acreditava temporária, das classes dominantes ligadas à agricultura de exportação, deixou o Estado brasileiro como ator único na cena política. Ora, após a revolução de 1930, o aparelho estatal submeteu-se ao poder incontrastável do chefe do governo provisório, rapidamente legitimado como Presidente da República. Investido nessa posição, o novo Chefe de Estado pôs desde logo em marcha, com a política de industrialização substitutiva de importações, um processo de reestruturação das posições de mando na sociedade brasileira, ao criar de toutes pièces uma nova classe dominante: o grupo dos empresários industriais.
O restabelecimento do confronto político entre Estado e sociedade civil, ou, se se quiser, segundo os conceitos da análise gramsciana, entre o grupo hegemônico e a classe dominante, fez-se, porém, com um acréscimo de monta: o Chefe de Estado criou junto à nova classe industrial, como delegado pessoal dele, Presidente da República, o também novo setor do sindicalismo oficial.
O povo, todavia, continuava a ser o que sempre fora: o grande ausente. Sua entrada em cena só viria a dar-se com a queda do ditador em 1945, seguida da reconstitucionalização do Estado no ano seguinte. Iniciou-se, então, um novo jogo político, caracterizado agora pelo regular funcionamento daquilo que um largo setor da intelectualidade considerava e ainda considera como a quinta essência da democracia: separação oficial entre os Poderes do Estado, eleições livres e pluralidade partidária.
Não é difícil demonstrar que, em países afetados por uma abissal desigualdade, como é o caso do Brasil, o cumprimento formal desses rituais democráticos nada tem que ver com a efetiva soberania popular e o integral respeito aos direitos humanos.
Seria, contudo, um grave erro de análise pretender que o povo, quando chamado a eleger periodicamente seus representantes, figura como elemento meramente passivo no quadro geral da ação política. Da mesma forma que a dominação social de classe não significa, ipso facto, o controle absoluto do aparelho estatal, assim também a aliança da classe dominante com a elite dirigente no Estado tampouco significa uma manipulação mecânica do voto popular nas eleições. Por mais eficazes que sejam hoje os métodos de direção da opinião pública, subsiste sempre um grau mais ou menos elevado de incerteza nas decisões eleitorais. O sistema é, portanto, deficiente, quer para levar, por si só, o povo ao exercício do poder soberano em seu benefício, quer para garantir a plena satisfação dos interesses das classes dominantes.
Foi, sem dúvida, essa incerteza ínsita em todo regime de democracia formal que levou as classes dominantes nacionais, apoiadas pelo governo norte-americano, a suspender, a partir de 1964, o funcionamento do sistema. Ele só veio a ser recomposto, ao ser promulgada, em 1988, com a Constituição atualmente em vigor. Mas, então, o quadro mundial já se achava inteiramente modificado, com o rápido avanço do processo de globalização capitalista. Em todos os países da chamada periferia do globo, os dois agentes tradicionais da política - o Estado nacional e as classes dominantes internas - foram singularmente enfraquecidos, senão afastados de todo.
Restou, pois, o povo, em função do qual - não se esqueça - foi cunhada há vinte e cinco séculos, na Grécia, a denominação clássica do regime político. Saberá o povo, hoje, assumir o efetivo exercício daquele poder supremo sobre todos os cidadãos (to kurion tôn poleôn)41, que a teoria lhe reserva?
É o que se passa a conjecturar per summa capita, à guisa de conclusão.
Conclusão
Como vimos na primeira parte desta exposição, Aristóteles considerava a democracia como corrupção do regime político em que o conjunto dos cidadãos exerce a soberania em função do bem comum (pros to koinon supheron), regime esse que, à míngua de denominação específica, ele preferiu chamar pelo gênero "organização da cidade" (politéia). A corrupção democrática consistiria no exercício do poder supremo pela maioria pobre em seu exclusivo benefício.
Ora, a realização do bem comum do conjunto dos cidadãos supõe a eliminação da desigualdade social no tocante às condições de uma vida digna, entendida esta como o comum respeito ao conjunto dos direitos humanos, tanto os de natureza civil e política, como os de ordem econômica, social e cultural. Se a justiça é fundamentalmente uma relação de igualdade, a sua realização social corresponde, como é óbvio, à supressão de toda desigualdade preexistente.
Segue-se daí que a ação política dirigida a elevar as camadas mais carentes do povo, de forma a equipará-las, em matéria de direitos humanos, às classes mais ricas e poderosas, vai claramente no sentido do bem comum.
Na verdade, o critério mais adequado para a classificação dos regimes políticos não parece ser o do número de sujeitos que exercem a soberania, como pensaram os clássicos, mas sim o da finalidade objetiva com que esta é exercida. De acordo com este critério, a verdadeira essência da democracia consiste na ação prioritária dos Poderes Públicos em favor das classes pobres e dominadas, ou seja, a realização sistemática da justiça proporcional (to dikáion análogon), como a denominou Aristóteles42, na qual os que têm menos recebem mais e vice-versa.
Com efeito, numa sociedade marcada por profundas desigualdades de nível e de qualidade de vida, o conjunto dos mais pobres não se acha em condição de exercer autonomamente os seus direitos de cidadania. No caso brasileiro, essa situação é ainda mais grave, em razão da tradicional carência de coesão social no seio do povo43, oriunda, como vimos, da persistente dominação senhorial, desde os tempos medievais em Portugal. As classes social e economicamente dominadas encontram-se numa situação semelhante à das pessoas juridicamente incapazes para o exercício dos atos da vida civil: elas carecem de proteção legal, pela designação de pessoas ou órgãos incumbidos de exercerem, em seu nome e benefício, os poderes inerentes aos seus direitos subjetivos.
Tal significa dizer que a ação política prioritária em favor dos fracos e pobres, numa autêntica democracia, supõe a existência de um Estado forte e bem organizado, constitucionalmente competente para impor a sua vontade às classes dominantes no interior do país e às potências dominantes no plano internacional. Ou seja, exatamente o oposto do Estado subserviente, engendrado pelo atual capitalismo globalizante.
Ao contrário do que postula uma certa análise marxista, como assinalado acima, o poder das classes dominantes nunca chega a anular completamente a autonomia dos órgãos estatais. E é bem por isso que, em sua maior parte, os golpes de Estado contemporâneos têm sido fomentados pelas classes ou grupos economicamente fortes, com o oportuno auxílio dos agentes do poder capitalista internacional.
Todavia, como ninguém ignora, o fortalecimento imprudente do poder estatal acaba fatalmente por suscitar o despotismo, com a supressão das liberdades civis e políticas.
Uma solução para esse dilema poderia ser encontrada a partir do princípio fundamental de que a função precípua do Estado, numa democracia, consiste no amparo econômico e na formação cívica das classes e grupos mais pobres do país, a fim de que eles se tornem capazes de exercer, de modo pleno e autônomo, a sua cidadania.
Essa ação pedagógica dos governantes, tão enfatizada por Aristóteles no último livro da Política, obedeceria a duas diretrizes.
De um lado, a ampliação da competência dos órgãos estatais, cujo preenchimento não está sujeito à influência direta das classes dominantes, como o Judiciário e o Ministério Público, para que eles imponham ao Executivo e ao Legislativo a elaboração e aplicação de políticas públicas destinadas à realização dos direitos econômicos, sociais e culturais.
De outro lado, a criação de instâncias de participação popular obrigatória no funcionamento do Estado, em todos os níveis, fundadas logicamente no pressuposto da prévia aprovação por referendo da Constituição e suas emendas. São exemplos dessa participação ativa dos cidadãos no exercício do governo a autorização popular para a tomada de decisões políticas de longo e profundo alcance, como a celebração de tratados internacionais instituidores de zonas de livre comércio ou mercado comum; a desoligarquização do sistema eleitoral, mediante a aprovação, por referendo popular, das suas linhas diretrizes; o controle social dos meios de comunicação de massa; a elaboração conjunta de orçamentos com os órgãos de representação popular; a ampla legitimação de agir em juízo atribuída a associações civis, na defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais; o reforço da ação popular cível e a reintrodução da ação popular criminal44; a dissolução por sufrágio popular de assembléias parlamentares, ou a destituição pelo mesmo mecanismo de chefes do Poder Executivo.
Em suma, a civilização humanista com que sonhamos não pode contentar-se com o medíocre programa de fazer da democracia o menos mau dos regimes políticos. Seria um escárnio se os espíritos autenticamente democratas se conformassem, hoje, com a supremacia mundial do sistema capitalista, reservando aos Estados nacionais e às organizações internacionais humanitárias, tão só, a tarefa ancilar de pensar as chagas que esse sistema de exploração econômica abriu na humanidade. A missão política que nos incumbe é bem outra, muito mais exaltante: trata-se de construir um mundo novo, em que todos os seres humanos, em qualquer parte do globo terrestre em que se encontrem, possam, enfim, nascer e viver, livres e iguais em dignidade e direitos.
Notas
1 Montesquieu, De l'esprit des lois, livro VIII, cap. 2.
2 James Madison, The Federalist, nº 10.
3 Human Development Report 2002 - Deepening Democracy in a Fragmented World, Oxford, Oxford University Press, p. 1.
4 Platão, República, livro I, 338 d.
5 Platão, O Político, 302 c e ss.; Aristóteles, A Política, 1279 a, 25 e ss.
6 Idem, 1279 b, 11 e ss. No mesmo sentido, sempre na Política, 1281 a, 12-19; 1289 b, 29-32; 1290 a, 30; 1290 b, 20; 1291 b, 2-13; 1296 a, 22-32; 1296 b, 24-34; 1315 a, 31-33; 1317 b, 2-10; 1318 a, 31-32.
7 Aristóteles, A Política, 1289 a, 40.
8 Xenofonte, Memoriabilia, IV, 1, 3.
9 Idem, 1289 b, 5.
10 Idem, 1293 b, 34-41.
11 Idem, 1290 b, 1.
12 Guy Fourquin, Senhorio e Feudalidade na Idade Média, Lisboa, Edições 70, p. 12.
13 Philippe de Beaumanoir, Coutumes de Beauvaisis, ed. por Am. Salmon, t. 2º, Paris, Alphonse Picard et Fils, 1900, nº 1043.
14 Cf. Marc Bloch, A Sociedade Feudal, 2ª ed., Lisboa, Edições 70, p. 254.
15 Vejam-se as judiciosas considerações feitas pelo grande historiador português José Mattoso, Identificação de um País - Ensaio sobre as origens de Portugal, t. I, 5ª ed., Lisboa, Referência/Editorial Estampa, pp. 224 e ss.
16 Cf. Da existencia ou não existencia do feudalismo em Portugal, in Opúsculos, tomo V, Controvérsias e estudos históricos, tomo II, 4ª ed., Lisboa Rio de Janeiro, Bertrand/Francisco Alves, pp. 189 e ss.
17 Cf. Michel I. Rostovtseff, Histoire économique et sociale de l'empire romain, Paris, Robert Laffont, 1988, pp. 165-166.
18 José Mattoso, op. cit., t. I, pp. 260-261.
19 J. Lúcio de Azevedo, Épocas de Portugal Económico - Esboços de história, 4ª ed., Lisboa, Livraria Clássica Editora, p. 18.
20 Idem, p. 20.
21 Idem, p. 32.
22 Idem, p. 165.
23 Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, 5ª ed., Livraria José Olympio, Rio de Janeiro, p. 11.
24 Cf. J. Lúcio de Azevedo, op. cit., pp. 70 e ss.
25 Idem, p. 74.
26 É a tese sustentada por Luiz Felipe de Alencastro, em O trato dos viventes - formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII, São Paulo, Companhia das Letras.
27 J. Lúcio de Azevedo, op. cit., p. 82.
28 Citado por C. R. Boxer, The Golden Age of Brazil, 1695 -1750, University of California Press, 1962, p. 393, nota 4 ao capítulo V.
29 Sermão da Visitação de Nossa Senhora, in Sermões, Porto, Lello & Irmãos, 1951, vol. IX, p. 346.
30 Cf. C. R. Boxer, The Portuguese Seaborne Empire 1415-1825, Carcanet, em associação com a Fundação Caloute Gulbenkian e a Comissão Os Descobrimentos, Lisboa, 1991, p. 328.
31 Sérgio Buarque de Holanda, op. cit., p. 119.
32 Aléxis de Tocqueville, L'Ancien Régime et la Révolution, Paris, Gallimard, 1952, p. 286.
33 A Guarda Nacional, criada por lei de 18 de agosto de 1831 como auxiliar do Exército, foi uma revivescência da antiga corporação das ordenanças, existente durante a época colonial. Todos os cidadãos brasileiros maiores de dezoito anos eram obrigatoriamente inscritos na Guarda Nacional. A corporação tornou-se, no final do império, meramente decorativa ou honorífica. Sobre o assunto, cf. Victor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto, 3ª ed., 1976, pp. 211 e ss.
34 Raimundo Faoro, Os Donos do Poder - A formação do patronato político brasileiro, 3ª ed., São Paulo, Globo.
35 José Murilo de Carvalho, I - A Construção da Ordem, II - Teatro de Sombras, 2ª ed., Rio de Janeiro, UFRJ/Relume Dumará.
36 Joaquim de Nabuco, Um Estadista do Império, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, Biblioteca Luso-Brasileira, Série Brasileira, p. 239.
37 "La situation fonctionnelle de cette population peut se résumer d'un mot: le Brésil n'a pas de peuple". Apud Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, 34ª ed., Rio de Janeiro e São Paulo, Record, p. 35.
38 Cf. Robert Conrad, Os últimos anos da escravatura no Brasil, 2ª ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, p. 267.
39 "A soberania nacional só póde existir, só póde ser reconhecida e praticada em uma nação cujo parlamento, eleito pela participação de todos os cidadãos, tenha a suprema direcção e pronuncie a ultima palavra nos publicos negocios."
40 Veja-se a monografia, ainda insuperada, de Victor Nunes Leal, citada na nota 29.
41 Aristóteles, A Política 1279 a, 27-28.
42 Ética a Nicômaco 1131 a, 29-30.
43 Cf. Sérgio Buarque de Holanda, op. cit., cap. I; Caio Prado Jr., Formação do Brasil Contemporâneo, 16ª ed., São Paulo, Brasiliense, pp. 341 e ss.
44 Deve-se lembrar que a Carta Política de 1824 admitia que "por suborno, peita, peculato e concussão", pudesse ser intentada contra os juízes ação popular, "pelo próprio queixoso, ou por qualquer do Povo" (art. 157).
Fábio Konder Comparato é professor-titular da Faculdade de Direito da USP. Doutor em Direito da Universidade de Paris e Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142003000100015&lang=pt
quarta-feira, 13 de junho de 2012
Contraponto Noticias - Alexandre Bahia; A questão da Homofobia - com José Luiz Quadros
Publicado em 13/06/2012 por joseluizquadros
Entrevista com o professor Alexandre Bahia sobre a questão da homofobia e as mudanças legislativas e decisões judiciais no Brasil e no direito comparado.
http://www.youtube.com/watch?v=LyYCDIJ31gk&feature=youtu.be
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