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terça-feira, 19 de abril de 2016

Presidencialismo potencializa conflitos entre poderes, diz professor da USP



Por Sérgio Rodas


O sistema presidencialista potencializa os bloqueios institucionais, que ocorrem quando um conflito entre os poderes acaba por paralisar o país. Dessa forma, as soluções para contornar essa barreira acabam tendo constitucionalidade discutível, como aquelas baseadas em um estado de necessidade, ou representam uma quebra com as regras da Carta Magna, como golpes ou revoluções.

Essa é a visão do professor emérito de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo Manoel Gonçalves Ferreira Filho, manifestada no IV Seminário Luso-Brasileiro de Direito, que ocorreu no fim de março em Lisboa.

Segundo o jurista, o problema é inerente à separação dos poderes e já havia sido previsto por pensadores como Montesquieu e Benjamin Constant. E isso é ainda mais ampliado no moderno Estado de Bem-Estar Social, que tem obrigação de prover, por exemplo, saúde, educação e segurança aos cidadãos.

Quem deve assegurar tais direitos em garantia é o Executivo. Contudo, suas ações devem respeitar as leis, o que confere ao Judiciário e, em maior grau, ao Legislativo, o poder de bloquear a atuação governamental, apontou Ferreira Filho. A situação se complica ainda mais no presidencialismo, pelo fato de o Executivo ter que obter e cativar maioria parlamentar, afirmou o professor, notando que um país parlamentarista resolve o bloqueio com a dissolução do governo e a convocação de novas eleições.

Conforme explicou o professor emérito da USP, o bloqueio institucional pode ocorrer em situações de emergência (que ameaçam o funcionamento do Estado, como guerras ou invasões) ou em crises econômicas. No primeiro caso, as constituições modernas preveem saídas como os estados de emergência e de sítio.

Porém, a segunda hipótese, que é consideravelmente mais frequente, não possui respostas constitucionais satisfatórias, destacou Ferreira Filho. Por isso, diversos países apelaram a soluções de legalidade duvidosa no século XX, como o New Deal de Franklin Roosevelt, que ajudou a tirar os EUA da Grande Depressão, mas foi declarado inconstitucional oito vezes entre 1934 e 1935.

Na opinião do constitucionalista, a dificuldade de lidar com crises econômicas acaba trazendo à tona uma visão distorcida e idealizada de regimes ditatoriais: “Em casos mais agudos, elas [crises econômicas] descambam em crises sociais. E, somadas a esta, geram perda de legitimidade do governo e, o que é pior, a descrença na democracia. Ensejam a admiração pelo autoritarismo eficiente. São ocasião senão causa de desordens, insurreições, golpes de Estado e revoluções”.

Porém, as soluções para superar essas crises no presidencialismo frequentemente violam a Constituição, ressalta o professor. A saída mais comum no Brasil é o impeachment, que é, a seu ver, um processo político que deve respeitar o devido processo legal.

O impeachment, entretanto, não é ágil o suficiente para solucionar tais momentos de instabilidade de forma eficaz. Por isso, Manoel Gonçalves Ferreira Filho defende a reforma do sistema político-eleitoral para inserir mecanismos mais aptos a resolver esses problemas, como o referendo revogatório ou a possibilidade de serem convocadas novas eleições.



Sérgio Rodas é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 18 de abril de 2016, 19h13

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Juízes não são combatentes da corrupção, mas garantes da não corrupção





Por José Carlos Garcia


O mais recente filme de Steven Spielberg, Ponte dos espiões (Bridge of spies, EUA, 2015), situa-se no auge da Guerra Fria, nos fins dos anos 1950, e na intensa polarização global daí decorrente: espião soviético atuando nos EUA (Mark Rylance, no papel que lhe deu o Oscar de melhor ator coadjuvante) é preso pelo FBI, a Polícia Federal americana, e o advogado de seguros James Donovan (interpretado por Tom Hanks) é indicado para defendê-lo.

A evolução dos fatos demonstra que o que o aparato judicial estado-unidense realmente desejava era apenas conferir um verniz de legalidade ao procedimento, assegurando formalmente ao acusado “uma defesa tecnicamente adequada”[1]. Ocorre que Donovan não aceita desempenhar este papel — em homenagem a suas convicções e a seus compromissos com a justiça e o sistema legal, pretende realizar uma defesa efetiva do acusado, não lhe importando se as gravíssimas acusações, de repassar segredos nucleares norte-americanos à União Soviética, eram ou não verdadeiras.

Imbuído deste espírito, questiona a legalidade da forma de cumprimento de mandados judiciais, bem como das provas deles advindas, expondo-se à expiação pública diante do acachapante consenso de que o espião era o inimigo e precisava ser punido, não importavam as provas nem como fossem obtidas. Decidido a salvar seu cliente da pena capital, provoca a Suprema Corte dos Estados Unidos, e a abertura de seu discurso de defesa perante aquele Tribunal é extremamente significativo do contexto geral do filme:

Senhor ministro presidente, e se a Corte me permite, a Guerra Fria não é apenas uma frase. Não é apenas uma figura de linguagem. Verdadeiramente, uma batalha está sendo travada entre duas visões concorrentes do mundo. Eu afirmo que Rudolf Ivanovich Abel, coronel Abel, como era chamado até mesmo pelos homens que o prenderam, é nosso inimigo nessa batalha. Ele foi tratado como um combatente nesta guerra até que já não fosse conveniente ao nosso governo tratá-lo assim. Portanto, a ele não foi dada a proteção que damos aos nossos próprios cidadãos. Ele foi submetido a um tratamento que, ainda que apropriado para um inimigo suspeito, não era apropriado para um criminoso suspeito. Eu conheço este homem. Se a acusação for verdadeira, ele serve a uma potência estrangeira, mas serve fielmente. Se ele é um soldado no exército inimigo, ele é um bom soldado. Ele não fugiu do campo de batalha para salvar a si mesmo. Ele se recusou a servir a seu captor. Ele se recusou a trair a sua causa. Ele se recusou a tomar o caminho do covarde. O covarde deve abandonar sua dignidade antes de abandonar o campo de batalha. Isso, Rudolf Abel nunca vai fazer. Não deveríamos, dando-lhe o benefício pleno dos direitos do sistema que define o nosso governo, mostrar a este homem o que nós somos? Quem nós somos? Isso não é a maior arma que temos nesta Guerra Fria? Defenderemos nossa causa menos resolutamente do que ele a sua?[2]

Nos tensos dias que correm em nosso país, a opinião pública parece dividir-se entre "amigos" e "inimigos", no clássico binômio de Carl Schmitt[3]. Engalfinhados em aguerrido combate político desde as eleições presidenciais de 2014, o partidário de cada facção tem a certeza da razão, e da ausência total de razão de seu oponente. Não vou repisar o perigo de paixões políticas fomentadas ao ponto do que já se começa a ver nas ruas: agressões a pessoas e a sedes de entidades e partidos. Em um quadro tão tenso e grave, espera-se do Judiciário o papel de apaziguador, de apelo à razão e ao entendimento, à observância à Constituição e às leis, o que não tem escapado sequer a ministros do STF[4].

O que aqui me importa, todavia, são os reflexos deste clima de ruptura de pontes entre pessoas e ideias no plano institucional, em especial no sistema legal do país, pois sem tais pontes é impossível dotar os conflitos políticos de um caráter construtivo e assim fugir à maldição schmittiana[5].

Diz-se que nosso sistema legal é injusto e desigual, que há garantias demais para os de cima enquanto aos de baixo sobram violações sistemáticas aos direitos mais elementares, e que os grandes corruptos e corruptores jamais seriam tocados. A operação "lava jato", dizem[6], é o ponto de inflexão deste sistema desigual, o momento em que ele passa a atingir os privilegiados de sempre e a desbaratar esquemas de corrupção no centro do poder político e econômico (altos mandatários do Executivo e do Legislativo, diretores de empresas estatais e privadas).

São muito graves as acusações que circulam pela mídia e pela sociedade, um pouco reproduzindo o que muitos já suspeitavam ou ouviam falar sobre financiamentos de campanha, desvios de recursos públicos ou pagamento de propinas para viabilização de polpudos contratos (em partidos do governo e da oposição, no atual e em anteriores governos), e não se duvida da necessidade de enfrentar tais questões e tornar efetivo o sistema legal. O grande problema reside no clima de agudo tensionamento gerado por parte da mídia, certos partidos e parcela da opinião pública no qual estabelecer dúvidas ou questionamentos sobre a validade constitucional ou legal de certos procedimentos equivale a defender a corrupção ou a se opor às investigações, em afloramento de verdadeiro fascismo social que visa à uniformização da opinião e ao silenciamento da crítica.

Por fascismo social quero dizer o que vários autores observam como o retorno ou a permanência de formas fascistas de socialização ou controle, mesmo sob formas democráticas. Para Agamben, por exemplo, elementos constitutivos do fascismo têm funcionado intensamente em regimes formalmente democráticos como técnicas regulares de governo, suspendendo localizadamente no tempo ou no espaço, ou para certas pessoas, as garantias próprias de um regime constitucional de tipo liberal (presunção de inocência, direito de defesa, contraditório, ônus da prova para a acusação, direito à intimidade etc.)[7]. Boaventura de Souza Santos situa a emergência do fascismo social na crise contemporânea do contrato social, em que aqueles direitos fundamentais, antes tidos por inalienáveis, passam a ser relativizados e precarizados a partir de relações sociais não diretamente dependentes do fascismo político:

Não se trata do regresso ao fascismo dos anos 30 e 40. Ao contrário deste, não é um regime político, mas social e civilizacional. Em vez de sacrificar a democracia às exigências do capitalismo, promove-a até não ser necessário nem conveniente sacrificá-la para promover o capitalismo. Trata-se de um fascismo pluralista, forma que nunca existiu[8].

A cobertura da grande mídia sobre a operação "lava jato" parece ensejar este clima de patrulhamento da opinião, o que se conforma à aguda polarização política em curso no país. A pretexto de informar o público, investigações complexas e temas jurídicos caros à democracia são espetacularizados e simplificados quase ao ponto de uma votação em reality show, negligenciando-se o debate sobre as consequências institucionais que alguns procedimentos possam ter em nosso futuro.

Enquanto alguns juristas celebram o uso da delação premiada após a Lei 12.850/13[9], outros questionam se tais delações, sucedendo-se à determinação de prisões preventivas generalizadas, atenderiam ao requisito de voluntariedade[10] própria do instituto[11]. O uso indiscriminado de ordens de condução coercitiva sem prévio esgotamento da tentativa de intimação para comparecimento de acusados e investigados, para tantos outros críticos, serviria apenas para constranger estas pessoas e expô-las na mídia, em claro desvio de finalidade e com o fim de mobilizar a opinião pública em favor das investigações e contra os acusados[12]. A prisão de um senador da República em pleno exercício de seu mandato, mesmo determinada pela Suprema Corte, também indicaria uma vulneração das inviolabilidades dos parlamentares, tão relevantes que se mantêm até na vigência do estado de sítio (art. 53, §§ 2.º e 8.º, da Constituição) — tanto que o maior esforço argumentativo daquele Tribunal ao apreciar a medida foi para a caracterização do flagrante em prisão por mandado, algo nada evidente ou usual na prática forense[13].

O vazamento seletivo de provas e teor de escutas telefônicas em processos em segredo de justiça, fora de seus contextos e antes mesmo que a defesa pudesse acessá-las, ou até de escutas manifestamente inúteis à investigação (como conversas entre investigados e seus familiares), também tenderia objetivamente a subverter o curso do processo penal e a transferir, na prática, o julgamento para a opinião pública, facilitando uma pré-condenação social antes mesmo da finalização do processo judicial[14]; pior, tais vazamentos, que ocorrem há anos e antes eram muito criticados[15], hoje se mostram naturalizados, ao que parece sequer ensejando investigação, vez que de crime se trata (art. 10 da Lei 9.296/96). Finalmente, em sucessivas delações, segundo a imprensa, há menções a nomes de destaque da oposição, implicando indícios de cometimento de crimes tão graves e similares àqueles que vem sendo imputados a membros do governo ou de partidos de sua base, sem que estas numerosas menções tenham deflagrado, ao que se sabe, investigações de mesma intensidade e publicidade e sem que a opinião pública seja adequadamente informada dos motivos desta divergência de tratamento aparentemente incompatível com o elementar princípio republicano da igualdade de todos perante a lei (art. 5.º da Constituição).

A todas estas críticas e questionamentos, tribunais, juízes e boa parte de suas associações parecem rebater como infundados, extemporâneos, eventualmente como partidarismo ou ataques à independência do Judiciário. O espaço basilar do debate, da dúvida, da crítica e do questionamento, inerentes a qualquer democracia viva, vai aos poucos cedendo terreno ao que parece uma pura necessidade de condenação, como no caso do espião russo do filme de Spielberg.

Compreende-se que uma população cansada de saques à coisa pública foque mais em resultados do que em meios, mas a juristas, e em especial aos juízes, não é dado este conforto catártico: sua missão institucional e sua única razão de ser em uma democracia é a observância rigorosa do procedimento e o uso criterioso e constitucional dos meios. Juízes não são necessários para punir, como o demonstram quaisquer ditaduras, à direita ou à esquerda — carrascos e torturadores são suficientes. Juízes só são indispensáveis para controlar o uso dos meios, a justiça e a proporcionalidade da punição. Por isso, juízes não podem ser combatentes contra a corrupção ou outros crimes e sim os garantes da não corrupção do próprio sistema legal; somente serão comprometidos com a punição justa, equitativa, adequada, decorrente do devido processo legal, com todas as garantias do contraditório e da ampla defesa e no qual o ônus da prova é exclusivo da acusação. Em qualquer outra circunstância, com quaisquer outros compromissos ou tendo em conta quaisquer outros valores, por mais elevados que sejam, principia o processo de corrupção do sistema judicial, contaminado pela paixão partidária, pela vocalização midiática, pelos prejulgamentos fora dos autos ou pelas provas não legalmente válidas.

A desigualdade de tratamento entre ricos poderosos e pobres desempoderados deveria nos fazer gerar políticas de ampliação dos direitos embaixo, não de sua vulneração em cima, sob pena de legitimarmos os desmandos e a arbitrariedade de forma generalizada. Curiosamente, em vez de um amplo engajamento nacional para revermos, por exemplo, um sistema prisional e punitivo visivelmente ineficiente, que nem pune criminosos perigosos seriamente (às vezes permitindo que comandem seus negócios escusos de dentro das prisões), nem respeita os direitos humanos de apenados ou preserva a segurança de quem está fora do sistema (vejam-se os casos reiterados de rebeliões e fugas), vemos a inversão do discurso para validar uma certa “flexibilização” da legalidade para todos[16].

Quando autoridades judiciais, policiais ou do Ministério Público, que deveriam zelar pela legalidade de seus procedimentos, empenham-se na utilização de práticas pouco usuais e de controvertida legalidade (ainda que ao final possam ser consideradas legais) e as veem criticadas por juristas de variados matizes e amplos setores sociais, têm a obrigação institucional e moral de desincumbirem-se de seu elevado ônus argumentativo e não apenas fundamentar formalmente suas decisões, para sustentá-las perante o crivo da sociedade. Parafraseando a famosa e machista observação de César acerca de sua mulher, não basta que a Justiça seja correta, é preciso que pareça correta. É neste jogo de expectativas e realidades que se corporifica a democracia, não em discursos vagos e apelos formais à seriedade e à independência de seus atores.

De fato, a democracia só é realmente testada em seus momentos difíceis, nas crises severas e nas grandes polarizações políticas e sociais. Como o personagem de Tom Hanks em plena Guerra Fria, que não se permite negar ao réu uma defesa digna, a competent representation em toda a sua extensão, assim a luta contra a corrupção somente pode se dar com o compromisso inequívoco dos agentes públicos, especialmente dos juízes e suas associações de classe, com a preservação das garantias fundamentais do processo, sob pena de, quebrando-se as pontes entre cidadãos e cidadãs com crenças distintas, eventual e momentaneamente opostas, confundirem-se as pontes entre as várias corrupções possíveis das instituições, tanto as derivadas do desvio de verba e da propina, quanto as derivadas de sua ação fora ou à margem de um padrão legal imediatamente reconhecível. Ou não será, ainda que de outra forma, também corrupta (no sentido literal de corrompida, alterada ou adulterada, inapta para os fins a que se destina) uma instituição que atropela a legalidade e a Constituição para punir criminosos? E não se permitirá tal corrupção a instituição que se negar à dúvida e à permanente crítica sobre a legalidade e validade de seus próprios atos? O que então diferenciará moralmente criminosos, perseguidores e julgadores, se a nenhum deles controla a lei?

Para instituições verdadeiramente comprometidas com a democracia, não basta a aparência formal de legalidade, é preciso que os princípios constitucionais protegidos por esta aparência tenham efetivamente se concretizado em cada investigação e em cada processo criminal. Menos que isso é ser previamente derrotado em face do crime ou da corrupção, é também corromper-se e abrir a porta ao arbítrio dos pretensos agentes da lei. Afinal, como diria o personagem de Tom Hanks, poderíamos nós defender nossa causa menos resolutamente ou por meios de questionável legalidade? Ou escolher quais, dentre os ditos criminosos, iremos perseguir, em favor de outros? Ou deveríamos, ao invés, reconhecer a todos o benefício pleno dos direitos do sistema que define, ou deveria definir, a nossa forma de governo?

Tal é a escolha que devemos fazer agora, não amanhã, não depois, mas aqui e agora. Ao darmos substância a estes direitos, ou ao negá-los, qualquer que seja o caminho, diremos claramente o que somos, quem somos e quem queremos ser.



[1] De acordo com a American Bar Association, uma representação competente (competent representation) “exige conhecimento legal, perícia, rigor e a preparação razoavelmente necessária para a representação” (Fonte: http://tinyurl.com/AmericanBarCompRepresent. Acesso em 22/03/2016).


[2] Fonte: http://rationalconsent.com/2015/11/23/a-relevant-speech-from-bridge-of-spies/. Acesso em 21/03/2016 . Traduzido pelo autor.


[3] Para Schmitt, a distinção que definiria conceitualmente o político seria aquela entre amigo e inimigo, inimigo que deve ser entendido como o outro, o estrangeiro, o hostis (SCHMITT, Carl, O conceito de político. Petrópolis: Vozes, 1992), enquanto que a luta entre amigo e inimigo deve ser entendida em seu sentido físico: ela não “significa aqui concorrência, nem a luta ‘puramente espiritual’ da discussão, nem o ‘combate’ simbólico (...). Os conceitos de amigo, inimigo e luta adquirem seu real sentido pelo fato de terem e manterem primordialmente uma relação com a possibilidade real de aniquilamento físico.” (Op. cit., pp. 58-9).


[4] Por exemplo, as falas do ministro Teori Zavascki e Marco Aurélio Mello (Fontes: http://tinyurl.com/ZHMinTeori e http://tinyurl.com/GloboMinMarcoAurelio, acessos em 22/03/2016).


[5] Por exemplo, Maquiavel remete o fundamento da defesa da liberdade para o conflito político, sendo a habilidade do governo em equilibrar forças políticas distintas ou contrapostas uma das condições para a elaboração de boas leis. Vide MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. São Paulo: Martins Fontes, 2007; HELD, David. Models of democracy. Stanford: Stanford University Press, 1996, pp. 36-69, pp. 52-53; SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. 1.ª reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, pp. 201-202. Menos pretensiosamente, nosso artigo GARCIA, José Carlos. “Conflito, Democracia e o Renascimento Italiano: Marsílio e Maquiavel”. Revista da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, v. 19, p. 205-212, 2012.


[6] Por exemplo, http://www.blogdokennedy.com.br/lava-jato-e-ponto-de-inflexao-no-combate-a-impunidade/; http://tinyurl.com/bbcjeitinho; http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/o-direito-de-defesa-nao-pode-ser-infinito-diz-procurador-da-lava-jato. Acessados em 25/03/2016.


[7] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 13.


[8] SANTOS, Boaventura de Souza. “Os fascismos sociais”. 07/11/2010. Disponível em https://norbertobobbio.wordpress.com/2010/11/07/os-fascismos-sociais/. Acessado em 25/03/2016.


[9] Mesmo prevista no Brasil desde a Lei 8.072/90, a ampla utilização da delação premiada passou a ocorrer após a vigência da Lei 12.850/13, quando os benefícios oferecidos a quem delatasse passaram a ser mais atrativos e a regulamentação de seu procedimento, mais abrangente.


[10] Lei 12.850/13, art. 4o:“O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal”, desde que dessa colaboração advenham um ou mais dos resultados lá elencados. Grifei.


[11] Apenas exemplificativamente, http://www.cartacapital.com.br/politica/fundamental-para-a-lava-jato-delacao-premiada-e-alvo-de-controversia-no-brasil-5914.html, http://tinyurl.com/FSPCelsoAntonio ou http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2015/09/14/internas_polbraeco,498469/juristas-e-stf-discordam-com-relacao-a-delacao-premiada.shtml, todos acessados em 25/03/2016.


[12] Por exemplo, http://www.valor.com.br/politica/4467328/depoimento-forcado-de-lula-causa-controversia-entre-juristas ou http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2016-03/conducao-coercitiva-de-lula-provoca-debate-sobre-coercao-de-depoentes, acessos em 25/03/2016.


[13] O que se fez pelo reconhecimento de continuidade delitiva. Para o voto do relator, Ministro Teori Zavascki: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=304788. Acessado em 25/03/2016.


[14] Exemplificativamente, http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/02/1737807-lava-jato-chega-aos-dois-anos-sob-controversia.shtml, acessado em 25/03/2016.


[15] Por exemplo, em episódio que envolveu o nome do ministro Gilmar Mendes, conforme http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u92777.shtml, acessado em 25/03/2016.


[16] Sobre as condições carcerárias no Brasil, http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/cidadania-nos-presidios, ou http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/61762-cnj-divulga-dados-sobre-nova-populacao-carceraria-brasileira, acessos em 22/03/2016.



José Carlos Garcia Doutor em Direito Constitucional pela PUC Rio. Juiz Federal no Rio de Janeiro desde 1996. Foi vice-presidente da 2ª Região da Associação dos Juízes Federais do Brasil, entre 2004 a 2006.

Revista Consultor Jurídico, 5 de abril de 2016, 7h36

segunda-feira, 21 de março de 2016

Possibilidades e limites ao uso do Facebook pelos juízes




Por Vladimir Passos de Freitas


A decisão do presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, suspendendo os efeitos de decisão de juiz federal do Distrito Federal que proferiu uma liminar que impedia Lula de assumir a Casa Civil, colocou em pauta assunto pouco tratado pelos profissionais do Direito, ou seja, a participação de magistrados na rede social Facebook.

Aqui não interessa, não se tratará e nem se dará qualquer opinião sobre o caso da notícia. Interessa, única e exclusivamente, analisar a possibilidade, reflexos e possíveis limites da atuação dos magistrados na referida rede social.

O Facebook foi criado por Mark Zuckerberg, em 2004, e no Brasil alcançou repercussão enorme, sendo o terceiro país do mundo em número de usuários.

Entre os magistrados de todas as instâncias há certa cautela no seu uso, vez que expõe publicamente a vida privada do usuário. Entendem alguns que isto poder trazer resultados negativos ao exercício da profissão e outros, que traz certa dose de risco pessoal.

Não há qualquer regulamentação sobre o assunto, seja do Conselho Nacional de Justiça, de outros Conselhos ou dos Tribunais de várias instâncias. Em outros países a situação varia, havendo os que permitem (como em Portugal) e os que proíbem (como na Índia).

O fato é que no Brasil não se priva e grande parte de magistrados brasileiros, utiliza com prazer esta rede social, principalmente os mais jovens. E nela colocam, ora mais, ora menos, notícias que variam conforme a personalidade de cada um. Esta exposição, que pode parecer indevida a um magistrado sessentão, é absolutamente aceita e utilizada por um juiz que não chegou aos 30 anos e que não abre mão de conviver socialmente, tal qual seus amigos de profissões diversas.

Registre-se que alguns participam de forma cautelosa, por exemplo, invertendo o nome, colocando um apelido ou mantendo um número menor e selecionado de amigos. Há, também, os que não se identificam como juízes, não colocam dados pessoais.

Mas, se a possibilidade é certa, cumpre examinar os resultados.

O juiz exerce uma função difícil, com peculiaridades específicas. Decide sobre assuntos que afetam diretamente a vida das pessoas, como a guarda de filhos, o patrimônio e a liberdade. Normal, assim, que por vezes suas determinações suscitem inconformismo e, eventualmente, ódio.

Tal fato leva a que suas vidas sejam constantemente esmiuçadas e fiscalizadas, impondo-lhes uma conduta diferente dos demais operadores jurídicos. Entre as regras que, goste ou não, são-lhes cobradas, muitas estão normatizadas (como na Lei Orgânica da Magistratura Nacional) e outras são morais, não escritas.

Em extenso rol de conselhos a estes profissionais, Sidnei Beneti, com a experiência de quem foi presidente da União Internacional de Magistrados, critica a “Conduta pessoal desregrada, inclusive a ausência de recato em assuntos de intimidade” (Da conduta do juiz, Saraiva, p. 175).

Assim, diante desta nova realidade, qual a forma e os efeitos do uso do Facebook?

O primeiro passo é saber que os interessados em uma decisão judicial procurarão saber quem é a pessoa que vai decidir suas vidas. E hoje tudo está no mundo virtual, à disposição de quem, por um simples toque, busque o acesso. A pesquisa sobre a vida pessoal do julgador poderá descobrir sua ideologia, preferências, amizades e, a partir de tais dados, exercer algum tipo de influência para conseguir uma decisão favorável.

Até aí nada de mais. Se no Facebook é possível constatar que um juiz gosta de música sertaneja ou que torce por determinado time de futebol, estará dentro da normalidade externar, em visita ou ao início da audiência, opinião a respeito, buscando estabelecer sintonia.

Porém, a exposição excessiva poderá gerar reações menos ingênuas. Se o magistrado posta, seguidamente, notícias contra a ação de movimentos sociais e critica tais condutas, arrisca-se a ver-se submetido a uma exceção de suspeição na primeira ação em que se discuta qualquer tema relacionado com tal tipo de atividade. Com grande possibilidade de ser afastado do caso.

Pode acontecer, também, que a reação seja tola. Houve caso em que desembargador sofreu exceção de suspeição porque é amigo no Facebook do juiz que prolatou a sentença. Óbvio que foi rejeitada de plano, pois este tipo de relacionamento não gera compromisso de opinião.

As relações de amizades virtuais também merecem cautela. O juiz não deve procurar ser celebridade, colecionar cinco mil amigos no Facebook (máximo suportado pelo sistema) e assumir liderança fora da magistratura. Augusto Morello observa que a discrição se conecta diretamente com a imparcialidade dos juízes (La Justicia de frente a la realidad, Rubinzal-Culzoni, p. 99).

Portanto, magistratura não combina com populismo, exposição pública excessiva e, neste sentido, pontua o artigo 13 do Código de Ética da Magistratura do CNJ. Além disto, com número tão grande de amigos virtuais há o risco de que alguém, magoado com uma decisão em um processo, coloque na página do magistrado algum tipo de matéria depreciativa.

O Facebook também não é local para postar críticas a colegas, ao tribunal ao qual se está vinculado ou a outros órgãos do Poder Judiciário. Por mais eloquente que seja a crença em uma tese jurídica (como, por exemplo, a possibilidade de execução do acórdão de TJ antes de exame pelo STF), não tem o menor cabimento atribuir a colegas da mesma ou de outra instância ou Justiça desconhecimento da matéria.

Há também a hipótese de perigo indireto. Não raramente, em comemorações alguém se aproxima, pede para tirar uma foto e logo posta, mostrando intimidade com o magistrado. Só que esse alguém pode ser, por exemplo, réu em ação penal ou trabalhista e esta foto pode sugerir à parte contrária uma intimidade inexistente, mas que gera a presunção de que o julgamento não será imparcial. Recusar a foto é antipático, mas, em determinadas situações, deve ser a conduta adotada. E para não ficar muito indelicado basta dizer que há determinação da Corregedoria neste sentido.

Há, ainda, hipótese de perigo direto. Um juiz criminal que decide ações penais envolvendo organizações criminosas, evidentemente não deve participar da rede e, muito menos, caso participe, colocar dados sobre sua vida pessoal.

Do que se expôs, fácil é concluir que o magistrado brasileiro pode participar do Facebook, porém sua atuação deve ser sempre cautelosa e limitada pelas características do cargo público que exerce.


Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente eleito da "International Association for Courts Administration - IACA", com sede em Louisville (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

Revista Consultor Jurídico, 20 de março de 2016, 8h01

sexta-feira, 18 de março de 2016

Celso de Mello rebate afirmação de Lula segundo a qual STF estaria acovardado







Ao início da sessão desta quinta-feira (17/3), o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, rebateu a afirmação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva — exposta em grampos divulgados nesta quarta-feira (16/3) — de que o país tem “uma Suprema Corte totalmente acovardada”. O pensamento, diz o decano do STF, é uma “reação torpe e indigna, típica de mentes autocráticas e arrogantes, que não conseguem disfarçar o temor do império da lei e de juízes livres e independentes”.Afirmação de Lula foi uma reação torpe e indigna, diz Celso de Mello.
Gervásio Baptista -SCO/STF

A República, afirma Celso de Mello, “além de não admitir privilégios, repudia a outorga de favores especiais e rejeita a concessão de tratamentos diferenciados aos detentores do poder ou a quem quer que seja”.

O ministro deixa seu recado: "Ninguém está acima da autoridade das leis e da Constituição de nosso país, a significar que condutas criminosas perpetradas à sombra do Poder jamais serão toleradas, e os agentes que as houverem praticado".

O presidente do STF, ministro Ricardo Lewandowski, concordou. Segundo ele, "os constituintes de 1988 atribuíram ao STF a elevada missão de manter a supremacia da Constituição Federal". E finalizou: "Os juízes dessa casa não faltarão aos cidadãos brasileiros".

Clique aqui para ler o pronunciamento de Celso de Mello.



Sérgio Rodas é repórter da revista Consultor Jurídico.



Revista Consultor Jurídico, 17 de março de 2016, 14h46

quinta-feira, 17 de março de 2016

Ministro afirma que STJ não é covarde, e elogia atuação da corte na Lava Jato





Durante sessão da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o ministro João Otávio de Noronha fez uma defesa da instituição, em virtude dos áudios divulgados ontem (16/03) pela Justiça Federal, em investigação da operação Lava Jato sobre o ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva.

Noronha afirmou que o STJ não é covarde, e julga com imparcialidade os casos da Lava Jato. O ministro declarou que os trechos divulgados das conversas do ex-presidente com diversos interlocutores são “estarrecedores”. “Repilo as palavras de Lula quando ele diz que esta casa está acovardada”, disse Noronha.

Para ele, o STJ cumpre o dever constitucional de zelar pela independência da Justiça Federal e pela aplicação da lei a todos, sem diferença.

Advogados, servidores e os demais ministros aplaudiram o pronunciamento de Noronha. O magistrado justificou que não se tratava de uma intervenção ao longo da sessão de julgamentos, mas sim uma defesa institucional diante da gravidade das acusações feitas ao tribunal.

Noronha elogiou a atuação do juiz Sérgio Fernando Moro ao conduzir o processo e retirar o sigilo sobre as investigações da 24ª fase da operação Lava Jato, denominada “Aletheia”.

Segundo o ministro, o sigilo nas operações não é devido a proteção do réu ou de outra parte, mas sim para preservar a ordem pública. Ao retirar o sigilo da operação, segundo Noronha, Moro contribui para desvelar “a podridão que está por trás do poder”.

Da Redação

STJ

quarta-feira, 16 de março de 2016

PL antiterrorismo é ameaça a movimentos sociais e manifestantes





Por Camila Marques e Mariana Rielli


Aprovado em definitivo pelo Congresso no dia 24 de fevereiro, o Projeto de Lei (PL) 2016/2015, conhecido como PL Antiterrorismo, aguarda sanção presidencial para entrar em vigor.

De autoria do Executivo, o texto foi aprovado em primeiro turno na Câmara com algumas modificações, e, posteriormente, sofreu novas alterações no Senado. De volta à Câmara, foi ratificado na versão originalmente aprovada pelos deputados.

Durante toda a tramitação do PL, organizações da sociedade civil e movimentos sociais mobilizaram-se contra sua aprovação, visto que muitos dos dispositivos propostos, sob pretexto de atender a pressões externas pela adoção de leis antiterror, possuem redação excessivamente ampla, ambígua e potencialmente criminalizadora do direito à livre manifestação e expressão.

Diante de todos esses elementos, e da importância do tema, cabe questionar: a aprovação conturbada dessa lei é uma iniciativa isolada? Se não, qual é o contexto que a envolve e quais são suas implicações e consequências?

O histórico de protestos sociais no Brasil é bastante amplo e de análise complexa. É possível, porém, esboçar padrões a partir de recortes específicos quanto à natureza das manifestações, sua amplitude e o período no qual têm ocorrido.

Em relação ao processo iniciado pelas ''Jornadas de Junho'' de 2013, por exemplo, há análises detalhadas que oferecem material para algumas conclusões sólidas. A violenta e desproporcional repressão do Estado verificada neste episódio, caracterizando inúmeras violações de direitos humanos, gerou desaprovação geral da população e da mídia. Ainda assim, não incorreram em uma reformulação das práticas do aparelho estatal, pelo contrário: em muitos aspectos, a repressão foi aprimorada, sobretudo por conta da ocorrência dos megaeventos esportivos dos anos seguintes (Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas de 2016).

A ação do Estado brasileiro para restringir manifestantes também alcançou novas frentes, como revela o conjunto de PLs cuja tramitação iniciou em 2013 e se intensificou com a proximidade da Copa do Mundo. Os PLs contemplavam desde a proibição do uso de máscaras em manifestações até a modificação do Código Penal para instituir qualificadoras e aumentos de penas para crimes comuns se cometidos em protestos. Houve ainda projetos semelhantes ao PL 2016/2015 que também tinham o objetivo de criminalizar o terrorismo.

À luz desses fatos, as discussões sobre a atual lei antiterrorismo ganham novos contornos.

Como primeira ressalva, cabe dizer que a versão final aprovada pela Câmara contém uma excludente que, em tese, afasta a abrangência da norma sobre manifestações políticas e movimentos sociais. Entretanto, o desenrolar de todo o processo, que culminou na aprovação do projeto, assim como o espírito que o permeia, sugere que a discussão sobre esse tema permanece relevante.

Ainda que de acordo com o texto da lei a manifestação política e social não possa ser alvo de criminalização sob pretexto de corresponder à prática terrorista, o potencial caráter intimidatório da lei permanece, uma vez que autoridades policiais e judiciais poderão fazer interpretações ampliadas, inclusive com a possibilidade de iniciar a persecução penal de manifestantes para, somente após todo o constrangimento causado, afastar o uso da tipificação de “terrorismo”.

Vale lembrar que não é novidade que leis claramente inaplicáveis a casos concretos tenham sido utilizadas contra manifestantes. Em outubro de 2013, dois manifestantes, Luana Bernardo Lopes e Humberto Caporalli, foram detidos em um protesto em São Paulo e indiciados por sabotagem com base na Lei de Segurança Nacional. A lei em questão, aprovada na época da Ditadura Militar, estabelece penas de até 10 anos de reclusão. Na mesma ocasião, os dois também foram enquadrados em várias outras acusações que foram comuns em outros casos de detenções ocorridos em protestos nos últimos anos.

Posteriormente, Luana e Humberto tiveram sua prisão relaxada, pois foi reconhecida a fragilidade e inconsistência das acusações, mas, a essa altura, o desgaste e o estigma social em torno de uma suposta conduta criminosa já haviam se dado. [1]

Para além do problema acerca da aplicação da lei em si, há no PL aprovado pelo Congresso diversos dispositivos preocupantes do ponto de vista da liberdade de expressão e manifestação.

Para começar, os ''atos de terrorismo'' elencados incluem a danificação de locais e objetos, caracterizando a noção de ''terrorismo contra coisa''. A depredação de bens públicos e privados — uma alegação corriqueira em casos nos quais se verifica a intimidação de manifestantes por meio de investigações criminais e processos judiciais — pode passar da caracterização usual de crime de dano à qualidade de ato terrorista, punível com reclusão de 12 a 30 anos.

De forma semelhante, o projeto aprovado determina que serão punidos com reclusão de quatro a oito anos, mais multa, aqueles que fizerem, ''publicamente, apologia de fato tipificado como crime nesta Lei ou de seu autor” (artigo 4). Se o meio utilizado para tal for a internet ou outro meio de comunicação social a pena é aumentada de um sexto a dois terços.

A ausência de elementos descritivos que deem suporte à definição de apologia, associada às penas altas instituídas, gera uma situação de ampla discricionariedade na aplicação do dispositivo, penalizando discursos de forma desproporcional. Já o aumento de pena motivado pelo uso da internet, além de demonstrativo da pouca afinidade do sistema jurídico com a dinâmica proporcionada pela comunicação em rede, demonstra uma tendência: a utilização de opiniões emitidas em redes sociais por manifestantes como elemento incriminatório em investigações.

É o caso, por exemplo, do inquérito dos 23 manifestantes indiciados no Rio de Janeiro na época da Copa do Mundo, que se utilizou da tática de ''ronda virtual'' no Facebook, analisando conversas abertas, comentários em páginas de grupos e movimentos sociais. Na ocasião, até mesmo “curtidas” foram consideradas como fortes indícios de supostas práticas criminosas ou de ordem a outros manifestantes para prática de crimes. [2]

Essa breve análise sugere que a tramitação do PL 2015/2016 não representa uma iniciativa isolada, supostamente justificável por pressões externas sobre o Brasil, mas se insere em um contexto de ações estatais de endurecimento no tratamento dos protestos sociais no país.

Tal cenário se verifica também na sofisticação do aparelho repressivo, que desde 2013 muniu-se de novas técnicas e instrumentos; na intensificação da criminalização de manifestantes via processos judiciais; e, por fim, na proliferação de projetos de lei que incrementam as leis criminais, muitas vezes de forma desnecessária e desproporcional, sob pretexto de punir supostos excessos em manifestações. A utilização dessa via, associada a todo o contexto repressivo descrito, não cumpre o papel de resguardar direitos e garantias fundamentais, mas, pelo contrário, prejudica sua efetivação, ao criar um cenário inibidor da liberdade de expressão de manifestantes e dos movimentos sociais, em geral. Importante lembrar que todas as condutas descritas no novo projeto já estão contempladas em outras leis criminais.

Diante destes apontamentos, e tendo em vista o cenário brevemente descrito, o projeto aprovado e todo o processo que o acompanhou devem ser considerados em sua gravidade e no risco que impõem a atores engajados politicamente e àqueles que se manifestam nas ruas. Discussões mais profundas e próximas da sociedade devem ser organizadas para debater o combate ao terrorismo, com o fim de evitar que a democracia e os direitos fundamentais sejam prejudicados por qualquer ação descuidada nessa área. O veto presidencial, nesse momento, é uma necessidade.

[1]http://oglobo.globo.com/brasil/estudante-presa-em-protesto-faz-desabafo-no-facebook-10325771

[2]http://www.cartacapital.com.br/revista/812/procura-se-bakunin-9772.html


Camila Marques é advogada e coordenadora do Centro de Referência Legal da Artigo 19.

Mariana Rielli é estudante de Direito e integrante da organização Artigo 19.

Revista Consultor Jurídico, 15 de março de 2016, 7h22

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Há juízes que são perseguidos por cumprirem a lei e a Constituição





A Lei 13.185 que instituiu um programa de combate à intimidação sistemática (bullying) propõe a capacitação de docentes, equipes pedagógicas para implementar discussão, prevenção e orientação visando a solução desse problema. Em outras palavras vamos precisar melhorar nosso conceito de educação para evitar o desrespeito ao próximo. Há juízes que por procurar cumprir a Constituição e as leis, compromisso de posse de todos, são perseguidos e sofrem bullying quando são taxados de “manteiguinhas” ou “alvaros”, quando aplicam as leis priorizando a liberdade, já que a prisão em nosso ordenamento jurídico deve ser uma exceção.

O papel do magistrado é a garantia dos direitos a todos os cidadãos sem diferenças ou discriminações. Recentemente, em brilhante decisão um magistrado de primeiro grau, garantiu os direitos de todos os servidores do judiciário determinando o arresto de verbas para pagar salários. Ocorre que na mesma Vara de Fazenda Pública centenas de jurisdicionados está há anos esperando o pagamento de seus proventos e nunca se viu a mesma providência. Ao contrário, as procuradorias esgotam todos os recursos para impedir o pagamento de direitos aos servidores.

Muitos magistrados sofrem perseguições por causa da justiça. Todos devem prolatar suas decisões devidamente fundamentadas e tais decisões devem ser respeitadas, ressalvado o direito das partes recorrerem às instâncias superiores. Infelizmente nem sempre é isso que ocorre. Em São Paulo a juíza Kenarik esta respondendo um processo administrativo por haver soltado um preso que havia cumprido a pena sem ouvir o colegiado. No Rio vários juízes garantistas (aqueles que garantem direitos) já foram ameaçados de processos e receberam admoestações em razão de seu garantismo.

O juiz J.B. Damasceno sofreu um processo disciplinar porque apôs em seu gabinete de trabalho uma obra de arte do artista Latuff alusivo à violência policial que assassinou a juíza Patrícia Acioli, já o juiz Vitor Bezerra foi afastado de suas funções por haver deferido adoção de crianças que eram maltratados por seus pais biológicos. Esse patrulhamento ideológico que elege magistrados que devem ser perseguidos, processados e intimidados sistematicamente é um atentado á independência dos juízes e causa insegurança jurídica porque assim como há os que resistem, há também os que sucumbem a essas pressões.

Com mais de 50 representações em meu currículo de magistrado em meus 34 anos de carreira já estou calejado, mas essa perseguição macarthista precisa ser combatida para garantia de uma justiça independente e confiável a serviço dos cidadãos e da Nação. “Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da Justiça...”, já dizia o Divino Mestre, Ele mesmo conhecendo na pele o que é essa perseguição.


Siro Darlan de Oliveira é desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e membro da Associação Juízes para a Democracia.



Revista Consultor Jurídico, 2 de fevereiro de 2016, 7h39

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

A Constituição não é o que STF diz que ela é ou quer que ela seja




* Texto produzido pelos professores do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNICAP.

No último dia 25 de novembro, o país acordou com a notícia de que o Supremo Tribunal Federal, através de sua 2ª Turma, decretara a prisão do senador Delcídio do Amaral. Sem dúvida, é um fato emblemático. Muitos aplaudiram a decisão da Corte, que foi vista como um importante gesto de combate à impunidade em relação aos delitos cometidos por importantes atores da classe política. Alguns ministros vocalizaram o que há muito tempo está na garganta de muitos brasileiros. O ministro Celso de Mello foi enfático ao afirmar: “É preciso esmagar e destruir com todo o peso da lei esses agentes criminosos que atentaram contra as leis penais da República e contra os sentimentos de moralidade e de decência do povo brasileiro”. Por sua vez, a ministra Cármen Lúcia bradou: “Quero avisar que o crime não vencerá a Justiça. A decepção não pode vencer a vontade de acertar no espaço público. Não se confunde imunidade com impunidade. A Constituição não permite a impunidade a quem quer que seja”.

Ainda no mesmo dia, por uma esmagadora maioria, o Senado confirmou a prisão, mantendo a decisão do STF. A respeito desse singular episódio de nossa história político-constitucional, convém destacar alguns aspectos que nos parecem relevantes. Antes de tudo, é preciso deixar claro que os crimes imputados ao senador Delcídio do Amaral são gravíssimos e devem ser apurados. Uma vez comprovada ocorrência desses crimes e sua culpa, assegurando-lhe o devido processo legal, o senador deve ser responsabilizado conforme nossa legislação. Nem mais, nem menos.

É de amplo conhecimento que a Constituição estabelece um conjunto de regras que compõem o chamado “Estatuto dos Congressistas”. Dentre elas, encontram-se a inviolabilidade, as imunidades e a prerrogativa de foro, tidas como garantias institucionais para assegurar independência do membro do Congresso Nacional no exercício do mandato parlamentar. Historicamente, tais prerrogativas visam resguardar os representantes eleitos de perseguições, investidas ou retaliações, especialmente perpetradas pelo Governo, as quais pudessem comprometer a adequada realização das atribuições inerentes ao cargo eletivo. Nesse sentido, a Emenda Constitucional 35/2001 criou a imunidade formal quanto à prisão, pela qual “os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.” (artigo 53, §2º, CF).

A única exceção a tal regra diz respeito à prisão decorrente de decisão condenatória transitada em julgado. Afora esta situação, a Constituição veda, taxativamente, qualquer modalidade de prisão, a não ser aquela proveniente de flagrante de crime inafiançável. Exige-se, portanto, a presença de dois requisitos: flagrância e crime inafiançável. Isso não significa que um parlamentar não venha a responder criminalmente durante seu mandato. Aliás, muitos dos congressistas eleitos para o exercício do presente mandato encontram-se atualmente na posição de réus em ações penais. Não podem, contudo, em decorrência das imunidades, sofrer prisões processuais, respondendo ao processo judicial em liberdade. Logo, aplicar a regra da imunidade formal quanto à prisão não é sinônimo de impunidade, pois ela não representa qualquer obstáculo ao andamento da ação penal e, caso o parlamentar venha a ser condenado, deverá cumprir a pena estabelecida. Apenas não podem ser presos preventivamente e tampouco temporariamente.

Por essa razão, a decisão do STF causou estranheza a boa parte dos professores de Direito Constitucional e de Ciências Criminais, acostumados a ensinar aos seus alunos que deputados e senadores apenas podem ser presos em flagrante delito de crime inafiançável. Diante de perguntas dos alunos, esses docentes estavam habituados a explicar que a regra visava impedir que prisões processuais pudessem ser usadas para desestabilizar ou impedir a representação e que era um custo que a democracia assumia. Não há, na Constituição, qualquer espaço para prisões cautelares de parlamentares. O texto é enfático na restrição e não deixa margem para interpretações extensivas. Ao contrário, a Constituição determina que a imunidade subsiste, inclusive, durante uma situação excepcional como o Estado de Sítio (artigo 53, § 8º, CF), o que demonstra ser temerária qualquer relativização da garantia constitucional em época de normalidade institucional.

É evidente que a imunidade, na dimensão em que foi constitucionalizada, pode ser usada de forma distorcida, assim como outras garantias também podem. A crítica, no entanto, em relação às imunidades, precisa resultar em propostas de alteração do texto constitucional e em pressão política para que o texto seja revisto. E isto já ocorreu em relação à outra modalidade de imunidade parlamentar. De fato, inicialmente, a Constituição previa que o STF apenas poderia iniciar ação penal contra parlamentar no curso do mandato mediante licença prévia da Casa Legislativa. Na prática, porém, essa prerrogativa levou a um sem número de episódios, muitas vezes impulsionados por razões corporativistas, em que o Parlamento simplesmente silenciava diante do pedido feito pela Corte para iniciar alguma ação penal. O tribunal ficava de mãos atadas, pois nada podia fazer sem a autorização do Parlamento. A distorção da imunidade parlamentar, à época, não serviu de justificativa para o STF ignorar o preceito constitucional ainda vigente. Ao contrário, a crítica severa ao instituto fez com que a exigência de licença prévia fosse posteriormente revogada pela EC 35/2001, que deu nova redação ao artigo 53, § 3º. Portanto, se a imunidade formal quanto à prisão, outrora justificada para proteger a liberdade de locomoção do parlamentar contra prisões arbitrárias, perdeu sua razão de existir em um ambiente de estabilidade democrática, nada impede que seja modificada pelo processo de reforma constitucional. Porém, até que isso ocorra, a regra não pode ser ignorada, não devendo ser decretada prisão preventiva contra congressista. Cuida-se, tão-somente, de respeito à legalidade constitucional.

Outrossim, poder-se-ia pensar fazer uso do conhecido método da ponderação para afastar a aplicação do artigo 53, §2º , da CF, em nome de algum princípio constitucional. Todavia, a ponderação, quando adequadamente utilizada, pressupõe um conflito entre princípios, o que não é o caso, pois o preceito constitucional que proíbe a prisão preventiva de parlamentar é uma norma-regra, submetida não a sopesamentos e sim à logica do tudo ou nada. É dizer, ou estão presentes os requisitos constitucionais que autorizam a prisão, e esta pode ser decretada, ou não estão presentes, e, neste caso, não são legítimos giros hermenêuticos para promover interpretações extravagantes. Curiosamente, a corte possui precedentes que reconhecem a aplicação da citada imunidade mesmo para obstar prisões civis por descumprimento de pagamento de pensões alimentícias, situação que sequer guarda relação com a atividade pública de parlamentar. E, não obstante, a regra é aplicada também a esses casos, pois apenas pode haver prisão em caso de flagrante de crime inafiançável. Portanto, o que se deve evitar aqui é a utilização equivocada do método da ponderação para criar uma falsa justificação buscando afastar a aplicação de comando constitucional vigente. Infelizmente, muitos têm sido os casos em que a ponderação é empregada como válvula de escape para que o juiz decida com base em preferências pessoais, configurando um decisionismo que deve ser combatido com veemência.

Na presente situação, um crime afiançável — no caso, o de organização criminosa (artigo 2°, § 1° da Lei 12.850/2013) — foi, com a decisão, transformado em inafiançável com uma errônea e indevida aplicação de dispositivos processuais penais e sob o argumento de que “o tom absolutista de proibição da prisão cautelar [...] não se coaduna com o modo de ser do próprio sistema constitucional. Se não são absolutos sequer os direitos fundamentais, não faz sentido que seja absoluta a prerrogativa parlamentar de imunidade à prisão cautelar”. Os delitos caracterizados como inafiançáveis são apenas aqueles dispostos na Constituição e no Código de Processo Penal: racismo, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e nos definidos como crimes hediondos e crimes cometidos por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. O senador Delcídio do Amaral foi preso pelo delito de organização criminosa, afiançável, portanto, já que fora do rol antes mencionado. O artigo 324, que serviu de alicerce à decisão do STF, apenas informa que, no caso de delitos afiançáveis, a fiança não será concedida quando cabível a prisão preventiva — por óbvio!

Em suma, o senador foi preso em flagrante pela prática de um delito afiançável, violando frontalmente a regra proibitória constitucional.

É compreensível que, a partir de todo um clamor social e de uma sensação de descontentamento da opinião pública diante de sucessivos escândalos de corrupção, faz crescer, em certa medida, a ânsia pela punição exemplar daqueles que ocupam importantes cargos na vida política do país e que protagonizam a instrumentalização das instituições para fins privados. A crença no caráter exemplar da reação punitiva, aliada ao problema de perpetuação de um Estado patrimonialista, nos leva a aceitar um discurso legitimador de decisões como a que foi tomada pelo STF. Todavia, a punição, a qualquer custo, e passando por cima das leis e da própria Constituição, antes de ser o remédio para o problema, pode se transformar em perigoso veneno em desfavor das liberdades públicas. A missão institucional do STF, o que vale para o Poder Judiciário em geral, não é atuar como uma espécie de “justiceiro”. Ser o “guardião da Constituição” pressupõe um compromisso em defendê-la, seja em seus elementos virtuosos , seja em tantos outros que merecem aperfeiçoamentos. Porém, sob o pretexto de “fazer justiça”, o Poder Judiciário não pode ir de encontro precisamente àquilo que lhe compete defender e seguir intransigentemente: a Constituição.

E nesse caso, a manipulação política de preceitos fundamentais não é admissível no Estado de Direito. A lógica é a mesma para o que se busca denominar de punição exemplar em casos de corrupção, assim como para os mais comuns clientes desse sistema — negros e negras, pobres e periféricos. O fato é que essa punição moralizadora assumida pelo sistema punitivo acaba por eleger bodes expiatórios, independente da ideologia político-partidária que a inspire. Esta cautela busca afastar o estigma da seletividade do Sistema de Justiça Criminal, revitalizando-o em sua perspectiva retributiva, seja para a definição do punitivismo comum, aquele que recai sobre os mais vulneráveis, seja para os próprios atores das agências de poder criminalizante.

Por isso, a indignação não pode ser seletiva. Ainda nesse mês de novembro, o STF relativizou a garantia constitucional da inviolabilidade de domicílio, autorizando a invasão em residências sem ordem judicial, para posterior validação judicial (RE 603.616). Nesse caso, a maleabilidade constitucional recaiu sobre o pedido de um cidadão pobre, acusado de tráfico de entorpecentes.

A decisão causou também espécie em criminólogos e defensores de direitos humanos, que vêm denunciando as chamadas ‘entradas forçadas’ ou ‘franqueadas’ por parte das forças de segurança nas casas de moradores e moradoras das periferias brasileiras. Naqueles bairros, certo “estado de exceção permanente” parece se perpetuar no métier da segurança pública e o que o STF fez foi, tão-somente, reforçar e autorizar essas práticas.

Ante o cenário de perpetuação de um Estado de Polícia, o direito positivo é uma barreira de contenção possível, inobstante frágil, dado o certo de grau de indeterminação semântica que possui. Porém, ele não é totalmente indeterminado. A Constituição não pode ser vista pelo intérprete, sobretudo pelo STF, como um repertório de palavras vazias aguardando construções de sentido arbitrariamente formuladas. O direito legislado, incluindo o próprio texto constitucional, não é um cheque em branco dado ao juiz constitucional. Em uma Democracia Constitucional, a Constituição não é o que STF diz que ela é ou quer que ela seja. Do contrário, somos forçados a reconhecer que não dispomos de parâmetros minimamente objetivos e racionais para identificar o direito democraticamente produzido, pois tudo é reduzido ao que juiz pensa sobre o direito.

Além disso, e, desta feita, seguindo o que determina a CF, o STF comunicou sua decisão ao Senado dentro do prazo de vinte e quatro horas. Quando a CF afirma que cabe ao Senado resolver sobre a prisão, isso significa que ele possui autonomia para deliberar sobre manutenção ou não da prisão. Trata-se de uma avaliação acentuadamente política, como não seria diferente, em se tratando de uma Casa Legislativa. De forma curiosa, alguns Senadores, na sessão em que se resolvia sobre a prisão, defenderam que não poderiam ir de encontro à decisão do STF. Ora, é razoável que, por razões as mais diversas, o Senado optasse por manter a prisão, alinhando-se à decisão da corte. Porém, afirmar que deve seguir a decisão do STF é renunciar à própria função de contrapeso que a Constituição lhe atribuiu, o que represente uma diminuição institucional da casa.

Também causa estranheza quando uma corte da envergadura do STF se utiliza de expedientes retóricos para transmitir lições à sociedade. O uso de frases impactantes, com conteúdos de elevado apelo moral e ético, busca apenas criar uma imagem perante o senso comum de que o tribunal se encontra num patamar moral superior às demais instituições e que pode, lá do alto, apontar, implacavelmente, os desvios dos outros. Essas fundamentações maximalistas poucos acrescentam à consistência e legitimidade de seus acórdãos, até porque não integram sua ratio decidendi.

Melhor seria que o STF reafirmasse seu papel de defensor da ordem constitucional, decidindo com base na constituição, e não apesar dela. E para qualquer cidadão que dele demande, seja o senador da República, na prerrogativa constitucional da imunidade parlamentar; da seja o pobre periférico, na garantia da inviolabilidade de domicílio. Já terá feito muito. E terá dado sua real e significativa contribuição para a nossa democracia.

Portanto, entendemos que a decisão da corte é frágil, porque destoa da literalidade do texto constitucional, ignora toda a construção doutrinária em torno da imunidade formal e surpreende a própria narrativa de seus precedentes. Aceitar, de forma tranquila, que decisões como essa sejam isentas de crítica é tornar a Academia caudatária dos pronunciamentos judiciais. E pior: é reconhecer o fracasso do projeto político de Estado Democrático de Direito, pois a hegemonia política dos monarcas e presidentes teria sido devidamente substituída pela elegante hegemonia dos Tribunais. E isso é um supremo equívoco.

* Este texto foi produzido pelos seguintes professores do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNICAP do Grupo Recife de Estudos Constitucionais (REC/CNPQ) e do Grupo Asa Branca de Criminologia (CNPQ): Adriana Rocha Coutinho; Carolina Salazar; Érica Babini Machado; Fernanda Fonseca Rosenblatt; Flávia Santiago Lima; Glauco Salomão Leite; Gustavo Ferreira Santos; Helena Rocha Castro; João Paulo Allain Teixeira; José Mário Wanderley Gomes Neto; Luiz Henrique Diniz Araújo; Marcelo Casseb Continentino; Marcelo Labanca Corrêa de Araújo; Marília Montenegro P. de Mello e Stéfano Toscano.


Revista Consultor Jurídico, 3 de dezembro de 2015, 6h43

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...