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terça-feira, 1 de março de 2016

Uma ADC contra a decisão no HC 126.292 — sinuca de bico para o STF!







Dois dias após o julgamento do Habeas Corpus pelo qual o Supremo Tribunal alterou seu entendimento acerca da prisão antes do trânsito em julgado (HC 126.292), escrevi artigo (leia aqui) dizendo que o tribunal errara ao não invalidar, formalmente, o artigo 283 do Código de Processo Penal. Diz o aludido dispositivo:

Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. 

Ora, tratando o dispositivo claramente da impossibilidade de alguém ter que cumprir pena senão depois de a decisão condenatória ter transitada em julgado, o STF obrigatoriamente, para tomar a decisão que tomou, deveria superar esse obstáculo (e não o contornar). O artigo 283 é, por assim dizer, uma questão pré-judicial e prejudicial). Ele é barreira para chegar ao resultado a que chegou a Suprema Corte. Agreguei, no aludido artigo, que o próprio relator, ministro Teori Zavascki, contrariara posição que assumira como ministro do Superior Tribunal de Justiça na Reclamação 2.645, em que ficou assentando — corretamente — que o judiciário somente pode deixar de aplicar uma lei se a declarar formalmente inconstitucional (esse enunciado constitui a primeira das minhas seis hipóteses pelas quais o judiciário pode deixar de aplicar uma lei).

Assim, o STF contrariou a jurisdição constitucional, naquilo que ele próprio vem estabelecendo. Veja-se, nesse sentido, a Súmula Vinculante 10, pela qual “viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte”.

Como se sabe, essa súmula, embora com nítido caráter tautológico por parecer dizer o óbvio, tem o objetivo de evitar que o judiciário dê a “volta” (um drible hermenêutico) em um dispositivo legal válido. Leitura simples e óbvia: uma lei ou dispositivo vigente e válido não pode ser contornada ou desviada. Este é o princípio que se retira dessa SV. Mesmo que o órgão fracionário “apenas afaste” a aplicação da norma infraconstitucional, com fundamento em sua inconstitucionalidade, não estará liberado de suscitar o respectivo incidente. Também estará violando o artigo 97 a decisão que declara a inconstitucionalidade de lei, ainda que parcial, sem que haja declaração anterior proferida por órgão especial ou plenário (de novo, o acerto do voto do ministro Teori na Reclamação 2.645-STJ). 

Parece-me claro, destarte, que se isso é válido para um órgão fracionário, imagine-se a hipótese de o próprio STF violar a Súmula Vinculante 10 e o artigo 97 da Constituição Federal. Por que existe a SV 10 e o artigo 97 da CF? Simples: É para evitar que um texto jurídico válido seja ignorado ou contornado para se chegar a um determinado resultado. No caso, o STF afastou — sem dizer — a incidência do artigo 283. E ao não dizer e fundamentar devida e claramente, fez algo que ele mesmo proíbe aos demais tribunais. Invertendo o raciocínio: Uma decisão dizendo que o 283 não é inconstitucional não precisaria fazer declaração formal. Mas o contrário, sim. Tanto é que um órgão fracionário, quando diz que uma lei é constitucional, não precisa fazer o incidente. Tão simples, mas é necessário que se diga.

Ou seja: para dizer que era cabível a execução provisória da pena antes do trânsito em julgado, não basta que o STF se refira a uma redefinição da interpretação do inciso LVII do artigo 5º da CF (ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória). Por que o constituinte teria posto esse inciso? Se não fosse para, exatamente, dizer o que depois foi posto no artigo 283, não precisaria tê-lo feito. Por que a expressão “trânsito em julgado”? O que é trânsito em julgado? Ora, enquanto couber qualquer tipo de recurso, uma decisão não transita. Então temos a holding — princípio constitucional — e o enunciado que explicita isso no plano de uma regra (artigo 283). Tão claro como colocar água em cima.

Se não existisse o artigo 283 do CPP, até que o STF poderia alegar que está alterando sua interpretação sobre o referido inciso. Claro: digo isso como possibilidade sistêmica, porque, no caso concreto, a decisão padece de dois defeitos: o primeiro, o salto por sobre o artigo 283 do CPP; o segundo, a própria interpretação que contrariou os limites semânticos do texto constitucional. Parece evidente, também, que não houve mutação constitucional, porque é consabido que mutação apenas tem como consequência uma nova norma para um texto já existente. Só que a mutação, para ser mutação, tem uma condição: a de que a nova norma não seja, ela mesma, um novo texto. Nesse sentido, creio que esgotamos esse assunto (Martonio Barreto Lima, Marcelo Cattoni e eu), na crítica que fizemos ao julgamento inicial da Reclamação 4.335 (ler aqui). No caso — e isso já foi dito em dezenas de artigos e colunas por uma plêiade de juristas — é visível que o STF foi além daquilo que se pode entender “limites interpretativos”.

Portanto, o remédio jurídico a ser utilizado — para pôr isso em pratos limpos — é a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), pela qual a Suprema Corte terá que dizer se o artigo 283 é constitucional ou não. Isto porque, neste momento, tem-se o seguinte quadro dicotômico: um dispositivo do CPP (ainda) válido e uma decisão do STF estabelecendo o sentido contrário. Ambos não podem conviver.

É sabido que a ADC exige controvérsia jurídica anterior. No caso, todos os elementos relacionados ao julgamento do Habeas Corpus em tela conduzem ao preenchimento desse requisito. Se não se entender assim, estar-se-á a dizer que, de fato, o STF construiu direito novo. Melhor dizendo, legislou. Mas isso o STF não admitirá. Desse modo, na medida em que isso não está no terreno da admissão por parte da Suprema Corte, é de jurisprudência e sua controvertida interpretação — que culminou nesse giro interpretativo — que estamos tratando. A existência de determinações de prisões, ocorridas logo após a decisão do STF, já por si representam a controvérsia. Além do fato de se tratar de um direito fundamental previsto em cláusula pétrea.

Para ser mais claro: desde que no julgamento do HC o STF admitiu a prisão de alguém antes do trânsito em julgado de uma sentença condenatória, negou validade (ainda que em sede de controle difuso) ao artigo 283. É preciso, portanto, que o faça expressamente, agora por meio do controle concentrado. A "controvérsia" é patente, uma vez que foi causada desde o momento em que no voto condutor o relator sequer fez menção ao dispositivo da lei processual penal que, inclusive, é posterior à CF. Como já acentuei em Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica ( 4ª Ed, Saraiva, p.873), para se admitir que uma norma que já tem presunção de constitucionalidade [ninguém duvida presunção de constitucionalidade do artigo 283, pois não?] tenha tal presunção confirmada pelo STF, deve haver um perigo, um abalo para a “ordem jurídica”. Pergunto: Que maior abalo poderia existir do que a possibilidade de centenas ou milhares de pessoas passarem a ter de cumprir pena antes do trânsito em julgado junto aos tribunais superiores?

Está, assim, a nossa Suprema Corte em uma sinuca de bico. Para manter a sua decisão, terá que dizer que o artigo 283, aprovado pelo legislador no ano de 2012, fere a Constituição. E terá que dizer as razões pelas quais ocorre esse mal ferimento. E também terá que dizer porque, neste caso, a Constituição dispensa a intermediação do legislador ordinário, já que este nada mais fez do que dizer a mesma coisa que o constituinte originário em uma cláusula pétrea.

É por tais razões é que falei, na coluna intitulada Hermenêutica e positivismo contra o estado de exceção interpretativo (leia aqui), que estava otimista. Aguardemos os próximos capítulos.

Post scriptum: leio que a OAB ingressará com ADPF (ler aqui). É outro caminho a seguir e que — vingando — obrigará a Suprema Corte a enfrentar de novo a matéria. Resumiria, então, o quadro desse modo:

Enquanto a ADC — por mim imaginada — garante que, sob o argumento da decisão do HC 126.292, os tribunais não sigam o mesmo entendimento, de tal modo que o entendimento do STF no caso não leve à sua generalização (vejam os tribunais mandando prender condenados em segunda instância), a ADPF impugna a própria decisão do STF no HC 126.292 por violação ao direito objetivo, à Constituição. O preceito fundamental é a presunção de inocência, o direito à ampla defesa, o devido processo legal, a liberdade de ir e vir.

De todo modo, são poucas balas que temos. Ou talvez uma só. Mas devemos usá-la(s).


Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados:www.streckadvogados.com.br.



Revista Consultor Jurídico, 29 de fevereiro de 2016, 9h09

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Hermenêutica e positivismo contra o estado de exceção interpretativo





Ainda o julgamento do STF
A semana passada foi intensa. O Supremo Tribunal Federal proferiu duas decisões que impactam a cidadania. Uma que flexibiliza fortemente o sigilo bancário, que pode ser quebrado pelo fisco e a outra que diz respeito à flexibilização da presunção da inocência. Escrevi sobre isso (ler aqui). Alertei para o fato de que devemos levar o texto constitucional a sério. Textos são importantes. Não há norma sem texto. O texto não contém a norma. Mas a norma atribuída não pode ser qualquer uma. Mostrei, inclusive, a partir das seis hipóteses pelas quais o Judiciário pode deixar de aplicar a lei, presentes em minha (tentativa de fazer uma) teoria da decisão, que um juiz só pode deixar de aplicar uma lei se esta for declarada formalmente inconstitucional. Pois no HC da semana passada, ocorreu o inverso: o artigo 283, que trata claramente da presunção da inocência, sequer foi tocado. Logo, a decisão fere a jurisdição constitucional.

A decisão do STF provocou uma enxurrada de textos. Há textos oportunistas, textos repetitivos e outros muito sérios. De minha parte, sou otimista. Creio que o constrangimento epistemológico que está sendo feito em relação à decisão fará, em breve, com que o STF revise a sua posição.

Já do lado dos que se colocam a favor da decisão, o que mais me chamou a atenção foi o de Vladimir Passos de Freitas, que, para afastar os argumentos contrários à decisão, disse, de forma peremptória, que “A Justiça não é lugar para discussão de teses jurídicas, mas sim para promover a pacificação social. Correta, pois, a decisão do STF, pois restaurou o equilíbrio entre o direito à liberdade e a eficiência” (ler aqui). Fiquei pensando no que disse o simpático e ilustre colunista. Se a justiça não deve discutir teses jurídicas, para que ela serve? Em outra coluna, voltarei a esse assunto.

Um juiz federal comparou a decisão do STF com um jogo de futebol de 180 minutos (ler aqui). Por que ninguém pensou nisso antes? Vejam o que ele sentenciou: “Como nas fases eliminatórias são dois jogos, a decisão do STF garantiu a presunção de inocência na primeira e segunda instância. Lá é encerrado o jogo de futebol. Quando o jogo vai para os pênaltis a regra é outra. Ninguém fala em pênaltis quando da expressão ‘jogo de 180 minutos’. A presunção de inocência acaba no segundo jogo”. Bingo. Como diria Fiori Giuglioti: Crepúsculo de jogo. Fecham-se as cortinas e termina o espetáculo. Derrota da presunção da inocência nos pênaltis!

Há também quem sustente a necessidade de fazer a ponderação entre a liberdade individual e o interesse público (sic). Mas, permito-me não falar em ponderação, essa katchanga real pós-moderna (ler aqui) com a qual posso encerrar o jogo e apitar pênalti na hora em que quero.

Para não esquecer, há quem defenda a decisão do STF dizendo que se tratou de mutação constitucional. A estes, sugiro a leitura de um texto escrito em 2007, por Martonio Barreto Lima, Marcelo Cattoni e por mim, em que criticamos duramente a tentativa de mutação constitucional na Recl 4.335. Duvido que alguém ainda fale em mutação depois de ler esse texto (ler aqui).

A importância da lei, do texto, enfim da legalidade constitucional
Fazendo um rescaldo, vou repetir o que venho dizendo. No Estado Democrático de Direito, precisamos levar o texto “em sério”. Já apontando a todo momento as práticas ativistas e decisionistas, clamava pela “legalidade constitucional”. Dizia eu: "Quando uso a expressão legalidade constitucional, com base em Elias Díaz, refiro-me ao fato de que saltamos de um legalismo rasteiro, que reduzia o elemento central do direito ora a um conceito estrito de lei (como no caso dos códigos oitocentistas, base para o positivismo primitivo), ora a um conceito abstrato-universalizante de norma, para uma concepção da legalidade que só se constitui sob o manto da constitucionalidade. Afinal, não seríamos capazes, nesta quadra da história, de admitir uma legalidade inconstitucional. Seria um contrassenso afirmar uma legalidade que não manifestasse a consagração de uma constitucionalidade — e pela efetividade das decisões judiciais sob o marco de uma legitimidade democrática”.

Sendo mais claro e citando um petardo de Díaz: “Parece-me desde logo muito importante essa zona de convergência formada pelo poder constituinte, a Constituição e os grandes pactos políticos e sociais; se depois disso, se depois sobretudo da Constituição, as concretas decisões legais majoritárias vão contra ela (contra essa legitimidade e essa justiça), sensivelmente tais decisões ficam anuladas ao se provar sua inconstitucionalidade pelo Tribunal competente. E conclui Díaz: “Essas maiorias concretas, portanto — mesmo que ‘enlouqueçam’ — coisa que os contumazes antidemocratas alegam sempre e incansavelmente — não poderão fazer nada, por vias legais e democráticas contra a Constituição”.[1] Um bingo a mais para Diaz!

A violação dos pressupostos do processo e da jurisdição constitucional
Vou tentar explicar. O STF não levou em conta nem a história institucional, nem a teoria processual. Nunca, para a teoria do processo ou mesmo para a história institucional, trânsito em julgado significará o mesmo que condenação em segundo grau. Isso porque condenação em segundo grau, sem trânsito em julgado, nunca será decisão definitiva.

Todavia, no tema em questão, essa exigência de diferenciação com base em argumento histórico e na lição da teoria processual — e a lição é de Marcelo Cattoni — traz consigo uma questão de princípio que dá o seu verdadeiro sentido normativo: a presunção de inocência prevalece até o trânsito em julgado de sentença condenatória; ou seja, para a Constituição a presunção de inocência prevalece até decisão judicial definitiva ou condenação judicial definitiva. O que, do ponto de vista do devido processo legal, significa que o ônus da prova é de quem acusa, não de quem se defende.

Entretanto, o STF desconsiderou o argumento histórico e a lição doutrinária que exigem não confundir decisão definitiva com condenação em segundo grau. E, para isso, desconsiderou, justamente, o sentido normativo da garantia da presunção de inocência.

Com base no argumento utilitarista do combate à impunidade, reside a pretensiosa justificativa do STF para desconsiderar a história e a doutrina que ensinam que nem toda decisão de segundo grau, por ser em segundo grau, seja definitiva. Não há ponderação alguma a fazer. O ponto fulcral é: a presunção de inocência é, antes de qualquer coisa, uma garantia processual; é uma questão de processo; é uma regra da argumentação processual. Significa, como diz Cattoni em brilhante palestra na Unisinos, que quem tem o ônus da prova é quem acusa e não quem se defende. Isso é a base do sistema acusatório ou, se preferimos, do processo penal dos Estados Democráticos de Direito. Por isso, quando o ministro Barroso afirma que a condenação em segundo grau inverte o ônus da prova, ele não apenas relativiza a presunção de inocência, mas acaba com ela. E arrisca destruir com isso o sistema acusatório típico do Estado Democrático de Direito.

O combate ao inimigo comum ou aunque mayorias «enloquezcan»
Nesta altura, depois de tantos anos combatendo o ativismo (e seus derivativos), [2] em face da dramaticidade da situação das práticas decisionistas, talvez tenha chegado a hora de buscar alianças estratégicas com os positivistas exclusivos. Isso pode parecer estranho vindo de mim, mas é o contexto que vai ajudar a explicar essa minha denúncia. Convenhamos: estamos esticando a corda no limite do limite. Aliás, poderia citar aqui um conjunto de decisões de tribunais que ultrapassam os limites semânticos (para dizer o mínimo, sem precisar explicar o que entendo por esses limites). Por que é tão difícil cumprir a Constituição naquilo que são os mínimos limites interpretativos (por exemplo, o que é presunção da inocência)? É difícil entender que o Código Civil não pode ser substituído por princípios construídos à revelia de qualquer fonte social confiável (vejam minha concessão teórica neste ponto)?

Portanto, em face desse estado d’arte dramático — por exemplo, os requisitos para a decretação de prisões já de há muito estão sendo ignorados (e esses limites constam na lei) — talvez tenhamos que fazer uma aliança estratégica entre a hermenêutica (na forma antirrelativista que venho propondo, em que se deve decidir por princípio e não por politica, moral, etc.) e alguns pressupostos do positivismo exclusivo, mormente na versão de Raz e Shapiro, defendido no Brasil por autores como Bruno Torrano [3] e André Coelho [4], que consideram que o positivismo é uma análise viável — quem sabe ainda a melhor — da e para a teoria do direito. Discordâncias à parte e examinando a decisão do STF, reconheço que o positivismo exclusivo pode contribuir sobremodo para uma crítica eficaz à essa decisão e ao ativismo que se espalha cada dia mais no país. Isto porque o Direito Penal e Processo Penal são questões de legalidade formal e material e não é o positivismo ou a hermenêutica que vão fazer que isso seja melhor ou pior. Isso tem a ver, sim, com o fato de que a jurisdição só pode ampliar e não restringir direitos. De novo: eis a legalidade indispensável, aunque mayorias «enloquezcan», como diz Diaz. Dizendo de outro modo: face a uma epidemia epistêmica que coloca em risco o direito, lutemos juntos.

Sempre levando em conta o contexto — e isso não quer dizer que cada uma das posturas abra mão de premissas e conceitos —, admito que Raz tem teses que podem servir para melhorar a prática judicial (claro que há outras teses que podem ser úteis, como, por exemplo, as teorias discursivas e a teoria dos jogos de Alexandre Morais da Rosa; mas aqui falo de uma inserção mais radical contra esse EEI - Estado de Exceção Interpretativo, esseinterpretative black holl que que tomou conta do direito brasileiro). Deve haver possibilidades de determinações objetivas no direito. Falei disso na coluna passada, ao fazer críticas a teoria dos jogos no processo, de Alexandre Morais da Rosa (ler aqui). Parece-me que o conceito de preempção de Raz pode contribuir na discussão sobre a presunção da inocência. Razões pessoais, políticas, argumentos de segurança pública, etc.,não podem valer mais do que a Constituição, para ficar no ponto contextualizado. Eis o ponto em comum para meu “plano salvacionista”.[5]

Portanto, em face de um inimigo comum, estendo a mão. [6] Se muitas coisas já vão mal no país, não podemos deixar que argumentos de política, pessoais (moral individual) e utilitaristas — e tenho escrito sobre isso à saciedade — venham a colocar em risco aquilo que de mais precioso construímos: a Constituição de 1988 e seu catálogo de direito e garantias fundamentais.Salvemos e preservemos o direito! E não repitamos erros do passado, quando a doutrina aplaudiu decisões “criativas” porque eram “do bem”. Quando se admite violar a Constituição para cima, já quebramos a cláusula que impede que a Constituição seja violada para “baixo”. De novo: pau que bate em Chico...

Post scriptum: Curiosidade — o pau que bate na "lava jato" bate no japonês?
Não. Não bate. O japonês da federal (JdF) é a prova viva de que o sistema é seletivo. O problema é a lei e a CF ou a sua aplicação? Claro que é a sua aplicação. Bom, no caso JdF, este se beneficiou de tudo aquilo que a justiça federal, hoje, critica e nega para os demais (ler aqui). A justiça federal e o MPF dizem que meras irregularidades (sic) não anulam provas. Pois o JdF se beneficiou da anulação de PAD por “mera irregularidade” (sic). Se não fossem os 12 anos de atraso nesse processo, JdF não teria se beneficiado de prescrição de parte da pena. E como seu recurso está no STJ, poderia estar cumprindo pena... justamente em face da nova posição do STF. Bingo. Em vez disso, desfila todo pimpão liderando os atos de aprisionamento, virando até ídolo. Pobre país em que pau que bate em alguns, não bate em outros. A propósito, Elio Gaspari lembra de uma questão bizarra. É que “a defesa de Ishii [é o nome do JdF] diz que, entre as provas apresentadas contra ele, há transcrições adulteradas de telefonemas interceptados (alô, alô, "lava jato")” (ler aqui) Binguíssimo!


1 DÍAZ, Elias. Socialismo democrático: instituciones políticas y movimientos sociales. Revista de Estudios Políticos (Nueva Epoca), n. 62, out-nov, 1988. p. 50-51.


2 Aqui me refiro aos meus textos e livros, assim como os de meus ex-alunos, alunos e parceiros – todos brilhantes - como Rafael Tomaz de Oliveira -Decisão Judicial e o Conceito de Princípio; Francisco Borges Motta - Levando o Direito a Sério: uma crítica hermenêutica ao protagonismo judicial; Clarissa Tassinari - Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário; Mauricio Ramirez - Crítica à aplicação de precedentes judiciais no Direito Brasileiro. Porto. Alegre: Livraria do Advogado, 2010; Danilo Pereira Lima – Constituição e Poder, todos da Editora Livraria do Advogado; Dierle Nunes - Processo Jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas processuais (Juruá Editora); Alexandre Bahia - Recursos extraordinários no STF e STJ (Juruá Editora; Marcelo Cattoni - Devido Processo Legislativo: Uma justificação democrática do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo. (Editora Fórum); Georges Abboud – Discricionariedade Administratriva e Judicial (RT) e tantos outros que aqui não há espaço para referir. Que se sintam citados.

3 Embora Torrano seja um crítico ferrenho de algumas posições minhas, penso que temos um inimigo comum. Por todos, veja-se a interessante crítica ao decisionismo no artigo intitulado Supremo Tribunal Federal não pode ter papel iluminista no Estado; também O direito não é o que você pensa ser justo; e Regra de reconhecimento como contenção ao ativismo judicial

4 Também crítico da hermenêutica, André Luiz de Souza Coelho é um teórico versado na explicitação do que seja o positivismo exclusivo. Dele, sugiro: Raz: Direito, autoridade e positivismo exclusivo, 20 nov 2012. Também importante ler: Raz: razões de primeira, de segunda ordem e autoridade; ainda: "Legality", de Scott J. Shapiro: Uma Introdução".


5 Há um texto muito interessante de Wil Waluchow, Constitutional Rights and the Possibility of Detached Constructive Interpretation, em que ele tenta aproximar Raz e Dworkin para dissolver o conflito entre jurisdição constitucional e democracia (ler aqui). Nessa linha de ligação ou pontos comuns entre Dworkin e Raz, Torrano admite que talvez o maior problema esteja no fato de Raz não estabelecer um modus interpretativo tão claro e convincente como Dworkin fez no Império do Direito, e muitas vezes fica restrito a coisas que acha ser meras “descrições”, quando na verdade há um potencial “normativo” muito forte.


6 De minha parte, como é sabido, minhas diferenças teóricas em relação aos diversos positivismos são de cunho paradigmático-filosófico. Na especificidade, em relação ao positivismo exclusivo o problema reside no seu objetivismo. Mas são questões que não interessam, aqui, neste momento. Quem quer ler mais sobre o positivismo exclusivo, sugiro os textos de Thomas Bustamante - A breve história do positivismo descritivo: o que resta do positivismo jurídico depois de H. L. A. Hart? Novos Estudos Jurídicos (Online), v. 20, p. 307-327, 2015 e deste com Igor Eneiquez - Direito, Estado e Autoridade em Kelsen, Schmitt e Raz. Revista Direito e Práxis, v. 6, p. 81-110, 2015.


Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados:www.streckadvogados.com.br.



Revista Consultor Jurídico, 25 de fevereiro de 2016, 8h00

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Existe montinho artilheiro epistêmico na teoria da decisão jurídica?







A grande temática sobre a qual venho me debruçando é a teoria da decisão jurídica. Sou adepto de um tipo de tese que pretende, a partir de uma criteriologia e apostas na responsabilidade política dos juízes, controlar as decisões, diminuindo consideravelmente o grau de subjetivismo, discricionariedade, para não falar da arbitrariedade. Falo sobre isso em Verdade e Consenso e Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica (cinco princípios-padrões a serem obedecidos, seis hipóteses de [des]aplicação da lei, três perguntas iniciais, demais perguntas que estão no capítulo específico no JC&DJ, etc.). O rechaço de qualquer relativismo parece ser um bom início nessa caminhada. Falo de teoria da decisão e não de um agir estratégico reservado ao advogado.


Do mesmo modo que, no cotidiano, o juiz não pode chamar um copo d’agua de ônibus, igualmente não pode dizer que, onde está escrito x, leia-se y (isso independe de critérios; aqui entra a autoridade da tradição). Por isso aposto em uma criteriologia que tenha o condão de fazer certo controle dos e nos “inconscientes”, “dos e nos subjetivismos”, “da fome dos juízes que ainda não almoçaram”, etc.. Juiz tem subjetividade, óbvio (mas, atenção: pré-compreensão não é o mesmo que subjetividade, preconceitos, ideologia, vontade);[1] tem inconsciente, evidente; mas não pode dizer o que quer sobre o Direito.


Para mim, é nisso que reside o papel do “fator Julia Roberts”: constranger epistemicamente. Não podemos sufragar, em tempos de linguistic turn, teses pelas quais, ao fim e ao cabo, o Direito (só) se realiza na decisão. No fundo, isso é reforçar o privilégio cognitivo dos juízes (PCJ). Se o Direito só se realiza na decisão, só resta aos juristas voltarem para casa. E aos clientes... contratar legal coaches e personal trainers jurídicos.


E aqui chego no ponto de hoje. Esta coluna tem o intuito de fazer uma reflexão, com muito carinho e profundo respeito, para com o que disse o meu querido Alexandre Morais da Rosa na coluna No jogo processual, é importante conhecer o fator Julia Roberts (ler aqui). Transcrevo a parte mais incisiva e que vai “no rim” de minha concepção, porque inclui na decisão exatamente o que, para mim, deve ficar de fora:


“A Teoria da Tomada de Decisão precisa ser atualizada, justamente para inserir os mecanismos contingentes do contexto, do sujeito humano julgador (mapa mental e emoções), que podem mudar a decisão pelo detalhe (efeito borboleta)”.


Em um parágrafo, Morais da Rosa lança o desafio e faz a crítica da década à hermenêutica. A provocação é ótima. Isso me permite fazer um pequeno esclarecimento na perspectiva de marcar uma posição hermenêutica, para que se possa abrir um canal de discussão de posições que — como bem já disseram Aury Lopes Jr. e Claudio Melim — objetivam uma profunda democracia, só que os caminhos são distintos.


Como demarco minha posição para diferenciar dessa tese de Morais da Rosa? Vamos lá. Parece-me claro que Morais da Rosa está propugnando por uma retomada do subjetivismo para compor um quadro de análise do processo decisional. O trecho ressalta uma dimensão quase personalista, que, ao fim e ao cabo, se sobrepõe aos instrumentos “exteriores” de limitação do poder decisório. É nisso que ocorre uma bifurcação em nossos caminhos.[2] E esse retorno de Morais da Rosa ao esquema sujeito-objeto fica mais nítido ainda quando fala sobre a importância dos gestos e atitudes das testemunhas, na sua coluna Engane-me se puder: a linguagem corporal entra no jogo processual? (ler aqui). Essa volta ao paradigma da subjetividade é tão flagrante que ele chega a sugerir, ao se referir à decisão do juiz do trabalho de Porto Alegre que anulou um testemunho por causa dos seus gestos (ler aqui), que, diante disso, o advogado deveria levar isso em conta e se preparar para a próxima audiência. Se entendi bem, Morais da Rosa quis dizer: o juiz não está errado. Isso é assim mesmo. O advogado é que deve se adaptar ao “jogo”. E montar uma estratégia. Logo, processo é um jogo. Mas, permito-me indagar: esse não é um jogo antidemocrático, em que a regra é feita pelo juiz (por sua intuição/cognição)? Particularmente, para enfrentar esse juiz, eu tomaria uma medida judicial para afastá-lo por pré-julgamento e total ausência de imparcialidade (entendida comofairness). Não vai funcionar? Bom, para isso que luto. Para mudar isso. Por isso tanto lutei para colocar coerência e integridade no novo Código de Processo Civil, tirar o “livre” do convencimento e ajudei no artigo 489.


Explico, no pequeno espaço da coluna, as razões pelas quais essa questão dos “mecanismos contingentes” (o aleatório), as emoções do sujeito-julgador, etc. é vista de outro modo pela hermenêutica. Heidegger e Gadamer levam o pensamento para uma dimensão na qual não se tenha como ponto de partida a subjetividade assujeitadora do mundo. A propalada contingência decisional está assentada nos elementos volitivos do agente decisor. É o velho problema que ocupa os filósofos desde o medievo: afinal, a Razão controla a vontade ou, ao contrário, a Razão está sempre assujeitada pela vontade? A hermenêutica (fenomenologia hermenêutica e a CHD dela derivada) que ir além desse dualismo, buscando colocar o problema retratado para além (ou fora) do sujeito, num espaço em que os projetos de sentido são controlados pela linguagem. Não se mata o sujeito da relação de objetos, como bem já explicou tantas vezes Ernildo Stein. Mas nos obrigamos a retirar essa subjetividade que assujeita os objetos. Como afirma Gadamer, na modernidade emerge uma espécie de “cegueira da vontade” (“diabolia da vontade”, nas palavras de Heidegger). É preciso se contrapor a essa “compulsividade” da vontade, sempre sujeita às contingências. E isso se faz em uma abertura com a linguagem pública, intersubjetiva, em um mundo que não é meu, é sempre compartilhado.[3] Ou seja, trazendo isso para a decisão jurídica, em vez de nos perdemos no universo particularista das vontades individuais e emoções do sujeito julgador, deve(ría)mos investir na prospecção e descrição fenomenológica do sentido publicamente compartilhado e que deve(ria) sustentar/legitimar as decisões judiciais.


Voltando para o belo, sedutor e erudito — como é do seu feitio — texto de Morais da Rosa: o paradoxo está no fato de que, se ele tem razão — pode ter, mas espero que não tenha — não haverá propriamente uma teoria da tomada da decisão. De que modo posso teorizar algo se o imponderável (fazendo uma alegoria com o futebol, uma espécie de montinho artilheiro epistêmico) pode mudar a decisão? Morais da Rosa diz que a decisão exige um certo jogo. Mas, permito-me indagar: mas algo há de sustentar o jogo que, por sua vez, sempre tem regras, pois não?


Como “teorizar” os gestos, o detalhe ou o efeito do efeito borboleta, que pode ser um tropeço em uma pedra que o juiz deu pela manhã ou qualquer outra coisa? Lembro-me que, quando menino — meu pai era uma fera — fui encarregado por minha irmã para pedir a ele para que a deixasse ir ao baile no salão da vila. Com meu jeito brincalhão e fazendo os pedidos no estilo de narração de futebol, por vezes obtinha sucesso. Lembro que, no momento em que havia terminado a narração (usava o “abrem-se as cortinas” do Fiori Giuliotti), meu pai, que estava carregando uma tábua em direção ao estábulo, tropeçou violentamente em uma pedra. E, em vez de dar a permissão à minha irmã, deu-me um tabefe. Sim, contingencias. Efeito borboleta.[4] Só que meu pai não era juiz. Nem havia regras ou Constituição que lhe pudessem constranger a agir de modo correto. E não havia, para mim e minha irmã, uma corregedoria ou instância recursal. Não havia um duty, um dever, que impusesse ao meu pai agir de outro modo” — meu pai não tinha esse dever — ao contrário dos juízes, que detém responsabilidade política e que, portanto, have a duty to, ou seja, têm o dever de aplicar o Direito corretamente. Por isso, minha insistência em uma teoria da decisão com “objetividades hermenêuticas” (texto-evento, tradição, etc.) que consigam amarrar “as emoções” do sujeito-julgador. Afinal, o esquema sujeito-objeto já foi superado. Ou não?


Por isso, uma teoria da decisão deve procurar criar condições de previsibilidade. Garantir que uma coisa simples do direito seja cumprido: as regras do jogo (ah, como isso está faltando atualmente, pois não?). Deve procurar criar condições para que o direito seja aplicado de forma equânime. E que, mesmo que o juiz esteja “p” da vida com o mundo, tenha brigado com sua mulher, ele tem de suspender isso tudo e decidir de acordo com as regras. Decisão não é escolha, como muito bem diz Heinrich Rombach, conforme explico detalhadamente nos Comentários ao artigo 489 do CPC (Comentários ao Código de Processo Civil, no prelo, Saraiva, 2016).


Isto porque o Direito não está à disposição do julgador. O jurisdicionado não pode ficar à mercê justamente das contingências, do tropeço na pedra, da “sede de ser justiceiro” ou da vontade de ser um “juiz Magnaud”. Não há sorte ou azar nisso, como no filme Match Point, de Wooddy Allen. Ora, se alguém vai arrogante para a audiência e com a camisa para fora da calça, isso significa que é culpado? Ou que é inocente? Diz o estimado Morais da Rosa que “sabemos, todavia, a diferença entre um sorriso sincero e um falso/forçado”. Desculpem, mas eu não sei, até porque, pergunto, quais seriam os critérios de diferenciação? De novo: se o processo é um jogo e você precisa estar preparado para isso, uma coisa é certa: não é de Direito que se trata. Técnicas de valoração probatória podem ser úteis, mas não são teoria da decisão, convenhamos. Talvez Morais da Rosa e eu tenhamos apenas que acertar os termos de diferenciação daquilo que ambos queremos.


É evidente que todos os dias acontece esse tipo de fenômeno do qual fala Morais da Rosa (a decisão do juiz do trabalho de Porto Alegre é um bom exemplo). Só que isso está fora do Direito. Por exemplo, se você passa a perna e engana um juiz, isso é uma coisa que pode ocorrer e, como resultado, você “ganha a causa”. Mas “ganhou” fora das regras do jogo (já que se quer usar a palavra “jogo”). Ora, o Direito deve servir justamente para que isso não aconteça. O Direito não pode ser compatível com algo que se não possa prever e escape de uma racionalidade (chamemo-la de discursiva, comunicativa, hermenêutica, etc.).


O irônico nessa história de gestos, atitudes corporais, etc., é que mesmo eles são sintomas que exigem interpretação. Não há ontologia que permita acessar a uma “essência dessas coisas”. Ainda que esses comportamentos e atitudes pudessem contar para efeito da decisão, eles mesmos não estão à disposição do juiz. Se são sintomas, expressam uma "linguagem corporal" que, como tal, remetem-se a uma vivência ou experiência intersubjetivamente compartilhada sem a qual seriam completamente destituídos de sentido. Em outras palavras, nada disso é meramente subjetivo e o juiz não tem acesso privilegiado à "verdade corporal". Afinal, quer o juiz dizer "a" verdade dos corpos dos outros? Como diz R. Palmer: quando o subjetivismo se coloca na base da situação interpretativa, o que é interpretado senão uma objetificação?


Proponho, pois, a partir da CHD, contestar isso com elementos exógenos, já que sobre os endógenos não tenho controle. Se no futebol existe o montinho artilheiro como contingência ou “o imponderável”, a solução é passar uma máquina roçadeira para reduzir a sua incidência. A questão é saber se podemos admitir que, no Direito, na hora de decidir, a decisão possa ser produto de um montinho epistêmico contingente.


Em síntese: teoria jurídica, como diz Dworkin, é teoria normativa, prescritiva de critérios para a decisão. E estes critérios devem estar radicados em boas justificativas para o uso da coerção oficial. Não me bastadescrever o fenômeno; quero é fornecer critérios para que se decida corretamente. Boa parte do debate Hart v. Dworkin, como sabem, gira em torno desta discussão.[5] O que me interessa investigar é: sob quais condições as pessoas adquirem direitos e obrigações genuínas, a serem reconhecidos diretamente numa demanda judicial?


Poder-se-á alegar que essa “questão da análise de gestos, sorrisos com o canto da boca, etc.” deve ser feita mesmo a partir do PCJ, porque, afinal, é ele quem está vendo tudo. Neste caso, o juiz usaria a psicologia cognitiva ou qualquer outra teoria behaviorista. Mas, na hora da sentença, “funcionará” a intersubjetividade? Haveria, assim, dois juízes: o que usa a psicologia cognitiva, com o aproveitamento de esquemas mentais, efeito borboleta, etc. e o que elabora a decisão? Bem, não creio nisso. Essa cisão (bipolaridade) é impossível. Não há essa figura que, a um tempo é subjetivista na audiência e, ao depois, transforma-se em intersubjetivo na elaboração da decisão propriamente dita. Não é possível ter uma padrão confiável sobre o comportamento gestual, etc., de uma pessoa em dado ambiente, pela simples razão de que não é possível teorizar ou criar padrões sobre essa imponderabilidade do comportamento humano. Mas sobre o que diz a jurisprudência e a lei, sim, podemos teorizar. Sobre o imponderável e o efeito borboleta, não.


Claro que isso que acabei de dizer vem de um lugar de fala: a hermenêutica. E ela, como diz Gadamer, não quer ter a última palavra. Nem pode. O papel das teorias em geral (teorias da argumentação, teorias sistêmicas, discursivas em geral) e da inovadora tese desenvolvida por Morais da Rosa é de suma importância. Todos queremos aprimorar a democracia. E queremos mais justiça. Os caminhos para lá chegar é que são diferentes.


Só uma coisa a mais: se tudo o que Morais da Rosa falou está certo, como vamos explicar nossa contundente crítica à condenação de Meursault, em oEstrangeiro de Camus? Ele foi condenado... porque não chorou no enterro da mãe.


Post scriptum. Quase esqueci: como vamos explicar nossas críticas ao clássico sentença vem de sentire? Teremos que dar razão a quem diz isso? Afinal, interpretar gestos, piscadelas e esfregação de mãos não põe à prova um-juiz-que-sente?[6] Leiamos o que diz Morais da Rosa:


“pois basta um único sinal, certa arrogância, risinho de canto de boca, roupa fora do contexto, postura, contato visual, para que tenhamos um julgamento sobre o sujeito, naquilo que a psicologia cognitiva denomina de heurística e vieses, com os quais diminuímos a carga de trabalho mental e manejamos melhor o dia a dia. São atalhos mentais pelos quais o complexo processo de decisão é facilitado”.


Tenho apenas uma pergunta sobre isso: Quem deu esse poder ao juiz?




[1] Em Verdade e Consenso deixo isso bem claro, mormente na crítica à Daniel Sarmento, que, em uma crítica a mim, confundiu os conceitos.




[2] Para registro: 1. Não ignoro a importância da Psicologia Cognitiva e seus estudos; 2. Não ignoro que o corpo fala; 3. O que questiono é a transposição para o direito, cuja pretensão é regular condutas, preservar liberdades e impor regras que sejam aplicadas de forma equânime; 4. Sim, sei que advogado faz um agir estratégico; sua defesa deve ser feita levando em conta milhares de variáveis, nem mesmo importando se seu cliente tem ou não razão (lembremos do filme The Bridge of Spies - ver aqui); 5. Ocorre que uma teoria da decisão não trata do agir estratégico das partes; trata, sim, do agir por princípio e com responsabilidade política do juiz.




[3] GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica em Retrospectiva: Heidegger em retrospectiva. Vol. I Tradução de Marco Antônio Casanova. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 37.




[4] Vejam o problema do efeito borboleta: vamos supor que meu pai tenha desviado seu caminho porque uma galinha atravessou e, assim, não tropeçou. Assim, em vez de me dar um tabefe, deixou minha irmã ir ao baile. Ela conheceu uma pessoa que não o meu cunhado e com ele se casou. Com isso, não saio do meio do mato e não vou morar com ela na cidade. E não continuo meus estudos. Não faço faculdade de Direito, mestrado, doutorado, etc e nem tenho esta coluna no ConJur. Neste caso, o paradoxo: eu não estaria escrevendo este texto e nem teria conhecido pessoas tão queridas como Alexandre Morais da Rosa e tantos outros Amigos por esse mundão de Deus. Ou escrevi esta Coluna justamente por causa do efeito borboleta? Quem vai saber...




[5] Aqui remeto o leitor à excelente tese de doutorado (UNISINOS) de Francisco José Borges Motta. Ronald Dworkin e a decisão jurídica, que está no prelo pela Juspodivm. 




[6] Sem entrar na discussão da tradução e do sentido correto da palavra “sentire”.



Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados:www.streckadvogados.com.br.






Revista Consultor Jurídico, 18 de fevereiro de 2016, 8h00

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Making a murderer, Orestéia e minha ode à Constituição!





21 de janeiro de 2016, 8h00

Por Lenio Luiz Streck


Esta coluna é jurássica. Ortodoxa. De quem acredita na Constituição. Simples assim! Convido-os para essa travessia. Como Ulisses, em que as correntes que lhe amarram são a sua própria salvação!

Parcela considerável dos pindoramenses já conhece a série americana Making a Murderer (ver aqui). Há vários artigos, inclusive de juristas, comentando o assunto. Tentarei fazer isso de outro modo. A história: Trata de um sujeito pobre — Steven Avery — detestado pelas autoridades (por "boas" razões) que é condenado por um crime que não cometeu. 18 anos depois, é inocentado pelo exame do DNA. Vira uma celebridade: processa o Estado por 36 milhões, vira nome de legislação etc. até que... é preso por novo crime. É preso de novo e só se quebra.

Make a murderer, Orestéia e seu simbolismo
A série é constrangedoramente simbólica, mormente se pensarmos na justiça penal de um país periférico como o nosso. A série televisiva chocou os estadunidenses. Será que nos choca? Quantos desses Steven Avery andam por nosso sistema carcerário? De pronto, lembro de um caso recente ocorrido no Rio Grande do Sul, em que o exame de DNA, embora apontasse para um novo julgamento ou até mesmo da inocência (por exclusão) do réu (preso), foi recusado pelo Tribunal de Justiça estadual (veja aqui) por maioria de votos. A desembargadora relatora considerou procedente o pedido, uma vez que o exame de DNA comprovou que fora encontrado sangue no local do crime e que esse sangue não era do réu e, sim, de outro indivíduo. Nenhum outro elemento de prova técnica incriminou o réu-revisante. Só a palavra da vítima. De todo modo, o que impressionou nos votos que negaram a revisão foi o argumento de que o DNA não comprovou com certeza a exclusão do acusado (o exame não teria falado em percentuais). Mas, a pergunta é: não deveria ser o contrário? Não seria a condenação que exigiria prova robusta e certa? A razão não estaria com a desembargadora relatora, que, embora não convencida da inocência do revisante, deu-lhe o benefício da dúvida? Aqui, em vez da série Making a murderer, poderia ser utilizada a tragédia grega Orestéia, em que surgiu pela primeira vez a aplicação do in dubio pro reo, porque o resultado do julgamento apontou cinco votos a favor da inocência de Orestes (acusado de matar a mãe Clintemestra e o seu amante, Egisto) e cinco votos pela sua condenação. Foi absolvido pela juíza Palas Atena com base no in dubio pro reo. Qual é a moral da história nessa tragédia grega? Na verdade, duas: a primeira, na dúvida, você absolve; a segunda, o direito é que institucionaliza o castigo. A vingança privada foi banida.

De como quase 300 anos de prisão se transformam em 7 — tipo made in Pindorama
Mas poderíamos também falar de outros casos. Por exemplo, nestes tempos de delação premiada, a palavra do delator tem valido tanto quanto a da vítima no caso do estupro da revisão criminal. Interessante é que, como se trata de “acordos de delação”, não há recurso. Uma pena de 13 anos se transforma em 1 ano (sem previsão legal). Conforme levantamento da Folha de S.Paulo, condenações de 13 delatores somam quase 300 anos, só que transformados em menos de sete anos. Bingo. O problema é: qual é o “DNA” das delações? Como se questiona a autenticidade de tudo o que foi feito, se não há recurso? Sim, porque o delator fica satisfeito; a acusação, idem. O juiz homologa. Como não existe um Ombudsman para recorrer, a substancialidade da delação vai para as calendas. Quase que uma questão de fé. Veja-se como atua a Justiça: exige-se que a absolvição do réu em revisão criminal seja baseada em certeza; já nos casos das delações, basta a palavra do delator, com alguns resultados “tipo-devolver dinheiro”. O mais bizarro nas delações tem sido os casos de acareação. Cada delator mantém sua versão. E daí, alguém perguntaria? E eu respondo: daí é que, se as versões são conflitantes, é impossível que ambos falem a verdade. Logo, um está mentindo. Consequentemente, se um está mentindo e a questão está duvidosa a ponto de ter exigido a acareação (se a justiça tivesse certeza, não precisaria acarear!), então é porque há dúvida. E, de novo, vem à baila a Orestéia. Mais: Suponha-se que o próprio delator diga algo em favor do delatado — ou algo que não é contra — e a PF e o MPF não transcrevem exatamente esse pedaço da fala (ler aqui)? Tal omissão — imaginemos que seja verdadeira a denúncia da matéria — desse “pequeno detalhe” é proveniente de culpa transcrevendum, culpa traduzindum, culpa esquecendum, ou culpa digitandum? Pergunta que não quer ser “esquecida”: se o advogado reclama desse “detalhe”, ele está apenas fazendo um jus esperniandum, como quiseram fazer crer algumas autoridades ao comentar o manifesto dos 100 advogados? Mistério. Muito mistério. Duros tempos, em que o advogado tem de pedir desculpas por estar de costas, para os que entendem o anedotário popular.

A incompatibilidade entre processo penal e consequencialismo
Voltando ao Making a murderer. O que está por trás dessa discussão toda é: os julgamentos criminais devem ser consequencialistas ou por princípio? Alguém pode ser condenado porque “isso trará paz social” ou “fará bem à alma da sociedade”? Ou seja: alguém pode ser condenado por argumentos consequencialistas-utilitaristas? Por exemplo: na hipótese de alguém ser condenado tendo por base uma prova “mal havida” (ilícita), esse julgamento é válido? Um consequencialista diria que, se essa prova ilícita apontou o verdadeiro culpado, a condenação deve ser mantida. Já um não-consequencialista, que age por princípio, dirá que o réu deve ser absolvido, mesmo que isso desagrade ao clamor público. “— Ah, mas ele merece. Ele é ‘mau’. A condenação se deu por ‘boas razões’”, diriam muitos (a maioria). E eu insisto, andando na contramão: Em uma democracia, o julgamento deve ser por princípio. Contra tudo e contra todos.

Eis os dilemas da aplicação da lei e da Constituição. Há um filme americano em que o sujeito é absolvido porque a arma do crime foi encontrada pela polícia na caçamba do lixo. O assassino havia atirado a arma no lixo. Os lixeiros pegaram o lixo e colocaram no caminhão. A polícia chegou e recolheu a arma. Não tinham mandado judicial para isso. O lixo, ainda não revirado, era ainda privado. Sem mandado, a prova é inválida. Terrível não? Caricato? Pode ser. Mas nesses casos trágicos é que se mede o valor das garantias. A Constituição quando as estabelece, o faz contra as maiorias.

Ninguém quer impunidade. Mas a punição nunca pode ser a qualquer preço. O nosso democraciômetro acende a luz amarela quando procedemos de forma consequencialista... no Direito. No cotidiano, cada qual pode ser consequencialista. Minhas atitudes cotidianas estão baseadas na minha moral. Só que, no âmbito público, essas minhas convicções não devem importar quando se tratar da aplicação de algo que nós convencionamos colocar na Constituição a partir de uma linguagem pública. E nossos argumentos morais não poderão corrigir isso que já está convencionado. O Direito é um remédio para combater o crime. Mas é um remédio para que esse combate se dê dentro de regras. Caso contrário, não precisaríamos do direito. Simples assim.

Direito não é moral e nem moralismo. Ou voltaremos às ordálias.
Se muitos juristas não gostam que o Direito conceba garantias para os culpados, como saberemos se, de fato, eles são culpados? Teremos que, primeiro, saber se são. E para isso há regras. Caso contrário, podemos amarrar as mãos do indiciado, amarrar-lhe uma pedra no pescoço e o atirar na água. Se flutuar, será inocente. Se afundar, culpado. Bingo. Esse é o desejo da maioria. Ups. Aí é que entra o direito. Binguíssimo. Como um remédio justamente... contra maiorias. Não há direito sem processo. Processo é como o raio X do aeroporto. Todos devem passar por ele. Por isso, Making a murderer pode ser uma importante lição. Condenar pessoas por boas razões ou com base em prova falada, pode ser politicamente conveniente para a maioria. Mas pode nos custar caro mais adiante.

Uma palavra final: Você é jurista e não gosta da Constituição? Que pena.
As vítimas são importantes. Seria uma cretinice alguém não se importar com as vítimas. A corrupção deve ser combatida. Devemos diminuir as taxas de impunidade. E as taxas de criminalidade. Elementar isso. Entretanto, a democracia tem um custo. Um ato pode ser considerado absolutamente injusto, imoral, etc. a partir da filosofia moral, da religião, do senso comum. Você quer “fazer” filosofia moral? Vá ler Michel Sandel. Ou vá estudar os filósofos morais. Que, entretanto, também precisam, na hora H, do direito. Para viver em sociedade.

Por que estou escrevendo isso? Para dizer que, se você pode achar as coisas injustas, etc..., há que se dar conta de que no direito isso se dá de modo diferente. Não fosse assim, poderíamos torturar pessoas para obter a verdade de um processo (aliás, o argumento da “verdade real” é uma espécie de tortura; aliás, usa-se como se quer; quando não se quer, diz-se que a prova é intempestiva). Quem acha que a moral pode corrigir o Direito, deve, antes, se perguntar: e quem vai corrigir a moral? Quem? E qual a moral? A do intérprete? Não seria melhor deixar essas “coisas” para a lei e a Constituição?

Não é fácil ser jurista. Não é fácil ser coerente. Se o Direito vai contra o que você pensa e se a Constituição é ruim porque dá direitos aos “bandidos”, ok... mas, então, faça outra coisa. Tem tantas outras profissões nas quais você pode ser útil. Usando um exemplo radical: não faz muito, um juiz norte-americano escreveu para a Suprema Corte dizendo que não podia aplicar determinada pena porque a considerava injusta. Um juiz da Suprema Corte lhe respondeu: “— Peça demissão! Vá fazer outra coisa”. Desculpem pelo exemplo. Poderia usar um outro, como: “— Não aplicarei essa garantia a favor do réu porque eu sei que ele não merece”. Em um sistema de justiça democrático, uma Suprema Corte lhe responderia: “Peça demissão.”

Post scriptum: li as notas dos juízes e procuradores e também os artigos dos articulistas da Folha Josias de Souza (leia aqui) e Mario Sergio Conti (leia aqui). Não vou discutir as notas. Já com relação aos articulistas, que dizem que os signatários do manifesto nunca se preocuparam com os 240 mil presos pobres do país e de que os signatários teriam feito um manifesto para os ricos, digo apenas que os dois, talvez por serem jornalistas, nunca leram Jacinto Coutinho, Lenio Streck, Celso Antonio, para falar apenas destes. Há quantos anos berramos contra esse sistema? Quantos manifestos e artigos subscrevi, dizendo que no Brasil la ley es como la serpiente; solo pica al descalzos. Fui o primeiro a propor a tese de que a descriminalização do crime de sonegação nos casos de pagamento antes da sentença fossem estendidos ao furto e estelionato...(e lá estava a frase La ley es...). Nas minhas cerca de 700 conferências no Brasil e no mundo, denuncio essas injustiças ad nauseam. Josias e Conti deveriam ler mais os juristas. O que o manifesto quer dizer é algo que pode surpreender aos jornalistas: até agora as vítimas do sistema penal em Pindorama eram os pobres; nega-se-lhes o direito historicamente (ah, quanto já escrevi contra isso!); e agora esse braço longo do autoritarismo se estende também aos ricos. Viva, diriam. Pois é. Talvez esse seja o “modo tupiniquim” de distribuir a justiça. Bater em todos para firmar a igualdade também na injustiça. Antes — em vez — de dar garantias aos pobres, tiremo-las dos ricos. Zeremos tudo. Afinal, os pobres nunca tiveram mesmo. Bingo. Mas eu não compactuo.

A propósito, para avisar aos dois jornalistas: minha denúncia de que os tribunais da federação continuam (no século XXI, nas barbas dos jornalistas e dos jornaleiros) invertendo o ônus da prova nos crimes de furto e tráfico de entorpecentes... não teve resposta até agora (nem dos tribunais e nem da imprensa). E a denúncia de que não construímos uma doutrina para o Habeas Corpus, idem (aliás, não vejo reportagem sobre isso nos grandes jornais!). Silêncio eloquente... das maiorias.

Claro: enquanto o réu não for um de nós ou de nossa família, alienamos a nossa ação ao outro. Sim: a palavra “outro” em latim é... alienus. Daí a palavra “alienação”. Como maioria, alieno-a-minha-ação-ao-outro. Não é comigo. O inferno são os outros. Por isso — e isso já disse tantas vezes por aí — uma pessoa alienada... ali-é-nada! Se entendem o que quero dizer. Não é fácil ser coerente. É na alegria e na tristeza.



Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.

Revista Consultor Jurídico, 21 de janeiro de 2016, 8h00

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Que o mundo foi e será porquería, ya lo sé...Mas dá tudo no mesmo?







Abstract: A coluna trata da (in)tolerância e usa como pano de fundo um tango argentino feito em 1934. Uma das frases do tango está no título. E, no fundo, a coluna é uma ironia profunda com Pindorama. Tudo o que estamos passando...

Um filósofo liberal (por favor, não vamos brigar com — e por causa — [d]esse epíteto, porque, como verão na sequencia, a coisa começa por aí) como Karl Popper disse:

"A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estamos preparados para defender uma sociedade tolerante contra os ataques dos intolerantes, então, os tolerantes serão destruídos, e a tolerância juntamente com eles. [...] Devemos, portanto, em nome da tolerância, reivindicar o direito de não tolerar os intolerantes.” "

Esse enunciado de Popper serve para muitas coisas. Penso que pode ser aplicado às relações entre articulistas da ConJur e os leitores. E aos frequentadores das redes sociais. E às relações entre os poderes da República.

Vamos lá, então. Os artigos e as colunas da ConJur não devem ser o espaço para o extravasamento da intolerância dos leitores. Devemos defender os articulistas do ataque dos intolerantes. Críticas podem ser feitas de forma respeitosa. E, mais: se o articulista-colunista escreve sobre “fazendas”, não ponha comentários sobre igrejas, sexo, automóveis ou impeachment. E também não faça comentários sobre “roupas”, porque leu rapidamente e achou que o escrito era sobre outro tipo de... fazenda.

Com efeito, lendo as colunas e artigos publicados na ConJur constato uma coisa simples e prosaica: não importa o conteúdo do que se escreve. O que importa é o ódio de uma parcela de leitores que goza com a raiva contra os colunistas. Há um tipo de leitor que fica esperando algumas colunas para... gozar. Como a raposa no Pequeno Príncipe: se tu vens as quatro da tarde, desde as três sou feliz... Algo como “desde quarta à noite já sou feliz porque gozarei na quinta a partir das oito”. Li um comentário à coluna de Jacinto Coutinho do último sábado e fiquei pensando: quem é o fulano-comentador que se arvora no direito de dizer que o texto de Jacinto é falacioso ou outros adjetivos? Lendo a coluna de Ingo Sarlet dia desses, verifiquei que um leitor disse que atiraria fora os livros de Sarlet. Poxa. Por que esse ódio na internet?

Poucos suspendem os seus pré-juizos. Escrevem a partir do seu senso comum mais comum possível. Alguns se escondem atrás de acusações genéricas aos colunistas. Li na última semana um comentarista insinuando inópia ou apedeutice do colunista (ou dos colunistas da ConJur), algo como “oh, como eu sei as coisas e os colunistas da ConJur são burros; que injustiça eu não estar nesse rol”). Meu conselho ao “pedeuta” (sic) já que os colunistas são Apedeutas: Mande uma carta para o Papai Noel pedindo uma coluna de presente.

Veja-se o nível: No artigo em que escrevi com Cezar Bitencourt, um comentarista, para esculhambar com o que escrevemos, fez uma ode à China e o fato de que lá, há dias atrás, tinham executado um corrupto com um tiro na cabeça. Para o comentarista, assim é que se combate a criminalidade. Viva, não? Quem sabe adotamos isso em Pindorama?

Alguns comentaristas se especializaram em hate speeches. Por exemplo, a coluna de Jacinto deveria ser recortada e colocada nas portas dos fóruns e tribunais de Pindorama. Mas, não. É objeto de preconceitos e de um discurso de várzea que cai na dicotomia bem pindoramense: ou você é petista ou você e anti-petista. Quanto desperdício de energia. Deveriam ler livros. Sim. Ler é uma atividade interessante. Na minha página do face, um leitor escreveu acerca de meu comentário sobre a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin (voto aberto): chamou a ambos (Fachin e a mim) de petralhas. Genial, não? Grande comentário. E se Fachin mudar o voto? Ele se torna um coxinha?

Com relação à coluna que tratou do TCC e o tal “direito dos manos” (sic), ocorreu a mesma coisa. Na verdade, a coluna foi um teste. As colunas sofisticadas sobre temas reflexivos não chegam a mil recomendações ou 3 mil acessos. Esta sobre o TCC recebeu mais de 9 mil recomendações e mais de 18 mil acessos. Que tal? O que interessa mais aos leitores, afinal? Não, não é preciso responder. A pergunta foi retórica.

Haters gonna hate
Cada semana se repete a ladainha da raiva. O leitor Alexandre (que na verdade, inspirou-me a escrever este texto) foi no âmago da coisa, ao escrever “haters gonna hate”, verbis: Acho que é esse o espírito de alguns comentaristas aqui, que acham que faz sentido um TCC feito em 4 dias cujo, segundo a própria autora, reflete posicionamento de matérias de jornais e revistas”. O leitor Victor do Nascimento disse: “Até aqui Fla-Flu?: A principio, já achei bastante assustadora a notícia sobre o TCC, denunciado pelo Profº Streck. Mas, quando tive a curiosidade de ler os comentários, o episódio do TCC deixou de parecer tão grave, na medida em que foi superado pelas substanciosas ponderações prestadas em alguns comentários. Como um artigo tratando sobre a má-qualidade do ensino jurídico — ilustrado pelo TCC que foi aprovado "com louvor" — em nossa querida pátria educadora ganhou esse viés político? Essa parece ser uma nova tendência, também no meio "jurídico". Bingo, Victor. Binguíssimo. O advogado Bruno Roso também chama a atenção para o que está ocorrendo,verbis: “O nível dos comentários ilustra com perfeição a crítica do Professor Lênio”. E, pronto. E, vejam: a minha preocupação com os haters vem acompanhada por vários comentários, como o de Thiago, que, corretamente, alerta para o fato de que estes (os haters) estão aumentando em número, gênero e grau. Exato, Bruno. De todo modo, homenageio aqui a leitora Lanaira, que finalizou bem o seu comentário respondendo a uma (gratuita) crítica de um promotor de Justiça: “que criticazinha”. Bingo, Lanaira. Matou a pau, sendo intolerante com um intolerante (Lanaira foi popperiana, por assim dizer). Portanto, vejam: os próprios leitores respondem aos haters.

Por favor, paremos com esse discurso de ódio. Essa várzea tem de acabar. Não queria dar razão a Umberto Eco, mas acho que ele estava certo quando disse que a internet é o lugar em que os idiotas perderam a timidez. Bingo, Umberto. Pelo menos no caso concreto, das colunas de Jacinto, Ingo e as minhas (e as do Diário de Classe). Ah: a expressiva maioria dos leitores da ConJur são militantes da área do Direito. Sofrem — e como sofrem — no dia a dia com as idiossincrasias forenses (estou sendo generoso e eufemístico). Não se dão conta — me refiro, é claro, aos epistemical haters — que, se eles fazem assim, ideologizando e flafuzando tudo, por que esperar conduta diferente de juízes e promotores nos seus processos? Claro: não quero que os leitores da ConJur ou os que escrevem nas redes sociais ajam por princípio; não há problema em fazer ações estratégicas; mas, por favor, há que colocar um mínimo de racionalidade nos dizeres. Por que ideologizar tudo?

A coluna é curtinha. Encerro com um tango composto em 1934 por Enrique Santos Discépalo, com o qual meu amigo Ernildo Stein me homenageou por ocasião de meu cumpleaños no dia 21 de novembro: “Vamos, amigo Lenio pensar juntos no teu aniversário com a musicalidade do tango Cambalache” (ouça aqui o tango):

Que el mundo fue e será / una porquería, ya lo sé. ... Hoy resulta que es lo mismo / ser derecho que traidor,/ ignorante, sabio, chorro,/generoso o estafador.../ todo es igual!/Nada es mejor!/ Lo mismo un burro/ que un gran profesor./No hay aplazaos ni escalafon,/ los ignorantes nos han igualao./......Que falta de respeto,/ qué atropello a la razón! Cualquiera es un señor,/cualquiera es un ladrón.../...... Siglo vinte, cambalache/problemático y febril...El que no llora no mama/y el que no afana es um gil........No pienses más; sentate a un lao,/que a nadie importa si nasciste honrao.../ Es el mismo el que labura/ noche y día como un buey,/ que el que vive de los otros, /que el que mata, que el que cura,/ o está fuera de la ley...1

Obrigado, querido amigo Ernildo Stein. Foi muito bom nos encontrarmos na Dacha no dia 12 último, juntamente com os meus orientandos que labutam no Dasein-Núcleo de Estudos Hermenêuticos (ver aqui a foto).

Sigamos todos na luta, sem discursos raivosos. Saludo! Vamos separar o joio do trigo. E não fiquemos com o joio. Se alguém gosta de insultar, deveria ler pelo menos um cara sofisticado sobre o assunto. Falo de um livro famoso de Henry-Louis Mencken chamado O Livro dos Insultos. Só que era um primor de crítica ao establishment e ao senso comum. Sobre a fragilidade humana e a possibilidade do erro, não dizia: o homem é um imbecil. Dizia assim: “Se a verdade é sempre mal recebida pelo homem, o erro é recebido de braços abertos”.

E para quem gosta de ficar dizendo “ah, o colunista sofistica...; ah, isso tudo é muito filosófico; ah, na prática a teoria é outra” e outras simplificações desse jaez, o mesmo Mencken tem uma frase lapidar: “Para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada”. Bingo, Henry-Louis Mencken!

Post scriptum: a coluna é fechada no início da tarde de quarta; tudo o que ocorre depois não pode ser incorporado.


1 Que o mundo foi e será / porcaria, eu já sei. ... Hoje dá no mesmo / ser correto e traidor, / ignorante, sábio, punguista,/ generoso ou estelionatário / tudo é igual! / Nada é melhor ! / São o mesmo um burro e um grande professor. / Não há notas ou mérito, / os ignorantes nos igualaram. /... Que falta de respeito, / que atropelou a razão! Qualquer um é um cavalheiro, / qualquer um é ladrão... /...... Século vinte, cambalacho/problemático e febril ... Quem não chora não mama / e quem não engana é um trouxa.... Não penses mais; senta-te ao lado que ninguém se importa se nasceste honrado/ É o mesmo àquele que trabalha / noite e dia como um boi, / que àquele que vive às custas dos outros / é o mesmo aquele que mata e aquele que cura, / ou o que está fora da lei... 


Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados:www.streckadvogados.com.br.



Revista Consultor Jurídico, 17 de dezembro de 2015, 8h00

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

TCCs no Direito: como não se deve escrevê-los — retratos da crise






Abstract: a coluna trata da dramática situação dos trabalhos de conclusão de curso (TCC) em Pindorama; ou “arrumamos” isso, ou “isso” pode ser a pá-de-cal da e na crise do Direito. No PS falo do impeachment.

De há muito denuncio a crise do ensino jurídico em terras brasileiras e de que como esta tem (de)formado nossos estudantes e profissionais. É óbvio que este cenário não representa a totalidade dos nossos cursos jurídicos. Contudo, infelizmente, isso é de se esperar em um país em que tem mais faculdades do que professores aptos a lecionar. Hoje meu olhar para esta crise se volta para o “temido” TCC. Acho este um termômetro, no mínimo razoável, para pensar como estão se saindo nossos estudantes que durante cinco (ou mais) anos estiveram por horas e horas sentados nos bancos universitários.

Nesta semana fui surpreendido (se é que ainda há algo com que possamos nos espantar...) com a matéria de um jornal de uma cidade da nossa região sul. Nela uma aluna, devido ao seu êxito no seu TCC, foi entrevistada em página inteira e nos deu algumas pistas de como estamos avaliando e distinguindo um bom trabalho de um ruim, e o que e como nosso estudante produz cientificamente falando. Com efeito.

A aluna protagonista da reportagem começou dizendo que sua pesquisa versou sobre os “Direitos Humanos ou Direitos dos Manos”. E que foi orientada por sua professora de Direitos Humanos que inicialmente mostrou alguma hesitação, mas depois foi favorável e achou a temática interessante. Conforme sua afirmação, depois de dias e dias de intensa dedicação, a professora “rejeitou” a primeira versão e a estudante teve que recomeçar do zero.

Ela conta que, neste recomeço, encontrou uma obra que foi muito importante para o desenvolvimento de seu TCC, citando um fragmento: “nossa Constituição foi promulgada sobre o signo da dor, suposta ditadura militar, entre outras. Então as pessoas foram criando muitos direitos e criou-se o direito de ser criminoso". (grifei) Gostei da expressão “suposta ditadura”. E do “direito de ser criminoso”. Será que estamos lendo a mesma Constituição? A pergunta é: como um trabalho pode ser erigido a partir da premissa de que a nossa Carta Constitucional constitui uma realidade ampla de direitos, dentre eles o de ser criminoso (pareceu-me que o autor da frase faz uma análise jocosa da Constituição ou estou enganado)? E o que é isto — a suposta ditadura? Está certo que o jurista-autor-do-texto-citado pode ser conservador, mas, por favor, até o ponto de dizer isso? Bom, como não tenho como verificar a informação, não declinarei o nome referido pela aluna. Mas não tenho como duvidar da aluna e tampouco de sua professora-orientadora.

Seguimos com a entrevista da aluna. Faltando quatros dias para a entrega final, ela conta que recebeu a segunda correção e que a professora informou que o trabalho não estava apto para ser apresentado para a banca. Então nestes pouquíssimos dias, como veremos, quase que milagrosamente o trabalho foi da água para o vinho. Ela diz que teve que começar do zero, de novo. Só que, agora, em vez de usar uma redação mais opinativa, buscou reportagens polêmicas sobre o assunto. E delas extraiu suas conclusões finais. Um novo recorde: um TCC em quatro dias. Observação: ela não disse se manteve a citação do autor do “direito de ser criminoso”. Estou curioso para ler o TCC. Bom, como a douta banca recomendou a publicação, logo teremos o livro a disposição.

Sigo. Com as palavras da aluna, verbis: "Faltava apenas quatro dias para a entrega. Comecei na quarta-feira a noite o trabalho do zero, eu tinha que entregá-lo na segunda. Entrei em desespero e comecei a buscar reportagens relacionadas a isso e encontrei várias matérias. Redigi de uma forma totalmente diferente ao invés de usar a minha opinião usei o que as pessoas pensam sobre o assunto e consegui reportagens polêmicas. Por exemplo, uma que dizia que 50% da população concorda com aquela expressão que ‘bandido bom é bandido morto'', além de outra, do El Pais, que dizia que a segurança pública no Brasil era deplorável. Uma pesquisa da FGV que diz que 82% das pessoas do país acham que a segurança pública é deplorável e 25% dizem que a segurança pública é o que mais incomoda e o que mais causa preocupação. Foi então que montei todo o trabalho em cima disso. E, recentemente, um caso aqui em Santa Catarina, no qual um senhor foi pego roubando e a população o amarrou e o agrediu no poste até que a polícia chegasse. Nesse contexto conclui que o "Direito dos Manos'' não existe nem na teoria, nem na prática. Porque, juridicamente, eles não significam nada. São, na verdade, fruto do descontentamento das pessoas, que veem na mídia que o delinquente tem mais direito do que o povo, que começa a tomar suas próprias atitudes".

Poderíamos falar de vários problemas... Não sei por onde começar. O primeiro problema reside no prazo de quatro dias em que o TCC foi feito. O segundo são as fontes. Matérias esparsas, certamente com critérios distintos de pesquisa, que demonstram uma suposta realidade, servem de lastro suficiente para uma monografia jurídica? Existem discussões importantes do/no Direito sobre o problema da violência, mas que, pelo visto, foram deixadas de lado. Ademais, até mesmo sob o aspecto sociológico, as matérias jornalísticas devem ser vistas com muita cautela, o que certamente não aconteceu. E por fim, isto é suficiente para dizer que existem ou não o tal “Direitos dos Manos”? E, afinal, quem são “Os Manos”? Afinal, ela crítica o quê? A Constituição tem direitos em excesso? Se pegarmos o autor que ela referiu, parece que sim. Mas, de que modo isso entra no TCC?

A sequência da entrevista parece deixar mais clara essa questão. Para ela, “o criminoso tem o direito de ser defendido, ser tratado com dignidade, mas nós temos mais direito. Enquanto nós estamos presos em nossas residências eles estão lá fora fazendo o que bem entendem". O que ela queria dizer, mesmo, com isso? Ao que li da entrevista, pareceu-me que ela insinua (estou sendo generoso) que as pessoas que comentem crimes teriam mais direitos dos que as vítimas, uma vez que, os que assim não fazem, vivem presos em suas casas e estes (os criminosos) ficam livres para fazer o que querem. Consequentemente — se entendi bem — por este argumento existiria um Direitos dos Manos, questão presente no título do TCC (vejam a pergunta irônica do título: Direitos Humanos ou Direitos dos Manos?). Pois é. Ocorre que a elogiada aluna (espero que a professora não concorde com a aluna e tampouco a banca do TCC, embora tenha dado nota máxima com louvor ao trabalho) fez um trabalho repetindo coisas que se dizem por aí sobre segurança pública, coisas que se podem ouvir em programas tipo Marcelo Rezende ou Datena. Mas em um trabalho de final de curso pode ser dito isso, sem um olhar crítico? Nem vou falar dos demais elogios que a banca teria feito a aluna e ao conteúdo do TCC.

Deixo claro que não conheço a aluna nem sua professora e não almejo desqualificá-las. Tanto é que não declino o seu nome e de ninguém relacionado ao episódio. Poderia fazê-lo, já que não corre em segredo de justiça, por assim dizer. E, ao que sei, não houve desmentido. Contei a história como a representação simbólica do que ocorre no mundo jurídico. Milhares de TCCs são apresentados por ano em nosso país. Parcela deles não tem qualquer consistência. Isso daria uma CPI. No fundo, os alunos não têm culpa desse quadro caótico. Tem gato nessa tuba, é evidente. O que leva, por exemplo, a nossa protagonista do TCC a não fazer um juízo crítico sobre os direitos humanos, a ponto de achar bonito que um livro coloque em dúvida a existência da ditadura militar e diga que a Constituição dá excessivos direitos aos criminosos (ou algo assim)?

Isto é apenas um sintoma de um problema muito maior sobre o qual precisamos refletir. Sim, refletir sobre como saem os estudantes, e como se dá a sua formação. Afinal, isso tem reflexo em nossa prática do dia-a-dia forense e na academia. Basta que olhemos em volta. Ou alguém acha que o modo como os advogados peticionam, os juízes decidem e os promotores acusam (como “promotores públicos”) são coisas que caem do céu? Como diria Nelson Rodrigues, tudo isso é fruto de muito esforço e dedicação...

Post Scriptum 1: Meu bunker já está preparado.

Post Scriptum 2: antes que alguém pergunte minha posição sobre a decisão do ministro Edson Fachin no processo do impeachment, respondo: a um, não poderia ser diferente a decisão dele, já que, dias antes, dissera que a votação no caso do senador Delcidio deveria ser aberta; a dois, o ministro mostrou-se — corretamente — cauteloso, levando a questão ao Plenário; a três, porque, se no caso do senador havia dúvidas acerca do Regimento Interno (dizia-se, no Senado, que a alteração constitucional somente desconstitucionalizara a matéria e, assim, valeria o regimento), agora a questão parece mais fácil, uma vez que não há regulamentação explicitada no Regimento Interno e nem na Constituição sobre se o voto deve ser secreto ou aberto. Logo, tratando-se da matéria mais importante em uma República — o impeachment do chefe do Poder Executivo no sistema presidencialista —não parece sustentável, no plano de uma hermenêutica constitucional, a tese de que um representante do povo possa decidir os destinos do presidente de forma secreta. Dando o tapa e escondendo a mão. Para o bem e para o mal. Diria mais: se o regimento estabelecesse o voto secreto, seria inconstitucional. Aguardemos os próximos acontecimentos. Atentos.

Post Scriptum 3. No apagar das luzes, leio que o jornal O Globo diz que o Min. Fachin apenas suspendeu o funcionamento, mas manteve a criação da comissão especial (leia aqui). Equivocado o jornal. A opinião distorce o sentido da decisão. Aliás, se a decisão trata sobretudo da questão do voto secreto ou aberto e a comissão foi formada (ao menos em parte) desse modo, parece óbvio que a decisão do ministro suspende a própria formação da comissão.


Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados:www.streckadvogados.com.br.



Revista Consultor Jurídico, 10 de dezembro de 2015, 8h00

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

O nome que o STF dá é o nome que fica? Eis o busílis do caso Delcídio!







Abstract: O caso Delcídio suscita vários questionamentos. A coluna de hoje busca discutir este caso de forma não ortodoxa, não dogmática, com a intenção de refletir. Mais sobre o futuro do que sobre o “agora”.

Calvo Gonzalez e eu discutimos dias destes, em seminário em Málaga, sobre como os primeiros gregos “disseram o mundo”. Na aurora da civilização, houve um dia em que alguém tinha de nominar. Platão, pela boca de Sócrates, escreveu o primeiro livro de filosofia da linguagem, o Crátilo. O capítulo mais bonito: Da justeza dos nomes. Por que uma coisa tem o nome x e não y? Não vou contar a história, até porque em meus livros falo disso amiúde.

Sigo. No início, o homem era a medida de todas as coisas. Aliás, Protágoras foi quem disse essa frase: o homem é a medida de todas as coisas. Claro. Seu corpo “media tudo”. Interessante é que, até hoje, usamos as primeiras formas de nomear: pé da árvore, pé direito dos prédios, medimos a altura em pés, palmos, polegadas; falamos do ventre da montanha, da garganta da serra; do olho do furacão, do céu da boca, da pele da fruta, do corpo de baile etc.. Para dizer “instante”, o primeiro grego disse “num piscar de olhos” (em alemão é Augenblick, para se ter uma ideia do valor da semântica). E assim por diante.

Protágoras... Quase poderia dizer que protagonismo vem de Protágoras (mas vem de Protos + agonistes; principal lutador). Por que estou falando (d)isso? Para lembrar as circunstâncias e contingências pelas quais passa o Supremo Tribunal Federal. Sim. Por vezes, o STF está como o primeiro grego: tem de nomear. Assume o papel de protos agonistes. Só que, quando nomina, repercute. Para retomar os gregos: o STF, para o bem e para o mal, funciona (às vezes e em raríssimas exceções) como o nomoteta. E quem era onomoteta? Era o “dador de nomes”. Na verdade, era o “grande legislador”, como se vê na obra Crátilo. Não é por nada que, em alemão, legislador se chame Gesetzgeber, que quer dizer, literalmente, o que dá as leis (logo, legislador). Bingo.

Assim, o “nome” (a decisão) que o STF dá repercute. Protago...niza. Ele acaba sendo mesmo uma espécie de Protágoras, porque, excepcionalmente — diante de uma contingência — diz o direito “pela primeira vez”. Por causa disso, por vezes, ele, o STF, acaba sendo a “medida de todas as coisas”, quer dizer, “do direito”. Por isso, suas nominações (sim, quem decide “dá nome àquele caso”) têm — sempre — efeitos colaterais. Por vezes, indesejados. Os casos têm filhotes. São reproduzidos. E, em algumas ocasiões, a origem se esfumaça. O “nome” dado adquire vida própria. E perde o DNA.

Dois episódios sobre “nominação”
Dois episódios merecem ser colocados no contexto de nominação protagonizado pela Suprema Corte. Como diria o Pequeno Príncipe, se tivesse uma causa no STF, “a Suprema Corte é responsável pelas causas que cativa”, quer dizer, que nomina.

O primeiro episódio é o da ADI 3.943, pela qual o STF disse que a Defensoria pode patrocinar ações civis públicas. OK. Decisões do STF valem. São definitivas. Só que o “nome dado” pelo STF, nesse caso, ficou ambíguo, porque não disse, com todas as letras necessárias, quem seriam os destinatários desta nova forma de atuação. Quaisquer pessoas, ou apenas aquelas que a Constituição (que nomina as coisas antes do STF) indicou, os tais carentes de recursos (artigo 5º, LXXIV)? Resultado: uma recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (EREsp 1.192.577) — interpretando o “nome” dado pelo STF à coisa “carentes de recursos” — permite a existência de um outro nome para os “carentes” (lá, no STJ, falou-se em vulnerabilidade existencial); já no Rio Grande do Sul, o Tribunal de Justiça estadual disse que a Defensoria podia patrocinar a causa de uma Delegada de Polícia, porque decidiu que a expressão necessitados, empregada pela Constituição (artigo 134), abrangeria os hipossuficientes organizacionais. Não bastasse, mais recentemente, a Defensoria Pública do RS postulou em Juízo que a Uber fosse autorizada a trabalhar no Brasil. Sim, a UBER, esse giganteorganizacional, para usar a linguagem cara à Defensoria, com o novo nome que se dá ao que é “carente de recursos”, poderá se beneficiar desse protagonismo. Uber vale bilhões. Pagou os melhores pareceres dos maiores juristas (a ConJur publicou os pareceres, por certo não dados pro bono). Qual será o novo nome a ser dado à expressão “carente de recursos”?

Eis, portanto, o problema das repercussões dos “nomes dados”. A cada nomeação/nominação que o STF faz (e nem é necessário discutir o mérito), o sistema reage. Como foi na aurora da civilização, uma ADI é, hoje, a aurora epistêmica do sentido da lei. O STF funciona como o Sinngeber (o dador de sentidos, isto é, o atribuidor de sentidos). Por isso é que ele deve dar o nome bem simples e claro ao que seja “carente de recursos”. Deve dizer se carentes de recurso é carentes de recursos, carente organizacional, carente existencial, carentes de afetos... Para o bem e para o mal. Antes que a Vale do Rio Doce seja beneficiada por alguma ação da Defensoria... Afinal, por trás da Vale existem milhões de hipossuficientes... Como no caso da Uber, que transportará... hipossuficientes e hipersuficientes. Ou Übersuficientes, se me permitem a ironia (Über, em alemão, é acima, sobre, super). Eis o problema.

Claro, a Defensoria não admite patrocinar a causa da Uber (ver aqui), mas, sim, a dos “motoristas particulares” e dos “consumidores do serviço”, estes “grupos em situação de vulnerabilidade”. Mas, sejamos francos: os interesses desta gente são, ou não, confluentes com os da própria Uber? E a Uber já não está devidamente assistido, em Juízo e fora dele? Qual é o argumento original, inovador, que a Defensoria trouxe para o debate processual a respeito dessa questão (que ocupa a ordem do dia em Porto Alegre)? E o pior — e isso deve ser dito — é que este clima de anything goesestá sendo de algum modo, permitido/provocado pelo próprio STF. Por quê? Por causa da nominação. Como falei acima, a Suprema Corte deve dar o nome certo à coisa. Entendem o que quero dizer? Como dizia Stephen Georg, que nada seja onde falta a palavra (Kein Ding sei wo das Wort gebricht).

O segundo episódio é o da prisão do senador Delcídio do Amaral. Como é a primeira vez que um senador é preso, tem-se, evidentemente em face das particularíssimas circunstâncias do caso — uma vez que todos os “demais gregos” tinham até então, um determinado sentido de flagrante e inafiançabilidade — a aurora do sentido do que seja “flagrante” e “crime inafiançável”. O STF esteve diante de uma situação inusitada, como quando alguém diz “não tenho palavras para dizer tal coisa...”. E fê-lo.

Ocorre que, na medida em que não podemos sair por aí trocando o nome das coisas, essa “nominação” do STF tem/terá repercussões imensuráveis. Veja-se: não preciso traçar uma linha de elogio ou crítica à decisão. Não é a intenção desta reflexão. Ademais, prefiro não me precipitar, uma vez que o próprio STF terá em breves dias uma rediscussão da matéria, quando chegar para seu exame a denúncia (peça ovo criminal) contra Delcídio e os demais. Provavelmente o PGR denunciará Delcídio também por organização criminosa (outra questão — o que é isto — a organização criminosa? Qual é o “nome” dessa coisa?).

Por isso, o que mais deve nos preocupar não é fato em si, isto é, se a Suprema Corte acertou ou errou ao dar o sentido do alcance da expressão “flagrante”, estendendo-o até caber no conceito de crime permanente, ou se crimes inafiançáveis não são apenas o racismo, o tráfico, a tortura, o terrorismo, a ação armada contra o Estado e os crimes hediondos. Não. O que mais deve preocupar a comunidade greco-forense (permito-me a alegoria) é o dia seguinte: já que o STF deu o nome a essas coisas novas(afinal, nunca um senador fora preso), teremos que passar a chamá-las agora por esse nome (faço, de novo, uma alegoria com a filosofia).[1] Não esqueçamos, como dizia Saussure — lembro de minhas aulas de semiologia nos anos 80 do mestre Warat —, que a atribuição de sentido possui quatro caracterizações: 1) o sentido é, primeiramente, convencional (como o primeiro grego fez); 2) surge, então, a imutabilidade (nome dado, nome “ficado”); 3) exsurge a mutabilidade (passa o tempo, mudam os fatos... e os sentidos podem ser alterados); 4) por último, a linearidade (um sentido não ocupa o mesmo “espaço” do outro). Eis, pois, o busílis da questão do caso Delcídio: quais serão as repercussões dos sentidos atribuídos pelo Supremo Tribunal?

Se pensarmos, por exemplo, que a jurisprudência deve ter estabilidade, coerência e integridade, talvez o grande problema do STF seja o “de que modo ele tratará os próximos casos”. Não parece que o caso Delcídio possa ser entendido como o estabelecimento provisório de um Estado de Exceção Hermenêutico, algo que o jornalista-filósofo da Folha de S.Paulo, Hélio Schwartsman, chamou de “Decisão forçada” (leia aqui). Como referi, prefiro ser mais cauteloso e aguardar os próximos acontecimentos. A matéria ainda passará por mais discussões, com as complexidades de coisas como a Súmula 606, que impede HC contra decisão colegiada do STF (mas isso é assunto para outro dia, uma vez que existe o HC 127.483/PR – Rel. Min. Dias Toffoli, em que houve empate e o paciente foi beneficiado). O próprio PGR está com um “pepino” nas mãos, porque terá que oferecer denúncia e justificar tudo o que pediu antes (sem considerar que, cá para nós, o PGR deveria explicar por que razão a mais alta autoridade do MP faz um pedidocontra legem, que, fosse o STF interpretá-lo de forma mais ortodoxa, não o teria conhecido; afinal, se não existe prisão processual de parlamentar, como requerer a sua preventiva? Sim, exatamente com esse nome?).

O quero dizer é que, assim como o homem era a medida de todas as coisas na aurora da civilização, também o STF acaba assumindo o papel de ser a medida do direito (veja-se: não estou me rendendo, nem de longe, ao aforisma de que “o direito é o que o judiciário diz que é”; quero dizer que, institucionalmente, o STF tem o poder de dizer por último – e em alguns casos, por primeiro, o sentido — dar o nome — do direito). Obviamente, esta situação se torna cada vez mais rara diante do aumento da complexidade do sistema jurídico com o passar do tempo.

Então qual é ponto central? O busílis é que nos resta saber qual é a régua (régua = medida, lembrando de Protágoras) que o STF usará nas causas que vem por aí tratando de prisão em flagrante e sua respectiva extensão a partir do critério da permanência da atividade criminosa. Nome dado, nome que fica? Do mesmo modo, terá que definir qual a medida que usará para definir a prisão preventiva em casos de inafiançabilidade. Claro: reconheço que os gregos tinham uma vantagem. É que depois de Protágoras, vieram Platão, Aristóteles e, no medievo, Agostinho, Aquino, Ockham para só depois chegarmos à filosofia da consciência. No caso do Supremo, é tudo com ele mesmo. Ele é que decide em última ratio a matéria para o qual a Constituição lhe atribui a primeira e a última palavra (eis o paradoxo), podendo errar ou acertar, ou um pouco das duas coisas simultaneamente. O Supremo é, ao mesmo tempo, Protágoras, a antiguidade, a modernidade, a viragem linguística. Eis a especificidade do direito: a fala, o discurso, a decisão jurídica institui; estabelece; fixa. Vincula. O STF terá que dizer qual é a força normativa da Constituição. Os limites semânticos importam? Não tenho dúvida de que sim, eis que até de positivista exegético sou “acusado”. O STF é que tem a responsabilidade política do ônus argumentativo. Ou seja: é como se perguntassem para Protágoras porque nominou a distância em braças, pés e passos. A diferença é que Protágoras não tinha que dar explicações.

Numa palavra reflexiva.
Quando se lida com o Direito, lida-se com conceitos interpretativos. Digo isso para deixar claro que o que quero discutir não é com quantos centavos se faz um necessitado (ou carente) e nem bem qual o conceito de flagrante ou deinafiançáveis, atribuído de forma convencional. Quero, isto sim, debaterconteúdo. O argumento jurídico é sempre um argumento substantivo.

Qual o estatuto, por assim dizer, das chamadas imunidades parlamentares? Muito genericamente, poderíamos dizer que as tais imunidades são prerrogativas de que o mandato parlamentar seja exercido de forma livre de coação. É uma garantia da independência da atuação do parlamentar. A ideia é, por um lado, garantir a livre expressão de opinião, palavras e votos; e, por outro, proteger o congressista contra restrições arbitrárias à privação de sua liberdade. Com alguma licença, para me fazer entender: o que não se quer é proibir o político de fazer... política. Sim: política e não outras coisas. Aliás, foi graças aos nossos maus antecedentes que incluímos imunidades no texto constitucional. Trata-se de proteger a democracia.

Com isso em mente, e deixando de lado o debate sobre se inafiançáveisseriam apenas aqueles crimes referidos no próprio texto constitucional, temos que discutir o “nome” dado à prisão em flagrante nesse caso e suas repercussões para o futuro. Qual é a relação entre flagrante e permanência? Mas, mais do que o “nome” dado à flagrância, temos que discutir se o STF fez uma interpretação relativizando a imunidade ou se fez uma interpretação devidamente justificada pelas circunstâncias.

Por óbvio, não estou sugerindo uma interpretação teleológica da Constituição. Todos sabem que não sou consequencialista. Não estou dizendo que o texto pode ser subvertido quando “um valor mais alto se alevanta” (sic). Não é isso. Mas uma coisa parece certa: em alguns casos muito excepcionais, se inaugura, institucionalmente, uma nova cadeia interpretativa (eis a característica da “mutabilidade” que parece ter ocorrido com a nominação de que falei). Mas, atenção: daí exsurge um ônus, representado pelo fato de que os nossos olhos não devem apenas voltar-se para o agora, mas sobretudo, para os próximos capítulos que se estão a suceder. Um nome que é dado é um nome que fica? Para todos os “greco-brasileiros”? Esse é o busilis.


[1] Só para registrar: adoro discutir Protágoras; adoro discutir também Ockham (que de certo modo faz algo parecido ao dizer que só existem coisas particulares). Mas, é claro, como hermeneuta, sou adepto do giro linguístico-ontologico, em que os sentidos se dão em um a priori compartilhado.


Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados:www.streckadvogados.com.br.



Revista Consultor Jurídico, 3 de dezembro de 2015, 8h00

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...