Nestes tempos em que a delação premiada assume relevância – quase como único modo de investigar – recebi e-mail de um professor universitário, professor-doutor com excelente formação e competência reconhecida, vítima de “delação não-premiada”, algo do tipo “dou o tapa e escondo a mão”, na linha de personagens já inseridos no imaginário social como “amigos-da-onça”.
Explico: descobri em 1996, em sala de aula do curso de Direito, uma prática que vige até hoje: a “avaliação” dos professores por um formulário de marcar com x e um espaço para observações escritas ao final. Ali o professor é dissecado pelos alunos. Até aí, tudo bem. Accountability é condição de possibilidade para a democracia e para a efetividade das práticas de uma profissão. Todavia, descobri que a ficha de avaliação não necessitava de assinatura. Mais ainda, garantia-se o sigilo.
Passaram-se tantos anos e tantas vezes falei disso em palestras e na sala de aula dos cursos de mestrado e doutorado, já que, ainda em 1997, afastei-me da graduação, embora a ela ficasse ligado por outros meios e modos (portanto, não sujeito à alcaguetagem).
O assunto volta à baila com o e-mail do professor, que relata ter sido vítima de ofensas do mais baixo escalão. Reclamou para a faculdade, que se negou a tomar qualquer providência. Fiz pequena pesquisa, perguntando para vários professores, que me contaram cobras e lagartos provenientes de avaliações feitas por alunos descontentes com reprovações ou discordâncias de sala de aula. Dizem que é absolutamente sintomático: o aluno que tira notas baixas se vinga do professor de forma anônima. Pior: o anonimato é assegurado pelas direções dos cursos de Direito.
Que feio é isso, não? A Constituição proíbe o anonimato. Parece óbvia a proibição do anonimato quando este envolve um ingresso na seara do direito alheio. Trata-se de uma questão ética. Uma República não se faz escondendo identidades. Cada um deve ser responsável pelo que diz e escreve, principalmente se se tratar de uma faculdade de direito, que tem a incumbência de formar futuros advogados, promotores e juízes. Ora, não parece aos milhares de leitores desta coluna que é exatamente uma faculdade de Direito que deveria dar o exemplo e coibir esse tipo de alcaguetagem? Ao contrário, penso que uma faculdade deveria dar todas as garantias aos alunos fazerem reclamações, desde que assinem. E garantir que nenhum professor faça retaliações.
Sempre defendo os alunos, mormente os de Direito. Em boa parcela são explorados no plano do conhecimento. Vendem-se-lhes gatos por lebres. E, convenhamos, lebres de cinco patas. Despiciendo repetir, aqui, minhas críticas ao modelo ultrapassado de ensino jurídico. Quem quiser saber minha opinião a fundo, leia os volumes Compreender Direito I, II e III (neste último estão as colunas sobre o aluno e o professor ideais). Mas não posso aceitar que estudantes de Direito possam fazer críticas do tipo “disque 171 para delatar o professor”.
É grave isso. Professores ofendidos, dependendo do caso, poderão ir a juízo para buscar reparação por dano moral. Fácil, fácil. Talvez assim as faculdades aprendam. Talvez esse seja um problema de nosso país. Vivemos um individualismo descomprometido. Não assumimos nossas atitudes. Tempos de fragmentação. Claro que há uma herança patrimonialista por trás disso. Pindorama é o lugar do “você sabe com quem está falando”. Logo, o contraponto é o medo de denunciar assumindo a responsabilidade. Entendo bem isso.
Regra geral, os alunos têm medo de assinar queixas contra professores. Sei disso. Mas, se continuarmos nesse círculo vicioso, não avançaremos. Não me parece que dois erros deem um acerto. Ou dois problemas deem uma solução. Uma sociedade não se faz de indivíduos. Indivíduo é “não dividido”. E só um cidadão é o “dividido”. Ele reconhece o outro. Cidadãos fazem uma República. Indivíduos fazem... um país como o nosso, recheado de síndromes de Jeca Tatu, Caramuru e amigos-da-onça. E recheado de corrupção, porque o crime mais egoísta é a corrupção, em face do prejuízo difuso que causa.
Por isso é que vivemos sob o predomínio do solipsismo. Como já expliquei em colunas anteriores, somos viciados em nós mesmos. Essa é a tradução do sujeito solipsista da modernidade. Sim. Por isso é que dizemos “sabe com quem está falando”; “a minha vara”; “a minha promotoria”; “o meu tribunal”; “tomei posse do meu cargo”; e assim por diante. Pronto. É nesse caldo de (in)cultura que as faculdades, em vez de ensinarem responsabilidade para os alunos, incentivam o anonimato, cuja consequência, sem tirar nem por, é a delação dos professores, “dando o tapa e escondendo a mão”. Revoguemos isso imediatamente. É inconstitucional. E comecemos a construir cidadãos e não indivíduos preocupados apenas com seu próprio umbigo.
Post scriptum 1: Como disse, escrevo esta coluna em face do e-mail que recebi do professor, que escreveu-me para falar sobre esse assunto. Mas, por favor, não há qualquer relação desta coluna com a da semana passada. Sem qualquer ironia. Não existe inconstitucionalidade no uso de apelidos ou codinomes, se é possível identificar o autor. Isso é óbvio. Minha crítica, para quem leu, era de outra cepa.
Post scriptum 2: Leio que o MEC autorizou mais de 1.800 novas vagas em Direito em Pindorama. Foram autorizados novos cursos... Sempre achei que era isso que estava faltando nos lugares citados na Portaria do MEC. Qualquer pessoa sabe que o progresso chegará com...um curso de direito (sobre um olhar irônico acerca desse fenômeno, ver o artigo de Diego Ribeiro aqui). Aonde enfiaremos toda essa gente? Claro: no Estado. Onde mais? E quando todos forem funcionários públicos, será o nirvana. E todos estarão no Judiciário; no Ministério Público; na Defensoria; na Polícia; nos cartórios; no Banco Central; tribunais de contas dos estados e da União; na Advocacia Geral da União; e nas procuradorias em geral (esqueci alguém?). Daí a pergunta: sobrará algo não-estatal em Pindorama? Alguma atividade privada ainda terá condições de ter sucesso na área do direito? Ora, se tudo é, nada é... Como o paradoxo do queijo suíço (minha LEER me permite repetir): o melhor queijo é o suíço; é o melhor porque tem muitos furos; assim, quanto mais furos, menos queijo e, consequentemente, melhor o queijo. Moral da história: o queijo ideal-fundamental (o Grundqueijo) é o não-queijo; é o “queijo só-furos”, se me entendem a alegoria em tempos deGelassenheit (oficialmente se traduz essa palavra por “serenidade”; para mim, ao contrário, a tradução é “deixamento” ou “melancolia”, porqueterrae brasilis está melancólica, como no filme de Lars Von Trier –Melancholia -, à espera do planeta que acabará com tudo). Cartas para a coluna.
Adendo metafórico: quando vejo que todo-mundo-quer-cursar-Direito-para-ingressar-no-Estado, lembro de uma metáfora que já contei aqui. É a do povo que vivia na floresta (terrae florestalis) e só comia vegetais. Vivia feliz. Pela falta de predador, os porcos foram se multiplicando. Um dia, fortuitamente, houve um incêndio e muitos porcos foram assados. E todos sentiram, vez primeira, o cheiro de leitão-a-pururuca. E caíram de boca. Desbragadamente. No dia seguinte, queriam mais porcos assados. E o que fizeram? Incendiaram mais florestas para queimar porcos e assim comer carne assada. Houve um momento em que faltou... floresta. Solução: plantaram mais florestas para poder queimá-las. E foram criando instituições para cuidar da burocracia do plantio de árvores, regulação dos incêndios, vendas de fósforos, exame da OAF (Ordem Ardentis Florestalis), cursos para plantar florestas mais rapidamente, florestas já com tempero etc. E mais e mais criaram estruturas. Cursinhos para treinar para o exame da OAF e para os concursos aos cargos de plantadores de florestas. E dos que cuidavam dos porcos a serem queimados. E dos incendiadores. Por vezes, havia briga pelos porcos. E, interessante: todos eram independentes. E cada setor (plantação, fogos, criação etc) tinham autonomia financeira. Os gastos e a poluição aumentavam... Mas mesmo assim novas florestas eram queimadas e plantadas, queimadas e plantadas. Só quem era do Estado-Florestão se dava bem. Na periferia, plantavam-se pequenos arbustos... Era o que sobrava para a patuleia florestalis. Até que um dia chega alguém e diz:“Não entendo o porquê de tudo isso. Não era mais simples terem construído churrasqueiras?” Ao que um floresteiro-vestindo-terno-Hugo-Matagal, com os beiços ainda cobertos da gordura da casquinha do porco, redarguiu: “Disso já sabemos há muito tempo”. E, farfalhando, complementou: “Se construirmos churrasqueiras, o que faremos com tudo isso-que-está-aí?”
Lenio Luiz Streck é jurista, professor, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 23 de abril de 2015, 8h00
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