O constitucionalista Eduardo Bastos Furtado de Mendonça passou um ano por dentro das engrenagens do Supremo Tribunal Federal, como assessor do ministro Luís Roberto Barroso. E afirma que ao menos metade de todo os recursos humanos do tribunal atuam no funcionamento de uma espécie de corte paralela, desconhecida da maioria dos brasileiros, focada na extensa quantidade de processos e na análise de questões repetidas.
“É humanamente impossível [para cada ministro] imprimir uma marca pessoal em tudo, já que existe um Supremo que engana a si mesmo e aceita um volume irreal de processos porque tem que prestar jurisdição”, afirma.
Para ele, o STF deveria ser mais rigoroso na análise de temas com repercussão geral e adotar um filtro mais realista daquilo que pode fazer. Grosso modo, deveria deixar de tentar abraçar tudo.
“Não adianta dizer que um caso é importante, mas só será julgado daqui a 10 anos”, avalia, afirmando que às vezes é mais importante ter um assunto julgado do que bem julgado. Mendonça concorda, por exemplo, com medidas que têm restringido o julgamento de pedidos de Habeas Corpus na corte.
Ele deixou o cargo de assessor em 2014 — brinca que cumpriu um ano de pena com bom comportamento, apressando-se em dizer que “a piada é boa, mas não é justa”, fazendo elogios à experiência.
Atualmente se dedica ao escritório Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça & Associados, que busca caminhar trilhos próprios desde a saída do ministro Barroso, e leciona no Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) a disciplina Direito Constitucional — área que começou a se especializar ainda nos tempos de graduação, como monitor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Na UniCEUB coordena o Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais, idealizado pelo ministro Carlos Ayres Britto.
Assim como a Constituição “trata de tudo”, uma conversa com o advogado abrange vários temas, que passam pelo Direito Penal, pelo papel do Judiciário e por discussões políticas, como o financiamento privado de campanhas eleitorais e o que ele considera um “escândalo” que acabou passando despercebido: a aprovação da Emenda Constitucional 86, do chamado “orçamento impositivo”, que obriga o governo federal a repassar dinheiro público para parlamentares gastarem como quiserem.
Advogado em alguns casos do Google no Brasil, ele ainda fala sobre a liberdade de expressão e comenta a aplicação do direito do esquecimento, que tem sido mais conhecido desde que a gigante da internet foi obrigada a retirar de buscas nomes de cidadãos europeus.
Mendonça é autor do livro A Constitucionalização das Finanças Públicas no Brasil – Devido Processo Orçamentário e Democracia (Editora Renovar, 2010), mestre e doutor em Direito Público pela Uerj, com uma temporada de pesquisa na Humboldt Universität zu Berlin, na Alemanha.
Leia a entrevista:
ConJur – O senhor atuou entre 2013 e 2014 como assessor de ministro. Algo o surpreendeu quando descobriu como funcionava por dentro o Supremo Tribunal Federal?
Eduardo Mendonça – É surpreendente a percepção de que existem dois Supremos: a corte constitucional, das causas importantes, e outra que busca manter sob controle um volume enorme de processos, com uma atividade quase industrializada. O Supremo que costumamos imaginar é a parte mais importante do trabalho, mas, em termos percentuais, é a menor parte. Se um ministro produz dez mil decisões no ano, é evidente que apenas a minoria recebeu atenção pessoal diferenciada. É humanamente impossível imprimir uma marca pessoal em tudo, já que existe um Supremo que engana a si mesmo e aceita um volume irreal de processos porque tem que prestar jurisdição.
ConJur – Como funciona esse julgamento sem a participação direta do ministro?
Eduardo Mendonça – Primeiro é preciso explicar que a maior parcela das ações no Supremo chega pela via recursal: Recurso Extraordinário, Agravo em Recurso Extraordinário... Dentro desse universo, a maioria não pode ser conhecida por razões formais — devido à jurisprudência defensiva que o próprio tribunal criou ao longo do tempo — ou repete o que já foi analisado. Isso gera um volume de decisões monocráticas de mérito que dão ou negam provimento, pois repetem decisões anteriores. O ministro então controla basicamente se a equipe enquadrou corretamente o caso específico na jurisprudência. O próprio andamento dos recursos ajuda a perceber isso. Se há uma quantidade enorme de Agravos Regimentais, certamente vai acender uma luz amarela de que possivelmente algo tem sido mal aplicado. Mesmo que bem feita, essa parte mecânica não deveria estar no STF. Não é saudável que o tribunal precise gastar uma quantidade enorme dos seus recursos humanos para isso. Se você olhar em cada gabinete, existem cerca de 40 pessoas atuando. Pelo menos 20 estão focadas em fazer a máquina girar em torno de repetições.
ConJur – Existem saídas para esse cenário?
Eduardo Mendonça – O exame de repercussão geral deveria ser realmente rigoroso, baseado na identificação de questões constitucionais importantes. Essa discussão já vem sendo feita no Supremo. Se você observar, a lógica da repercussão geral já era impedir que isso continuasse acontecendo, porque o tribunal decidiria uma questão paradigma que se aplicaria em massa. Só que, frequentemente, é reconhecida a repercussão geral em questões constitucionais nem sempre importantes, porque a Constituição de 1988 tratou de tudo.
ConJur – Nos Estados Unidos seria fácil fazer esse filtro, já que a Constituição americana trata de temas mais limitados...
Eduardo Mendonça – Muito mais fácil. Só que o Supremo adotou inicialmente um filtro muito brando. Nos primeiros anos, quase tudo teve repercussão geral reconhecida. Hoje em dia a quantidade caiu muito, mas ficou um acervo grande porque o Supremo inicialmente não exerceu esse poder de agenda. O ministro Barroso tem falado bastante sobre isso. A repercussão geral deve ser considerada à luz do que é viável julgar. Não adianta considerar um caso importante, mas só julgá-lo daqui a 10 anos.
ConJur – É como se fosse minha própria agenda: eu gostaria de fazer várias coisas, mas só tenho condições de resolver algumas?
Eduardo Mendonça – É escolher o que é importante dentro de uma análise realista do que é possível fazer. Não adianta dizer que uma questão é muito importante e deixá-la esperando por julgamento, com causas semelhantes sem jurisdição, recursos que não transitam nunca. Colocar uma questão hoje no final da fila da repercussão geral é dizer que ela é importante para ser julgada daqui a sete anos. Que importância é essa? Um estudo da CNI [Confederação Nacional da Indústria] concluiu que, para o empresariado, às vezes é mais importante ter um assunto julgado do que bem julgado. Uma questão tributária que fica sete anos pendente é pior do que se mal julgada em um ano, porque o sujeito ficará esse tempo sem conseguir fechar seu balanço. São sete anos que a empresa ficará na dúvida se podia investir aquele valor ou se tinha que provisionar para o caso de perder no final.
ConJur – O que é mais prejudicial: a insegurança jurídica ou a demora?
Eduardo Mendonça – Eu acho que a insegurança é uma demora qualificada, pela possibilidade de reversão. Fica muito pior quando vem dos tribunais superiores, porque a gente espera que esses tribunais estabilizem a jurisprudência.
ConJur – Sobre as tentativas de solução para o STF, a corte passou a rejeitar pedidos de Habeas Corpus substitutivos de recurso. O senhor considera a medida válida?
Eduardo Mendonça – Considero muito válida e acho louvável que a proposta tenha partido do ministro Marco Aurélio, um defensor ferrenho da dignidade do Habeas Corpus. Ele mesmo percebeu que era preciso cogitar alguma solução para que o HC não fosse deturpado, não virasse causa de entrave. A banalização do Habeas Corpus é ruim para todo mundo, até para quem tem um bom direito de liberdade a ser tutelado. Até nesse campo em que a percepção tradicional é de que não deve haver nenhuma formalidade que impeça o conhecimento, foi necessário fazer uma reflexão de que a disfunção estava prejudicando o tribunal e a própria efetividade do direito.
ConJur – Entre esses filtros, a Súmula 691 impede que o STF aprecie HCs quando outros tribunais ainda não julgaram o pedido em órgão colegiado. O problema é que os ministros acabam analisando cada caso para ver se há ou não flagrantes ilegalidades que derrubem a súmula. O advogado Antônio Cláudio Mariz de Oliveira
nos apontou que ministros gastam tempo para depois concluírem que não deveriam julgar. Isso faz sentido?
Eduardo Mendonça – Concordo que o filtro ficou esvaziado. Mas acho que isso tem a ver com a percepção de qual é o papel do Supremo em relação à tutela da liberdade. O Supremo pode ver a si mesmo como o guardião da liberdade em cada caso concreto, quando um dos direitos fundamentais mais básicos está sendo violado. Penso que essa é uma visão idealista, que reflete a convicção interna de muitos ministros, mas pessoalmente não considero funcional dentro da concepção de uma corte constitucional que funciona como corte de teses. Só faz sentido o Supremo analisar casos de Direito Penal com olho na fixação das teses gerais e eventualmente na correção da má aplicação de teses gerais que ele mesmo tenha fixado. E a jurisprudência penal do Supremo é o oposto disso: a maioria dos casos consiste em Habeas Corpus, sem nenhuma tese nova a ser discutida. Muitas vezes é até difícil julgar repercussão geral, porque se passa muito tempo e a matéria penal prescreveu ou já foi equacionada. Agora o Plenário começou a julgar a bagatela, uma tese constitucional importante. A 2ª Turma tem uma jurisprudência mais flexível do que a 1ª, então há um descompasso.
ConJur – O senhor comentou que é melhor ser mal julgado rápido do que não julgado. Esse conflito é realmente necessário?
Eduardo Mendonça – Em um sistema ideal e bem equilibrado, você conseguiria julgar bem em tempo razoável. Mas também é lógico que a Justiça tem o tempo dela, necessário para a reflexão. O ministro [Luis Felipe] Salomão comentou, em uma palestra, sobre a diferença de tempo em questões que envolvem direito de liberdade de expressão, por exemplo. Naturalmente há um choque, pois o tempo do “furo” jornalístico é o tempo do imediato. Quando juízes se deparam com um caso em que a liberdade de expressão ou de imprensa entra em conflito com a privacidade e a honra, o impulso é conceder liminar para que não se produza o dano. Na contramão desse senso comum judicial, com toda razão, o ministro Celso de Mello declarou que a liberdade de expressão tem um caráter preferencial e, portanto, a concessão de liminares não pode virar pretexto para censura judicial. Se você suspende o jogo para evitar o dano, acaba julgando o caso antecipadamente; cala a notícia, pois o assunto perde todo o interesse jornalístico.
ConJur – E quando alguém quer ter o nome excluído de notícias com base no direito ao esquecimento, como evitar que haja censura?
Eduardo Mendonça – Primeiro vejo que há certa incompreensão do que seria direito ao esquecimento. O nome induz à ideia de que alguém pode ter o direito de suprimir publicações lícitas que tenham sido feitas em relação àquela pessoa. Não é isso exatamente.
ConJur – Nos parece uma coisa de 1984 [livro de George Orwell, no qual agentes do Estado apagavam notícias e mudavam informações do passado]...
Eduardo Mendonça – Pois é, costuma-se entender que alguém pode escolher qual será seu perfil público e considerar que notícias perfeitamente lícitas quando publicadas se tornem ilícitas, se mantidas em arquivo acessível. O direito ao esquecimento é muito mais uma limitação ao que os bancos de dados podem compilar, partindo da premissa de que essas ferramentas têm o poder de tornar determinado conteúdo mais acessível do que se não estivesse no banco de dados.
ConJur – O senhor se refere aos sites de buscas?
Eduardo Mendonça – Exatamente. Num caso célebre espanhol, a corte europeia mandou tirar informações de um cidadão do buscador [Google], mas não determinou a exclusão no veículo original. Se você for na publicação original, continuará achando os dados. E, mais ainda, se você usar o buscador para procurar informações com dados objetivos você até encontra. Só não aparece nada se você só colocar o nome da pessoa. Na verdade é mais um direito a não ser indexado, e menos um direito ao esquecimento. É a percepção de que, na realidade da internet, ampla como ela é, se a informação estiver solta ela quase é esquecida, ou pelo menos se perde com mais facilidade. E que os buscadores, de certa forma, são a memória da internet. Então, se eu tiro do buscador, isso por si só tem um impacto no alcance que aquela notícia teria. Não quer dizer que no Brasil vá prevalecer esse entendimento, mas o que se decidiu na Europa foi isso, nada além disso.
ConJur – E o que a gente teve de experiência com o direito ao esquecimento no Brasil?
Eduardo Mendonça – O tema aqui é muito embrionário. Houve duas decisões no Superior Tribunal de Justiça, e uma delas vai ser julgada pelo Supremo: a veiculação do caso Aída Curi, no [programa] Linha Direta Justiça. Pessoalmente acho que essas restrições devem ser hiperminimalistas, porque a liberdade de expressão e informação é preferencial pela relação direta com a democracia. Se eu crio um filtro, é potencialmente arbitrário, alguém vai ter que colocar a mão para dizer o que tem interesse público e o que não tem. Eu acho que isso é sempre potencialmente autoritário. É lógico que, se você opta por não ter filtro, abre margem para que sensibilidades legítimas sejam feridas, reputações sejam danificadas, ofensas à individualidade sejam de fato perpetradas. E também é verdade que muitas vezes fica difícil fazer a reversão disso. Mas acho sinceramente que qualquer filtro pressupõe que alguém tem o poder de dizer o que é interesse público, qualquer constrição cai no subjetivismo. O que claramente não tem interesse público? É lógico que existem zonas de certeza positivas e negativas. Se eu estou na minha casa, tomando banho, e um repórter resolve tirar uma foto e publicá-la, a conduta certamente não está protegida pela liberdade de expressão e de imprensa. Fora desses casos grosseiros, porém, um mercado realmente livre de ideias e informações é a única liberdade de expressão real. O ministro Marco Aurélio fala, com muita propriedade, que os eventuais excessos são o preço módico que se paga para viver em um Estado de Direito. É como eu vejo.
ConJur – Na prática, o direito ao esquecimento não chama mais atenção para os casos, gerando efeito inverso?
Eduardo Mendonça – Isso é conhecido como o “efeito Barbra Streisand” [quando a cantora norte-americana tentou retirar da internet fotos de sua casa em Malibu, acabou fazendo com que uma série de pessoas correrem ao local para clicá-lo]. Na maior parte dos casos, aquilo tende ao ostracismo naturalmente, porque não envolve matérias de interesse público mais amplo. Aquilo pode até “bombar” pontualmente na internet por ser engraçadinho, como dizer que a Luiza está no Canadá. Mas alguém fala disso hoje? Qual é a repercussão estável disso? Quase nenhuma. Então esse subproduto negativo é tão volátil, tão efêmero quanto a exposição que a internet proporciona.
ConJur – A princípio a gente só fala de liberdade de expressão relacionada a veículos de imprensa. Como é que isso gira em um mundo onde o cidadão é produtor de conteúdo, com publicações próprias no Facebook e no WhatsApp?
Eduardo Mendonça – O grande valor da internet é democratizar a produção de conhecimento e de informação. O usuário ao mesmo tempo pode ser o fornecedor de material e o editor, não só um receptor passivo de conteúdo. A licitude ou ilicitude da fonte original tem que ser apurada caso a caso. A retirada de conteúdo deve ser a mais cuidadosa possível e a mais pró-liberdade de expressão possível. Nos casos de revenge sex, quando um sujeito produz imagem íntima de outra pessoa com base na sua relação de confiança e depois coloca na internet, ninguém acha que isso seja lícito. O Marco Civil determina a retirada imediata desse tipo de material e também fala quando há responsabilidade do provedor.
Mas veja a diferença entre isso e o caso em que alguém se diz ofendido pelo conteúdo de um blog e pede ao provedor que retire o material supostamente ofensivo, sem indicar especificamente qual seria ele. Já vi empresas fazerem pedidos assim e alegarem que teria faltado “boa vontade” do provedor para ajudar na identificação do que seria ilícito. É um discurso equivocado, pois não tenho que pensar em um caso isolado, e sim que todo dia milhares de pessoas que se dizem ofendidas pedem isso aos provedores. Então, ou é razoável fazer isso em todos os casos ou não é razoável fazer em nenhum. Não posso ter o dever jurídico de fazer em um caso apenas porque foi judicializado. Ou o dever existe para todos os casos similares ou ele não existe. É como fixar o dever do Poder Público de fornecer medicamento ou tratamento a um cidadão apenas. Olhando cada caso isolado, o Estado sempre tem dinheiro para qualquer tratamento, por mais complexo que seja. Mas eu posso exigir que o Estado forneça esse tratamento em todos os casos similares? O Judiciário tem que pensar os deveres olhando o conjunto, se aquilo é universalizável ou não.
ConJur – Então, na sua opinião, os provedores não devem ser obrigados a fiscalizar publicações em suas plataformas?
Eduardo Mendonça – Indicar ofensas é ônus da parte. Se o provedor tiver que fazer esse exame em cada um dos milhares de casos em que se pede a retirada de conteúdo, judicializados ou não judicializados, inviabiliza-se a funcionalidade da internet. Mesmo que fosse possível, seria mal feito.
ConJur – Temos visto decisões que obrigam a retirada de conteúdo mesmo que a parte não indique a URL [endereço do site]...
Eduardo Mendonça – Ainda existe essa discussão. A 3ª Turma do STJ pacificou a tese de que só se deve retirar com a URL. O ministro [Luis Felipe] Salomão vinha entendendo que não seria necessário fornecer a URL porque seria atribuição do provedor fazer essa busca. Então bastaria, por exemplo, indicar a comunidade ou dizer que há vídeos ofensivos no YouTube. Mas ninguém melhor do que a parte para identificar o que considera ofensivo. Quando decisões judiciais genéricas mandam excluir ofensas, sem referências claras, a empresa acaba retirando do ar o que é ilícito e o que é lícito. Na dúvida, tira tudo, para evitar multas e outras punições. É o sufocamento da espontaneidade da internet. E isso pode ter efeitos sistêmicos graves, inclusive contra os interesses dos usuários. Veja o uso da internet para a proteção do consumidor, por exemplo. O consumidor que usa a internet para se proteger autonomamente e cobrar melhores serviços dos fornecedores, sem depender do Estado ou do Judiciário. Se o juiz concede ordens genéricas para retirar conteúdo que determinada empresa considera ofensivo, o resultado é que ela passa a ter um direito de silenciar o que se fala sobre ela. Ou seja, silencia-se seletivamente um importante canal de proteção autônoma do consumidor. Sem pensar na funcionalidade do sistema, cria-se uma falsa Justiça: os poucos que judicializam ganham e quem não judicializa perde.
ConJur – O senhor comentou do orçamento do Poder Público ao falar do direito à saúde e publicou um artigo com críticas ao chamado “orçamento impositivo”, incluído na Constituição pela Emenda 86. Qual o problema dessa medida?
Eduardo Mendonça – O termo “orçamento impositivo” passa a ideia de que o orçamento da União teria cumprimento obrigatório. O orçamento é resultado de um processo deliberativo muito complexo, em que o Executivo tem a iniciativa privativa e, portanto, faz uma pré-seleção das prioridades públicas, e o Legislativo confirma ou modifica essas prioridades. Portanto, o orçamento não é só um registro contábil. Em qualquer sistema em que haja escassez de recursos, e são todos, o orçamento é um momento de escolha material. Eu vou ter que saber se aplico mais em saúde, em educação, em defesa ou em segurança pública, quanto em cada área. Então, dizer onde vou gastar é uma escolha política muito relevante. Se eu não colocar no orçamento, não posso fazer.
Como é que acontece no mundo real? O orçamento é aprovado, mas o governo federal logo depois solta uma portaria dizendo que vai contingenciar X milhões de reais, sem motivação. Então, a política pública é decidida em conjunto e, unilateralmente, o Executivo não aplica. Como hoje em dia o governo não precisa explicar o motivo, a imprensa e a população não percebem.
Agora, a emenda do orçamento impositivo determina que as emendas individuais dos parlamentares passam a ser de execução obrigatória até 1,2% da receita corrente líquida do ano anterior. Impede-se apenas que o governo contingencie a verba que vai para redutos eleitorais de parlamentares. Se o governo continuar deixando de aplicar o previsto no restante do orçamento, tudo bem.
ConJur – Há uma previsão de que a União aplique parte do orçamento em saúde, como a Emenda Constitucional 29 fez com estados e municípios...
Eduardo Mendonça – A previsão é a seguinte: as emendas individuais precisam trazer pelo menos metade dos recursos para a saúde. Se as cotas somam R$ 10 milhões para cada um, R$ 5 milhões têm que ser aplicados em saúde. Isso é paroquial, porque significa dizer que cada deputado tem um poder administrativo de alocar R$ 5 milhões no que ele quiser em matéria de saúde. Não resolve a saúde como sistema. Acho isso um escândalo, é apropriação privada do orçamento: cada parlamentar tem uma cota pessoal de dinheiro público para aplicar como quiser. E o pior é que, como esse assunto é árido, não é de domínio público, nem a mídia percebe o quão bárbaro isso é.
ConJur – Esse orçamento impositivo poderia ser alvo de uma ADI?
Eduardo Mendonça – Acho que é uma má escolha política, mas inconstitucional não acho que seja. Sou contra a banalização do controle de emendas. Não se trata de defender ou criticar o ativismo, mas acho que o Supremo tem que concentrar seu capital institucional nas questões mais importantes, como a proteção de direitos humanos, e ser mais contido em questões econômicas e nas que envolvam a interrelação entre os Poderes. Mais ainda no âmbito do poder de emenda.
ConJur – O que o senhor define como ativismo?
Eduardo Mendonça – Nesse ponto não sou original. O ministro Barroso tem uma definição na linha de que ativismo é uma postura deliberada de não adotar interpretações formalistas, com o objetivo de expandir o sentido da Constituição. Você tem ativismo legítimo e ativismo ilegítimo. Por exemplo, quando o Supremo se dispõe a suprir uma omissão inconstitucional, está sendo ativista. Se há 20 anos está pendente a lei sobre o direito de greve do servidor e o STF ocupa esse espaço, avança na separação dos Poderes, mas não de forma ilegítima. É usar uma postura expansiva na interpretação para avançar um pouco a incidência da Constituição de forma justificada.
ConJur – Julgar o financiamento privado de campanhas eleitorais se encaixa em que tipo de ativismo?
Eduardo Mendonça – Para mim, é ativismo legítimo. Acho boa a versão que o ministro Barroso defende em seu voto, que é diferente dos outros cinco que consideram inconstitucional qualquer financiamento de empresa privada. Ele declara que o sistema atual é inconstitucional. Se o legislador quiser fazer outro melhor, ainda que traga financiamento de empresa, não será necessariamente inconstitucional. Qual é a diferença? O sistema atual coloca como limite 10% da renda auferida no ano anterior. A aplicação prática desse critério produz um resultado inconstitucional, porque retira a paridade de armas. Trata-se de um limite falso, nominal, porque é muito alto para empresas expressivas. Alguém espera que uma empresa que fature R$ 1 bilhão doe R$ 100 milhões? Dez por cento do faturamento de uma pequena empresa, esse sim é um limite real. Agora, dizer que a Constituição proíbe qualquer financiamento de empresa me parece um excesso. Muitas democracias aceitam esse tipo de doação e nem por isso são democracias compradas. É ilegítimo que uma empresa queira apoiar candidatos que defendem uma regulação menos incisiva da economia, mais de livre mercado? Sendo feito com transparência, não creio. Talvez não seja o melhor modelo imaginável, mas isso não significa que seja inconstitucional.
ConJur – Em geral, o Judiciário tem avançado muito em questões de outros Poderes?
Eduardo Mendonça – Tenho a visão de que a jurisdição constitucional deve ser entendida como parte do sistema institucional democrático, e não como uma intrusa na democracia. Não é uma salvadora da pátria sozinha, nem deve ser entendida como palavra final inquestionável. Tenho que pensar na jurisdição não como uma instância automaticamente certa, mas avaliar suas vantagens institucionais. Por exemplo: ser acessível às pessoas em geral e, portanto, permitir que minorias sem entrada no espaço político levem seus argumentos. Às vezes a jurisdição contribui mais dando elementos para o debate público do que decidindo concretamente um caso.
ConJur – Quando o STF julgou a Ação Penal 470, o processo do mensalão, auxiliou esse tipo de debate?
Eduardo Mendonça – Acho importante que o Supremo tenha conduzido o processo do mensalão, porque ajudou a desconstruir essa imagem de que poderosos no Brasil nunca são punidos. Isso é tão entranhado no nosso imaginário popular e é tão antirrepublicano que desconstruir essa visão tem um aspecto constitucional, embora discutir se houve ou não quadrilha seja apenas aplicação da lei penal. Sinceramente gostaria que uma emenda tirasse do Supremo essa competência, mas que bom que ela ainda não veio. O mensalão colocou em praça pública que o Supremo tem um papel relevante no equilíbrio dos Poderes. Hoje em dia, qualquer questão que o Supremo julga tem mais visibilidade do que tinha antes. O Supremo julgou a validade da cláusula de barreira [para partidos políticos] antes. Foi a mesma comoção que temos visto no julgamento do financiamento de campanha? Não estou comparando como se os temas tivessem o mesmo impacto, mas isso ajuda a demonstrar uma mudança radical na postura da sociedade em relação ao tribunal. O Supremo acabou ficando mais exposto e até foi acusado de ter atuado politicamente, o que não me parece justo. Mas a sociedade perceber que precisa acompanhar as atividades do tribunal, que a mídia tem que criticar o que acha que está errado, é um grande avanço institucional.
Revista Consultor Jurídico, 26 de abril de 2015, 9h30