quarta-feira, 30 de novembro de 2016

"A criminalidade não é mais individual, é organizada, transnacional e globalizada"





Por Marcos de Vasconcellos


O Código Penal precisa mudar para permitir a punição penal de pessoas jurídicas, diz o juiz federal Roberto Veloso, presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe). Para ele, o CP, editado em 1941, é de uma época em que o crime não se organizava, e por isso há o grande foco nos "criminosos individuais", que roubam, furtam ou matam. Mas o problema do Brasil de hoje é o crime organizado, acredita.

Para enfrentar essa realidade, Veloso defende, além de mudanças na lei, sua aplicação efetiva. "Na parte geral do Código Penal, que mecanismos temos para investigar uma empresa? E, constatando que a empresa está servindo para a prática de crimes, como puni-la criminalmente? No Brasil, é impossível", reclama o juiz, em entrevista à revista Consultor Jurídico.

Ele acredita que o sistema brasileiro, que diz ser garantista, é "perfeito", mas criou distorções. Ao dar ao réu todas as possibilidades de defesa antes da condenação, analisa, os pobres vão presos rapidamente e os ricos recorrem até a prescrição.

"Quem se beneficia desse entendimento é um número reduzidíssimo, e nesse total estão justamente os poderosos, quem tem dinheiro para bancar os grandes escritórios de advocacia", argumenta.

Leia a entrevista:

ConJur – O senhor acha que tem um novo Direito Penal em vigor no Brasil atualmente?
Roberto Veloso – Não. Mas nós precisamos de um novo Direito Penal. O nosso é de 1941, naquela época nós tínhamos outra realidade sociológica. Tínhamos uma população eminentemente rural. E esse Direito Penal tradicional tem um alicerce, que é punir as questões individuais, que visa punir o homicida, o latrocida, quem rouba, quem pratica lesão corporal.

ConJur – Crimes "de rua".
Roberto Veloso – É. Os crimes de rua, mas uma criminalidade que eu diria individual, não organizada. Em 1984 nós tivemos uma reforma do Código, mas quem estuda Direito Penal diz que a reforma de 84 foi apenas para se ajustar a uma nova teoria, chamada Teoria Finalista. Precisamos de um novo Direito Penal porque a criminalidade atual não é mais individual. É organizada, transnacional e globalizada. Na parte geral do Código Penal, que mecanismos temos para investigar uma empresa? E, constatando que a empresa está servindo para a prática de crimes, como puni-la criminalmente? No Brasil, é impossível. A Constituição só permite punir penalmente a empresa nos crimes ambientais. Uma grande construtora pode estar sendo usada para a prática de crimes, mas ela não sofrerá nada criminalmente.

ConJur – Mas a permissão à punição penal da pessoa jurídica não puniria também seus empregados ou sócios que não participaram da questão criminal?
Roberto Veloso – Pois é, mas já existem legislações mais avançadas que permitem a punição criminal da pessoa jurídica. Por exemplo, a da França. No Brasil, só pode punir a pessoa física. Nosso Direito Penal precisa evoluir nesse sentido. Só que para isso é preciso um novo Direito Penal, porque o nosso considera que o crime é ação humana típica ilícita e culpável. Ora, se ele parte do pressuposto que o crime é uma ação humana, como punir a pessoa jurídica? Essa não é uma opinião original minha, mas do Claus Roxin, que é um dos maiores expoentes vivos do Direito Penal.

ConJur – Essa punição dos sócios, por exemplo, não serviria como uma punição à empresa?
Roberto Veloso – Não, a empresa continua. Ela tem uma personalidade jurídica diferente, só é punida indiretamente.

ConJur – Por que a empresa deveria ser punida? Por que não punir os sócios?
Roberto Veloso – Como é que eu tenho uma empresa que serve para lavagem de dinheiro, puno o sócio, mas ela continua livre para agir? É uma discussão importante no Direito Penal. Precisamos de instrumentos. Às vezes até se questiona a “lava jato”, porque a operação estaria inovando. Na verdade, não são inovações da “lava jato”, são da própria legislação brasileira. A delação premiada mesmo é algo muito recente na vida jurídica do Brasil. Foram mudanças promovidas pelo Legislativo, e não pelo Judiciário.

ConJur – Então não há ativismo entre os juízes brasileiros?
Roberto Veloso – No penal, não. Há um dispositivo na Constituição que diz que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia combinação legal. Então estamos amarrados constitucionalmente no Direito Penal Criminal sancionador à lei. Não podemos fazer uma inovação jurisprudencial para criar crimes ou aumentar penas, temos que ficar restritos à lei. Muitos processos poderiam ser resolvidos com negociação, com acordo. Ou seja, o Ministério Público poder fazer um acordo com o acusado e o acordo ser homologado pelo juiz, e, a partir daquele momento, o processo não existir mais. É uma experiência extremamente exitosa nos Estados Unidos.

ConJur – Por que isso seria bom para o Estado? Só para encerrar o número de processos?
Roberto Veloso – Para encerrar o número de processos, e também para que a população tenha um sentimento maior de resolutibilidade do processo penal. A população tem uma descrença muito grande na Justiça, porque a Justiça é ineficiente, não dá vazão. As pessoas cometem crimes e depois não são punidas.

ConJur – O senhor é a favor do cumprimento de pena sem trânsito em julgado?
Roberto Veloso – Sou a favor. A Constituição fala que ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Só que esse dispositivo precisa ser interpretado. A interpretação do ministro Teori foi correta. Os fatos estão transitados em julgado depois da decisão de segundo grau, porque se nós fomos ver a Súmula 7 do Superior Tribunal de Justiça, ela diz: “Não cabe recurso especial para reexame de provas”. Por quê? Porque as provas já estão transitadas em julgado, e se as provas já estão transitadas em julgado não há mais presunção de inocência. Quem tem condições para contratar bons escritórios de advocacia vai cumprir a pena daqui a dez anos. Além dos recursos do Código de Processo Penal, que já são muitos, ainda temos os recursos previstos nos regimentos internos dos tribunais. Então, onde é que nós vamos chegar? Então, uma norma constitucional, que a princípio era para ser garantista, passa a permitir abusos. E esse abuso gera na população um sentimento de impunidade, um sentimento de que vale a pena delinquir.

ConJur – Mas a necessidade não seria de se mudar a Constituição, e não reinterepretar uma regra clara?
Roberto Veloso – Sim, mas o Supremo Tribunal Federal permitiu o casamento homossexual a partir de uma interpretação.

ConJur – Não seria papel do Legislativo fazer isso?
Roberto Veloso – Se o Legislativo não age, o Judiciário ocupa o lugar, é assim. Mas isso não é um privilégio brasileiro. Veja que o aborto nos Estados Unidos: é permitido por uma decisão da Suprema Corte, e não por uma lei ou por uma reforma constitucional. Não é um privilégio brasileiro esse tipo de interpretação. Há necessidade dessa interpretação, porque tudo o que leva a uma conclusão absurda precisa ser coibido.

ConJur – O Brasil ostenta uma das maiores populações carcerárias do mundo, e não é segredo para ninguém que o país prende muito mal. Se temos essa realidade, por que reinterpretar um texto para facilitar prisões?
Roberto Veloso – Vou dar um exemplo do prender mal: até 2006, nós tínhamos no Brasil a Lei do Tráfico de Entorpecentes, que é de 1976. Ela previa o seguinte: pena mínima para tráfico de três anos, pena máxima 15 anos. Mas a posse para consumo era de um a três anos. Veio a Lei 11.343, em 2006, e a pena para o tráfico ficou de cinco a quinze. Agravou a pena do tráfico, e para a posse, para o consumo, disse que não cabia mais prisão, agora eram penas restritivas de direito. O que aconteceu? As cadeias estão cheias de usuários que não deveriam estar lá. Pessoas que são pegas com pouca quantidade de droga, que poderiam ser aparentemente para consumo próprio, mas que a polícia enquadra no tráfico, porque o policial diz: “Se eu enquadrar na posse para consumo, vou ter que soltar. Prefiro pegar o sujeito que está com a posse para consumo e botar como traficante”.

ConJur – Isso também vem da sensação de impunidade?
Roberto Veloso – Isso. Por isso se diz que “prende mal”. Sou professor e sempre gosto de fazer uma pesquisa informal com os meus alunos. Pergunto quem já foi assaltado e a maioria levanta o braço. Aí faço a segunda pergunta: “Qual pessoa aqui assaltou vocês que está presa?”, e ninguém levanta o braço. Se tenho em uma sala de aula 50 alunos, 30 dizem que foram assaltados e nenhuma daquelas pessoas que os assaltaram está presa. Ao mesmo tempo nós temos uma das maiores populações carcerárias do mundo.

ConJur – Mas a sensação de impunidade não significa impunidade.
Roberto Veloso – Realmente existe a impunidade. A criminalidade é alta. Se fizer uma pesquisa, das pessoas que estão presas nas penitenciárias, 90% ou mais não passaram do segundo grau, muitas não passaram do primeiro grau. Quando se fala no cumprimento da pena após o julgamento em segundo grau de jurisdição, talvez não atinja 1% das pessoas que estão presas. Quem se beneficia desse entendimento é um número reduzidíssimo, e nesse total estão justamente os poderosos, quem tem dinheiro para bancar os grandes escritórios de advocacia.

ConJur – Qual a conclusão que o senhor tira disso?
Roberto Veloso – Quem está preso lá na comarca é o criminoso individual. Não o organizado. Esse se beneficia da norma. O criminoso individual não tem direito nem ao segundo grau. Deveria ter, mas isso não é a falha do sistema recursal, é a falha de não existir uma Defensoria Pública. Se nada funciona, como é que teremos uma boa defensoria pública? O sistema perfeito é o brasileiro, que permite a pessoa utilizar de todos os recursos para iniciar o cumprimento da pena, excelente. O que é que esse sistema perfeito, ideal, está fazendo? Qual é o resultado prático dessa adoção? Uma distorção, a de que a Justiça só é para o pobre. E isso é uma distorção que não como superar, então não há Justiça.

ConJur – Juízes e procuradores da República costumam reclamar da prescrição.
Roberto Veloso – O sistema brasileiro de prescrição tem duas penas, a pena em abstrato e a pena em concreto. A prescrição corre em abstrato. Vou dar o exemplo do crime de peculato. A população vê o peculato como uma corrupção, a pena mínima são dois anos e a máxima, 12. São dez anos de diferença. Até a decisão de primeiro grau, a prescrição corre com a pena máxima em abstrato (12 anos). Quando o juiz vai aplicar a pena, para conseguir subir do mínimo, é preciso que haja agravantes. Mas, como a pena mínima é muito pequena para peculato, bom, existindo muitas circunstâncias agravantes o juiz vai condenar a quatro anos, isto é só um caso. Muitas das vezes a pena vai fixada no mínimo, dois anos.

ConJur – E aí a prescrição passa a correr com a pena em concreto.
Roberto Veloso – Aí é que está o pulo do gato. Se eu passo a ter uma pena em concreto a partir da sentença de primeiro grau e sou advogado, o que é que eu vou fazer? Postergar esse início do cumprimento da pena com recursos a fim de que o prazo que conte a partir de agora e que a pena aplicada para o meu cliente prescreva. Se formos olhar as decisões condenatórias do Supremo Tribunal Federal, quantas o Supremo não condenou pessoas de foro privilegiado e teve que decretar a prescrição imediatamente, na mesma hora? Então, o cerne da construção perfeita a que me referi antes está todo furado, permitindo esse tipo de procedimento que não vou dizer que seja ilegal.

ConJur – São mecanismos legais.
Roberto Veloso – Exato. Mas são procedimentos de moral duvidosa. Se eu disser isso para um advogado, ele vai dizer para mim: “Não, doutor, mas o senhor está querendo cercear o direito de recorrer do meu cliente?" Só que o direito de recorrer está gerando essa distorção. Se o inquérito passa dez anos na polícia, o crime já prescreveu, já não adianta mais. Aí vem aquela história de o juiz dar uma pena elevada para não prescrever. Aí é errado.

ConJur – Uma discussão moral sobre o que é legal.
Roberto Veloso – Exatamente, e aí está errado. Tem que julgar de acordo com o que está nos autos, mas para o juiz isso é frustrante. Ele tem um trabalho imenso de ter ouvido testemunhas, interrogado o réu, expedido carta precatória, o processo está com três, quatro volumes e está prescrito. É esse tipo de distorção que precisa ser regularizada, daí a necessidade desse cumprimento da pena após o julgamento de segundo grau. Não quer dizer que a pessoa não vá ter condições de recorrer. Não haverá injustiças, porque ainda há o Habeas Corpus, as medidas cautelares, recurso extraordinário etc.

ConJur – Aumentar a pena, tipificar novos crimes ou transformá-los em hediondos ajuda a diminuir a criminalidade?
Roberto Veloso – Sempre dou o exemplo do álcool ao volante. O que faz a pessoa beber e não dirigir? É a pena que está fixada na lei ou é a fiscalização? A fiscalização. Se andarmos pelo Brasil, onde não há fiscalização, a lei é inócua. O Conselho Nacional de Justiça fez uma pesquisa e descobriu que apenas 8% dos homicídios do Brasil são levados a julgamento. É quase nada. Nós temos 500 mil presos, e somente 8% dos homicídios são julgados. Dados do Ministério da Saúde mostram que 40 mil pessoas são assassinadas no Brasil por ano, aproximadamente. Em três anos, são 120 mil pessoas assassinadas no Brasil. A Guerra do Iraque durou dez anos e 100 mil pessoas morreram. É aquela história da impunidade, ela está presente porque é reconhecida pelo próprio CNJ e envolve o crime individual mais grave, que é aquele que tira a vida das pessoas.

ConJur – A imprensa influencia o juiz?
Roberto Veloso – Não deveria. Pode ser que existam exceções, mas em regra não deveria influenciar, porque o juiz é contramajoritário, não deve se guiar pela opinião pública. A opinião pública muitas vezes age errado. Até se diz que a opinião pública condenou Jesus e absolveu Barrabás.

ConJur – O Judiciário tem preenchido vazios do Legislativo?
Roberto Veloso – Sim, ele tem sido chamado pela população. E a esse chamamento o Judiciário tem dado respostas. Por exemplo, à fidelidade partidária, foi uma resposta judicial a um apelo da sociedade. A sociedade apelou para isso e o Judiciário atendeu. Existem determinados reclames da sociedade que o Judiciário também tem atendido, mas em regra o Judiciário não deve. É quase um dogma para um juiz, que ele não se influencie pela opinião pública se ela está dissociada do processo.

ConJur – O senhor é a favor das dez medidas que estão propostas pela MP?
Roberto Veloso – Nós debatemos isso lá na Câmara. Existem as dez medidas como foram propostas pelo Ministério Público, como uma petição de princípios. Ela tem um apoio da Ajufe. Agora, um projeto de lei precisa de adequações. Nem tudo que está num projeto de lei a Ajufe defende.

ConJur – As provas obtidas de forma ilícita, desde que de boa fé, são uma possibilidade para o nosso Judiciário?
Roberto Veloso – Não entraria nessa questão material. Mas existem questões processuais que devem ser mais bem resolvidas. Por exemplo, as investigações promovidas pelo Ministério Público. Pelo projeto de lei, o MP instaura o procedimento investigatório e ele mesmo arquiva. Nós, juízes, entendemos que essa investigação deve ser arquivada no Judiciário, porque nenhum poder pode ser absoluto. O juiz é controlado pelo MP, que pode recorrer de todas as minhas decisões, se quiser. Se o MP passa a ser um poder sem controle, passa a ser um poder absoluto.

ConJur – O que o senhor acha do teste de integridade?
Roberto Veloso – O Brasil não está preparado para isso, objetivamente. Não temos pessoal para isso. Se já se investiga pouco no Brasil, como eu vou despender pessoal para ficar fazendo teste de integridade? Tenho minhas dúvidas se esse teste de integridade não serviria apenas para perseguições dentro das repartições públicas, e não algo efetivamente para se descobrir alguma coisa. A minha experiência é que a nossa estrutura não está preparada para isso. Existem outros mecanismos mais importantes.

ConJur – O momento é ruim para discutirmos uma lei de abuso de autoridade?
Roberto Veloso – O momento precisa ser mais bem discutido. Existem determinados dispositivos que podem levar a esse tipo de interpretação. Há um dispositivo que diz: “O juiz não pode levar para dentro do processo um diálogo travado entre o investigado e quem tem prerrogativa de foro”. Vou dar um exemplo bem dramático: um traficante de drogas conversa com um deputado federal. A polícia está com uma interceptação telefônica sobre o traficante de drogas, mas o traficante ligou para o deputado. Se aprovado o projeto, essa conversa não pode ir para dentro do processo. Isso não é possível. Tenho que levar para dentro do processo se entendo que a partir daquele momento o deputado está envolvido no caso. Pela atual legislação eu envio para o Supremo, mas não que eu não possa deixar dentro do processo.

ConJur – A prerrogativa de foro é um problema?
Roberto Veloso – Sim. Temos 22 mil pessoas com foro privilegiado no Brasil. Se pegarmos os países desenvolvidos do Ocidente, o foro privilegiado é usado restritivamente. Poderia haver foro privilegiado para os 11 ministros do Supremo, para o presidente da Câmara, para o presidente do Senado, para o presidente da República, para o vice-presidente da República. Passou dos limites, e esse foro privilegiado tem gerado uma situação muito incômoda para o Supremo, porque lá tramitam 302 inquéritos e cento e poucas ações penais em curso. O Supremo, quando foi julgar o mensalão gastou no julgamento 60 sessões. O tribunal parou durante um ano e meio. Quem deveria fazer a guarda da Constituição, e os seus ministros são vocacionados para isso, passa a discutir caso penal.

ConJur – A “lava jato” tem influenciado os juízes?
Roberto Veloso – Os juízes são bem cônscios das suas funções, pelo menos na Justiça Federal. Sei que todos os juízes federais têm a mesma disposição que Sérgio Moro tem. Evidente existem outros tantos fatores que influenciam, e é claro que eu não posso negar que o Tribunal Regional Federal da 4ª Região tem dado apoio à operação “lava jato”, tanto é que deixou Moro exclusivo para essa operação. São medidas importantes, que influenciaram positivamente o sucesso da operação.

ConJur – O senhor não vê exageros na condução das investigações e dos processos? Há muitas reclamações sobre as prisões para delatar.
Roberto Veloso – Não existiu nenhuma prisão para delatar. Todas as prisões foram decretadas porque havia requisitos para se decretar e pelo menos um dos fundamentos. Tanto que se nós olharmos o conjunto das decisões de Sérgio Moro, 96% delas foram confirmadas pelas cortes superiores. É um dado que faz cair por terra esse tipo de argumento, porque se fossem decisões sem fundamentação, se fossem prisões apenas para delatar, como se acusa, essas decisões não teriam sido confirmadas.



Marcos de Vasconcellos é chefe de redação da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 27 de novembro de 2016, 8h00

JT é competente para julgar direito à nomeação de candidato aprovado em concurso público celetista




Após ser aprovado em um concurso de Técnico Bancário da Caixa Econômica Federal, um candidato ingressou na Justiça do Trabalho buscando o reconhecimento de seu direito à nomeação. Disse que, no curso da vigência do concurso, a CEF fez uso de diversos terceirizados para realização de tarefas exclusivas dos técnicos bancários, em afronta ao edital, à legislação e à jurisprudência.

A CEF defendeu-se, afirmando que a Justiça do Trabalho é incompetente para apreciar a causa, já que não há relação de trabalho envolvida e a discussão sobre o concurso público diz respeito a fase anterior à investidura no emprego público, razão pela qual a competência seria da Justiça Comum.

Ao examinar o pedido, na titularidade da 21ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, o juiz Cléber Lúcio de Almeida reconheceu a competência da Justiça do Trabalho para julgar a causa. O julgador esclareceu que a demanda gira em torno da formação do vínculo de emprego e envolve discussão sobre a obrigatoriedade da CEF de contratar o candidato, ou seja, o objeto da ação é a própria formação do contrato de trabalho. Assim, concluiu, o exame da matéria, relativa à relação de emprego em seu nascedouro compete, sim, à Justiça do Trabalho.

"Ressalto que a efetiva existência da relação de emprego não é essencial para definir a competência da Justiça do Trabalho, pois essa se verifica também quando se discute a observância das condições negociais da promessa de contratar (fase pré-contratual) e até mesmo quando já tenha sido dissolvida a relação de trabalho (fase pós-contratual)", pontuou o julgador, frisando que, no caso, a questão não é a legalidade do concurso, mas o direito à nomeação de um candidato a emprego público, sob regime celetista. Ou seja, a lide encontra-se na fase pré-contratual. Assim, no entender do magistrado, é irrelevante, para se determinar a competência, que a relação de emprego não se tenha ainda concretizado, sendo a controvérsia de índole nitidamente trabalhista, e não administrativa.

Portanto, o magistrado rejeitou a preliminar de incompetência suscitada pela CEF. Da decisão ainda cabe recurso.
PJe: Processo nº 0010323-36.2016.503.0021.Para acessar a decisão, digite o número do processo em: https://pje.trt3.jus.br/consultaprocessual/pages/consultas/ConsultaProcessual.seam

Fonte: TRT

JT-MG nega indenização substitutiva do vale transporte a trabalhador que morava próximo ao trabalho




O vale transporte constitui benefício de natureza não salarial, instituído pela Lei nº 7.418/85, que o empregador, pessoa física ou jurídica, antecipa ao empregado para utilização efetiva em despesas de deslocamento residência-trabalho e vice-versa, via sistema de transporte público coletivo (artigo 1º). O patrão participa com ajuda de custo equivale à parcela que exceder a 6% do salário-base (artigo 4º, parágrafo único).
A explicação é do juiz convocado Cléber Lúcio de Almeida, ao apreciar, na 7ª Turma do TRT de Minas, um recurso envolvendo o tema. No caso, o empregado insistia no direito à indenização substitutiva correspondente aos valores gastos nos deslocamentos entre sua residência e a oficina mecânica onde trabalhava. No entanto, após constatar que o empregado residia próximo ao trabalho, o magistrado não deu razão a ele.
De acordo com a defesa, as partes combinaram que o empregado se deslocaria a pé para o trabalho, em razão da proximidade de locais. Essa versão foi presumida verdadeira, uma vez que o trabalhador não compareceu à audiência de instrução. Ao caso, foi aplicada a chamada "confissão ficta".
De todo modo, o relator considerou plausível o alegado pela ré. É que os dados das partes registrados no processo demonstraram que, tanto a residência do trabalhador como a sede da empresa, estão situadas no Bairro Serra. Por sua vez, mapas juntados aos autos revelaram que a residência dele fica a 21 minutos de caminhada do local de trabalho, compreendendo ao todo 1,6 km.
Conforme ponderou o julgador, o deslocamento via transporte público demandaria, comparativamente, até mais tempo. Diante de todo o contexto apurado, concluiu não existir margem para pagamento de indenização substitutiva de vale-transporte. Segundo o magistrado, essa possibilidade só existiria diante da efetiva utilização do sistema de transporte público coletivo ou da frustração indevida do benefício.
Acompanhando o voto, a Turma de julgadores negou provimento ao recurso e manteve a sentença que indeferiu a pretensão.

PJe: Processo nº 0010235-10.2016.5.03.0114 (RO). Acórdão em: 01/09/2016Para acessar a decisão, digite o número do processo em: https://pje.trt3.jus.br/consultaprocessual/pages/consultas/ConsultaProcessual.seam

Fonte: TRT3

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Por que, contra a lei, juíza acha que pode autorizar revista coletiva?




Por Lenio Luiz Streck


Os leitores entenderão as razões pelas quais a juíza — do título da coluna — acha que pode mais do que a lei. Ao trabalho. O jusfilósofo alemão Mathias Jestaedt, um destacado positivista, escreveu um texto que poderia ter sido escrito para o Brasil. Chama-se Verfassungsgericht Positivismus. Die Ohnmacht des verfassung gesetzgebers im verfassungsgerichtlichen Jurisdiktionsstaat.[1] (Positivismo do Tribunal Constitucional. A impotência do legislador constituinte ante a jurisdição constitucional do Estado). Na verdade, se substituirmos no texto a referência ao Bundesvesfassunsgericht por Supremo Tribunal Federal pouco mudaria, com a diferença de que ao menos o tribunal alemão usou (e usa) uma certa coerência na sua atuação realista, a começar pelo fato de que, já de início, disse a que veio, epitetando a Lei Fundamental de Ordem Concreta de Valores — objektive Wertordnung.

Pronto. Dei spoiler. É exatamente disso que fala o jurista alemão. Ele mostra — numa denúncia mais filosófica que aquela famosa de Ingeborg Maus (sobre o Tribunal Constitucional como superego da nação) — que o tribunal incorporou uma tese segundo a qual o Direito se forma apenas ex post, isto é, não há Direito anterior à decisão judicial. Nesse tipo de jurisprudencialismo, diz o professor, o juiz cria o Direito para o caso concreto sem estar vinculado a nada antes dele. Jestaedt diz ainda que esse atuar é uma forma de realismo jurídico.[2] Empirismo. Correta a crítica, que pode ser estendida ao trabalho do Supremo Tribunal Federal do Brasil e também ao que os tribunais fazem cotidianamente (o que é isto — a construção de enunciados?). O que Jestaedt [3] quer dizer é que o tribunal põe novo direito. Logo, constrói um fato social. Que vale. Daí o título do texto, autoexplicativo, denunciando a impotência do Estado diante da transformação do TC em legislador. Qual seria a diferença do que denuncia Jestaedt daquilo que fez o STF em ações como as ADCs 43 e 44 ou quando um ministro diz que a suprema corte é a vanguarda iluminista da nação? Ou quando um tribunal, contra o Código Civil, concede metade da herança para a amante? Ou quando os tribunais dizem que “aqui o CPC é só cumprido em parte”?

No Brasil não é só o tribunal constitucional (no caso, o STF) que “põe o direito”. Todo o “sistema judiciário” pratica esse realismo (ou essa espécie de realismo tupiniquim) tão bem denunciado por Jestaedt no que pertine ao tribunal constitucional alemão. Já não temos mais Direito legislado. Temos uma Ohnmacht (impotência) diante do Judiciário. Já não temos Constituição. O que temos é o que os juízes e tribunais pensam, de forma pessoal, subjetiva e solipsista, sobre o direito. Popper chama a isso de “racionalidade teológica”.

Listo, por amostragem, algumas atividades realistas-jurisprudencialistas [4]: 1) Desembargador do Tribunal Regional Federal da 2ª Região diz que perdoa advogados por “defenderem seus clientes” — uma apreciação moral que mostra como a advocacia é vista por eles, os juízes (sem paráfrase de Calamandrei) — o resultado disso pode ser visto no voto em que nega habeas corpus; 2) O STF tolhe o direito de greve dos servidores públicos sem considerar a diferença entre greve legal e ilegal; 3) O STF fragiliza a presunção da inocência contra expresso texto de lei e da Constituição (e metade da comunidade jurídica acha “bom”); 4) O Judiciário, com a benção do STJ e STF, decide não cumprir o artigo 212 do CPP, sem fazer jurisdição constitucional; 5) Uma chacina de 111 presos feita pela polícia é "legítima defesa" para parte do Tribunal de Justiça de São Paulo (um voto está baseado não na lei, mas na consciência do julgador); 6) O TJ-SP autoriza o uso de balas de borracha contra manifestantes — a população virou inimiga do Estado?; 7) Em Brasília, um juiz da infância e juventude utiliza métodos de tortura para expulsar adolescentes de uma escola; e parcela importante dos juristas brasileiros — e dos leitores da ConJur — acha “legal” isso (até a revista Veja criticou o ato do juiz, mostrando que nem o Senado americano aprova o uso desses instrumentos); 8) “Medida excepcional” da Justiça autoriza a polícia a fazer buscas e apreensões coletivas em favela no Rio de Janeiro contra expresso texto legal e constitucional; 9) Um TRF decide uma representação contra um juiz invocando “jurisprudência de exceção” (empirismo jurídico na veia); 10) O CPC não é cumprido nem mesmo pelos tribunais superiores, que, para muitos juristas, deveriam logo ser ungidos à condição de tribunais de precedentes; 11) doutrinadores adeptos do realismo incentivam as práticas jurisprudencialistas, cindindo texto e norma e colocando o ato judicial como um ato de vontade (repristinando Kelsen) — eficiente combustível para a jurisprudencialização; 12) Em plena democracia e no ano da graça de 2016, pesquisa mostra que todos os tribunais estaduais (e alguns federais) continuam invertendo o ônus da prova em crimes como furto e tráfico de entorpecentes e ainda usam a verdade real; 13) uma juíza eleitoral da Bahia diz: não tenho provas, mas eu sei que foi ele... e cassa um prefeito — e o TRE baiano confirma a decisão; 14) a LC 64 permite que se use intuições e presunções para cassar mandatos populares; 15) corre solta, lépida e fagueira a tese de que existe o in dubio pro societate — não leram Oresteia, de Ésquilo (não é esquilo); 16) as grandes “ideias” das salas de aula que forma(ra)m um milhão de advogados são: “princípios são valores” e o juiz boca da lei morreu e agora-é-a-vez-do-juiz-dos- princípios (e dá-lhe princípios como um que recebi hoje por e-mail: princípio da primazia do acertamento — quem teria “bolado” isso?; 17) chegamos ao ponto de o STJ ter de dizer que desemprego não é motivo para decretar preventiva (tem juiz e tribunal dizendo o contrário). Paro por aqui. Por total desnecessidade. Cada um que faça a sua lista.

Escrevendo a coluna, lembrei da prisão do Garotinho e a divulgação — absolutamente ilegal (mais um caso de realismo tupiniquim) das escutas entre advogado e cliente. Quem decretou a prisão e autorizou as escutas e as divulgou não é filho de chocadeira. Estudou em algum lugar. Resultado: isso que está aí. O lema hoje é: Os fins justificam os meios. Decido... e só depois justifico (o que nem é fundamento). Minha pergunta: porque não decretam logo a dispensa da defesa? Matem os advogados.

O juiz que decretou a prisão de Garotinho usou a Bíblia como fundamento. Bom, fora a Bíblia, não havia mesmo fundamento. Só um milagre para justificar a prisão. E só um banho de descarrego epistêmico para salvar esse tipo de decisão e esse tipo de procedimento, que, aliás, quase matou Garotinho, não fosse a corajosa decisão da ministra Luciana Lóssio. Eis a solução: proponho “banhos de descarregos epistêmicos”. Nos anos 90, quem foi meu aluno lembra das “sessões” que eu fazia para retirar “os encosto” (sem esse) que travavam a vida dos pobres estudantes por intermédio da velha cultura prê-à-porter de então, hoje darwinianamente rediviva como “direito simplificado, facilitado, mastigado, resumido, resumidinho”, etc. Sai que esse corpo não te pertence...

O caso Garotinho é empirismo jurídico. Juiz põe o direito (como bem lhe aprouver). Põe fato (social). Ilegitimamente. Mas vale. Quem o segurará? E mesmo que o corrijam (quando sair esta coluna, já podem tê-lo feito), o estrago já está feito. Ao mesmo tempo, quantas prisões preventivas são/foram decretadas nesse imenso Brasil mediante argumentos absolutamente pessoais, subjetivistas, morais, políticos, etc? Tudo serve de fundamento: menos o direito. Que já não existe.

Tenho dito todos os dias que direito não é moral. Não é política. Em qualquer situação. Sou um ortodoxo. Direito não pode ser corrigido por argumentos morais. Pergunto: o que aconteceu? Onde foi que erramos? Já não temos Direito. Temos interpretações. Meras interpretações. Puro relativismo. Só há narrativas sobre o direito. Vivemos um não-cognitivismo ético. Ceticismos. A narrativa do poder. De quem decide. Direito foi substituído por juízos morais e políticos. Logo, o Direito já não é o que foi produzido pelo legislador. Ele é o que os juízos morais e políticos dizem que ele é. Daí o jurisprudencialismo (realista). Há um “novo” direito. A propósito: Já notaram como os livros de Direito não comentam as leis e, sim, somente o que os tribunais dizem sobre as leis? Não se deram conta? O professor pensa que está no common law e discute, em vez de leis, aquilo que os tribunais disseram. Verifiquem. A jurisprudencialização venceu. É a prova de que o que Jestaedt disse sobre o tribunal constitucional alemão se aplica por aqui, claro, com as diferenças de culturas. E do nível do pudor. E da responsabilidade dos juízes do tribunal constitucional. Por aqui, qualquer coisa é motivo: até a Bíblia. E a opinião pessoal. Como disse o desembargador de TJ-SP: penso que os policiais que mataram 111 devem ser absolvidos... baseado em minha consciência. Bingo. Eis o Brasil.

Temos hoje uma Constituição e suas garantias — odiada pela metade dos juristas (canibais, porque devoram o seu próprio objeto de trabalho) — substituída por um direito posto pelo Judiciário. É o que Dworkin dizia sobre o poder discricionário: é Direito feito de forma retroativa. Direito intersticial. Que, na democracia, é absolutamente danoso.

Post scriptum 1: Incrível (ou crível) a violação do sigilo profissional do conselheiro federal Jonas Cavalheiro, do Rio de Janeiro. O juiz, além de grampear conversa entre advogado e cliente, faz vazar estas informações de forma ilegal. E sai no Fantástico. Virou moda no Brasil. Não existe mais a lei 9.296. Só existe aquilo que o Judiciário disse que a referida lei é. Jestaedt tem razão. Que espetáculo, não? E a comunidade jurídica se queda silente. Incrível como o Brasil se transformou em um país de pequenos-reacionários (não explicarei o que isso significa — alguns saberão). Que donas de casa, jornalistas e jornaleiros se pronunciem como torcedores, é até aceitável. Mas em um país de um milhão de advogados, o fato de termos deixado que se instalasse uma juristocracia é algo que desafia amplos estudos. O que farão esses advogados se o Direito já não é Direito e, sim, um “novo” Direito feito “realisticamente”, graças à troca de fonte social? Vão dirigir táxis? Trabalhar de balconista? Ao que vejo, esses estudos denunciando todo esse estado d’arte não serão feitos por nossos programas de pós-graduação, hoje mais preocupados em discutir teoria normativa da política no âmbito do direito do que, efetivamente, teoria do direito. Ficamos bons em discutir livre apreciação da prova e livre convencimento. O livro mais vendido de processo civil de edição de 2016 diz que o juiz apreciará livremente a prova, sem qualquer elemento que vincule o seu convencimento a priori, porque vige no Brasil, segundo os autores, o sistema da livre valoração motivada. Ou seja, no fundo eles poderiam ter dito: “o CPC não vale nada”. O que vale é o que é dito na decisão judicial. Bingo.

No processo penal, a maior parte dos juristas críticos (nem falo dos demais) se deram conta há apenas cinco ou seis anos daquilo que este escriba já denunciara há mais de vinte anos: a de que o problema da falta de democracia no Judiciário e MP decorre-do-protagonismo. E a raiz não é dogmática. Não é “processual”. É, sim, filosófica. É o sujeito da modernidade (ainda há livros que dizem que sentença vem de sentire). Mas, lamentavelmente, parece que nossos juristas acham que isso é não tem nada a ver com a dogmática jurídica. A primeira vez que encontrei Warat foi em uma aula em 1983 (parcela enorme desse um milhão de advogados não havia nascido ou era bebê de colo). Ele atacava a dogmática jurídica formalista de então. Dogmática formalista... Pois sim. Mas, dizia Warat, pitando um cigarro sem tragar: necesitamos de la dogmática. Pero... la dogmática sigue al segundo piso del edificio kelseniano; por lo cual los jueces deciden como quieren; así, la dogmática destruirá cualquier derecho existente y válido. Y por qué? Porque la dogmática, por la falta de una transición democrática [especialmente na américa latina], es como un escorpión que engancha un paseo en la espalda de un sapo; en el cruce del río, lo mata. Un gran escorpión realista. Grande Warat. Se ele visse a “dogmática da valoração ou dogmática realista” de hoje, que é posta como oposição à velha dogmática formalista, aí, sim, teria tido um ataque de “nervios”.

De todo modo, parece que tudo está virando discurso de eficiência e de exceção. Fins justificam os meios. Novas vanguardas se formam. “Novo” Direito instersticial. Com isso, a doutrina perde importância. Afinal, o Direito é que o Judiciário diz que é. Consequentemente, na medida em que o que os advogados dizem já não tem importância, assim como aquilo que a doutrina — aquela que não se dobra ou fica fazendo glosas jurisprudenciais — diz também não tem serventia, somente há uma coisa a fazer. Dick, o açougueiro da peça Henrique VI, tinha a sugestão: kill all the lawyers. Matem todos os advogados. Eles atrapalham. E Jack Cade responde: Pretendo fazer isso e mais...

Post scriptum 2: Daqui há 201 anos, arqueólogos rasparão o palimpsesto da Constituição. Isso acima tinha de ser dito. Um Estado Constitucional só tem sentido se o texto constitucional que o institui estiver minimamente preservado. Se deixarmos que o texto seja substituído por outro produzido (posto) pelo Judiciário, então teremos que ficar torcendo para que o substituto seja melhor que o originário. Mas, quem garante? O Brasil já demonstrou que a substituição não tem sido boa. Daqui há 201 anos, quando a Constituição brasileira tiver a idade que a Constituição americana tem hoje (229 anos), os arqueólogos estarão tirando camadas e camadas de poluição semântica do texto constitucional. Como em um palimpsesto, irão raspar, raspar (pararão para ler interpretações que nada tem a ver com a própria CF), rasparão mais e mais, até que, finalmente, chegam ao texto. Ficarão pasmos e dirão: “— agora sabemos porque, no conto machadiano a Sereníssima República, a palavra Nebraska se transformou em Caneca.”

Por isso, proponho que voltemos a estudar... Direito. E respeitemos... o Direito. E que nos acostumemos a dizer que onde está escrito “presunção”... leiamos... ”presunção”. E não odiemos sinonímias. Elas são desejáveis na democracia. Norma é diferente de texto. Viva. Sabemos disso. Mas, por favor, norma (atribuição de sentido) não é texto novo. Mas não é, mesmo. E, finalmente, não tenhamos vergonha de estudar Direito. Sejamos ortodoxos. Salvemos o Direito. Se que ele ainda existe.


1 In: Nomos und Ethos. Hommage an Josef Isensee zum 65. Geburtstag von seinen Schülern. Mit Frontispiz (Schriften zum Öffentlichen Recht; SÖR 886) Gebundene Ausgabe – 2002, Dincker & Humblott, Berlin, 2002, pp. 183-228.


2 A crítica de Jestaedt denuncia o ponto central das mazelas de um atuar realista de um Tribunal. Não vou discutir, aqui, a apreciação dele acerca do jurisprudencialismo (que não se confunde com o que fala Castanheira Neves) como uma forma de positivismo (a partir do que diz Jestaedt, decisões como as do Min. Barroso – ADCs 43-44 e tantas outras - não seriam propriamente “pós-positivistas”). Mas essa é uma longuíssima discussão e não há condições de fazê-la neste curto espaço. Veja-se que um positivista como Michel Tropper chega a dizer que Kelsen, no plano da decisão (ato de vontade), equipara-se ao realismo. O que importa é que, quando o STF decide, por exemplo, sem considerar o mínimo de constrangimento que o texto constitucional gera (ou deveria gerar) no intérprete, o que está fazendo senão uma forma de realismo jurídico? São exemplificativos os casos pelos quais para o Supremo Tribunal não há direito ex ante a sua própria decisão (essa é, aliás, a crítica que Jestaedt faz ao TC alemão). Essa circunstância se repete em todo o sistema jurídico brasileiro. Pelo que se vê por aqui, não há norma jurídica antes da decisão do caso concreto. No entanto, nos Estados Unidos ou na Escandinávia, o realismo jurídico – com todos os seus problemas – sabia do impacto das decisões judiciais e os problemas de um Judiciário que decide sem limites. Por isso Holmes advertia sobre o dever de moderação dos magistrados, sob pena de aumentar a instabilidade social, como bem lembram Eugenio Fachini Neto e Ana Paula Tremarin Wedy, no texto Sociological jurisprudence e o realismo jurídico: a filosofia jurídico norte-americana na primeira metade do século XX. Revista da Ajuris, v. 43, n. 160, 2016. p. 100). No Brasil, contrariamente, sentimos na pele essa herança empirista. O nosso realismo não tem precedentes (se me entendem a ironia!).


3 Apenas uma objeção. Ainda que correta a crítica de Jestaedt ao modelo jurisprudencialista que ele considera uma forma de positivismo, o professor alemão atribui esse tipo de atividade jurídica à hermenêutica e à doutrina de Friedrich Müller. Jestaedt acerta na acusação ao jurisprudencialismo, mas erra na atribuição da culpa.


4 José Bolzan de Morais chama a esse fenômeno de A Jurisprudencialização da Constiuição. A Construção Jurisdicional do Estado Democrático de Direito – II (In: José Luis Bolzan de Morais; Lenio Luiz Streck. (Org.). Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica. Livraria do Advogado, 2009, v. 1, p. 41-52).


Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.

Revista Consultor Jurídico, 24 de novembro de 2016, 8h00

Gestante aprendiz tem reconhecido o direito à estabilidade provisória


A Oitava Turma do Tribunal Superior do Trabalho reconheceu o direito de uma aprendiz da Scopus Tecnologia Ltda. à estabilidade provisória da gestante, aplicando a jurisprudência do TST especificada na atual redação do item III da Súmula 244. Segundo a relatora do processo, ministra Dora Maria da Costa, a estabilidade provisória prevista no artigo 10, inciso II, alínea "b", do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias constitui direito constitucional assegurado à empregada gestante e tem por maior finalidade a garantia do estado gravídico e de preservação da vida, "independentemente do regime e da modalidade contratual".

A jovem engravidou durante o período de dois anos do contrato, e seu filho nasceu cerca de um mês antes do encerramento da relação com a empresa. O juízo de primeira instância e o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (SP) consideraram que não se aplicava ao caso a garantia de emprego à gestante do ADCT. Para o TRT, na época do término do (em 14/3/2013), o entendimento prevalecente naquele tribunal era o de que a empregada gestante não tem direito à garantia provisória de emprego no caso de contrato por prazo determinado.

No recurso ao TST, a aprendiz, que tinha 18 anos quando nasceu seu filho, sustentou que o benefício busca assegurar condições mínimas ao nascituro, e que o TST reconhece o direito mesmo nas contratações por prazo determinado.

Ao examinar o caso, a ministra Dora Maria da Costa explicou que, de acordo com o entendimento atual do TST, a gestante faz jus à estabilidade provisória mesmo se o início da gravidez se der na vigência de contrato por prazo certo ou de experiência. "Assim, considerando que o contrato de aprendizagem é modalidade por prazo determinado, a ele também se aplica a estabilidade da gestante, nos termos do item III da Súmula 244", concluiu.

Saiba mais

Algumas informações auxiliam a entender a questão analisada no processo. Uma delas é que o contrato de aprendizagem propicia ao empregado formação técnico-profissional metódica, compatível com o desenvolvimento físico, moral e psicológico daquele que está inserido em um programa de aprendizagem (conforme previsto pelo artigo 428 da CLT) e é equiparado a qualquer outro contrato a termo.



Por sua vez, a garantia de emprego à gestante prevista no ADCT autoriza a reintegração se ela ocorrer durante o período de estabilidade. Do contrário, a garantia restringe-se aos salários e demais direitos correspondentes ao período de estabilidade.

(Lourdes Tavares/CF)

Processo: RR-523-16.2015.5.02.0063

O TST possui oito Turmas julgadoras, cada uma composta por três ministros, com a atribuição de analisar recursos de revista, agravos, agravos de instrumento, agravos regimentais e recursos ordinários em ação cautelar. Das decisões das Turmas, a parte ainda pode, em alguns casos, recorrer à Subseção I Especializada em Dissídios Individuais (SBDI-1).

Fonte: TST

Novo Informativo de Jurisprudência destaca direito de vizinhança e direito do consumidor







O Superior Tribunal de Justiça (STJ) divulgou a edição 591 do Informativo de Jurisprudência. A nova publicação inclui julgamento da Terceira Turma sobre construção em terreno alheio de aqueduto para passagem de águas. A relatora foi a ministra Nancy Andrighi.

Na ocasião, o colegiado estabeleceu que o proprietário de imóvel tem direito de construir aqueduto no terreno do seu vizinho, independentemente do consentimento deste, para receber águas provenientes de outro imóvel, desde que não existam outros meios de passagem de águas para a sua propriedade e haja o pagamento de prévia indenização ao vizinho prejudicado.

Nova relação

Também foi destaque julgamento da Segunda Turma, de relatoria do ministro Herman Benjamin, que determinou que instituição de ensino superior não pode recusar a matrícula de aluno aprovado em vestibular em razão de inadimplência em curso diverso anteriormente frequentado por ele na mesma instituição.

Para os ministros, que acompanharam o voto do relator, o caso abrange uma nova relação jurídica, disciplinada pelo Código de Defesa do Consumidor, e não apenas renovação de matrícula na mesma instituição, caso em que o artigo 5º da Lei 9.870/99 já disciplina o direito do estabelecimento de ensino de não renovar a matrícula do aluno.

Além disso, a turma entendeu que a dívida anterior continua exigível pela instituição de ensino, que pode cobrar pelos meios legais cabíveis.

Conheça o Informativo

O Informativo de Jurisprudência divulga periodicamente notas sobre teses de especial relevância firmadas nos julgamentos do STJ, selecionadas pela repercussão no meio jurídico e pela novidade no âmbito do tribunal.

Para visualizar as novas edições, acesse Jurisprudência > Informativo de Jurisprudência, a partir do menu no alto da página inicial. A pesquisa de informativos anteriores pode ser feita pelo número da edição ou por ramo do direito.
Destaques de hoje

IR: isenção em ganho de capital na venda de imóvel vale para quitar segundo bem
Prazo para ação de regresso de seguro marítimo conta da data de pagamento da indenização
Impenhorabilidade de bens necessários ao trabalho se aplica a empresários individuais, pequenas e microempresas
Para Quarta Turma, multa por descumprimento deve ser compatível com obrigação principal
Fonte: STJ

Turma declara nulidade de demissão em massa sem prévia negociação coletiva


No julgamento realizado pela 1ª Turma do TRT mineiro, os julgadores manifestaram entendimento no sentido de que é obrigatória a intervenção do sindicato da categoria profissional na negociação da dispensa coletiva. A Turma julgadora acompanhou o voto da juíza convocada Ângela Castilho Rogêdo Ribeiro, relatora do recurso de uma trabalhadora. Em sua ação, a autora relatou que jamais houve qualquer negociação coletiva para a dispensa em massa de todos os empregados que prestavam serviços para a ré, uma rede de supermercados que atua no município de Passos-MG.

A trabalhadora narrou que a ré encerrou suas atividades na cidade, resultando na dispensa em massa de centenas de empregados, o que foi amplamente divulgado nos noticiários locais. Afirmou que jamais houve qualquer negociação coletiva. Por essa razão, entre outros pedidos, postulou a declaração da nulidade da dispensa e a continuidade do contrato até que haja negociação coletiva, com o pagamento dos salários vencidos e os que estão por vencer, férias com 1/3, 13º salários e depósitos de FGTS, tudo como se o contrato ainda estivesse em vigor, além de indenização por danos morais.

Ao julgar o recurso contra a sentença que negou esses pedidos, a juíza convocada deu razão à trabalhadora. Seguindo pacífica jurisprudência do TST, a relatora acentuou que é obrigatória a intervenção do sindicato representante da categoria profissional na negociação da dispensa coletiva. "No caso dos autos, sendo incontroversa a dispensa em massa perpetrada pela ré, sem prévia negociação coletiva, haja vista a ausência de impugnação específica (art. 344/NCPC), a nulidade da dispensa é medida que se impõe", completou, citando várias decisões do TST.

Dando provimento parcial ao recurso, a julgadora declarou a nulidade da dispensa, determinando a reintegração da empregada aos quadros da ré, com o pagamento dos salários desde a dispensa, em 31.12.2015, até a efetiva reintegração, computando-se o período para fins de aquisição de férias, 13º salário e depósito de FGTS. Pela decisão, o contrato seguiu inalterado, como se não tivesse ocorrido o encerramento contratual.

A relatora modificou a sentença também com relação ao pedido de indenização por danos morais em virtude da dispensa coletiva. Para ela, nesse caso, é cabível a reparação: "Ressalte-se que essa Julgadora adota a teoria do dano moral presumido, que exige apenas a comprovação do fato que ensejou as consequências daí decorrentes. Assim, havendo a prova do ato ou omissão ilícita, resta configurado o dano que lhe advém naturalmente", avaliou. Assim, uma vez comprovada a conduta ilícita da ré, consistente na dispensa coletiva sem prévia negociação coletiva, está caracterizada a lesão aos direitos da personalidade da trabalhadora, gerando direito ao recebimento da indenização por danos morais.

Em suma, atenta à realidade e às circunstâncias do caso, a julgadora deu provimento parcial ao recurso da trabalhadora para condenar a ré ao pagamento de indenização por danos morais, no valor de 5 mil reais, quantia que, no entender da relatora, mostra-se condizente com a reparação necessária à vítima, bem como para exercer o necessário efeito pedagógico em relação ao ofensor.
PJe: Processo nº 0010084-79.2016.5.03.0070 (RO). Acórdão em: 29/08/2016

Para acessar a decisão, digite o número do processo em:

https://pje.trt3.jus.br/consultaprocessual/pages/consultas/ConsultaProcessual.seam



Fonte: TRT3

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...