terça-feira, 25 de novembro de 2014

Seara é condenada em R$10 milhões por irregularidades trabalhistas


Seara é condenada em R$ 10 milhões por irregularidades trabalhistas





A unidade da Seara Alimentos S.A. em Forquilhinha (SC) foi condenada pela Justiça do Trabalho por danos morais coletivos devido a práticas consideradas atentatórias à dignidade humana de seus empregados. Entre elas, submetê-los a jornadas exaustivas e temperaturas extremamente baixas. A Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho arbitrou o valor da indenização em R$ 10 milhões, que reverterão ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).

A condenação resultou de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) da 12ª Região (SC) a partir de denúncias de que a empresa teria demitido por justa causa, em maio de 2006, nove empregadas que se recusaram a prestar serviços no setor de corte de frangos, onde a temperatura ficava abaixo de 10°C.

O MPT instaurou procedimento investigatório, no qual representantes do Sindicato dos Trabalhadores da Alimentação de Criciúma e Região (SINTIACR) afirmaram que eram comuns as queixas dos trabalhadores sobre a baixa temperatura do ambiente e dos produtos, "chegando, às vezes, a 1ºC".

Mas a apuração acabou revelando diversas outras queixas, como uniformes inadequados para o frio e o ritmo excessivo de trabalho. Segundo depoimentos, a máquina de transporte aéreo de aves (nória) levava para a sala de corte cerca de nove mil frangos por hora e, muitas vezes, o intervalo de almoço era reduzido para "desencalhar" o produto.

Na ação, o MPT chama a atenção para o porte econômico da Seara, que segundo o órgão figura entre as líderes de exportação de cortes de frango no mercado mundial. O lucro líquido da empresa, de R$ 115 milhões, e a receita livre de impostos, de R$ 1,1 bilhão, no primeiro semestre de 2007, justificariam, na avaliação do MPT, um valor de indenização de R$ 150 milhões.

Condenação

A 4ª Vara do Trabalho de Criciúma (SC) julgou procedente a ação civil pública e condenou a Seara ao pagamento de indenização de R$ 14,6 milhões. Além da determinação para o fim das horas extras na área de produção, o juízo determinou que a empresa concedesse aos trabalhadores pausas para recuperação térmica (20 minutos a cada 1h40min trabalhadas) sempre que a temperatura no local fosse inferior a 10°, limite estabelecido no parágrafo 253 da CLT. Já o Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região (SC), entendeu que "o valor fixado não merecia ser reduzido, mas ao contrário, majorado", e arbitrou a indenização em R$ 25 milhões.

TST

No julgamento de recurso da Seara contra a condenação, o relator, ministro Alexandre Agra Belmonte, assinalou que, embora os números indicados pelo TRT-SC em relação à empresa sejam expressivos, os valores fixados foram excessivos. Ressaltou ainda que, apesar de o grupo econômico do qual faz parte a empresa (A Seara pertencia ao grupo Marfrig, e foi posteriormente vendida à JBS-Friboi) ter "aproximadamente 90 mil funcionários", a apuração na ação civil pública atingiu apenas os trabalhadores de Forquilhinha, "pelo que é preciso reavaliar o valor imposto, que não é razoável, porque desproporcional nas circunstâncias".

Parâmetros

Agra Belmonte disse que para chegar ao valor de R$ 10 milhões aprovado pela Terceira Turma foram utilizados alguns parâmetros, como a extensão do dano imposto à coletividade. "É incontroversa a adoção de condutas que violaram as condições de trabalho dos empregados da Seara", assinalou.

Outro critério foi a avaliação do grau de culpa em relação ao dano (artigo 944 do Código Civil). A prova de ritmo frenético de trabalho, sem pausas regulamentares, em condições climáticas absolutamente desfavoráveis demonstram, segundo o magistrado, que não houve descuido e sim intenção deliberada quanto ao modo de desenvolver a atividade, sem preocupação com as consequências.

Quanto ao valor fixado, Agra Belmonte disse que o capital social da empresa, que em maio de 2014 era de R$ 4 bilhões, representa um valor proporcional ao capital social, "critério objetivo que atende o princípio da razoabilidade", afirmou. "Não se vislumbra valor em patamar inferior que possa compensar a coletividade pelos danos e ao mesmo tempo sensibilizar a empresa à revisão dos métodos de trabalho", concluiu.

A adequação do valor da indenização foi a única parte provida do recurso da Seara. A Turma, por unanimidade, não conheceu do apelo nos demais temas, mantendo a condenação.

(Carmem Feijó/RR)


Fonte: TST

Turma entende que ação não pode ser ajuizada no domicilio de empregado que foi contratado e prestou serviços em outro local




Turma entende que ação não pode ser ajuizada no domicilio de empregado que foi contratado e prestou serviços em outro local  


Inconformada com a decisão de 1º Grau que julgou improcedente a exceção de incompetência em razão do lugar arguída em defesa, uma empresa de geologia e sondagem interpôs recurso alegando que o reclamante foi contratado em Belo Horizonte e trabalhou em diversas localidades. No caso, a competência do Juízo havia sido fixada a partir do domicílio do trabalhador, em Riacho de Macacos, pertencente à jurisdição da Vara do Trabalho de Monte Azul. Mas o entendimento não foi mantido pela 9ª Turma do TRT-MG. Dando razão à empresa, os julgadores determinaram a remessa dos autos para uma das Varas do Trabalho da cidade de Belo Horizonte.

O juiz de 1º Grau havia reconhecido a competência da Vara do Trabalho de Monte Azul, onde foi ajuizada a reclamação, ressaltando que os encargos impostos à ré, em decorrência do deslocamento da competência territorial, são ínfimos, se comparados ao enorme prejuízo que seria causado ao trabalhador. No entanto, para o relator do recurso, juiz convocado João Bosco de Barcelos Coura, não há como estabelecer exceções diversas daquelas já expressamente previstas na lei, uma vez que as regras de competência são de ordem pública.

Ele se referia ao artigo 651 da CLT, pelo qual, regra geral, a ação trabalhista deve ser ajuizada no local onde ocorreu a prestação de serviços, ainda que o empregado tenha sido contratado em outro local ou no estrangeiro. O dispositivo abre algumas exceções, quais sejam: empregado agente viajante, empregado brasileiro que trabalhe no estrangeiro e na hipótese de empresa que promova atividade fora do lugar da celebração do contrato. Nesse último caso, é assegurado ao empregado apresentar reclamação trabalhista no local da celebração do contrato ou no da prestação dos respectivos serviços.



Conforme explicou o relator, o legislador previu essas exceções, buscando amoldar a lei à hipossuficiência do trabalhador, ou seja, considerando se tratar a parte mais fraca da relação. "Na verdade, a intenção do regramento acima delineado foi ampliar ao máximo o acesso do trabalhador ao Judiciário, facilitando, sobretudo, a produção da prova, com o objetivo de se concretizar a verdade real e inclusive a Justiça Social", ressaltou no voto.



Mas, para ele, isso não significa que a ação possa ser ajuizada no local do domicílio do empregado se assim não prevê expressamente a lei. No caso, as provas revelaram que ele foi contratado em Belo Horizonte e trabalhou em vários estados do Brasil e cidades do interior de Minas Gerais. "As regras de competência são de ordem pública, não cabendo ao Julgador estabelecer exceções diversas daquelas já expressamente previstas no texto legal. Assim, a tutela de acesso do hipossuficiente ao Judiciário deve ser interpretada em consonância com tais normas, não comportando interpretações que levem à escolha arbitrária do local de ajuizamento de ação pelo trabalhador", registrou o relator, rejeitando a pretensão do reclamante de fazer prevalecer o foro de seu domicílio, como se gozasse de privilégio processual. O magistrado citou decisão recente da Turma de julgadores no mesmo sentido.



Tendo em vista que a ação foi ajuizada fora do local da contratação ou da prestação da atividade, a Turma de julgadores acolheu a preliminar de incompetência territorial para, cassando a sentença proferida, determinar a remessa dos autos para uma das Varas do Trabalho da cidade de Belo Horizonte. A apreciação das demais matérias discutidas no recurso ficou prejudicada em razão do entendimento adotado.

Fonte: TRT3ª

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Ok. Juiz não é Deus (juge n'est pas Dieu!). Mas, há(via) dúvida?


OK, Juiz não é Deus (Juge n'est pas Dieu!). Mas, há(via) dúvida?



No princípio era o verbo (judicial)? Quem diz o direito?
Kelsen e sua maldição... Poderia simplesmente continuar a coluna da semana passada. Mas, não. A segunda e a terceira parte ainda virão. Na verdade, esta reflexão é apenas um efeito colateral da temática. Como sabemos, Kelsen disse, de forma pessimista, derivada de seu relativismo moral, que a interpretação feita pelos juízes na sentença é um ato de vontade. Mas, qual é a consequência disso? Simples: ao fim e ao cabo, se a sentença judicial é um ato de vontade, produzindo o juiz uma norma individual, então o direito acaba sendo aquilo que os juízes dizem que é. Embora muito discutível, autores como Michel Troper chegam a dizer que, aqui, haveria um ponto de aproximação de Kelsen com o realismo jurídico. Exageros à parte, é inegável que, no resultado final de sua proposta interpretativa, Kelsen acaba por aceitar ao menos parte dessa premissa. Principalmente se tivermos em conta a obra escrita por ele nos tempos em que vivenciou diretamente a experiência do common law.[1]

Neste momento, quero ficar mesmo com a famosa frase que se ouve — e se lê — a todo momento na doutrina e na jurisprudência de Pindorama: o direito é aquilo que os tribunais dizem que é (ou o direito é aquilo que o STF diz que é). Protótipo disso é a Recl 4335-AC, em que há dois votos de ministros repetindo essa máxima, literal ou explicitamente. Poderia também trazer à baila outros acórdãos de vários tribunais da República.

Por amor ao debate, penso que devemos discutir e refletir sobre os efeitos desse enunciado (o direito é aquilo que os tribunais dizem que é). Afinal, o que é o direito? Seria ele, efetivamente, o que o Judiciário diz que é? Kelsen tinha razão ao dizer que a decisão judicial provém de um ato de vontade?

Por trás dessa famosa frase “o direito é o que os tribunais dizem que é” está o velho realismo jurídico (na verdade, não só ele, porque qualquer postura voluntarista acaba produzindo o mesmo resultado). Falemos, então, um pouquinho sobre a frase de Holmes (the law is what the courts say it is[2]). Ela deve ser contextualizada. Na verdade, cuidadosamente contextualizada. Vendo-a repetida por aí, tem-se a impressão que a postura realista de Holmes poderia proporcionar algo de novo no direito de terrae brasilis. Penso, entretanto, que isso nada tem de novo. Peço uma pequena licença para exercitar minha LEER e aqui me repetir: o realismo jurídico (escandinavo e norte-americano) foi uma reação à jurisprudência analítica, forma de positivismo exegético de um Direito produzido pelos juízes no século XIX e no início do século XX. O século XIX teve três formas de positivismo (cfe. Hermenêutica Jurídica e[m] Crise, 11ª. Ed.). Cada um deles gerou a sua antítese, por assim dizer. Holmes foi o precursor do realismo norte-americano, uma forma de antítese a uma das formas de positivismo. E disse o que disse ainda no século XIX.

Interessa-me, apenas — mas, sobretudo — mostrar que a postura realista, nos moldes propagados por Holmes, foi um modo de superar a forma dedutiva de aplicação dos precedentes no common law, que, para usar uma linguagem simples, era tão “dura” quanto o positivismo francês. Logo, ao invés de o juiz ficar vinculado automaticamente aos precedentes, com o realismo jurídico a validade do direito foi transferida para a decisão, ou seja, criou-se uma nova forma de positivismo, o “fático”. Apenas inverteu-se a “pirâmide”: da dedução para a indução. Pode-se chamar a isso também de sociologismo jurídico (no velho direito alternativo também tratava o tema desse modo).

Mas, então, se isso que falei acima tem algum sentido — e penso que tem — qual é a razão pela qual se continua por aqui a sustentar tais teses alienígenas de forma descontextualizada? Essa é que deve ser a indagação dos juristas brasileiros. Não se trata de implicância teórica minha. Trata-se, sim, de discutir as tão importantes condições pelas quais são construídos os discursos de validade do Direito.

Há várias razões para que nos preocupemos. Por exemplo, por trás dessa tese de que o direito é aquilo que o judiciário diz que é está um livre-atribuir-de-sentido, que aproxima esse tardio realismo à Escola de Direito Livre e seus sucedâneos (sociologistas, voluntaristas, etc). Sim, isso deve ser dito. E devemos debater isso.

De minha parte, não concordo com a tese de que o direito é aquilo que o judiciário diz que é. Fosse isso verdadeiro, não precisaríamos estudar e nem escrever. O direito é um conceito interpretativo e é aquilo que é emanado pelas instituições jurídicas, sendo que as questões a ele relativas encontram, necessariamente, respostas nas leis, nos princípios constitucionais, nos regulamentos e nos precedentes que tenham DNA constitucional, e não na vontade individual do aplicador (e tampouco na vontade coletiva de um tribunal).

Por tudo isso, a doutrina brasileira deveria estar (mais) atenta. Sejamos claros. Se é verdade que o direito é aquilo que os tribunais dizem que é e se é verdade que os juízes possuem livre apreciação da prova (sic) ou “livre convencimento” (sic), então para que serve a doutrina? Ela só serve para “copiar” ementas e reproduzir alguns “obter dictum”? Para que serve o “bordão” da “comunidade aberta dos intérpretes da Constituição”?

Pensar que o direito é aquilo que os tribunais dizem que é constitui uma carta branca ao judiciário. Pensar assim é o mesmo que apostar em uma espécie de “hermenêutica de resultados”, algo do tipo “decido-e-depois-busco-o-fundamento”. É claro que isso pode, por vezes, dar resultados. Afinal, um relógio parado acerta a hora duas vezes ao dia. O grande problema é que ficamos na dependência não de uma estrutura jurídica de pensamento apta a fornecer sustentáculos à construção de decisões adequadas, mas, sim, de posturas individualistas (ou, se quiserem, solipsistas, para usar uma palavra chata).

Numa palavra: penso que o debate sobre os diferentes modelos de interpretação e de decisão é absolutamente necessário. A questão é sabermos que tipo de direito queremos para o futuro do Brasil. Você gosta de chegar no tribunal e ouvir o funcionário dizer que o processo já está julgado uma semana antes ou dias antes e que a sessão pública é uma espécie de simulacro? Ou gosta de ouvir do julgador algo como “não adianta nada o seu memorial; não mudarei de ideia; tenho a minha convicção pessoal sobre esse assunto”...

Nossa formação jurídica, nosso ensino, nossas práticas, encontram-se arraigadas a um paradigma filosófico ultrapassado. Sei que é difícil — e até antipático — dizer isso, mas falta filosofia. Falta compreensão. Nosso imaginário jurídico está mergulhado na filosofia da consciência (na verdade, na sua vulgata). Nele, cada juiz é o “proprietário dos sentidos”. É um equívoco dizer que sentença vem de sentire. Essa é uma das grandes falácias construídas no Direito.

O direito depende de uma estrutura, de uma intersubjetividade, de padrões interpretativos e não da “vontade”. Por isso, vai aqui a minha contestação à frase famosa de Holmes! De Holmes para cá, já se passaram mais de 100 anos...

Li dia desses uma pesquisa feita no judiciário do Paraná, onde um desembargador disse que não dá para esperar que o juiz se separe de seus conceitos políticos e religiosos, etc. Fiquei pensando: como assim, Excelência? Quer dizer que a causa do cidadão depende do que o juiz pensa sobre o direito? Minha LEER me insta a dizer de novo que: a) juiz tem responsabilidade política; b) ele decide e não escolhe;[3] c) a consciência do juiz não é um ponto cego ou isolado da cultura. Portanto, a frase do desembargador paranaense tem um problema: Ninguém nessa altura do campeonato acha que o juiz é uma alface ou que esteja amarrado aos textos como no iluminismo. Desde há muito que a hermenêutica superou isso, na medida em que a carga de pré-conceitos não é um mal em si, mas é uma aliada. Interpretar não é atribuir sentidos de forma arbitrária, mas é fazê-lo a partir do confronto com a tradição, que depende da suspensão dos pré-conceitos. Se o juiz não consegue fazer isso, não pode e não deve ser juiz. São os dois corpos do rei, como diria Kantorowicz. As decisões devem obedecer a integridade e a coerência do Direito.

Numa palavra: os dois modos de ver tudo isso
Claro que há dois modos de ver tudo isso: há o ponto de vista interno, do participante, e o ponto de vista externo, do observador. Do ponto de vista endógeno, alguém pode dizer: bobagem isso tudo; isso é assim mesmo; não há o que fazer. Mas, do ponto de vista externo, há o compromisso científico em dizer que “isso não deve ser assim”. O direito não é o que o judiciário diz que é. Se não for por outro motivo, o jurista deve pensar de forma utilitarista: para a sobrevivência do direito e dele mesmo, o direito não pode ser o que o judiciário diz que é. Há mais gente produzindo o direito. Até mesmo o legislador produz direito, se me entendem a fina ironia.

Post scriptum: Afinal, juízes (não) são deuses?
Tudo o que escrevi acima tem a ver com a discussão sobre “se juízes são deuses” (sic). Já se diz por aí que “não, juízes não são deuses”. Portanto, acrescento eu: então, no princípio... não é(ra) o verbo judicial. Bingo. E aleluia, irmãos! Consequentemente, o direito não é o que os tribunais dizem que é. Então minha coluna está coberta de razão. Meu Amigo Néviton Guedes (ler aqui) — com muito mais contundência que eu — diz que “é óbvio que juiz não é Deus”. Mas, indago com meus botões não-divinos: se é (tão) óbvio, por que precisa dizer a todo momento isso? Parece meio freudiano isso. Tem um amigo meu que é juiz e a todo momento diz: “— sou uma pessoa normal, como qualquer outra”. Até já escalei um estagiário para andar ao seu lado para dizer: “— é isso mesmo, Excelência”, tal qual um escravo que andava ao lado dos Césares, quando, depois das batalhas, voltavam e eram saudados como deuses, sendo a tarefa do fâmulo a de dizer, ao pé do ouvido: “— lembra-te que és mortal”. Bem assim. Penso que meu outro amigo, o leitor Sérgio Niemeyer, fez uma excelente apreciação (no bojo da coluna do Néviton) dessa espécie de “ato falho” quando se “confirma”-que-juiz-não-é- deus”.

De minha parte, fazendo uma brincadeira com um famoso quadro de René Magritte (ver aqui), em que, embora retrate fielmente um cachimbo, o enunciado abaixo diz: Ceci n'est pas une pipe (Isto não é um cachimbo), permito-me dizer para os meus leitores: Juge n'est pas Dieu. Quer dizer: é, mas não é; ou não é, mas é. Ou, mesmo dizendo que não é... lá no fundinho, sabe como é... vá que Deus exista e tenha delegado parte de sua função. Com efeito. Nestes tempos bicudos, o juiz vem sendo alçado a um protagonismo maior do que aquele que bradava Büllow frente ao Imperador no século XIX; então, quando chegam pedidos ao judiciário “tipo multiplicação dos pães e peixes” (a frase é do desembargador Néviton) e pretendentes a aposentadoria rural que não diferenciam um bovino de um equino (conforme bem denuncia o mesmo Néviton), minha pergunta é: por que os juízes não dizem simplesmente não a isso? Afinal, só quem multiplica pão e peixe[4] é Deus (ou seu filho, que, afinal, também é Deus), se me entendem a ironia. De todo modo, essa controvérsia sobre a “divindade do juiz” (sic) já está ficando deveras chata. Ah: no tempo do regime militar, antes das eleições sempre aparecia alguma autoridade para dizer que “a posse dos vencedores estava garantida”. Pois é. Mas, se estava mesmo, por que precisava dizer? Eu e meus amigos do diretório acadêmico dizíamos: “— hum, aí tem coisa. Se eles estão dizendo é porque...”. Dizendo de outro modo e bem simplesinho: se juiz não é deus, por que precisamos dizer que não é?

Falta só aparecer no twitter a seguinte “rechtegui”: #juiz não é Deus. Ou em francês, mais chique! # Juge n'est pas Dieu!



[1] Refiro-me ao livro Teoria Geral do Direito e do Estado. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Por certo, não seria possível aproximar Kelsen do realismo jurídico se tivéssemos como horizonte o problema do método de investigação do direito sugerido por cada uma dessas vertentes teóricas. Certamente, Kelsen acharia o método do realismo naturalista demais; sociologista demais; pouco adequado para os propósitos do seu normativismo. Porém, quando o jusfilósofo procura descrever o modo como o ordenamento funciona em sua estrutura dinâmica, ele acaba por aceitar, em alguns aspectos, teses que possuem alguma vinculação com o realismo jurídico. Exemplo típico seria o caso em que ele aceita uma decisão judicial tomada sem amparo em nenhuma norma geral anterior mas que se encontre já imunizada pela coisa julgada. Para Kelsen, esse caso já não seria uma problema ou, nos suas palavras, “passa a não ter importância jurídica” (Teoria Geral do Direito e do Estado. op., cit., p. 224). Mais adiante, contudo, apresenta ele a seguinte ressalva: “mas esse fato não justifica a suposição de que não existem normas jurídicas gerais determinando as decisões dos tribunais, de que o Direito consiste apenas em decisões de tribunal”. De todo modo, é importante frisar que, ao mesmo tempo em que Kelsen rechaça a tese de que o Direito não pode ser descrito apenas como o resultado de decisões dos tribunais, ele afirma que, entre a norma geral a ser aplicada e a norma individual a ser criada pela sentença, existe um espaço semântico a ser preenchido pela discricionariedade do órgão aplicador. Aqui está o ovo da serpente! A disputa conceitual, sobre ser ou não o direito “apenas aquilo que os tribunais dizem que é” acaba sendo, ao final, uma questão menor.


[2] "One Nation Indivisible, With Liberty And Justice For All": Lessons From The American Experience For New Democracies. WALD, Patricia M., Fordham Law Review, Volume 59; Issue 2; Article 3.


[3] Antes que alguém venha de novo com a ladainha de que “ele critica, mas não apresenta soluções”, sugiro a leitura no mínimo do capitulo 6º. Do livroJurisdição Constitucional e Decisão Jurídica, RT, 2014.


[4] Já o dinheiro da Viúva para pagar as aposentadorias rurais e outras tantas despesas decorrentes de decisões judiciais é impossível de ser multiplicado como na parábola da multiplicação dos peixes e dos pães. 

Lenio Luiz Streck é jurista, professor, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.



Revista Consultor Jurídico, 20 de novembro de 2014, 8h00

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Juízes não são deuses nem profetas, por óbvio!


Juízes não são deuses nem profetas, por óbvio!



Recentemente acordamos todos com um barulho espetacular: graças à colaboração de uma dedicada agente de trânsito, a imprensa brasileira, confirmando a sua vocação para os temas mais sérios, finalmente conseguiu demonstrar o que há muito se desconfiava: juízes não são deuses!

Seria, entretanto, necessário dar maior divulgação à boa nova, pois, como demonstram parte das pretensões cotidianamente deduzidas em juízo, muitos ainda se dirigem ao Judiciário convencidos de que os juízes têm poderes sobrenaturais. Para falar a verdade, as coisas andam bastante sérias. Equiparados a profetas de uma nova religião (como se o Brasil já não tivesse crenças em demasia), os juízes brasileiros são permanentemente confrontados com pedidos que vão muito além da multiplicação de pães ou da transformação da água em vinho. As demandas se sofisticaram e hoje envolvem a necessidade de multiplicar leitos (já ocupados) de UTI, vagas em universidade onde elas não existem, posse em cargos públicos para quem sequer foi aprovado em concurso e, se não fosse o bastante, não é incomum o pedido de aposentadoria rural para quem, entrevistado pelo magistrado, revela sincera dificuldade em distinguir um bovino de um equino.

Essa lista de demandas judiciais pode não ser caprichosa, como poderão demonstrar os interessados, mas certamente não tem similar em nenhum lugar do planeta e nada indica que terá um fim. Já não consiste, por exemplo, qualquer novidade o pedido individual ou coletivo para a dispensação pelo SUS de estimulantes sexuais (Viagra e similares). Há ainda pedidos de tratamentos experimentais no exterior, além de uma inabarcável lista de medicamentos de alto custo — alguns atingindo a cifra de R$ 1 milhão por ano — cuja importação ou produção no país sequer foi autorizada pela Anvisa.

O surpreendente em todos esses casos, insisto, não está propriamente nos pedidos em si, na maior parte das vezes absolutamente legítimos quando considerada a situação da parte que, em desespero, os formula. O problema é que passam ao largo da implementação de qualquer política pública governamental ou legislativa, além de não terem previsão orçamentária e nem mesmo se ocuparem de demonstrar a existência de fonte de custeio.

Desde que alguns teóricos passaram a professar o dogma de que, além de dizer o Direito, os juízes têm condições de produzir justiça perfeita e acabada para todos os casos concretos, fomos caminhando progressivamente para esse estado de coisas, onde já se encontra aqui e ali quem de fato acredite que, para além das maravilhas do artigo 6º da Constituição (educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados), já seria possível obter do Judiciário, em respostas certas e indiscutíveis (a quadratura do círculo da “única resposta correta”), entre outras maravilhas, honestidade na política, amor paternal e mesmo felicidade. (Tudo isso sem esforço pessoal ou custo coletivo.)

Como se vê, depois de certificada a condição terrena da magistratura nacional, devemos agora iniciar uma outra batalha, certamente mais difícil, considerada a resistência dos convictos, consistente em aceitar que os juízes também não são profetas, magos ou bruxos e, por isso mesmo, não dominam nenhuma ciência oculta que lhes permita, por mera habilidade hermenêutica, produzir coisas de palavras. O Judiciário não detém nenhuma pedra filosofal de onde possa operar milagres a partir do direito.

É certo que o direito, como sistema, pode influenciar o seu meio-ambiente, mas nem mesmo Kelsen, na mais bem sucedida tentativa de pureza metódica já alcançada pela ciência do direito, ousou desconsiderar que a realidade (social, política e moral) será sempre um limite intransponível para as decisões judiciais.

Como esse espaço de reflexão pretende harmonizar-se com o Direito Constitucional, alguém poderia nos confrontar legitimamente com a seguinte questão: se o sentido deste texto é que não existe atalho para a felicidade, então não seria correto afirmar que a Constituição de 1988 fez promessas em demasia?

A pergunta, contudo, é menos incômoda do que parece. De fato, a resposta tem menos a ver com o texto constitucional do que com aqueles que têm o poder-dever de implementá-lo. A Constituição brasileira de 1988 veio ao mundo como podia, isto é, paradoxalmente compromissória. Precisava veicular valores que representassem os mais variados grupos de interesses existentes em nossa sociedade, pois, do contrário, caso se identificasse ideologicamente com uma visão de mundo exclusiva, certamente atrairia a má vontade dos demais grupos de poder, o que certamente comprometeria a sua força normativa (Konrad Hesse).

Contudo, mais de 25 anos de sua promulgação, e nisso está o paradoxo, a vocação compromissória de nossa Constituição não deixou de revelar alguns efeitos deletérios, sendo o principal deles o fato de que sendo a Constituição “de todo mundo” muitas vezes é a Constituição “de ninguém”. Assim, uma das mais benfazejas virtudes de nossa Constituição tem se convertido num de seus mais difíceis e complexos problemas: precisamente por buscar representar o maior número de expectativas sociais, a Constituição não pode revelar identidade com nenhum dos grupos de interesses que conformam a nossa comunidade nacional e, com isso, acaba muitas vezes relegada à própria sorte.

Além disso, suspeito que por instituir em seu texto interesses e valores tão diversos como conflitantes, próprios de uma Constituição compromissória, especialmente voltada a uma sociedade complexa, a Constituição de 1988, infelizmente, conferiu às decisões judiciais uma péssima marca de distinção, que é a de parecer autorizar que quase tudo seja feito em seu nome. 

Os problemas, contudo, não são apenas de ordem prática e normativa. Do ponto de vista teórico, estamos numa névoa. Todos que se propõem a tarefa de estudar o Direito no Brasil ainda não conseguiram destacar da realidade jurídica que vivenciamos um sistema teórico minimamente coerente. Perguntas corriqueiras a qualquer experiência do direito comparado não conseguem aqui uma resposta adequada e direta. Aliás, não parecem alcançar nenhuma resposta. Por exemplo: quais os sinais ou características essenciais que de fato distinguem o Direito brasileiro? Quais os princípios e/ou métodos que o governam? Que lugar deve ocupar no Brasil os precedentes, nomeadamente num sistema que deveria ser de Direito estrito e escrito? Qual o papel que as regras e os princípios devem ter em nosso sistema de decisão judicial? Devemos mesmo, como já sustentam alguns e sem qualquer rubor, conferir prevalência às opções judiciais em detrimento das decisões políticas?

Não obstante, fosse necessário para a orientação dos atores jurídicos que essas questões recebessem dos tribunais e academia uma resposta minimamente coerente, para nada disso se tem encontrado respostas claras e diretas.

Num quadro de crescente e paradoxal indecisão sobre quem decide o quê, o Poder Judiciário vem assumindo com alegre desenvoltura o papel de tutor e às vezes de executor de algumas políticas públicas. Até mesmo a nossa Suprema Corte tem se curvado a essa novidade (vide o caso das prestações em matéria de saúde).

Apesar de assistir a tudo isso com indisfarçável admiração, busco eu próprio conferir alguma coerência à minha condição de magistrado e, não obstante a ressalva de meu ponto de vista pessoal, não considero justo negar ao jurisdicionado o que, considerada a jurisprudência predominante, ele encontraria em outros tribunais, especialmente quando se cuida de orientação jurisprudencial colhida das decisões dos nossos tribunais superiores.

Se o Poder Judiciário, contudo, quer um lugar de preponderância política, ele tem de assumir a responsabilidade por essa opção. O cidadão tem o direito de saber onde pode cobrar a responsabilidade — inclusive política — por suas alegrias e tristezas.

O judiciário não pode pretender o confortável lugar do bom mago, aquele que, nos contos de fadas, alcança a maravilha de produzir decisões que, parecendo não implicar custos ou dificuldades a ninguém, permite a todos viver felizes para sempre. Tem que aceitar que, ao assumir o poder das opções políticas primárias e das respostas que agradam/desagradam a população, deve também aceitar a responsabilidade pelo resíduo de dificuldade que implica e pressupõe toda escolha política. (Designo de política qualquer decisão que não se limita a aplicar uma decisão genérica e abstrata legalmente preexistente, mas que tem o sentido de inovar primariamente a ordem jurídica criando direitos e obrigações.)

A sociedade deveria aceitar, contudo, que o juiz, não sendo deus nem profeta, não pode revelar poderes mágicos para instituir ou predizer o paraíso entre nós. Onde quer que se atribua direitos a alguns, estar-se-á sempre pressupondo, ainda que isso não seja visível, custos e deveres a serem suportados por outros.

Se a Academia e parte da magistratura, por não aceitarem o lugar de coadjuvante do Poder Judiciário diante de políticas públicas, advogam uma espécie de juiz que, indo além do direito posto, deve realizar a mal explicada “justiça social” ou “justiça do caso concreto”, também não podem, para manter coerência, iludir o público, devendo prepará-lo para o incremento de técnicas e decisões que são, ainda que se negue, essencialmente políticas.

Quando a jurisdição desdenha o seu lugar de estrita e humilde aplicação dalegislação aos casos concretos, tem que fazê-lo com clareza de propósitos e honestidade institucional e, principalmente, tem que se submeter a um regime de responsabilidade política, isto é, de accountabiliy e aceitar submeter-se a algum crivo do eleitor/cidadão. A frontalidade é também uma virtude das instituições, não apenas dos indivíduos.

Entretanto, com Alexander Bickel, também creio que se pode esperar de uma instituição grave e serena como deve ser o Judiciário a virtude passivade quem deve reconhecer que alguns problemas e dificuldades da vida em sociedade ultrapassam em muito a esfera do direito para se situar em outros planos da ação e da comunicação humana, como é o caso da economia, da política, da moral, da arte, da educação e do amor (Niklas Luhmann).

Infelizmente, ao invés de incentivarmos a autocontenção da magistratura, tem-se assistido em nosso país a um discurso mal posto, que nasce na própria Academia, em que a “dificuldade contramajoritária” do Judiciário, de que falava Bickel, se transforma em “virtude”; e a “virtude passiva” dos juízes, defendida pelo mesmo grande jurista, vai sendo censurada como fraqueza institucional. Em termos mais simples, o juiz vai sendo convencido de que o seu déficit de representação democrática — a “dificuldade contramajoritária” referida por Bickel —, que deveria ser justificado com a autocontenção de suas “virtudes passivas”, é na verdade uma qualidade — uma virtude — que justifica a sua atuação ao largo das decisões e das políticas públicas democraticamente adotadas pelos que receberam o voto do eleitor (Executivo e Legislativo).

De fato, o que já não representa nenhum segredo, um vasto setor da Academia aceitou conjurar com a grande mídia, propugnado uma em tudo deletéria judicialização da política. Mas não se parou por aí. Como ninguém terá coragem de negar, é perfeitamente legítimo falar-se hoje de umajudicialização da saúde, judicialização da economia, judicialização da educação, judicialização moral e da família e até mesmo judicialização do amor[1]. Tudo isso exige, naturalmente, uma confiança em poderes verdadeiramente mágicos na atuação do Poder Judiciário. Contudo, a convicção de que exista uma inteligência última, uma teoria ou hermenêutica fundamental no direito, que permitiria ao magistrado, em cada caso concreto, com certeza e cientificidade, decidir pela única decisão correta em todos esses planos da vida (economia, administração da saúde, educação, moral, família e amor), apenas consegue nos tirar do chão da realidade, mas sem nos levar a lugar algum.

A única certeza de uma fantasia tão maravilhosa é, obviamente, a decepção. Isso certamente também explica por que o Poder Judiciário, não obstante a sua boa vontade e ânsia em responder a todos os azares da vida humana, ao contrário do que seria de esperar, vem, segundo pesquisas persistentes, perdendo legitimidade.

O Direito não pode dar lições para os outros subsistemas sociais. Não deveria ser difícil de compreender que onde a economia, a política, a ciência a moral e família, naquilo que é essencialmente seu, falharem, muito provavelmente o Direito não terá melhor sorte.

O código do direito (licitude/ilicitude) não é absoluto em relação aos demais códigos dos outros subsistemas da sociedade. Por isso, o Judiciário deveria se contentar com uma atuação residual, isto é, restrita ao que de fato, pela importância do conflito que não se resolveu naqueles outros sistemas, não pode permanecer sem decisão. Infelizmente, e não consigo entender por que, muitos enxergam no direito uma esfera de decisão total das dificuldades humanas.

Lembrando Richard Rorty e Milan Kundera, a verdade, hoje, de tão difusa e especializada em áreas distintas e diferenciadas, está muito mais para a narrativa de um romance, em que os personagens são aceitos e admirados precisamente por suas diferenças e idiossincrasias, do que para uma teoria filosófica sistematizada, lógica e totalizante.

No romance que cada sociedade escreve de si mesma, o juiz é apenas um personagem entre os muitos personagens existentes. Certamente, não é um deus nem profeta nem mago, e, na verdade, se a obra for bem estruturada, não deveria nem mesmo ter qualquer protagonismo. 

Alguns professores de direito, ou magistrados que pregam a predominância do papel do Poder Judiciário perguntariam: mas é só isso? Não. Se a tese das virtudes passivas de Alexander Bickel estiver, como penso, correta, quando o magistrado voltar a ocupar o seu lugar de prudente recato, é mais do que provável que a sociedade lhe reconhecerá a legitimidade da autoridade perdida.



[1] Recentemente, o respeitabilíssimo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decidiu prudentemente, a propósito de lide em que se discutia o tema dos danos morais por abandono afetivo, que “a obrigação civil de dar cuidado correspondente ao direito do filho à convivência familiar não se confunde com a obrigação de dar amor”. Contudo, aos fins a que se propõe essa distinção é de fato possível e mesmo desejável?



Néviton Guedes é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.



Revista Consultor Jurídico, 18 de novembro de 2014, 14h15

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

"JUIZ DIGNO DESSE NOME NÃO JOGA PARA A PLATÉIA", DIZ LUÍS ROBERTO BARROSO


"Juiz digno desse nome não joga para a plateia", diz Luís Roberto Barroso


A sociedade brasileira deve saber como funciona o sistema penal brasileiro para discuti-lo e, se achar necessário, modificá-lo. A avaliação é do ministro Luís Roberto Barroso(foto), do Supremo Tribunal Federal, ao jornal O Globo. Relator da Ação Penal 470, o processo do mensalão, Barroso respondeu às reações causadas com as progressões de regime que permitiram que condenados cumprissem suas penas em casa.

Barroso reforçou que os juízes devem aplicar a lei. “Quando o preso progride para o regime aberto, ele deve passar para uma casa de albergado. Como praticamente não existem estes estabelecimentos, a jurisprudência antiga e pacífica é que eles devem, então, passar para a prisão domiciliar”, explicou.

O ministro ainda afirmou que quem julga deve aplicar a lei com imparcialidade, sem ceder a paixões, ódios ou espírito de vingança. “É justamente quando esses sentimentos afloram na sociedade que você precisa de um juiz corajoso para fazer o que é certo”, disse Barroso, que completa: “Sirvo à Justiça, e não à opinião pública. Um juiz digno desse nome não joga para a plateia.”

Leia abaixo trechos da entrevista concedida ao jornal O Globo:

Há a impressão de que a prisão domiciliar para parte dos condenados veio cedo, com menos de um ano de pena. Mesmo seguindo todos os trâmites legais, isso pode reforçar a sensação de impunidade?
Eu, geralmente, só aceito dar entrevista quando acho que há alguma questão relevante a ser trazida ao debate público. E essa questão está refletida na sua pergunta. O país tem um sistema punitivo definido pela legislação. Essa legislação é mais branda do que a de muitos países do mundo. Há dois pontos relevantes aqui. De acordo com a lei, a execução das penas se dá em três regimes: fechado, que é cumprido em penitenciárias; semiaberto, em colônias agrícolas ou industriais; e aberto, que deve ser cumprido em casa de albergado. Depois de cumprir um sexto da pena, o condenado tem o direito de progredir de um regime para o outro. O que tem acontecido entre nós? Quando o preso progride para o regime aberto, ele deve passar para uma casa de albergado. Como praticamente não existem estes estabelecimentos, a jurisprudência antiga e pacífica é que eles devem, então, passar para a prisão domiciliar.

Mas isso não reforça a sensação de impunidade?
Sem dúvida. Por essa razão, eu estou compartilhando essas informações, para que a sociedade brasileira entenda como funciona o sistema, discuta a respeito e decida se quer modificá-lo. Não há decisões politicamente fáceis nem moralmente baratas aqui. O sistema acelera a progressão de regime, dentre outras razões, porque não há vagas nele. Há um déficit de cerca de 250 mil vagas no sistema penitenciário. Para ter um sistema penal que satisfaça as demandas razoáveis da sociedade, é preciso investir recursos na construção dos estabelecimentos próprios, inclusive aumentando o número de vagas. O problema é que o dinheiro que vai para o sistema penitenciário deixa de ir para educação, saúde, saneamento, rodovias, previdência etc. Ou seja: toda sociedade acaba tendo de fazer escolhas, escolhas que por vezes são trágicas.

E como o senhor se sente diante desse sistema?
Eu cumpro a lei. A lei é que materializa essas escolhas da sociedade. Em uma democracia, não existe, de um lado, a sociedade civil, e de outro, o Estado. O Estado é o que a sociedade e os seus agentes eleitos constroem. A única coisa que um juiz não pode fazer é tratar de maneira discriminatória o condenado que a sociedade odeia. Juízes não são vingadores mascarados. Fazer justiça é aplicar a lei com imparcialidade, sem paixões, sem ódios ou espírito de vingança. É justamente quando esses sentimentos afloram na sociedade que você precisa de um juiz corajoso para fazer o que é certo. Eu tenho deveres para com a Constituição, o bem e a Justiça. O sentimento da sociedade não me é indiferente, e eu o levo em conta. Mas sirvo à Justiça, e não à opinião pública. Um juiz digno desse nome não joga para a plateia.

As penas impostas aos políticos foram, em geral, mais baixas que as impostas aos empresários e executivos. Tanto que alguns políticos já conseguiram fazer progressão de regime, e os empresários e executivos, não. Houve alguma desproporção na punição?
Isso se deveu à própria dinâmica dos fatos e ao número de delitos cometidos por cada um dos réus. Os políticos mais conhecidos foram condenados por corrupção ativa, que à época era punido com penas de um a oito anos. Alguns foram condenados por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Basicamente, uns compraram e outros venderam votos. Já quanto aos empresários, diversos deles foram condenados por uma cumulação de crimes, que incluíram peculato, corrupção ativa, lavagem de dinheiro, gestão fraudulenta de instituições financeiras e evasão de divisas.

Qual a sua avaliação final de tudo o que aconteceu?
Uma coisa me chamou particular atenção neste caso. Nenhum dos condenados, em momento algum, revelou arrependimento, culpa sincera ou achou que devia desculpas ao país. A impressão que eu tenho é que todos, estranhamente, se sentem vítimas do sistema político. “Era assim antes de nós, nós jogamos o jogo como era jogado e depois de nós continuou a ser a mesma coisa”. E o que é aterrador é que talvez tenham uma certa razão. Se não mudarmos o sistema político, sobretudo para baratear o processo eleitoral, o financiamento de campanhas continuará por trás de todos os escândalos do país. Não sairemos do pântano. A centralidade do dinheiro nos roubou o idealismo e o senso de patriotismo.


Revista Consultor Jurídico, 16 de novembro de 2014, 18h07

STJ DECIDE QUE BENS PERTENCENTES AO FIADOR PODEM SER PENHORADOS


STJ garante que fiador penhore o imóvel em que esteja morando


Bem de família pertencente a fiador de contrato de locação pode ser penhorado. A medida é prevista no artigo 3º, inciso VII, da Lei 8.009/1990 e foi reafirmada pela 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao reformar decisão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul.

A corte estadual havia invalidado a aplicação da norma por entender que ela estava em conflito com o direito à moradia. Os advogados Hélio de Melo Mosimann e Rafael de Assis Horn, do escritório Mosimann, Horn & Advogados Associados, representaram a Associação Brasileira das Administradoras de Imóveis (ABADI) como amicus curiae em uma ação.

Eles apontaram haver precedentes do próprio STJ, além de decisões do Supremo Tribunal Federal no sentido de autorizar a penhora. Em voto no Recurso Extraordinário 407.688/SP, os ministros Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa apontaram, segundo os advogados, que o direito à moradia não tem caráter absoluto, devendo ser equilibrado com o chamado princípio da "autonomia privada".

Os advogados apontaram que, ao pretender tutelar um direito individual, o TJ-MS não levou em conta os efeitos que sua decisão traria no mercado de locações, já que a maioria dos contratos é garantida por fiança. "A impossibilidade de constrição do bem único do fiador tornaria quase impossível ao candidato à locação se utilizar de tal garantia, já que precisaria encontrar pessoa que tivesse em seu patrimônio mais de um imóvel", afirmaram os advogados.

Processo REsp 1.363.368/MS

Revista Consultor Jurídico, 16 de novembro de 2014, 9h56

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

"Sociedade não pode ser tão dependente do Estado para resolver conflitos"


"Sociedade não pode ser tão dependente do Estado para resolver conflitos"




A sociedade não pode ser tão dependente do Estado para resolver seus conflitos. É preciso haver mecanismos próprios para solucionar as disputas, acabando com a ideia de que tudo precisa ser resolvido nos tribunais. É o que defende o advogado e desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo,Kazuo Watanabe.

Doutrinador reconhecido na área do Direito Processual e com participação ativa na criação do Código de Defesa do Consumidor, Watanabe propõe o "Pacto da Mediação" para que empresas e escritórios de advocacia se comprometam a tentar a solução amigável dos problemas antes de mandar a questão para o Judiciário. Como resultado provável, aponta a preservação do relacionamento entre as partes e a certeza de um resultado positivo para todos, além, é claro, da maior celeridade e do menor custo do processo.

Sobre o receio da advocacia em relação à mediação, Watanabe assegura que advogados vão continuar estáveis no mercado: “Eles vão cobrar menos na tentativa de solucionar o caso sem ir para o Judiciário, mas vão receber mais rápido”. Como exemplo, o advogado afirma que o profissional americano já se acomodou com os meios extrajudiciais de solucionar as lides — e estão fazendo bom proveito.

“O americano ganha muito dinheiro com a mediação. Lá, menos de 5% dos conflitos vão para julgamento final, porque no curso, 95% ou até mais, são solucionados pelos mecanismos alternativos. Mesmo considerando que a Justiça americana é mais cara, 95% de soluções fora do Judiciário é um número muito alto”, afirma.

Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, Watanabe disse acreditar que a quantidade de bons acordos é o termômetro que mede a eficácia dos juizados. Tal medição é ameaçada quando a demanda foge dos limites de sua competência.

“Na Justiça Federal, por exemplo, quase todos os casos vão pra sentença final. Nela, o juizado está sendo utilizado para dar um procedimento mais rápido, mas o objetivo não é só isso, o objetivo do juizado é um pouco mais de natureza social, facilitar o acesso ao cidadão e, com isso, mudar um pouquinho a cultura da sociedade. Essa finalidade do juizado está desaparecendo, porque jogaram tudo para ele.”

Nascido em Bastos, cidade que foi destino de muitos imigrantes japoneses no interior de São Paulo, Watanabe escolheu o Direito inspirado nos personagens dos livros que lia na infância. Ele se identificava com aqueles que tinham formação jurídica. E foi só na academia, durante os agitados anos de 1954 e 1959, que se viu participando totalmente da sociedade brasileira.

Da sua cultura japonesa, Kazuo Watanabe aponta para um “caldo cultural” que condiciona o seu comportamento. O cidadão japonês que vai ao tribunal, sem antes tentar uma solução amigável, é mal visto na vizinhança, no trabalho e na escola. E fica, praticamente, excluído da comunidade. Watanabe garante: “O japonês é tão briguento quanto o brasileiro”, mas essa questão cultural controla a sociedade e desestimula a judicialização imediata dos conflitos.

Leia a entrevista:

ConJur — O senhor é um grande entusiasta do uso da mediação. Qual é a importância de empresas e escritórios de advocacia se comprometerem a tentar resolver a questão antes de levá-la ao judiciário? 
Kazuo Watanabe — A Justiça é obra coletiva, a boa organização da Justiça não depende só do Poder Público, depende da participação da sociedade. A sociedade não pode ser tão dependente do Estado na resolução dos conflitos, tem de ter mecanismos próprios para solucionar as disputas. Por isso, o Pacto de Mediação é uma convocação do segmento empresarial da sociedade para que se comprometam a tentar solucionar as questões antes de levá-las ao Judiciário. As indústrias, o comércio de um modo geral, o setor financeiro, assumem a responsabilidade social de cooperar com a Justiça, tentando solucionar os conflitos antes da sua judicialização. O evento em que o pacto será assinado nasceu na Câmara de Mediação, Conciliação e Arbitragem da Fiesp/Ciesp.

ConJur — E o que as empresas ganham em contrapartida, além dessa função social?
Kazuo Watanabe — A mediação possibilita a Justiça mais rápida, menos custosa e o que é importante, preserva relacionamento entre os conflitantes. Se o cliente reclama de uma empresa e ela souber tratar bem do problema, essa pessoa continua como freguesa...

ConJur — Não deixa crescer o problema?
Kazuo Watanabe — Exato. Soluciona o conflito e o relacionamento se mantém. Além disso, outro resultado positivo é a certeza de que todas as partes sairão vencendo. O processo judicial traz um estado de incerteza, mesmo para aquele que tem razão em vista, porque a decisão é do juiz. Mas na mediação, como as próprias partes constroem a solução, essa incerteza acaba.

ConJur — Por que uma empresa, que pode levar um processo para a Justiça, iria tentar resolver amigavelmente uma questão com a qual, a princípio, ela já não concorda? 
Kazuo Watanabe — É preciso saber separar os tipos de conflitos. Se o conflito for de massa, ou seja, envolver muitas pessoas, tem de ir para o Judiciário. Por exemplo, os bancos estão brigando ainda por causa da caderneta de poupança. Se fizer acordo com um cliente e não fizer com outro, vai criar uma situação ruim. Ou faz com todo mundo ou não faz com ninguém. Mas, se são conflitos genuinamente de natureza primitiva, eu acho que o mecanismo mais adequado é a mediação.

ConJur — O Judiciário brasileiro não dá conta da demanda de processos, enquanto o Japão tem a cultura de desestimular o litígio judicial. O que motiva essa diferença?
Kazuo Watanabe — Há muitas explicações. Eu entendo que existe um caldo cultural que condiciona o comportamento do japonês. Se um japonês vai ao tribunal imediatamente depois de um atrito com uma pessoa e não busca uma solução amigável, ele é mal visto na vizinhança e no trabalho. Ele praticamente fica excluído daquela comunidade.

ConJur — O controle informal da sociedade é mais severo do que o formal?
Kazuo Watanabe — Muitas vezes sim. O controle informal da sociedade que se dá através de vizinhança, escola, trabalho é muito mais forte do que o controle formal, feito por polícia, Ministério Público, e Justiça. Esse controle informal, às vezes, é tão severo que leva muita gente ao suicídio. Isso controla um pouco a sociedade. Não é possível comparar países diferentes, mas, só para se ter uma ideia, o estado de São Paulo tem 40 milhões de habitantes, território equivalente ao do Japão, que tem 120 milhões de habitantes. No estado de São Paulo, para 40 milhões de habitantes, há mais de 300 mil advogados. Vamos dizer que apenas um terço advogue, mesmo assim são 100 mil profissionais para 40 milhões de pessoas. O Japão, para 120 milhões de habitantes, há menos de 30 mil advogados. O japonês é tão briguento quanto o brasileiro, mas há uma questão cultural nessa relação com a Justiça.

ConJur — O brasileiro depende muito do Estado...
Kazuo Watanabe — Sim. Sem discutir o que aconteceu na eleição, metade da população do Brasil vive de bolsa família. Vivemos da proteção do Estado, e na Justiça acontece a mesma coisa. Por isso que o movimento para a mediação é extremamente importante para ver se a sociedade se organiza e forma uma nova mentalidade.

ConJur — Nos Estados Unidos, mais de 4 mil empresas e 1,5 mil escritórios de advocacia já assinaram ao Pacto da Mediação. Isso terá influência no Brasil?
Kazuo Watanabe — As empresas que tiverem filial no Brasil também vão assinar aqui. Então, certamente General Eletric (GE), Shell, Wall Mart vão assumir o compromisso. No Brasil, o Banco Itaú já afirmou que vai assinar também. Com isso, eles se comprometem a solucionar o caso antes de ir ao Judiciário, independente de estar no plano passivo e ativo.

ConJur — Alguma empresa já disponibilizou o resultado de fazer a solução extrajudicial de conflitos?
Kazuo Watanabe — Sim. A General Eletric, por exemplo, adotou o programa de solução antecipada de disputas. Isso significa que ao ver o conflito, eles procuraram criar formas internas de solução mais adequada e chegaram à conclusão de que economizaram 40 milhões de dólares. Muitas empresas já aderiram a essa medida interna.

ConJur — Caso isso se torne comum no Brasil, os advogados sairão perdendo?
Kazuo Watanabe — A participação dos advogados é fundamental. Tanto é que no pacto dos Estados Unidos mais de 1,5 mil escritórios de advocacia assinaram o pacto. O profissional, muitas vezes, tem a ideia de que ele só ganha dinheiro se o problema for pra Justiça, mas não é bem assim. O advogado pode contratar um cliente e tentar solucionar o caso sem ir para o Judiciário. Como a solução é mais rápida, ele deve cobrar menos e estabelecer um percentual adequado. O americano ganha muito dinheiro com a mediação. Lá, menos de 5% dos conflitos vão para julgamento final, porque, no curso, 95% ou até mais são solucionados pelos mecanismos alternativos. Mesmo considerando que a Justiça americana é mais cara, 95% de soluções fora do Judiciário é um número muito alto.

ConJur — O juiz americano tem o costume de negociar mais com as partes. Aqui, o juiz é muito vinculado ao processo, ele é quase que um escravo do processo. É possível melhorar esse procedimento dentro da Justiça?
Kazuo Watanabe — A minha preocupação na minirreforma de 1994 era de incorporar esse modelo americano. Nós sugerimos a chamada audiência preliminar, o artigo 331, tentando transformar o juiz brasileiro num juiz mais ativo. Nos EUA, há o case management, que é gerenciamento de caso. O juiz recebe a petição inicial e, com a ajuda de assessores, já identifica pontos importantes, manda o autor esclarecer algumas coisas. Depois, o juiz reúne as duas partes para estabelecer um calendário de processo e vai gerenciando o caso. O juiz americano é o verdadeiro condutor do processo.

ConJur — Aqui, nos processos de massa, o juiz não consegue ter a iniciativa. Ele recebe milhares de processos e tem de despachar. Se ele for abrir a possibilidade de negociação para cada processo será o caos no Judiciário. Como é possível resolver esse problema?
Kazuo Watanabe — Quando os juizados foram pensados na década de 1980, a ideia básica era de facilitar o acesso do cidadão comum à Justiça. Isso porque, a grande maioria não estava querendo ir à Justiça, por causa da complexidade, custo elevado e demora. E isso estava formando o que eu costumo chamar de panela de pressão social, que para estabilidade social é muito perigoso. Quando a população começa a não confiar nos mecanismos oficiais de solução de conflito, tende a reagir violentamente.

Além disso, a competência inicial do juizado era de cinco salários mínimos, no máximo 10. Depois passou para 20 e, no fim, passou pra 40 salários mínimos. Mas julgam execução de título extrajudicial, ação de despejo... Tudo que não seria problema do cidadão comum de acesso à Justiça, eles jogaram nos juizados para tentar resolver a crise de morosidade da Justiça. Com isso, o juizado ficou sobrecarregado. O mal não está na ideia do juizado, mas na ideia de ampliar demasiadamente a sua competência e o Estado não dar recursos para aprimorar a estrutura.

ConJur — A gente tem um problema grave no juizado que é a segunda instância. As turmas recursais estão mais atoladas que a Justiça de primeiro grau comum..
Kazuo Watanabe — Eu costumo dizer que a pedra de toque do juizado é a conciliação. O que mede a eficácia do juizado é a quantidade de bons acordos. Mas quando o juizado começa a dar muita sentença e começa haver muito recursos dessas sentenças, é sinal de que não está funcionando adequadamente. Na Justiça Federal, por exemplo, quase todos os casos vão pra sentença final, ali o juizado está sendo utilizado para dar um procedimento mais rápido, mas o objetivo não é só isso, o objetivo do juizado é um pouco mais de natureza social, facilitar o acesso ao cidadão e com isso mudar um pouquinho a cultura da sociedade. Essa finalidade do juizado está desaparecendo porque jogaram tudo para ele.

ConJur — É comum a crítica de que o Poder Público é o grande causador do assoberbamento da Justiça e, com isso, surge a pergunta: Como é que o Estado a quer me impor a conciliação ou mediação, se o próprio Poder Público recorre de teses que já estão mais que sacramentadas...
Kazuo Watanabe — Esse é realmente um grande problema que estamos enfrentando. O Estado é um dos litigantes mais frequentes no Judiciário, mas é preciso analisar que tipos de conflitos o Estado leva. Quando o Estado é réu numa ação, a sociedade civil é que está agindo contra. Além disso, no volume de serviço do Judiciário de São Paulo, 50% são isenções fiscais, que é a tentativa de recuperar um crédito que a população deixou de pagar. Então nessas demandas eu acho que o Estado tem razão de ir pra Justiça, porque não há outros meio de fazer tal cobrança. O problema é a organização do setor de cobrança administrativo.

ConJur — O senhor é a favor do Estado poder arrolar e penhorar os bens antes de começar a execução?
Kazuo Watanabe — O Estado deveria fiscalizar melhor. Verificar se o devedor tem patrimônio e só ajuizar a cobrança fiscal quando tiver certeza de quem tem o patrimônio para responder por aquela dívida.

ConJur — A conciliação deveria ser uma etapa obrigatória no processo judicial?
Kazuo Watanabe — Na Constituição Federal de 1824 havia uma norma que dizia que ninguém poderia ter acesso à Justiça sem provar que tentou previamente a conciliação e que isso seria feito por um juiz de paz. A figura de juiz de paz que temos hoje remonta a essa instituição antiga, mas hoje juiz de paz é juiz de casamento. Isso poderia sim ser usado para determinadas demandas.

ConJur — Pela Resolução 125 do Conselho Nacional de Justiça determina que as sessões de conciliação e mediação devem ser feitas por conciliadores e mediadores e apenas supervisionado por um juiz. Como nasceu essa resolução?
Kazuo Watanabe — Eu e a professora Maria Tereza Sadek fizemos a proposta de o Conselho Nacional de Justiça regulamentar melhor a parte de conciliação e mediação, com a seguinte consideração: o CNJ é um órgão do Judiciário que cuida da parte disciplinar, mas também cuida da eficiência do Judiciário. Nós percebemos que a conciliação era praticada no Brasil todo como uma mera faculdade que o juiz podia oferecer as partes. Por isso, chegamos à conclusão de que o Judiciário teria que ampliar esse conceito de serviço Judiciário e não poderia se limitar a oferecer apenas o serviço de solução de contencioso, mas também todos os mecanismos adequados para a solução dos conflitos, inclusive mediação da conciliação e não só isso, também serviço de orientação e informação. Além disso, a resolução é um pouco mais ampla, fala de Judiciário para mudar a cultura predominante e atuar junto com as instituições de ensino, fazer com que as faculdades criem disciplinas.

ConJur — Aliás, a técnica de negociação virou uma parte recente do currículo de Direito. Não é uma coisa muito comum...
Kazuo Watanabe — Não é mesmo. A Resolução 125 é um ato muito importante na transformação do Judiciário brasileiro. O acesso à justiça não é só o direito de ser ouvido por um órgão do Judiciário, mas de ir a um órgão Judiciário para encontrar uma solução adequada.

ConJur — É a Justiça no sentido amplo.
Kazuo Watanabe — É muito mais acesso à ordem jurídica justa do que acesso à Justiça como um órgão Judiciário, como órgão do Estado. Acesso à ordem jurídica justa supõe ter uma compreensão da realidade, e o juiz trabalhar de forma tal que atenda o real interesse das partes.

ConJur — Acontece que, muitas vezes, o advogado não quer negociar, e não há o que fazer..
Kazuo Watanabe — Os advogados podem estabelecer honorários diferenciados para os casos de mediação, como os advogados americanos fazem. Nesses casos, eles vão ganhar menos, mas vão receber mais rápido. Falta um pouco da percepção de que a mediação interessa também ao advogado. E, em relação a produtividade, a Resolução 125 já fala que as soluções amigáveis também devem contar para aferição do mérito do advogado.

ConJur — Alguns estados como o Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina começaram a criar a figura de juiz leigo, ou seja, aquele que não é juiz de carreira.
Kazuo Watanabe — O juiz leigo ganha por tarefa, por exemplo, quando faz um acordo ou uma minuta da sentença. Eu não sou a favor de juiz leigo, eu acho que isso transforma juizados especiais em juizado de assessores. Grande parte dos juízes faz mesmo a sentença, mas uma minoria pode começar só a assinar o que o assessor faz...

ConJur — Hoje em dia, quem mais julga, na prática, são assessores. O motivo é o excesso de processos?
Kazuo Watanabe — Pode ser excesso de serviço... Mas no meu tempo não tínhamos computador, nem assessor, nem gabinete. Trabalhávamos em casa e com máquina de escrever e tínhamos, proporcionalmente, a mesma quantidade de processos que os juízes têm hoje. Na minha vara, tinha uma média de 5 mil processos por ano.

ConJur — A gente pode falar que com esses assessores houve uma queda de qualidade comparado com antigamente?
Kazuo Watanabe — Não sei, eu não tenho advogado, mas o pessoal reclama... Existem assessores muito bons, então se escolher bons assessores, pode virar uma Justiça boa, mas é muito difícil de controlar, porque assessor muda de cada titular...

ConJur — O juiz tem um certo preconceito com ação coletiva, sendo que por um lado ela pode resolver as coisas mais facilmente?
Kazuo Watanabe — Quem vai atuar na área de processo coletivo tem que dominar a distinção entre interesse difuso, interesse coletivo, interesse individual homogêneo. A dificuldade não é tanto na área do direto e sim na solução do fato que pode ser muito complexa. Por exemplo, se uma das partes agiu com má fé, qual é o critério para aferir má fé ou boa fé?

ConJur — O senhor propôs no novo CPC a possibilidade de o juiz transformar ação individual em coletiva. Qual que é o conceito?
Kazuo Watanabe — Não é qualquer ação que tem essa possibilidade. Existem conflitos de várias naturezas. Quando uma ação individual tem alcance coletivo é importante que transforme isso, às vezes, numa demanda coletiva para que o juiz dê uma sentença que valha para todos. Em alguns casos, para que o conflito seja solucionado definitivamente é interessante que a ação se transforme em coletiva, porque o bem jurídico que está sendo tutelado é o bem jurídico vai além da pessoa que está propondo a ação.

ConJur — A pessoa não tem que se habilitar a executar a sentença?
Kazuo Watanabe — Não.

ConJur — E no caso de uma improcedência, acaba-se o assunto também?
Kazuo Watanabe — Acaba o assunto definitivamente. Agora na prática existem ações pseudo-individuais, a ação é proposta como individual, mas na verdade não poderia ser. Trata-se de uma demanda que individualmente não pode ser processada, é uma pseudo-demanda individual.

ConJur — O novo CPC propõe a coletivização das demandas. É o chamado Incidente de Conversão da Ação Individual em Ação Coletiva. Como é que isso vai funcionar?
Kazuo Watanabe — Eu acho que os juízes foram muito contra isso, porque era uma forma de avocar um processo sem tirar da decisão de primeiro grau. Nós sugerimos demanda coletiva, não em substituição, mas para complementar essa ação. Mas, eu sei que a comissão originaria do senado não está aceitando esse incidente de coletivização, parece que eles vão ficar só com incidente de demandas repetitivas...

ConJur — O novo CPC traz mudanças significativas?
Kazuo Watanabe — Acho que não. Não tocaram em aspectos importantes como o juiz mais ativo na condução de um processo, o modelo é mais formalista, mais, de juiz passivo. O código muda algumas coisas mais pontuais..

ConJur — Como o efeito suspensivo dos recursos?
Kazuo Watanabe — Eu achei interessante no sentido de prestigiar mais o primeiro grau. Mas para implementar um modelo dessa natureza, é preciso organizar uma Justiça adequadamente. Se a Justiça de primeiro grau não estiver bem estruturada então é um risco muito grande.

ConJur — O ministro Teori Zavascki acredita ser um erro apostar na infalibilidade das cortes superiores no papel de controle das decisões locais. Para ele, o sistema precisa trabalhar com a possibilidade de erro. A saída seria ampliar o uso da ação rescisória? 
Kazuo Watanabe — É difícil dar uma opinião sobre isso. Em princípio, pelo menos nas duas instâncias ordinárias, supõe-se que tenha havido uma decisão razoável. É preciso privilegiar a decisão das duas instâncias, se houver erro, então admite-se uma revisão, mas a decisão tem que ser executada de modo definitivo. Privilegiar as instâncias inferiores é muito importante, desde que o estado organize bem as instâncias inferiores.

ConJur — O novo CPC também diz que o juiz vai poder negar uma ação que não esteja em conformidade com a jurisprudência. Como isso funcionaria?
Kazuo Watanabe — Vai depender da matéria. Nas demandas repetitivas, talvez tenha um resultado socialmente mais útil. Quando se fala em tese jurídica, nem sempre estamos numa demanda repetitiva nesse conceito da pessoa estar disputando sobre o mesmo caso, sobre a mesma tese. Às vezes, as demandas são repetitivas no sentido de que na vida social há muitas pessoas que trabalham da mesma forma, não é uma disputa sobre uma tese jurídica. É um fato isolado.

ConJur — Muitos juízes ainda não seguem a jurisprudência por entender que o que vale é o seu livre convencimento.
Kazuo Watanabe — O novo CPC está querendo mudar isso. Em relação, por exemplo, a tese constitucional, a Constituição de 1988 diz que a decisão do Supremo Tribunal Federal tem eficácia vinculante. Então o que o Supremo decidir em termo de inconstitucionalidade, todo mundo tem que obedecer. Mas, como em relação a tese, a normas infraconstitucionais, não existe autorização na Constituição, em tese não pode haver um súmula vinculante. Mas esse incidente de tratamento das demandas repetitivas leva mais ou menos a esse resultado...

ConJur — Mas isso é um risco, não é? O advogado hoje em dia entra com um recurso especial e extraordinário ao mesmo tempo.
Kazuo Watanabe — Mas para ir para o Supremo está ficando cada vez mais complexo, por causa de Repercussão Geral.

ConJur — O próprio Supremo julgou esses dias o efeito de uma mudança de jurisprudência, ou seja, até a jurisprudência do Supremo pode mudar...
Kazuo Watanabe — Pois é, a partir de quando vale a mudança de interpretação? Eu entendo que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça pode ter essa eficácia a ponto de o juiz que já indeferiu uma petição inicial julgar improcedente, já no nascedouro da ação, sem citar a outra parte. A jurisprudência está contra a jurisprudência. Essa norma vai acabar parando no Supremo Tribunal Federal.

ConJur — O senhor participou da criação da antecipação da tutela, que foi muito criticado por ter sido criado para resolver as lides de forma mais rápida, mas acabou se tornando um recurso a mais...
Kazuo Watanabe — A antecipação de tutela nasceu de várias sugestões que já existiam e a comissão de 1994 apenas a consolidou. A constatação é de que na prática já existia antecipação de tutela. Na época, ela só foi regulamentada, estabelecendo certos requisitos como o de ter um juiz de verossimilhança e uma prova que convença pela possibilidade de dano. Eu acho que a regulamentação foi importante, porque o processo civil brasileiro era processo civil do réu, no sentido de que o autor que tivesse razão tinha que aguardar até a solução final do processo para obter reconhecimento do seu direito. A antecipação era uma forma de regular isso: a demora no processo ia ser suportada ou pelo autor ou pelo réu.

ConJur — O problema é o juiz que julga a liminar e demorar para chegar no mérito e acumula muitos processos que acabam perdendo o objeto.
Kazuo Watanabe — Não é tanto pela perda de objeto. Às vezes, a decisão liminar do juiz já decide o conflito todo. As partes não têm mais interesse em disputar. Com base nessa constatação a professora Ada Pellegrini Grinover apresentou um projeto de lei de estabilização das decisões liminares. Ou seja, se houver uma liminar, e a parte a quem é desfavorável não recorrer, isto é, manifestar uma ação por silêncio, induz aceitação daquilo e acaba o processo. É chamado de incidente de estabilização da demanda.

ConJur — Em relação a Tutela Específica das Obrigações de Fazer e Não Fazer, o que o CPC propõe?
Kazuo Watanabe — Essa tutela específica já estava no Código de Defesa do Consumidor e foi para o Código de Processo Civil. Tradicionalmente, entendia-se que o descumprimento de uma obrigação de dar e da obrigação de fazer, se resolvia em perdas e danos. Então se, por exemplo, um pintor famoso não pinta o quadro prometido, só cabe a indenização, porque não há a possibilidade de coagir o pintor a pintar. Mas, em alguns casos, o ato do devedor não é tão importante. Então, se é possível o Judiciário substituir o ato do devedor para outorgar o direito prometido, então tinha que adotar essa solução.

ConJur — Então se o devedor não cumprir a determinação judicial, a própria Justiça pode solucionar de fato o problema?
Kazuo Watanabe — Sim, e isso pode acontecer em matérias que envolvam o meio ambiente, por exemplo. Vamos supor que a Petrobras tenha sido condenada a colocar um filtro numa chaminé que está poluindo, e não obedece a decisão do juiz. A solução em condenar por perdas e danos não resolve o direito do autor da ação que tem direito ao meio ambiente sadio. Então a ideia é fazer com que a Petrobras coloque efetivamente o filtro, caso não o faça, o juiz pode nomear um interventor dentro da empresa e alocar recurso para esse fim, e atingir plenamente o direito da parte.

ConJur — Hoje volta à tona a discussão do CDC, principalmente as questões de crédito, excesso de crédito, excesso de oferta de crédito e compras eletrônicas...
Kazuo Watanabe — Superendividamento. No Código de Defesa do Consumidor, o importante avanço que nós tivemos foi a complementação da Lei da Ação Civil Pública, que era de 1985, mas disciplinou só tutela de interesse coletivo. A tutela de direitos individuais homogêneos vem com o Código de Defesa do Consumidor que complementa a disciplina da ação coletiva, por isso se diz que o sistema de processo coletivo no Brasil é formado por duas normas, dois diplomas legais. Há um microssistema: A Lei da Ação Civil Pública e o CDC dão um sistema legal de ações coletivas.

Alessandro Cristo é editor da revista Consultor Jurídico

Livia Scocuglia é repórter da revista Consultor Jurídico.



Revista Consultor Jurídico, 9 de novembro de 2014, 7h11

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...