segunda-feira, 7 de outubro de 2013

O PODER JUDICIÁRIO NO REGIME DEMOCRÁTICO



O Poder Judiciário no regime democrático



Artigo publicado no Scielo. Clique aqui para citar a referência.

Fábio konder Comparato





NA IDADE MODERNA, SÓ se pode considerar democrático o regime político fundado na soberania popular, e cujo objetivo 'último consiste no respeito integral aos direitos fundamentais da pessoa humana. A soberania do povo, não dirigida à realização dos direitos humanos, conduz necessariamente ao arbítrio da maioria. O respeito integral aos direitos do homem, por sua vez, é inalcançável quando o poder político supremo não pertence ao povo.

O Poder Judiciário, como órgão de um Estado democrático, há de ser estruturado em função de ambas essas exigências. Ressalte-se, contudo, que, diferentemente dos demais poderes públicos, o Judiciário apresenta uma notável particularidade. Embora seja ele, por definição, a principal garantia do respeito integral aos direitos humanos, na generalidade dos países os magistrados, salvo raras exceções, não são escolhidos pelo voto popular.

Na verdade, o fator que compatibiliza o Poder Judiciário com o espírito da democracia (no sentido que Montesquieu conferiu ao vocábulo) é um atributo eminente, o único capaz de suprir a ausência do sufrágio eleitoral: é aquele prestígio público, fundado no amplo respeito moral, que na civilização romana denominava-se auctoritas; é a legitimidade pelo respeito e a confiança que os juízes inspiram no povo. Ora, essa característica particular dos magistrados, numa democracia, funda-se essencialmente na independência e na responsabilidade com que o órgão estatal em seu conjunto, e os agentes públicos individualmente considerados, exercem as funções políticas que a Constituição, como manifestação original de vontade do povo soberano, lhes atribui.

Se quisermos, portanto, verificar quão democrático é o Poder Judiciário no Brasil, devemos analisar a sua organização e o seu funcionamento, segundo os requisitos fundamentais da independência e da responsabilidade.

São as duas partes em que se divide o presente texto.



Independência

Esclareçamos, desde logo, o sentido técnico do termo. Diz-se que o Poder Judiciário em seu conjunto é independente, quando não está submetido aos demais Poderes do Estado. Por sua vez, dizem-se independentes os magistrados, quando não há subordinação hierárquica entre eles, não obstante a multiplicidade de instâncias e graus de jurisdição. Com efeito, ao contrário da forma como é estruturada a administração pública, os magistrados não dão nem recebem ordens, uns dos outros.

A independência funcional da magistratura, assim entendida, é uma garantia institucional do regime democrático. O conceito de garantia institucional foi elaborado pela doutrina publicista alemã à época da República de Weimar, para designar as formas de organização dos Poderes Públicos, cuja função é assegurar o respeito aos direitos subjetivos fundamentais, declarados na Constituição1.

Desde a nossa primeira Constituição republicana, seguimos, em matéria de organização dos Poderes Públicos, o modelo original norte-americano, cujo pressuposto ideológico foi o cuidado em delimitar e restringir a competência do Poder Legislativo, o qual teria, na opinião dos pais fundadores dos Estados Unidos, uma inclinação natural ao abuso de poder. "O corpo legislativo", escreveu Madison, "estende por toda parte a esfera de sua atividade, e engole todos os poderes no seu turbilhão impetuoso"2.

Acrescentou que o Poder Executivo deve ser temido num regime monárquico, ou mesmo quando o povo exerce diretamente a função legislativa.


Mas numa república representativa", ponderou, "em que a magistratura executiva é limitada, tanto na extensão, como na duração dos seus poderes, e onde o poder de legislar é exercido por uma assembléia cheia de confiança nas suas próprias forças, pela certeza que tem da sua influência sobre o povo; [...] em tal estado de coisas, é contra as empresas ambiciosas desse poder que o povo deve dirigir os seus ciúmes e esgotar todas as precauções3.

Acontece que em nosso país – como na generalidade das nações latino-americanas, de resto – a tradição colonial moldou os costumes políticos no sentido da máxima concentração de poderes na pessoa do Chefe de Estado. Ao adotarmos, pois, o regime presidencial de governo, em que o Chefe de Estado é, ao mesmo tempo, Chefe de Governo, nada mais fizemos do que criar, sob pretexto de uma reprodução do modelo norte-americano, um presidencialismo exacerbado.

Já durante o regime monárquico, aliás, a predominância inconteste da vontade imperial sobre todos os órgãos do Estado, e até mesmo acima da vontade popular, pelo exercício do Poder Moderador, era bem conhecida. Como frisou o Marquês de Itaboraí (Rodrigues Torres), "o Imperador reina, governa e administra". Sua Majestade concentrava em suas mãos todas as prerrogativas do Poder Executivo, o qual, como reconheceu Joaquim Nabuco, sempre foi onipotente, sendo esta onipotência, em suas palavras, "o traço saliente do nosso sistema político"4.

Não era, assim, de admirar que durante todo o período imperial o Judiciário se apresentasse como fiel servidor do governo. Ele era "uma mola da máquina administrativa", como reconheceu sem disfarces o Visconde de Uruguai5. Nas palavras candentes de José Antonio Pimenta Bueno, o futuro Marquês de São Vicente e o mais autorizado constitucionalista do período imperial, "o governo é quem dá as vantagens pecuniárias, os acessos, as honras e as distinções; é quem conserva ou remove, enfim quem dá os despachos não só aos magistrados, mas a seus filhos, parentes e amigos"6.

A Constituição de 1891, procurando corrigir tais abusos, determinou, em seu art. 57, que "os juízes federais são vitalícios e perderão o cargo unicamente por sentença judicial". Acrescentou que "os seus vencimentos serão determinados por lei e não poderão ser diminuídos". Mas como a Constituição só se referiu, aí, aos juízes federais, alguns Estados resolveram não observar essas garantias em relação aos seus magistrados. O Supremo Tribunal Federal, chamado a se pronunciar sobre o assunto, julgou que as garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade dos vencimentos da magistratura deviam ser observadas, como princípio constitucional, por todos os Estados da federação; o que veio, afinal, a ser consagrado pela reforma constitucional de 1926. No entanto, como tais garantias não se consideravam aplicáveis aos juízes temporários, essa escapatória foi largamente aproveitada, não só pela União, como também pelos Estados federados.

Consolidou-se, com isto, o costume político, segundo o qual as relações entre o Executivo e os demais órgãos estatais não são de potência a potência, mas de quase vassalagem destes para com aquele; ou, mais exatamente, de submissão geral à pessoa do Presidente ou do Governador de Estado; o que representa, de certa forma, a transposição na esfera estatal do tradicional relacionamento do coronel do interior com os seus agregados e capatazes7. Da mesma forma, entre o povo e o Estado, personificado na figura do chefe do Executivo, quase nunca se estabelece uma relação de cidadania, mas sim uma situação de dependência ou proteção pessoal, análoga à que existe entre pais e filhos, ou entre padrastos e enteados. O povo não foi educado a exercer direitos e a exigir justiça, mas tem sido habitualmente domesticado a procurar auxílios e favores.

É isto o que tende a falsear completamente posição da magistratura judiciária em nossa organização de Poderes. É ingênuo acreditar que a evolução constitucional pôs, finalmente, juízes e tribunais ao abrigo da avassaladora hegemonia governamental.

Se quisermos, portanto, garantir a independência do Poder Judiciário, precisamos, sobretudo, protegê-lo contra as indevidas incursões do Executivo em seu território.

É nesse sentido que passo a alinhar algumas sugestões de reforma.



Preenchimento de cargos nos Tribunais

O Supremo Tribunal Federal deveria ser composto por quinze Ministros, um terço dos quais por indicação do próprio Tribunal, o outro terço indicado pelo Ministério Público Federal e o último terço de indicação da Ordem dos Advogados do Brasil. As indicações seriam sempre feitas em listas tríplices, e a escolha dos Ministros competiria ao Senado Federal, em votação com o quorum qualificado de dois terços dos senadores.

No Superior Tribunal de Justiça, manter-se-ia a mesma composição prevista no art. 104, parágrafo único, da Constituição, mas a designação dos Ministros incumbiria também ao Senado Federal, deliberando com o mesmo quorum qualificado que se acaba de indicar.

Igualmente para o Tribunal Superior do Trabalho, manter-se-ia a mesma composição determinada no art. 111, § 1º, da Constituição8, mas as indicações seriam feitas em listas tríplices pelo próprio Tribunal, o Ministério Público do Trabalho e a Ordem dos Advogados do Brasil, com a escolha definitiva sendo feita pelo Senado Federal, nas mesmas condições acima indicadas.

Quanto aos demais tribunais federais e os tribunais dos Estados e do Distrito Federal, quatro quintos dos seus integrantes deveriam ser escolhidos dentre Juízes de Direito, de modo alternado, por antigüidade e por concurso público, e o quinto restante na forma do disposto no art. 94 da Constituição, ou seja, por membros do Ministério Público, com mais de dez anos de carreira, e de advogados de notório saber jurídico e de reputação ilibada, com mais de dez anos de efetiva atividade profissional, todos eles indicados em lista sêxtupla pelos órgãos de representação das respectivas classes, sendo que, recebidas as indicações, o tribunal formará lista tríplice, a ser submetida ao Senado Federal. Seria, assim, abolido o critério de escolha por merecimento, o qual enseja uma inevitável margem de arbítrio por parte dos tribunais de justiça.



Emendas constitucionais reguladoras da organização, das prerrogativas e do funcionamento do Judiciário

Em se tratando de emendar a Constituição para regular a organização e o funcionamento dos Poderes Públicos, bem como para a fixação das prerrogativas dos seus agentes, a proposta deveria ser submetida a referendo popular. Nada é mais característico da consolidada usurpação da soberania do povo, estabelecida entre nós, do que a facilidade com que o impropriamente chamado poder constituinte derivado se atribui a prerrogativa de decidir, em definitivo, assuntos de tanta relevância para a vida democrática.

Em relação ao Judiciário, porém, essa exigência ainda não é bastante. É que, ao contrário dos demais Poderes, ele tem estado, pela tradição constitucional, alheio ao procedimento de emenda ou reforma da Constituição. Entendo que, dada a posição relativamente inferior do Judiciário em relação aos demais Poderes do Estado no equilíbrio constitucional de competências, é indispensável estabelecer a regra de que toda e qualquer proposta de emenda à Constituição, relativa ao Poder Judiciário e à magistratura nacional, seja de iniciativa exclusiva do Supremo Tribunal Federal, analogamente ao que estabelece a Constituição no que concerne ao Estatuto da Magistratura (art. 93).



Autonomia financeira do Poder Judiciário e fixação dos subsídios da magistratura

A Constituição Federal, em seu art. 99, estabeleceu a autonomia administrativa e financeira do Poder Judiciário. Isto não impediu, contudo, que o Executivo, pressionado pelo Fundo Monetário Internacional, e com a cumplicidade do Congresso Nacional, promulgasse a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 4/5/2000), que fixou limites intransponíveis para as despesas de pessoal do Judiciário, sem que este houvesse participado oficialmente do processo de elaboração da lei.

O adequado funcionamento da Justiça para a proteção efetiva da dignidade humana, princípio supremo da ordem jurídica, não se compadece, claro está, com essa visão fiscalista da coisa pública. É indispensável e urgente iniciar uma vigorosa campanha nacional para a fixação, por lei complementar, de um número mínimo de juízes de primeira instância, na União, nos Estados e no Distrito Federal, em função do número efetivo de habitantes, e de uma correspondente proporção mínima de magistrados dos tribunais de segunda instância, em relação aos juízes de primeira instância, bem como de um número mínimo de membros dos tribunais superiores, em relação aos integrantes dos tribunais de segunda instância. Nunca é demais lembrar que a prestação de justiça é a mais nobre das atividades-fins do Estado, não podendo, portanto, em hipótese alguma, subordinar-se à regra instrumental de balanceamento das contas públicas.

Quanto à fixação dos subsídios da magistratura, dever-se-ia partir, no plano federal, da regra de que os subsídios dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, do Presidente e do Vice-Presidente da República, bem como dos Deputados Federais e Senadores seriam fixados conjuntamente pelos representantes desses três Poderes.

Competiria, em seguida, ao Supremo Tribunal Federal fixar os subsídios dos magistrados dos tribunais superiores, dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais e Juízes Eleitorais, dos Tribunais e Juízes do Trabalho, e dos Tribunais e Juízes Militares Federais. No plano estadual, haveria análogo procedimento, respeitados os limites máximos fixados pela Constituição.



Isenção política dos magistrados

Ultimamente, tem-se vulgarizado a prática de magistrados, sobretudo dos tribunais superiores da República, fazerem pronunciamentos públicos sobre assuntos de governo, sem qualquer ligação com os interesses da magistratura nacional.

Será ainda preciso relembrar que tais atitudes contribuem fortemente para destruir o prestígio público e a necessária presunção de imparcialidade que é apanágio dos magistrados? Quem não percebe, afinal, que, depois de pronunciar-se publicamente, fora do contexto de um litígio judicial, contra ou a favor da atuação de governantes ou parlamentares, o magistrado perde a isenção para julgar, eventualmente, causas em que esses governantes ou parlamentares se achem, direta ou indiretamente, envolvidos?

Faz-se mister, portanto, acrescentar à vedação constante do art. 36, inciso III, da atual Lei Orgânica da Magistratura Nacional9, mais uma, concernente a pronunciamentos públicos, feitos por magistrados fora dos processos judiciais, sobre políticas de governo, ou atos de quaisquer agentes públicos, ressalvada a crítica impessoal manifestada em obras doutrinárias ou no exercício do magistério.



Responsabilidade

A essência do regime republicano, como a etimologia indica, é o fato de que o poder político não pertence, como um ativo patrimonial, aos governantes ou agentes estatais, mas é um bem comum do povo. Res publica, res populi, dizia-se em Roma10. É só neste preciso sentido que se pode falar em poder público.

Ora, o corolário lógico desse princípio fundamental é a necessária correlação existente entre poder e responsabilidade. Quanto maior o poder, maior a responsabilidade, entendida esta como o dever que incumbe ao detentor do poder, em nome de outrem, de responder pela forma como o exerce.

A responsabilidade desdobra-se, na verdade, em duas relações: a correspondente ao dever de prestar contas (que na língua inglesa denomina-se accountability) e a relação de sujeição às sanções cominadas em lei pelo mau exercício do poder (liability).

Numa república democrática, os controles institucionais de abuso de poder pelos órgãos do Estado são de duas espécies: o horizontal, ligado ao mecanismo da separação de Poderes, e o vertical, fundado na soberania popular. Na verdade, a democracia é o regime político no qual ninguém, nem mesmo o povo soberano, exerce um poder absoluto, sem controles. O poder soberano do povo só pode ser exercido, legitimamente, no quadro da Constituição. E é, justamente, ao Poder Judiciário que incumbe a magna função de interpretar os limites constitucionais dentro dos quais há de ser exercida a soberania popular.

Se assim é, se o próprio povo soberano tem a sua ação limitada nos termos da Constituição, com maioria de razão deve a atuação do Judiciário ser submetida a uma fiscalização permanente de sua regularidade. Ora, é forçoso reconhecer que os controles institucionais da ação do Judiciário, em nossa sociedade, são muito frouxos e mesmo, em certos setores, praticamente inexistentes.

Comecemos pelo controle horizontal.

Se se exige, com razão, total independência do Judiciário no julgamento dos demais Poderes Públicos à luz dos mandamentos constitucionais e legais, não se compreende por que o corpo de magistrados não deva se submeter, por igual, a um controle externo do seu comportamento por outros órgãos, para efeito de apuração de suas responsabilidades, tanto no nível penal, quanto no civil e no disciplinar.

É falacioso objetar que a fiscalização ab extra da ação dos magistrados importaria na perda de sua independência de julgamento e do seu poder disciplinar interno. Em primeiro lugar, porque esse exame não implica, em hipótese alguma, uma revisão das decisões processuais ou de mérito, dadas por juízes e tribunais. Ele tem por objeto, de um lado, o modo como os magistrados se desempenham no exercício dessa sua função privativa e, de outro lado, a sua conduta pessoal fora dessa atuação funcional. Em segundo lugar, porque o controle externo não pode jamais abranger a competência de julgamento, assim como a censura judicial dos atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo não significa a assunção pelo Judiciário das funções privativas desses ramos do Estado. Em terceiro lugar, porque um mecanismo de exame externo do funcionamento do Judiciário não acarreta a abolição do poder disciplinar interno dos órgãos judiciais, mas na verdade o complementa.

Atualmente, existe um poder censório geral do Judiciário, atribuído ao Conselho Nacional da Magistratura (Lei Orgânica da Magistratura Nacional – Lei Complementar nº 35, de 14/3/1979). Mas esse órgão, constituído por sete Ministros do Supremo Tribunal Federal, tem sido de todo inoperante, pois não dispõe, como é óbvio, da menor condição de exercer a fiscalização do desempenho funcional de todos os juízes e tribunais do país.

Sem dúvida, o mais adequado, numa democracia, é ter a fiscalização não judicial dos Poderes do Estado exercida por um órgão de representação popular. Entre nós, porém, nenhum dos órgãos legislativos existentes apresenta condições aceitáveis para desempenhar essa função. O Senado Federal não representa o povo brasileiro, mas sim os Estados federados e o Distrito Federal. E quanto à Câmara dos Deputados e às Assembléias Legislativas, elas mal dão conta das funções que lhes foram atribuídas pela Constituição, e não suportariam, como é evidente, assumir mais outra, de tão grande complexidade.

O ideal seria instituir um outro órgão de representação popular, tanto no nível federal, quanto no estadual, com a competência exclusiva de exercer todas as funções de fiscalização e inquérito atualmente atribuídas aos órgãos legislativos, além da supervisão permanente do funcionamento do Poder Judiciário.

A segunda melhor solução seria instituir, na União, em cada Estado e no Distrito Federal, um órgão de controle, composto de agentes das funções essenciais da Justiça, a saber, o Ministério Público e a advocacia (nesta incluídas a advocacia e a defensoria públicas). Esse órgão teria a incumbência de verificar o cumprimento, por todos os magistrados, inclusive os Ministros do Supremo Tribunal Federal, dos deveres funcionais declarados em lei (atualmente, arts. 35 e seguintes da Lei Orgânica da Magistratura), e de encaminhar as conclusões de seus inquéritos às autoridades competentes para a aplicação das sanções legais.

Nessa ordem de idéias, não parece adequado que, em matéria de crimes comuns, os Ministros do Supremo Tribunal Federal mantenham o privilégio de serem julgados pelos seus pares. Poderse-ia, assim, cogitar da criação de um órgão judiciário especial para tais casos, composto pelos cinco Ministros mais antigos em atuação no Superior Tribunal de Justiça.

No tocante ao controle vertical da atuação da magistratura, convém recordar que a Carta Política do Império, em seu art. 157, instituiu uma ação criminal contra os juízes de direito, "por suborno, peita, peculato e concussão", a qual poderia ser intentada "dentro de ano e dia pelo próprio queixoso, ou por qualquer do Povo, guardada a ordem do Processo estabelecida na Lei".

Sem dúvida, essa espécie de ação popular criminal, limitada exclusivamente à hipótese em que o réu é magistrado, não mais se justifica nos dias atuais. Conviria, no entanto, criar uma ação popular criminal subsidiária, mediante adaptação do disposto no art. 5º, inciso LIX, da Constituição Federal11, toda vez que o réu seja um agente público. Em tal hipótese, a ação penal subsidiária deveria ser admitida, ainda quando o representante do Ministério Público se recusasse, expressamente, a oferecer a denúncia.

Por outro lado, não se deve nunca esquecer de garantir cumpridamente a todos os jurisdicionados o respeito ao direito fundamental de obter, no Judiciário, um julgamento isento.

Nesse sentido, proponho a adoção de uma providência processual simples, a fim de resolver o problema – assaz freqüente, aliás – de os jurisdicionados se encontrarem efetivamente privados do direito de serem julgados de forma imparcial na comarca em que são domiciliados. Suponha-se a hipótese de um juiz de direito que, em região de agudo conflito agrário, coloque-se objetivamente – de modo intencional ou não, pouco importa – do lado dos proprietários rurais, e se empenhe em distribuir, mais a torto que a direito, condenações criminais a mancheias contra todos os que atuem, direta ou indiretamente, a favor da reforma agrária; além de julgar sistematicamente improcedentes as ações possessórias e reipersecutórias intentadas por essas mesmas pessoas. As regras processuais concernentes à suspeição não têm aí aplicação, em princípio, pois não se consegue provar algum interesse pessoal do magistrado na solução das lides submetidas à sua decisão.

Para a solução de casos dessa natureza, poder-se-ia cogitar de atribuir a qualquer parte em juízo, em qualquer espécie de processo, o direito de obter o desaforamento do feito para o juízo que vier a ser designado pelo tribunal de segunda instância. Seria um direito potestativo, exercitável, portanto, sem que o seu titular tenha que alegar motivo algum. A freqüência com que for exercido esse direito, em determinado juízo, serviria como indício de que o magistrado já não goza da indispensável confiança dos jurisdicionados, havendo perdido a sua auctoritas funcional.

Eis aí as sugestões que me parecem importantes e oportunas oferecer à consideração geral, como subsídio aos trabalhos de aperfeiçoamento da organização do Poder Judiciário em nosso país.



Notas

1 Sobre o assunto vejam-se, na doutrina brasileira, Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, 7ª ed., Malheiros Editores, capítulo 15, e na doutrina alemã contemporânea, Klaus Stern, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, t. III/1, Münch, Verlag C. H. Beck, 1988, 68.

2 The Federalist, ensaio nº 48, New York, The Modern Library, p. 322.

3 Idem, pp. 322-323.

4 Um Estadista do Império, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, p. 239.

5 Ensaio sobre o Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, t. II, 1862, p. 261.

6 Apontamentos sobre o Processo Criminal Brasileiro, 2ª ed., Rio de Janeiro, 1857, p. 39.

7 Relembre-se o já clássico ensaio de Victor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto, cuja 1ª edição é de 1949.

8 "O Tribunal Superior do Trabalho compor-se-á de dezessete Ministros, togados e vitalícios, escolhidos dentre brasileiros com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos, [...] dos quais onze escolhidos dentre juízes dos Tribunais Regionais do Trabalho, integrantes da carreira da magistratura trabalhista, três dentre advogados e três dentre membros do Ministério Público do Trabalho."

9 "É vedado ao magistrado: [...] III – manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério."

10 Cícero, De re publica, I, XXV, 39.

11 "Será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal".





Texto recebido e aceito para publicação em 19 de junho de 2004.





Fábio Konder Comparato é professor-titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, doutor honoris causa da Universidade de Coimbra e doutor em Direito pela Universidade de Paris.

PARA O USO PRAGMÁTICO, ÉTICO E MORAL DA RAZÃO PRÁTICA



Para o uso pragmático, ético e moral da razão prática*



Texto publicado em Scielo. Clique aqui para fazer citação.

Jürgen Habermas





Tradução: Márcio Suzuki

Até os dias de hoje, as discussões teóricas sobre a moral são determinadas pelo confronto entre três posições: as argumentações transcorrem entre Aristóteles, Kant e o utilitarismo. Apenas as éticas da compaixão fazem valer um motivo diverso. Outras teorias, mesmo a hegeliana, podem ser entendidas como tentativas de síntese de iniciativas conhecidas. A ética do discurso (Diskursethik), que se põe como tarefa salientar o conteúdo normativo de um uso lingüístico orientado para a compreensão, não é a referida síntese. Ao tentar demonstrar, com os meios da análise da linguagem, que o ponto de vista do julgamento imparcial de questões prático-morais — o ponto de vista moral — surge em geral dos pressupostos pragmáticos inevitáveis da argumentação, ela se filia à tradição fundada pela Crítica da razão prática. Com essa tomada de partido em favor de Kant, ela não adota, porém, aquelas premissas que forçam a ressaltar unilateralmente a iniciativa deontológica, ou seja, excluindo as intuições nas quais, com um certo direito, se concentram as iniciativas concorrentes. No que se segue, importa para mim o direito relativo daqueles três aspectos sob os quais podemos fazer um uso, a cada momento diferençado, da razão prática. Gostaria de mostrar isso pela via de uma análise dos tipos de argumentação a eles correspondentes.

Assim como a ética moderna, a ética clássica parte da questão que se põe ao indivíduo que precisa de orientação, quando ele, numa situação determinada, encontra-se diante de uma tarefa a ser vencida de maneira prática: como devo comportar-me, que devo fazer? Esse "dever" (Sollen) guarda um sentido não-específico enquanto o respectivo problema e o aspecto sob o qual deve ser solucionado não sejam determinados mais de perto. Antes de tudo, gostaria de diferençar o uso da razão prática tendo como fio condutor os modos pragmático, ético e moral de pôr a questão. Sob os aspectos daquilo que é adequado a fins (Zwechnässiges), do bom e do justo, esperam-se, respectivamente, desempenhos diferentes da razão prática. De acordo com eles, altera-se a constelação entre razão e vontade nos discursos pragmáticos, éticos e morais. A formação da vontade individual encontra, por fim, seus limites no fato de abstrair da realidade da vontade alheia. Com os problemas fundamentais de uma formação racional da vontade coletiva entram em jogo os modos de pôr a questão a partir de uma teoria normativa do direito e da política.







I

Problemas práticos impõem-se-nos em diferentes situações. Eles "têm" (müssen) de ser contornados, pois do contrário surgem conseqüências que são importunas mesmo nos casos mais simples. É assim que, por exemplo, "temos de" (müssen) decidir o que fazer quando a bicicleta usada diariamente estraga, quando surgem complicações de saúde, quando falta dinheiro para poder satisfazer determinados desejos. Buscamos, então, fundamentos para uma decisão racional entre diferentes possibilidades de ação frente a uma tarefa que "temos de" (müssen) solucionar, se quisermos alcançar uma meta determinada. As metas também podem, elas mesmas, tornar-se problemáticas, por exemplo, quando um plano para as próximas férias fracassa, repentinamente, ou quando se tem de escolher a profissão. Viajar para a Escandinávia, para Elba ou ficar em casa; visitar cidades orientais, viajar de barco pelo Dordogne ou ficar na praia; iniciar imediatamente um curso universitário ou fazer, primeiro, um curso técnico; tornar-se médico ou profissional em editoração, isso depende, acima de tudo, de nossas preferências e opções que se nos abrem numa dada situação. Uma vez mais buscamos fundamentos para uma decisão racional — desta vez, entre as próprias metas.

Em ambos casos, aquilo que se "deve" (soll) fazer de uma maneira racional é determinado, em parte, por aquilo que se quer: trata-se de uma escolha racional dos meios a partir das metas dadas ou de uma ponderação racional das metas a partir das preferências existentes. Nossa vontade já está estabelecida faticamente por "desejos e valores; ela só está aberta a outras determinações no que concerne a alternativas quanto à escolha dos meios ou quanto à fixação de metas. Trata-se unicamente de técnicas apropriadas, seja para o conserto da bicicleta ou para o tratamento de doenças, seja de estratégia para levantar dinheiro, de programas para o planejamento das férias ou da escolha da profissão. Em casos complexos, "têm-se" (müssen) até de desenvolver estratégias para tomar decisões — e então a razão assegura-se de sua própria conduta e torna-se reflexiva, por exemplo, na figura de uma teoria da escolha racional. Enquanto a pergunta "Que devo fazer?" referir-se a tarefas pragmáticas, as observações e investigações, as comparações e ponderações, que, apoiados em informações empíricas, empreendemos sob a perspectiva da eficiência ou com auxílio de outras regras decisorias, são pertinentes. A reflexão prática transcorre aqui no horizonte da racionalidade de fins (Zweckrationalität), com a meta de encontrar técnicas, estratégias ou programas adequados. Ela leva a recomendações que, em casos simples, têm a forma semântica de imperativos condicionais. Kant fala de regras de habilidade e de conselhos de prudência, de imperativos técnicos e pragmáticos. Eles põem causas e efeitos em relação, segundo preferências de valor e fixação de metas. O sentido imperativo que expressam pode ser entendido como um "dever" (Sollen) relativo. As indicações para a ação dizem o que "se deve" (soll) fazer ou que "se tem" (muss) de fazer em vista de um problema determinado, se se quer realizar determinados valores ou fins. Decerto, se os próprios valores tornam-se problemáticos, a pergunta "Que devo fazer?" aponta além do horizonte da racionalidade de fins.

Em decisões complexas, como, por exemplo, a escolha da profissão, pode-se concluir que não se trata absolutamente de uma questão pragmática. Alguém que queira entrar no ramo editorial pode refletir se é mais adequado a esse fim (zwechnässiger) fazer primeiro um curso técnico ou cursar logo a faculdade; mas quem não sabe exatamente o que quer, está diante de uma situação de todo diferente. Aqui, a escolha da profissão, isto é, da orientação dos estudos, está ligada à questão das inclinações ou daquilo pelo que se interessa, de que tipo de atividade satisfaria a pessoa, etc. Quanto mais radicalmente essa questão se põe, tanto mais ela se exacerba no problema de saber que vida se gostaria de ter, e isso significa: que tipo de pessoa se é e, ao mesmo tempo, se gostaria de ser. Quem, em decisões de importância vital, não sabe o que quer, perguntará por fim quem ele é e quem ele gostaria de ser. Decisões triviais ou fracas sobre a preferência não exigem fundamentação; ninguém pede a si ou a outros justificativas pelas marcas de automóveis ou que tipo de pulôver prefere. Em contrapartida, chamamos, com Charles Taylor, de preferências "fortes" àquelas valorações que não concernem apenas às disposições e inclinações contingentes, mas também à compreensão de si (Selbstverständnis) de uma pessoa, ao tipo de vida que tem, ao caráter; tais valorações estão entrelaçadas com a identidade de cada um. Essa circunstância não empresta apenas um peso às decisões existenciais, mas também um contexto no qual elas são tanto carentes quanto capazes de fundamentação. Decisões de valor grave são tratadas, desde Aristóteles, como questões clínicas (klinisch) do bem viver. Uma decisão ilusória — o relacionamento com um parceiro errado, a escolha equivocada de alternativas profissionais — pode ter como conseqüência uma vida malograda. A razão prática, que neste sentido tem como objetivo não apenas o possível e o que é adequado a fins, mas também o bom, move-se então, se seguimos o uso clássico da linguagem, no âmbito da ética.

Problemas práticos impõem-se-nos em diferentes situações. Eles "têm" (müssen) de ser contornados, pois do contrário surgem conseqüências que são importunas mesmo nos casos mais simples.







Valorações fortes inserem-se no contexto da compreensão de si (Selbstverständnis). O modo como alguém compreende a si mesmo não depende apenas de como ele se descreve, mas também dos modelos pelos quais se empenha. A identidade própria determina-se ao mesmo tempo segundo o modo como alguém se vê e como se gostaria de ver — isto é, tal como alguém se encontra e por que ideais projeta-se a si e a sua vida. Essa compreensão existencial de si é, no fundo, valorativa e tem, como toda valoração, uma cabeça de Jano. Nela estão mesclados estes dois tipos de componentes: os componentes descritivos da gênese da história de vida do eu e os componentes normativos do ideal do eu. Por isso, a elucidação da compreensão de si ou o asseguramento clínico da própria identidade requer um compreender apropriador — a apropriação da história da própria vida como também das tradições e dos contextos de vida que determinaram o processo de formação próprio. Se há ilusões em jogo, essa compreensão hermenêutica de si pode ser aguçada no tipo de reflexão que dissolve auto-ilusões. O tomar consciência crítica (Das kritische Bewusstmachen) da história da vida e de seu contexto formativo não leva a uma compreensão de si, neutra de valores; ao contrário, a descrição de si alcançada de maneira hermenêutica está ligada internamente a uma postura crítica em relação a si mesmo. Uma compreensão de si aprofundada modifica os posicionamentos que suportam ou, pelo menos, implicam um projeto de vida pleno de conteúdo normativo. Assim, as valorações fortes podem ser fundamentadas pela via da compreensão hermenêutica de si.

Será possível decidir com melhores fundamentos entre um curso superior de administração de empresas e uma preparação para teólogo, depois que se tenha tornado claro quem se é e quem se gostaria de ser. Questões éticas são, em geral, respondidas com imperativos incondicionais do seguinte tipo: "Tens de seguir uma profissão que te dê a sensação de ajudar outras pessoas". O sentido imperativo de proposições como esta pode ser entendido como um "dever" (Sollen) que não depende de fins e preferências subjetivas e, no entanto, não é absoluto. O que tu "deves" (sollst) fazer ou "tens de" (musst) fazer possui aqui o sentido de que, a longo prazo e no conjunto, é bom para ti agir dessa maneira. Aristóteles fala, neste contexto, de caminhos para a vida boa e feliz. Valorações fortes orientam-se por uma meta posta como absoluta para mim, vale dizer, pelo Bem Supremo de um modo de vida autárquico, que tem seu valor em si. A questão "Que devo fazer?" muda uma vez mais seu sentido assim que minhas ações afetem os interesses de outros e levem a conflitos que devem ser regulados de modo imparcial, portanto, sob pontos de vista morais. Uma comparação por contraste é instrutiva a respeito dessa nova qualidade que com isso entra em jogo.

Tarefas pragmáticas colocam-se da perspectiva de um agente que parte de suas metas e preferências. Deste ponto de vista, os problemas morais não podem surgir de maneira alguma, porque as outras pessoas têm apenas a importância de meios ou condições restritivas para a realização de um plano de ação respectivo a cada indivíduo. No agir estratégico os participantes supõem que cada um decide de maneira egocêntrica, segundo o critério de seus próprios interesses. Esse conflito pode ser decidido ou contido e posto sob controle, bem como apaziguado por um interesse mútuo. Sem uma mudança radical da perspectiva e da postura, contudo, um conflito interpessoal entre os envolvidos não pode ser percebido como um problema moral. Se posso conseguir o dinheiro que me falta apenas pela via da dissimulação de fatos relevantes, o único que conta entre os pontos de vista pragmáticos é o possível êxito de uma manobra de engodo. Quem, no entanto, problematiza a licitude desse ponto de vista, põe uma outra espécie de questão — ou seja, a questão moral de saber se todos poderiam querer que, em meu lugar, qualquer pessoa agisse segundo a mesma máxima.

No agir estratégico os participantes supõem que cada um decide de maneira egocêntrica, segundo o critério de seus próprios interesses. Esse conflito pode ser decidido ou contido e posto sob controle, bem como apaziguado por um interesse mútuo.

Também as questões éticas não exigem absolutamente uma ruptura completa com a perspectiva egocêntrica; elas referem-se ao télos de minha vida. Deste ponto de vista, outras pessoas, outras histórias de vida e esferas de interesse ganham significado apenas na medida em que estejam unidos ou entrelaçados à minha identidade, à minha história de vida e à minha esfera de interesse no âmbito de nossa forma de vida partilhada intersubjetivamente. Meu processo de formação completa-se num contexto de tradições que partilho com outras pessoas; minha identidade também é marcada pelas identidades coletivas, e a minha história de vida está inserida em contexto de histórias de vida que se entremeiam. Nesta medida, a vida que é boa para mim toca também as formas de vida que nos são comuns. Assim, o etos do indivíduo permanecia, para Aristóteles, referido e adstrito à pólis dos cidadãos. No entanto, as questões éticas têm uma direção inversa das questões morais: a regulação dos conflitos interpessoais entre as ações, os quais resultam de esferas de interesse contraditórias, ainda não é tema aqui. Se eu gostaria de ser alguém que, numa situação aguda de apuros, aplica também uma pequena fraude numa sociedade anônima de seguros, isso não é uma questão moral — pois aqui se trata do respeito que tenho por mim (Selbstachtung) e, eventualmente, do respeito (Achtung) que outros demostram para comigo, mas não do respeito (Respekt) igual para com todos, isto é, do respeito (achtung) simétrico que cada um demostra pela integridade de todas as outras pessoas.

Aproximamo-nos, com efeito, do modo de consideração moral assim que examinamos se nossas máximas são conciliáveis com as máximas de outros. Kant chama de máximas àquelas regras de ação próximas da situação (situationsnah) e mais ou memos triviais pelas quais a prática de um indivíduo se orienta habitualmente. Elas dispensam o autor do esforço cotidiano de tomar decisões e encaixam-se de maneira mais ou menos consistente numa prática de vida na qual se espelham o caráter e o modo de vida. Kant tinha ante os olhos sobretudo as máximas da sociedade burguesa em seus primórdios, que se diferençava segundo a posição profissional. Em geral, as máximas constituem as menores unidades de um entrelaçamento de hábitos praticados, nos quais se concretizam a identidade e o projeto de vida de uma pessoa (ou de um grupo) — elas regulam o curso do dia, o modo de tratamento, o jeito de lidar com problemas, de solucionar conflitos, etc. As máximas constituem o ponto de intersecção entre ética e moral, porque podem ser julgadas simultaneamente sob os pontos de vista ético e moral. A máxima de praticar também uma vez uma manobra de engodo pode não ser boa para mim — isto é, quando não se enquadra à imagem da pessoa que gostaria de ser e que, como tal, quero ser reconhecido. A mesma máxima pode, simultaneamente, ser injusta — isto é, se sua obediência universal não for igualmente boa para todos. Um exame das máximas, ou uma heurística formadora de máximas, que não se deixe guiar pela questão de como quero viver, toma a razão prática de uma maneira diferente da reflexão sobre se de meu ponto de vista uma máxima obedecida universalmente é apropriada a regular nossa vida em comum. Num caso se examina se uma máxima é boa para mim ou adequada à situação; no outro caso, se posso querer que uma máxima seja observada como lei universal para todos.

Kant chama de máximas àquelas regras de ação próximas da situação (situationsnah) e mais ou menos triviais pelas quais a prática de um indivíduo se orienta habitualmente.

Trata-se, lá, de uma reflexão ética; aqui, de uma reflexão de natureza moral — embora ainda num sentido restrito. Porque o resultado dessa reflexão sempre permanece preso à perspectiva pessoal de um determinado indivíduo. Minha perspectiva é determinada por minha compreensão de mim; e, conforme a maneira de como gostaria de viver, uma postura indolente para com manobras de engodo pode também ser aceitável se os outros portam-se da mesma forma em situações comparáveis, tornando-me ocasionalmente vítima de suas manipulações. Mesmo Hobbes conhece a "regra de ouro" segundo a qual uma máxima como esta poderia eventualmente ser justificada. Para ele, é uma "lei natural" que cada um conceda também aos outros os direitos que exige para si. De um teste de universalização levado a efeito de maneira egocêntrica não se segue ainda que uma máxima seja aceita por todos como fio de prumo moral de seu agir. Essa conclusão seria correta apenas se a minha fosse a fortiori congruente com a de todos os outros. Aquilo que de minha perspectiva é igualmente bom para todos residiria de fato no interesse igual de todos apenas se minha identidade e meu projeto de vida refletissem uma forma de vida universalmente válida.







O imperativo categórico, segundo o qual uma máxima é justa apenas se todos podem querer que ela seja seguida por cada um em situações comparáveis, é o primeiro a romper com o egocentrismo da "regra de ouro" ("Não faças a ninguém aquilo que não queres que te façam"). Cada um "tem de" (muss) poder querer que a máxima de nossa ação se torne uma lei universal. Apenas uma máxima capaz de universalização a partir da perspectiva de todos os envolvidos vale como uma norma que pode encontrar assentimento universal e, nesta medida, merece reconhecimento, ou seja, é moralmente impositiva. A questão "Que devo fazer?" é respondida moralmente com referência àquilo que se deve fazer (was man tun soll). Mandamentos, morais (moralische Gebote) são imperativos categóricos ou incondicionados que exprimem normas válidas ou fazem implicitamente referência a elas. Apenas o sentido imperativo desses mandamentos pode ser entendido como um "dever" (Sollen) que não é dependente nem de fins ou preferências subjetivos, nem da meta, para mim absoluta, de uma vida boa, uma vida de êxito ou não-malograda. Em contrapartida, o que se "deve" (soll) fazer ou o que se "tem de" (muss) fazer possui aqui o sentido de que é justo e, portanto, de que é dever (Pflicht) agir desta maneira.



II

Portanto, dependendo de como o problema se põe, a questão "Que devo fazer?" ganha um significado pragmático, ético ou moral. Em todos os casos se trata da fundamentação de decisões entre possibilidades alternativas de ação; as tarefas pragmáticas, porém, exigem um tipo de ação diferente das éticas e morais; as questões que lhe são correspondentes exigem um tipo de resposta diferente das respostas éticas e morais. A ponderação das metas orientada para valores e a ponderação dos meios disponíveis mediante a racionalidade de fins servem à decisão racional sobre como temos de intervir no mundo objetivo para provocar um estado desejado. Neste caso, trata-se essencialmente da elucidação de questões empíricas e de questões de escolha racional. O terminus ad quem de um discurso pragmático correspondente é a recomendação de uma tecnologia adequada ou de um programa exeqüível. Outra coisa é a preparação racional de uma decisão de valor grave que afeta a orientação de toda uma prática de vida. Neste caso, trata-se de uma elucidação hermenêutica da compreensão de si de um indivíduo e da questão clínica do êxito ou não de minha vida. O terminus ad quem de um discurso ético-existencial correspondente é um conselho para a orientação correta na vida, para a realização de um modo pessoal de vida. Uma outra coisa é, por sua vez, o julgamento moral de ações e máximas. Ele serve à elucidação de expectativas legítimas de comportamento em face de conflitos interpessoais que atrapalham o convívio regulado de interesses antagônicos. Neste caso, trata-se da fundamentação e da aplicação de normas que estabelecem deveres e direitos recíprocos. O terminus ad quem de um discurso prático-moral correspondente é uma compreensão sobre a solução justa de um conflito no âmbito do agir regulado por normas.

... dependendo de como o problema se põe, a questão "Que devo fazer?" ganha um significado pragmático, ético ou moral. (...) as questões que lhe são correspondentes exigem um tipo de resposta diferente das respostas éticas e morais.

O uso pragmático, ético e moral da razão prática tende, portanto, a indicações técnicas e estratégicas de ação, a conselhos clínicos e a juízos morais.

Chamamos de razão prática à capacidade (Vennögen) de fundamentar imperativos onde se modifique, conforme a referência à ação ou o tipo de decisões a serem tomadas, não apenas o sentido ilocutório do "ter de" (müssen) ou do "dever" (Sollen), mas também o conceito de vontade, que deve poder ser determinada a cada momento por imperativos fundamentados racionalmente. O "dever" (Sollen) das recomendações pragmáticas, relativizado nos fins e valores subjetivos, está voltado para o "arbítrio" (Willkür) de um sujeito que toma decisões prudentes com base nos posicionamentos e preferências, dos quais parte de maneira contingente: a capacidade de escolha racional não se estende aos próprios interesses e orientações de valor, mas os pressupõe como dados. O "dever" (Sollen) dos conselhos clínicos, relativizado no télos da vida boa, endereça-se ao esforço de auto-realização, portanto, á vontade do indivíduo que se decide por uma vida autêntica: a capacidade (Fähigkeit) de decisão existencial ou de auto-escolha radical opera sempre no âmbito de um horizonte da história de vida, a partir de cujos traços o indivíduo pode aprender quem ele é e quem gostaria de ser. Por fim, o "dever" (Sollen) categórico de mandamentos morais é direcionado para a vontade — em sentido enfático — livre de uma pessoa que age segundo leis que ela mesma se dá (nach selbstgegebenen Gesetzen): apenas esta vontade é autônoma no sentido de que se deixa determinar inteiramente pelo conhecimento moral. No âmbito de validade da lei moral, nem as disposições contingentes, nem a história de vida e a identidade pessoal põem limites à determinação da vontade pela razão prática. Apenas a vontade conduzida pelo conhecimento moral e inteiramente racional pode chamar-se autônoma. Nela, todos os traços heteronômicos do arbítrio ou da vontade são apagados numa vida única e, ainda assim, autêntica. Na verdade, Kant confundiu a vontade autônoma com a vontade onipotente: para poder pensá-la como uma vontade pura e simplesmente soberana, ele teve de transpô-la ao reino do inteligível. Todavia, no mundo tal como o conhecemos, a vontade autônoma alcança eficácia apenas na medida em que a força de motivação dos fundamentos bons pode afirmar-se contra o poder de outros motivos. É assim que, na linguagem realista do dia-a-dia (em alemão), chamamos a vontade informada corretamente, mas fraca, de vontade "boa".

Em resumo, a razão prática volta-se para o arbítrio do sujeito que age segundo a racionalidade de fins, para a força de decisão do sujeito que se realiza autenticamente ou para a vontade livre do sujeito capaz de juízos morais, conforme seja usada sob os aspectos do adequado a fins, do bom ou do justo. Com isso, alteram-se a cada momento a constelação entre razão e vontade, e o próprio conceito de razão prática. Com o sentido da questão "Que devo fazer?", não é apenas o receptor — a vontade do agente que busca uma resposta — que muda seu status, mas também o emissor - a própria capacidade (Vermögen) de reflexão prática. Para Kant, razão prática e moralidade coincidem; apenas na autonomia, razão e vontade são uma só. Para o empirismo, a razão prática resume-se a seu uso pragmático; com as palavras de Kant, ela reduz-se à utilização da atividade do entendimento segundo a racionalidade de fins. Na tradição aristotélica, a razão prática assume o papel de uma faculdade de julgar que esclarece o horizonte da história de vida de um etos que se tornou costumeiro. Em cada caso, atribui-se um desempenho diferente à razão prática. Isso se mostra nos diversos discursos em que ela se move.

... a razão prática volta-se para o arbítrio do sujeito que age segundo a racionalidade de fins, para a força de decisão do sujeito que se realiza autenticamente ou para a vontade livre do sujeito capaz de juízos morais...



III

Discursos pragmáticos, nos quais fundamentamos recomendações técnicas e estratégicas, têm uma certa afinidade com discursos empíricos. Eles servem para referir saber empírico às fixações de fim e às preferências hipotéticas, e valorar as conseqüências de decisões (informadas de modo incompleto) segundo máximas postas como fundamento. Recomendações técnicas ou estratégicas tiram sua validade do saber empírico no qual se apoiam. Sua validade é independente de se um receptor decide adotar as indicações para a ação. Discursos pragmáticos referem-se a contextos possíveis de aplicação. Eles estão em contato com a formação fática de vontade dos agentes apenas mediante suas fixações de fim e de suas preferências subjetivas. Não há nenhuma relação interna entre razão e vontade. Nos discursos ético-existenciais, essa constelação se modifica de maneira que as fundamentações constituam um motivo racional para a mudança de posicionamento.







Nos processos de compreensão de si, os papéis dos participantes do discurso e dos agentes entrecruzam-se. Quem quiser obter clareza sobre sua vida como um todo, quem quiser fundamentar decisões de valor grave e assegurar-se de sua identidade, não pode deixar-se substituir no discurso ético-existencial -nem enquanto pessoa de referência (Bezugsperson), nem enquanto instância comprobatória. Não obstante, trata-se de um discurso, pois também aqui os passos da argumentação não podem ser idiossincráticos, mas têm de permanecer exeqüíveis intersubjetivamente. O indivíduo só ganha distância reflexiva em relação à própria história de vida no horizonte de formas de vida que ele partilha com outros, e que formam, por sua vez, o contexto para os projetos de vida diferentes de cada um. Os integrantes de um mundo vivido em comum são participantes potenciais que assumem o papel catalisador do crítico desinteressado nos processos de compreensão de si. Esse papel pode ser distinguido no papel terapêutico de um analista, tão logo um saber clínico universalizável entre em jogo. Certamente, esse mesmo saber clínico só se forma em tais discursos.

A compreensão de si refere-se a um contexto específico da história de vida e leva a asserções valorativas sobre o que é bom para uma determinada pessoa. Tais valorações, que se apoiam na reconstrução de uma história de vida da qual ao mesmo tempo se tomou consciência e apropriou, têm um status semântico próprio. Pois "reconstrução" não significa apenas a apreensão descritiva de um processo de formação mediante o qual alguém se tornou aquilo que constata; ela significa, ao mesmo tempo, um exame crítico e uma ordenação reorganizadora dos elementos apreendidos, de sorte que o próprio passado (surge), à luz das possibilidades atuais da ação, como história de formação da pessoa que gostaria de ser e permanecer no futuro e, como tal, ser aceita. A figura do "projeto pro-jetado" (geworfener Entwurf) do pensamento existencialista ilumina o caráter de Jano daquelas valorações fortes que são fundamentadas pela via de uma apropriação crítica da própria história de vida. Aqui, gênese e validação já não se deixam separar uma da outra como nas recomendações técnicas e estratégicas. Quando conheço o que é bom para mim, já me aproprio também, de certa maneira, do conselho - este é o sentido de uma decisão consciente. Quando me convenço da justeza de um conselho clínico, também já me decido a uma reorientação aconselhada de minha vida. Por outro lado, minha identidade só é condescendente, e mesmo indefesa, diante da pressão reflexiva de uma compreensão de si modificada, se esta obedece aos mesmos critérios de autenticidade que o próprio discurso ético-existencial. Um tal discurso pressupõe já, por parte do receptor, o esforço por uma vida autêntica — ou a pressão sofrida por um paciente que percebe a "doença de morte" (Krankheit zum Tode). Nesta medida, o discurso ético-existencial permanece dependente do télos prévio de um modo de vida consciente.



IV

Nos discursos ético-existenciais, razão e vontade determinam-se mutuamente, de modo que permanecem inseridas no contexto que se toma tema deles. Nos processos de compreensão de si, os envolvidos não podem desprender-se da história ou da forma de vida nas quais se encontram faticamente. Discursos prático-morais exigem, ao contrário, o rompimento com todas as evidências (Selbstverständlichkeiten) da moralidade concreta tornada costumeira, como também o distanciamento em relação àqueles contextos de vida aos quais a própria identidade está indissoluvelmente ligada. A intersubjetividade de um grau mais alto (die höherstufige Intersubjektivität), que conjuga a perspectiva de cada um com a perspectiva de todos, pode constituir-se apenas sob os pressupostos comunicativos de um discurso ampliado universalmente, no qual todos os possivelmente envolvidos possam participar e tomar posição com argumentos numa postura hipotética em vista das pretensões à validade (tornadas problemáticas a cada momento) de normas e modos de ação. Esse ponto de vista da imparcialidade solapa a subjetividade da perspectiva própria de cada participante, sem perder o vínculo com o posicionamento pré-formativo dos mesmos. A objetividade de um assim chamado observador ideal obstruiria o acesso ao saber intuitivo do mundo vivido. O discurso prático-moral representa a ampliação ideal de nossa comunidade de comunicação a partir da perspectiva interior. Diante desse fórum, só podem encontrar assentimento fundamentado aquelas sugestões de norma que expressam um interesse comum de todos os envolvidos. Nesta medida, as normas fundamentadas discursivamente fazem valer a um só tempo duas coisas: o conhecimento daquilo que a cada momento reside no interesse geral de todos e, também, uma vontade geral que apreendeu em si sem repressão a vontade de todos. Neste sentido, a vontade determinada por fundamentos morais não permanece exterior à razão argumentativa; a vontade autônoma é completamente interiorizada na razão.

Nos discursos ético-existenciais, razão e vontade determinam-se mutuamente, de modo que permanecem inseridas no contexto que se torna tema deles.







Por isso, Kant acreditava que a razão prática volta inteiramente a si mesma e coincide com a moralidade apenas enquanto instância examinadora de normas. A interpretação teórico-discursiva (diskurstheoretisch) que demos ao imperativo categórico deixa reconhecer, no entanto, a unilateralidade dessa teoria que se concentra unicamente em questões de fundamentação. O problema de como normas fundamentadas dessa maneira podem em geral ser aplicadas torna-se mais agudo assim que as fundamentações morais apoiem-se num princípio de universalidade que constrange os participantes do discurso a examinar as normas discutíveis, separadamente das situações e sem consideração dos motivos subjacentes ou das instituições existentes. Tais normas devem sua universalidade abstrata à circunstância em que são aprovadas no teste de generalização apenas numa figura descontextualizada. Nesta versão abstrata, porém, as normas válidas só podem encontrar aplicação sem restrições naquelas situações padrões, cujos sinais já foram observados de antemão enquanto condições de aplicação dos componentes "se" (Wenn-Komponenten)) da regra. Ora, toda fundamentação de norma tem de operar sob as limitações normais de um espírito finito; portanto, ela não pode a fortiori tomar já explicitamente em consideração todos aqueles sinais que caracterizam as constelações do caso particular imprevisto. Por esse motivo, a aplicação da norma exige uma elucidação argumentativa de seu próprio direito. Neste caso, a imparcialidade do juízo não pode, por sua vez, ser assegurada mediante um princípio de universalização; em questões da aplicação "sensível ao contexto" (kontextsensibel), a razão prática tem, ao contrário, de ser validada por um princípio de adequação. Isto é, tem-se de mostrar aqui, à luz de todos os sinais relevantes da situação, apreendidos de forma a mais completa, qual das normas já pressupostas como válidas é a mais adequada a um caso dado.

Como os discursos de fundamentação, os discursos de aplicação permanecem, decerto, uma operação puramente cognitiva e não oferecem, por isso, nenhuma compensação à separação do juízo moral em relação aos motivos do agir. Mandamentos morais são válidos independentemente de se o receptor despende a força para fazer o que foi reputado como correto (das Für-Richtig-Gehaltene). A autonomia de sua vontade se mede certamente pelo fato de que se pode agir a partir do conhecimento moral; mas conhecimentos morais não provocam já um agir autônomo. A pretensão à validade que ligamos às proposições normativas tem certamente a força de um dever (verpflichtende Kraft). Dever (Pflicht) é, segundo a terminologia kantiana, a afecção da vontade pela pretensão à validade de mandamentos morais. Que os fundamentos que apoiam uma tal pretensão à validade não sejam ineficazes, isso se mostra na má consciência que nos atormenta quando agimos contrariamente a um saber mais abalizado. Sentimentos de culpa são um indicador palpável do não-cumprimento do dever. Mas neles se exprime apenas que sabemos que não temos melhores fundamentos para agir de maneira diferente. Sentimentos de culpa indicam uma cisão da vontade.



V

A vontade empírica cindida da vontade autônoma desempenha um papel digno de nota na dinâmica de nossos processos de aprendizado moral. Porque a cisão da vontade só é um sintoma de fraqueza da vontade se as exigências morais, contra as quais a vontade choca, são de fato legítimas e "cabíveis" (zumutbar) sob condições dadas. Na revolta de uma vontade discordante revelam-se muito freqüentemente, como sabemos, a integridade ferida da dignidade humana, a recusa de reconhecimento, o interesse negligenciado, a diferença negada. Visto que os fundamentos de uma moral tornada autônoma têm uma pretensão análoga à do conhecimento (erkenntnisanalog), a validação e a gênese separam-se de novo aqui, como no discurso pragmático. Assim, por trás da fachada de uma validação categórica, pode-se ocultar e abrigar um mero interesse capaz de impor-se. Essa fachada deixa-se construir tanto mais facilmente, uma vez que a correção dos mandamentos morais, ao contrário da verdade de recomendações técnicas ou estratégicas, não está numa relação contingente para com a vontade do receptor, mas a obriga racionalmente. Para quebrar as correntes de uma universalidade falsa, meramente presumida, de princípios universalistas criados seletivamente e aplicados de maneira sensível ao contexto (kontextsensibel angewendet), sempre se precisou, e se precisa até hoje, de movimentos sociais e de lutas políticas no sentido de aprender das experiências dolorosas e dos sofrimentos irreparáveis dos humilhados e ultrajados, dos feridos e dos mortos, que ninguém pode ser excluído em nome do universalismo moral — nem as classes subprivilegiadas, nem as nações exploradas, nem as mulheres tornadas domésticas (die domestizierten Frauen), nem as minorias marginalizadas. Quem exclui o outro, que lhe permanece um estranho, em nome do universalismo, trai sua própria idéia. O universalismo do respeito igual em relação a todos e da solidariedade com tudo o que tenha o semblante humano se comprova apenas na libertação radical de histórias individuais e de formas particulares de vida.

... Kant acreditava que a razão prática volta inteiramente a si mesma e coincide com a moralidade apenas enquanto instância examinadora de normas.

Essa reflexão ultrapassa já os limites da formação de vontade individual. Até agora investigamos o uso pragmático, ético e moral da razão prática, tendo como fio condutor a questão tradicional: "Que devo fazer eu?". Ora, quando o horizonte da questão se desloca da primeira pessoa do singular para a primeira do plural, modifica-se mais que o fórum da reflexão. A formação de vontade individual segue já, segundo sua idéia, uma argumentação publica que se realiza in foro interno1 . Não se trata de uma mudança de perspectiva da interioridade do pensamento monológico para o espaço público do discurso, mas de uma alteração na posição do problema: o que altera é o papel no qual o outro sujeito se encontra.

Com certeza, o discurso prático-moral desvincula-se da perspectiva à qual as reflexões pragmáticas e éticas ainda estão presas. Todavia, também para a razão que examina normas, o outro só surge como oponente numa argumentação "ao nível da representação" (in einer vorgestellten Argumentation). Assim que o outro apareça como um oposto (Gegenüber) com vontade própria, insubstituível, põem-se novos problemas. Naturalmente, também a formação de vontade individual está sob restrições contingentes; mas das condições de formação de vontade coletiva faz parte, sobretudo, a realidade da vontade alheia.

Dessa circunstância da pluralidade dos agentes e da condição de dupla contingência sob a qual a realidade de uma vontade coincide com a realidade da outra, resulta o problema da busca conjunta de metas coletivas, e o problema já conhecido da regulamentação da vida em comum põe-se de uma nova maneira sob a pressão da complexidade social. Quando o interesse próprio tem de ser posto em harmonia com o alheio, os discursos pragmáticos apontam a necessidade de compromissos. Nos discursos ético-políticos, trata-se da elucidação da identidade coletiva, que tem de deixar espaço para a multiplicidade de projetos individuais de vida. Nos discursos prático-morais, tem-se de examinar não apenas a validade e a adequação dos mandamentos morais, mas examinar também se são cabíveis (deren Zumutbarkeit). Com a implementação de metas e programas põem-se, enfim, questões da transferência e da utilização neutra do poder.







O direito racional moderno reagiu a esses modos de pôr o problema. Naturalmente, falta-lhe a natureza intersubjetiva de uma formação de vontade coletiva, a qual não pode ser representada como uma formação de vontade individual em formato ampliado. Temos de abrir mão das premissas da filosofia do sujeito (subjektphilosophisch) do direito racional. Com o problema da compreensão entre as partes cujas vontades e interesses se chocam, as operações da razão prática executadas in mente2 deslocam-se para o plano dos procedimentos e dos pressupostos comunicativos dos discursos e discussões que são levados realmente a termo.

A partir deste ponto de vista da teoria comunicativa (kommunikatiom-theoretische Sicht), deveríamos também encontrar uma resposta para a pergunta que há muito se põe por nossa análise até aqui. Podemos falar ainda da razão prática no singular, depois que ela foi desagregada em formas diversas de argumentação sob os aspectos do adequado a fins, do bom e do justo? É certo que todos esses argumentos referem-se à vontade de agentes possíveis; mas vimos que também os conceitos de vontade modificam-se com o tipo das perguntas e respostas. A unidade da razão prática já não se deixa fundamentar sem restrições na unidade da argumentação em geral, isto é, no procedimento da argumentação. Ou seja: não há um metadiscurso ao qual pudéssemos recuar para fundamentar a escolha entre formas diversas de argumentação. Não fica, então, à discrição de cada indivíduo ou, na melhor das hipóteses, à sua faculdade de julgar, a escolha se gostaria de apreender e tratar um dado problema sob o ponto de vista do adequado a fins, do bom ou do justo? O recurso a uma faculdade de julgar que examina se os problemas são de natureza estética ou econômica, teórica ou prática, ética ou moral, política ou jurídica, tem de ser insatisfatório para todo aquele que, como Kant, possui bons fundamentos para deixar de lado o conceito aristotélico não-claro da faculdade de julgar. Além disso, não se trata, neste ultimo, de uma faculdade de julgar reflexionante, que refere casos a regras, mas de uma aptidão para a classificação de problemas.

Tal como Peirce e o pragmatismo enfatizaram com justeza, os problemas têm sempre algo de objetivo; somos confrontados com problemas que vêm ao nosso encontro. Esses mesmos problemas têm uma força definidora de situação (eine situationsdefinierende Kraft) e requerem, por assim dizer, nosso espírito segundo a própria lógica deles. Não obstante, se a cada instante seguissem sua própria lógica, que não teria nenhum contato com a lógica do problema seguinte, toda nova espécie de problema puxaria nosso espírito numa outra direção. A razão prática, que encontrasse sua unidade no ponto cego de uma tal faculdade de julgar reativa, permaneceria uma formação (Gebilde) opaca, apenas explicável fenomenologicamente.

A unidade da razão prática pode fazer-se valer, de maneira inequívoca, apenas no contexto interno daquelas formas comunicativas nas quais as condições de formação racional da vontade coletiva tomam figura objetiva.





Jürgen Habermas é filósofo do Instituto de Pesquisa Social, em Frankfurt (Alemanha), e conferencista do mês de outubro, 1989 do IEA.
* Texto apresentado na Conferência do Mês (IEA/USP): "Zum pragmatischen, ethischen und moralise hen Gebrauch der praktischen Vernunft", realizada em outubro de 1989.
1 Assim no original. (N .T.)
2 Assim no original. (N.T.)Texto publicado no Scielo. Clique aqui para fazer citação.

'É preciso rever regras regulatórias da advocacia'

 


Por Marcos de Vasconcellos



Com 798 advogados, o JBM é o maior escritório do Brasil em quantidade de profissionais do Direito. Até o fim de 2012, eram 737, mas o crescimento da banca, que lida apenas com advocacia de massa, exigiu mais. No entanto, não foi a quantidade de trabalhadores que a fez atingir o faturamento de R$ 110 milhões ao ano. Foi a tecnologia.

Os sistemas e métodos são tão importantes para a atuação do JBM no mercado que, no meio deste ano, o escritório se dividiu, colocando advogados de um lado e a turma da tecnologia de outro. Nascia a empresa Finch Soluções. O novo negócio começou com 550 colaboradores em 27 filiais, e levou consigo a expertise em dados que o JBM coletou nos seus cinco anos de vida e nos 18 mil processos que recebe mensalmente — ao todo, hoje são conduzidos cerca de 320 mil.

A Finch presta serviços para o próprio JBM, para clientes do escritório e para outras bancas de advocacia. Seu faturamento anual chega a R$ 45 milhões, para alegria do advogado José Edgard Bueno. Maestro a reger essas duas orquestras ao lado do sócio Reinaldo Mandaliti — na Finch, entram outros dois sócios —, Bueno não gosta de gravatas, prefere jeans a ternos e usa constantemente o termo “indústria do Direito”. De propósito. Ele quer quebrar o tabu em torno da chamada “mercantilização da advocacia”, expressão que provoca arrepios aos advogados por causa de restrições da OAB.

O medo de a profissão mercantilizada levar ao aviltamento de honorários só serviu para que não houvesse regras adequadas ao mercado, e os honorários caíram ainda assim, diz Bueno. Para ele, é hora de a profissão se livrar de preconceitos e interesses e se reinventar — ou se rediscutir. Regras rígidas demais levaram ao engessamento, opina.

Entre os clientes do escritório estão Itaú, Bradesco, CPFL, Elektro, Unilever, Electrolux, Vivo e CSN, com demandas de Direito do Consumidor e, em alguns casos, do Trabalho. Na carteira da Finch também estão alguns dos grandes, como Itaú, Rodobens e Banco Safra.

A empresa de tecnologia também oferece soluções como jurimetria, ou seja, projetar possibilidades jurídicas para seus clientes a partir dos dados já coletados de suas contendas na Justiça, ou de outros concorrentes. A partir das medições, vem o trabalho jurídico — aí pelo JBM —, de propor que em uma comarca sejam forçados mais acordos, ou que em outra as brigas sejam levadas adiante.

José Edgard Bueno bate na tecla de que a Ordem dos Advogados do Brasil deveria repensar os moldes da regulamentação da advocacia. Pensar em regras especificamente para escritórios grandes, outras para médios, para pequenos e para os advogados que atuam sozinhos.

As normas para contratação de advogados também o incomodam. Para ele, advogado que não é sócio só poderia ser celetista. “Quem não contrata por CLT faz concorrência desleal”, reclama. O regime de associado, diz ele, é uma aberração. “Como pode a OAB recomendar uma forma de contratação que a Justiça não aceita?”

Bueno recebeu a revista Consultor Jurídico na última segunda-feira (30/9) em seu escritório na Avenida Faria Lima, na capital paulista — uma das 26 filiais do JBM. Sem gravata.

Leia a entrevista:

ConJur — Tem havido muitas cisões em escritórios. A Ordem dos Advogados do Brasil está preocupada em fortalecer sua câmara arbitral, para que os rachas sejam resolvidos entre advogados. O JBM tem experimentado essas situações?
José Edgard Bueno — Cisão de sócio é praticamente inexistente para a gente, porque o nosso mercado é sui generis. Para entrar, precisa ter uma estrutura muito grande ou ir para outro lugar que já tenha uma estrutura razoável, para levar clientes e ter o investimento necessário para isso. Uma parte do serviço da advocacia aqui não depende só do know how do advogado, como no mercado tradicional. Aqui, a estrutura é um fator decisivo. O cliente compra também a tecnologia envolvida por trás do negócio. E isso não sai do dia para noite.

ConJur — O JBM nasceu com seis sócios, agora são só dois. O que motivou a saída dos outros quatro?
José Edgard Bueno — Eles montaram um escritório em Ribeirão Preto (SP). Queriam advogar, fazer um escritório menor. E estão indo super bem. Acho que eles sentiram que era o momento de montar a butique deles. Porque aqui, a sociedade é quase como que uma estrutura de empresa.

ConJur — O escritório se dividiu em duas organizações, uma ficando com a advocacia e outra com a tecnologia. Como foi isso?
José Edgard Bueno — Essa é uma história de tentativas e erros. Tínhamos advogados e sistema, e achávamos que o sistema resolveria todos os problemas do advogado e que com ambos conseguiríamos fazer a prestação do serviço final. Isso funcionou durante um período, mas, no fundo, a gente começou a perceber que não é só isso. Não adianta nada ter um sistema de prateleira, nem mesmo desenvolver um próprio, como é o nosso caso. Ele, em si, não resolve. O que vai resolver é conhecer o negócio, a estrutura do mercado jurídico, o seu cliente e aplicar esse conhecimento ao seu sistema. Aí é onde você começa a desenvolver alguns aplicativos, é o que eu chamo da tecnologia. Identificamos que tínhamos essa tecnologia e notamos que ela tem um valor no mercado. Vimos que não era um serviço de advogado, não fazia sentido ficar dentro do escritório. Então criamos uma empresa específica para isso, a Finch Soluções, que faz essa gestão da minha tecnologia. No fundo é o que a literatura chama de BPO - Business Process Outsourcing.

ConJur — E passaram a prestar serviços para si mesmos?
José Edgard Bueno — Toda tecnologia que eu aplicava para mim mesmo tinha um valor. Começamos a prestar serviços para os clientes do escritório e, depois, para outros escritórios de advocacia.

ConJur — Que tipos de produtos vocês oferecem?
José Edgard Bueno — Para clientes, por exemplo, um produto muito interessante é o que a gente chama de jurimetria. O JBM é um grande laboratório, com informações de processos tramitando no Brasil inteiro. O volume de informações que circulam no nosso sistema interno é brutal. São 15 mil audiências por mês, 160 mil diligências. Entram, por mês, uma média de 18 mil processos. Isso me dá uma base de dados incrível a respeito do sistema judiciário. A gente começou a ligar os pontos, descobrir que uma empresa teria mais problemas com um tipo de ação em um local específico. Conectando várias informações de fontes diferentes, formamos uma informação final para o cliente. Criamos um negócio e alguns produtos em cima disso. Um deles é informar ao cliente que há um processo contra ele em D+2, ou seja, dois dias depois de entrarem com a ação, muito antes de ele ser citado. Isso tem um valor para ele que é incomensurável, porque ele vai ser citado, em média, só cinquenta e poucos dias depois. Então, ele tem quase dois meses de informação antecipada para tomar uma série de atitudes.

ConJur — Ele já prepara a defesa?
José Edgard Bueno — Aí entra o conhecimento do negócio. Eu falo que tem essa ação no interior do Maranhão, por exemplo. Ele vai chegar no SAC dele, vai ter essa informação antecipada, terá um prazo razoável para preparar uma boa defesa, pegar as informações e tudo o mais.

ConJur — E a parte de jurimetria?
José Edgard Bueno — É um tipo de informação de serviço que damos ao cliente com base nesses dados todos que temos na nossa base, podendo desenhar tendências. Hoje eu tenho condições de verificar na comarca “x” ou na comarca “y” qual vai ser a decisão do juiz em determinada matéria, daquele juiz, daquela comarca especifica, com aquela empresa ou com aquele tipo de problema. Conseguimos até identificar diferenciações entre empresas. Porque o juiz também reage conforme a postura que a empresa adota perante o Judiciário.

ConJur — É possível identificar o tratamento diferente para uma ou outra empresa?
José Edgard Bueno — Tem cliente nosso, do qual obviamente não vou citar o nome, que adotou uma política agressiva de acordos perante o Judiciário. Ele comprava esse produto nosso para saber a informação antes, para ter tempo de ver o que era caso de acordo e o que não era. Ele chegou a uma postura tão sofisticada que não contestava a ação. Ele chegava no Judiciário com a postura de falar: “Olha, eu errei, juiz. Mas não devo essa quantia toda que este senhor está pedindo, mas sim o que está aqui, conforme esse laudo. Em vez dos 10 pedidos, estou disposto a pagar 5”.

ConJur — E os juízes passaram a aceitar as propostas?
José Edgard Bueno — A reação natural do juiz em uma situação como essa é forçar, obviamente, a parte contrária a fazer um acordo. Quando não há acordo, o juiz começou a condenar a empresa naquele valor que ela reconhecia como correto, e não no valor pedido. Diminuiu, então, brutalmente o índice de condenação daquele cliente. O subproduto disso foi que, naqueles casos em que o cliente não reconhecia o pedido, não chegava com essa postura agressiva de fazer acordo, o juiz começou a ler a argumentação da empresa. Não entrou mais no automático. Porque a gente sabe como é que funciona. O Judiciário, quando tem milhares de ações, vai mais ou menos automático. É muito difícil parar para ler, até pelo volume. Em um segundo momento, passou a diminuir o número de condenações. Isso começou lá atrás, quando ele passou a saber dos processos com antecedência e soube tratar essa informação.

ConJur — A Finch já nasceu grande, com R$ 45 milhões em faturamento anualizado. Como isso foi possível?
José Edgard Bueno — É porque eu transferi todos os ativos, transferi contratos e deixei no JBM só os advogados. A Finch me presta serviço de tudo. Toda contabilidade, faturamento, tudo aquilo que exige a expertise de escritório de advocacia a gente faz na Finch também. O JBM é um cliente da Finch.

ConJur — Tem havido uma grita de advogados contra os leilões reversos, onde clientes chamam diversos escritórios para um serviço e ficam com aquele que oferece o menor preço. Vocês são contrários a essa prática?
José Edgard Bueno — É impossível interferir em regras de mercado. Ou temos um mercado livre ou temos um mercado regulado. O que nós queremos ser? Nós queremos ter uma reserva de mercado onde o advogado estabelece o preço do produto tabelado? Esse não é o espírito da nossa lei. A nossa Constituição não é assim. Estamos em uma sociedade capitalista e isso faz parte. Precisamos rever nossas regras regulatórias, o que permitiria enfrentar uma situação como essa. Hoje só acontece isso porque o mercado está absolutamente pulverizado na oferta de serviços. Tem uma oferta brutal de escritórios e serviços, e uma demanda que não é suficiente. A regra aplicada é a de Adam Smith. Só acontece isso porque tem uma oferta muito grande. Como se enfrenta isso? Revendo-se algumas regras que engessam a nossa profissão e, especificamente, facilitando a fusão e os possíveis formatos de um escritório, de uma sociedade de advogados, em formato de empresa. Se houvesse essa possibilidade, o mercado se autorregularia para chegar a um nível de consolidação do mercado de prestação de serviço para se ter grandes players.

ConJur — A OAB bloqueia as fusões entre escritórios?
José Edgard Bueno — Não é que ela bloqueia. As regras são tão rígidas para viabilizar uma fusão que, na prática, elas inviabilizam. Eu não posso ser sócio de um outro escritório na mesma subseção em que eu tenho inscrição. É um absurdo. Na prática, eu não posso fazer uma fusão com o escritório aqui do lado, na Avenida Faria Lima. Porque a OAB diz que só pode sociedade entre advogados pessoas físicas, a minha sociedade não pode ser sócia de uma outra sociedade, como duas pessoas jurídicas. Isso facilitaria e muito as fusões entre escritórios e, de repente, oxigenaria um pouco nosso mercado de advocacia. O Estatuto da Advocacia cumpriu o seu papel, só que agora está na hora de começar a rever isso.

ConJur — Existe abertura para mudar?
José Edgard Bueno — É preciso acabar com alguns mitos no Brasil. Primeiro, em lugar nenhum do mundo acabaram com o que lá fora se chama sole practitioners, os advogados que atuam sozinhos. Isso não acaba. Vai sempre existir mercado para eles. Também não acho que exista uma tendência única predeterminada em que se vai ter só escritório grande ou só escritório médio. O que é preciso é ter regra para cada um desses mercados, como na Inglaterra. Você não pode ter uma regra única que abarque todos os tipos de advocacia que existem. É preciso entender como funciona o mercado para escritórios pequenos, médios e grandes e montar estratégias para regular cada um desses mercados. Só tem que tomar cuidado para não fazer uma quantidade de regras que engesse a profissão.

ConJur — Por que não se discute isso?
José Edgard Bueno — Primeiro, o advogado não é treinado para discutir isso. Na faculdade, o sujeito é treinado para dizer o que pode e o que não pode fazer, para consultar em cima de um arcabouço legal e dizer. Em nenhum momento se fala de cliente. Na OAB, outro problema, são dezenas de comissões, mas nenhuma fala da essência do mercado, que se chama "cliente". Ele é o driver do processo de mudança da nossa indústria. O que ele quer determina para onde você vai. A estratégia que vai ser adotada daqui a cinco ou dez anos na nossa profissão depende daquilo que o cliente necessita.

ConJur — Como é que o JBM, com cinco anos, cresceu tanto?
José Edgard Bueno — É um bebê que já nasceu com uns quilinhos a mais, pois quando deixamos o Demarest e Almeida, foi uma saída acordada, não uma cisão. Eles não queriam mais operação de massa e nós assumimos as ações. Mas nós somos jovens, então tem muito mar para remar ainda, queremos crescer, mudar, andar para frente...

ConJur — O medo de mercantilizar a advocacia impede o crescimento do mercado no Brasil?
José Edgard Bueno — Impede. É uma discussão que não vai levar a nada. Só leva a essa situação em que nós estamos, em que um diz que é mercantilizar e outro que não é. É um termo um pouco genérico. Se você somar o faturamento dos 6 ou 7 maiores escritórios do Brasil, você chega a uma cifra de R$ 1 bilhão por ano. Isso não é uma profissão mercantilizada? O termo é inapropriado, pois tem uma origem histórica, uma razão de ser. Nós aprendemos lá na faculdade que tinha que separar entre o comerciante e o advogado. O advogado não tem preço, ele recebe honorários, pois é uma honra para o cliente ele prestar o serviço. Isso não funciona mais nos dias de hoje. Basta ver as grandes bancas do mundo. A OAB está começando a se preparar para isso. Ela é uma organização conservadora, é normal que seja. Mas já consigo ver alguns movimentos. Acho que está se amadurecendo a discussão para uma linha de que a mercantilização da profissão não pode ser mais o termo que define para onde a indústria deve ir ou não. Eu uso muito o termo indústria, porque, de fato, isso tem que ser encarado como segmento do mercado.

ConJur — Dizem que a mercantilização levará à queda do valor dos honorários, mas eles já vêm caindo, não?
José Edgard Bueno — Já caiu, da pior forma que poderia acontecer: nós não temos uma regra adequada para o mercado. O mercado força uma determinada situação e você se vê quase que na obrigação de aceitar, porque não tem opção a não ser trabalhar naquela linha estabelecida. Não foi a regra que conseguiu impedir que isso acontecesse.

ConJur — No JBM, os advogados são contratados por CLT?
José Edgard Bueno — Sim. Aliás, essa é uma situação que precisa ser urgentemente revista pela OAB, pelo órgãos de classe e pelas autoridades: são pouquíssimos escritórios que têm os advogados registrados em CLT. A OAB estabelece o regime de associado ou de sócio por cota de serviço. O sócio por cota de serviço tem sido aceito pela jurisprudência e não tem muito problema. Já o regime de associado, que a grande maioria dos escritórios pratica, a jurisprudência não tem aceito. Quando o advogado entra com ação trabalhista, o vinculo é reconhecido. A maior parte do mercado trabalha com associados, muitos não têm nem qualquer tipo de regime. Isso precisa ser revisto, porque, de um lado, não dá proteção para o advogado e, por outro, estabelece uma concorrência desleal.

ConJur — Concorrência desleal entre escritórios?
José Edgard Bueno — Em uma tomada de preço, uma banca que não tem todo mundo registrado tem naturalmente uma vantagem competitiva sobre um escritório com os encargos que a CLT impõe. A consequência prática disso é que o preço daquela vai ser melhor para aquele potencial cliente. Na nossa profissão, grande parte da estrutura de custos é mão de obra, isso é uma grande desvantagem. Isso não pode ficar assim. Chegamos ao absurdo de ter uma regra estabelecida pela OAB — o advogado associado —, que não é aceita pelo Judiciário.

ConJur — Como é a remuneração no JBM?
José Edgard Bueno — Os advogados são celetistas, eu tenho um acordo com o sindicato e estabeleço alguns benefícios como vale-transporte, vale-refeição, PLR, que é um plano de distribuição dos lucros também registrado junto ao sindicato, com regras específicas e critérios de apuração em cima de metas.

ConJur — Quais são essas metas?
José Edgard Bueno — Quem estabelece as metas são os clientes, que falam, por exemplo: “A minha meta é encerrar x processos”. Nós transmitimos essas metas aos advogados daquela carteira. Hoje, os escritórios são medidos. Nós não colocamos punições, por exemplo, para quem não cumprir a meta, mas oferecemos bônus para quem cumpre. Muitos clientes estabelecem um bônus financeiro na gestão do seu contrato.

ConJur — Quanto é o salário do advogado que chega?
José Edgard Bueno — A gente estabelece o piso com o sindicato de cada local em que temos filiais. Aí entra um plano de cargos e salários que vai aumentando em cima daquela regra pré estabelecida com o sindicato.

ConJur — O CNJ está cumprindo seu papel de melhorar o sistema judiciário?
José Edgard Bueno — Eu acho que sim, mas deveria ser mais enfático nessa função de harmonizar o sistema em termos de prestação jurisdicional. No fundo, o Judiciário é um prestador de serviço. Um dos problemas que enfrentamos é o "captcha" [código de letras e números exigido por alguns tribunais para acessar os processos eletronicamente]. É uma restrição de acesso a informação que os tribunais colocam quando se tem grandes volumes de acesso. Isso inviabiliza a consulta em grande volume de processo, como nós fazemos. Quem mais acessa a informação do Judiciário não é o cidadão, não é o seu cliente. O seu cliente nem sabe como fazer isso. A gente pensa em, no momento oportuno, no ano que vem, levar algumas contribuições para o CNJ no sentido de pensar o Judiciário de uma forma de prestação de serviço e pensar a estratégia de como chegar lá. A OAB deveria estar bastante mais preocupada em olhar qual é o Judiciário que nós vamos ter daqui a três ou cinco anos.

ConJur — Que barreiras tecnológicas a Justiça precisa superar?
José Edgard Bueno — O sonho da minha vida é ter um sistema único do Judiciário nacional. Cada estado tem um sistema na Justiça comum. Na Justiça Federal tem outro sistema, mas que também varia de acordo com a Região. Quem está mais avançado nessa organização de dados é a Justiça do Trabalho. Tem também uma experiência extremamente positiva, que é o sistema Projud, que está tentando se implementar para pequenas causas, que é o sistema de processo eletrônico judicial. Todos os atos são praticados eletronicamente, o advogado é intimado a cada acesso ao sistema. É uma evolução brutal, excelente. Mas tem muita resistência ainda em se elevar a isso a um nível nacional. Esse sistema deveria ser um grande banco de dados, uma grande plataforma.

ConJur — Seria bom para os advogados?
José Edgard Bueno — Essa plataforma deveria servir não só aos advogados, mas sobretudo ao cidadão. Ele precisa ter acesso sem ter nenhum intermediário. Já temos tecnologia para isso. A Receita Federal hoje está em um nível de sofisticação que, em dois anos, será ela quem fará sua declaração de Imposto de Renda, você só vai homologar. Precisaria menos do que isso para você controlar os processos judiciais que tramitam no país inteiro.

ConJur — Vocês usam seguro de responsabilidade civil?
José Edgard Bueno — Usamos. Clientes têm exigido. Alguns clientes exigem para eles individualmente, independentemente da apólice que a gente tem para o escritório como um todo. Tem que ter, mesmo para escritório de massa, onde o tíquete médio é pequeno. A possibilidade de perder um processo e ter falha não vai afetar tanto. Mas serve muito mais para se proteger de uma grande falha, que às vezes acontece. Já usamos uma vez o seguro, em uma questão trabalhista, que cometemos um erro no recolhimento.

ConJur — Você acha que o escritório de massa tem espaço na mediação ou na arbitragem?
José Edgard Bueno — Na arbitragem eu precisaria pensar, mas tem. O problema é que os árbitros vão querer cuidar de grandes questões, eles não vão querer cuidar do "varejão". Na mediação eu vejo uma avenida enorme, uma grande possibilidade e uma enorme oportunidade. Porque, ao contrário do que pensam, para o escritório que faz contencioso de massa ter processo em carteira não é lucrativo nem interessante. É a mesma coisa que ter estoque, é preciso tratar aquele estoque e tem um custo para tratar esse negócio. Quanto mais rápido se processar uma determinada demanda judicial, mais interessante e mais lucrativo. Aí é onde se insere a mediação. Numa situação em que o processo entra, a gente dá essas informações para o cliente, presta o serviço rápido, chega em uma câmara mediadora e faz o acordo. Rapidamente o conflito se resolve. Isso é o melhor dos mundos. A rapidez do processo é muito mais interessante.

ConJur — Trabalhando em advocacia de massa, seus processos se resolvem mais em primeira instância ou sobem aos tribunais?
José Edgard Bueno — Depende da política do cliente. Hoje em dia, existe uma tendência muito grande de fazer acordos e não ficar levando os processos para segunda instância ou para o STJ, ou para o STF. Não faz sentido, primeiro, por uma questão de imagem institucional. Tem também um custo de gestão interna dos processos.

ConJur — Tem havido um grande crescimento do número de butiques. Advogados decidiram ter escritórios para atender a uma pequena quantidade de clientes “porque a quantidade não está valendo a pena”. Como vale para vocês?
José Edgard Bueno — Tecnologia. A tecnologia aplicada ao nosso sistema faz com que o custo seja interessante, competitivo. A minha competição já começa com uma desvantagem, porque eu registro todos os advogados. Segundo, nós temos controle de tudo. Chegamos a um nível de sofisticação de prever o que vamos ter daqui a dois ou três meses em termos de alteração em determinada linha de custo. Terceiro, o mercado de massa é um mercado cujas margens de lucro são mais apertadas, mas nós convivemos bem com isso. Eu não me incomodo em ter uma margem pequena, é o nosso business.

ConJur — Você concorda que as teses do Direito estão no fim ou estão se esgotando, que hoje em dia o trabalho do advogado é mais uma pesquisa do que já foi feito do que uma busca por uma nova resposta?
José Edgard Bueno — Concordo totalmente. A época das teses acabou. Seja na área trabalhista, seja no Direito Tributário, seja na área do consumidor. Hoje em dia estamos caminhando para a discussão de fatos. O que não deixa de ser uma evolução na lida da advocacia com o sistema, pois nos sistemas mais evoluídos não se discute grandes teses, mas fatos. Como é a aplicação daquela situação concreta dentro daquele remédio que se procura dar. E a grande discussão hoje vai ser qual a escala em que aquilo se aplica. Estamos passando da fase das teses para a recorrência de fatos e, então, uma aplicação do remédio comum àquela recorrência de fatos. É para isso que o Judiciário vai ter que se aparelhar.

ConJur — O mercado mostra certa resistência em relação ao tamanho e ao crescimento rápido do JBM?
José Edgard Bueno — Eu sinto uma resistência, uma parte por ser novo, uma parte por falar coisas que incomodam. A gente tem que fomentar um pouco o debate. Há um tempo fiz um artigo sobre oxigenação na advocacia. O discurso na nossa comunidade é o mesmo. Eu vejo as mesmas coisas sendo ditas desde a época que eu era estagiário. Se bobear, são as mesmas pessoas falando. Mas o que mais me incomoda são as pessoas novas falando o mesmo discurso do século XX. Não tem antagonismo, e precisa ter a discussão, o debate. Os que têm voz aqui nunca foram na Índia ver o que está sendo feito em matéria de prestação de serviço jurídico para os Estados Unidos e para a Inglaterra. Não viram quanto dos serviços dos escritórios de advocacia são feitos offshore. Ninguém discute isso. E já estamos em um segundo momento, num movimento de internalizar de volta para os Estados Unidos.

ConJur — Isso na advocacia?
José Edgard Bueno — Na advocacia. Olha como nós estamos atrasados: já houve o movimento de off shore, em que vários serviços que eram prestados pelos grandes escritórios do mundo, serviços que não exigiam uma expertise grande, que eram rotinas e procedimentos, faziam discovery dos processos, que é a verificação dos processos judiciais no modelo anglo-saxão. Que era você verificar as provas, fazer a gestão das provas, estágio e documentos, o que você tem que levar para parte contrária, preparar os depoimentos. Isso tudo era feito a "custo hora" nos escritórios de advocacia e os clientes começaram a falar: “Não. Isso aqui eu não pago. Não faz sentido eu pagar hora para isso.” O que os caras quiseram fazer? Mandaram isso para a Índia fazer. Na Índia, os advogados fazem isso. Então todo esse processo, uma parte do serviço, que não é aquele serviço que realmente exige uma expertise grande, foram colocados para empresas BPO jurídico na Índia. Eu estou falando de 10 anos atrás. Nunca se falou disso no Brasil. Agora, já há uma rediscussão sobre a volta dessas tarefas para dentro dos EUA.

ConJur — Nos Estados Unidos se discute a criação do profissional técnico da advocacia, que não teria formação universitária. Parte dos serviços de advocacia poderia ser feita por um profissional que não é advogado?
José Edgard Bueno — Totalmente. Claro que depende do tipo de serviço e do tipo de escritório que você é. Se a banca é contratada por uma expertise específica, uma butique, não faz sentido. Agora, a grande parte do serviço que é feita nos grandes escritórios de advocacia e em escritórios de massa como o nosso pode ser processada por uma outra empresa ou por pessoas que não são advogados. Tanto que a gente criou a Finch em cima disso. Nos Estados Unidos, percebeu-se isso e criou-se esse tipo de função, que é o técnico da advocacia, mas é um técnico que não precisa ter formação em Direito para exercer a profissão. Aqui, a OAB de São Paulo tentou falar disso uma época, mas levou muita bordoada. Eu achei uma boa iniciativa. Faz a economia girar. Tem um monte de gente que não faz o serviço propriamente jurídico, serviria até para alocar um bacharel em Direito que está começando a vida, pode ser uma fase no desenvolvimento da carreira.


Marcos de Vasconcellos é chefe de redação da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 6 de outubro de 2013

sábado, 5 de outubro de 2013

A Constituição e o Caos -


 Por Boaventura de Souza Santos
artigo publicado em 22/08/2013

Foto: Renjith Krishnan

Às vezes pergunto-me por que tenho dedicado tanto trabalho ao estudo dos tribunais nos últimos quarenta anos. Tenho estudado os tribunais não só em Portugal como em outros países e, no projeto que atualmente realizo, financiado pelo European Resarch Council, coordeno uma equipa de investigação internacional dedicada, entre outros temas, ao estudo do que designo por “constitucionalismo transformador”, a ocorrência em vários países de uma nova visibilidade e centralidade da legalidade constitucional, quer por via da promulgação de novas Constituições, quer por via do recurso aos tribunais constitucionais ou com funções constitucionais em situações consideradas decisivas para a sobrevivência ou para a qualidade da democracia.



Em retrospecto, o meu interesse pelos tribunais decorreu de uma perplexidade criativa sobre o papel dos tribunais na consolidação ou, pelo contrário, na fragilização da democracia numa época em que a utopia de uma sociedade socialista ia sendo substituída pela ideia de um “capitalismo democrático”: a consagração constitucional de um vasto conjunto de direitos sociais e econômicos capaz de garantir à maioria da população uma medida de bem-estar suficientemente significativa para mostrar que a democracia não era um governo das elites, exercido pelas elites para benefício exclusivo das elites.



Esta garantia dependia da efetividade do direito e dos direitos e esta, em última instância, dos tribunais encarregados de a fazer valer. Estariam os 2 tribunais à altura do encargo? Que indicações se poderiam retirar da história jurídica e judicial moderna? Para mim, o instigante destas perguntas residia numa intuição teórica e numa condição contextual. A intuição teórica dizia-me serem simplistas as duas respostas que então dominavam o campo da sociologia jurídica sobre o papel dos tribunais nas sociedades contemporâneas. Uma era que, sendo essas sociedades capitalistas, os tribunais acabariam sempre por decidir a favor das classes dominantes; a outra era que a independência dos tribunais não nos permitia pôr sequer em causa a vontade e a capacidade dos tribunais para garantirem a efetividade dos direitos, mesmo contra os interesses dominantes.



Nem uma determinação nem outra me pareciam convincentes. Daí o interesse em analisar o desempenho concreto dos tribunais em diferentes contextos. E o contexto português era particularmente desafiador. Por um lado, Portugal acabava de sair de 48 anos de ditadura em que um punhado de famílias oligárquicas, benzidas por uma Igreja católica conservadora, mantivera ao seu serviço, não apenas um ditador (que ora servia ora mandava para melhor servir), mas também um aparelho de Estado excludente e autoritário de que os tribunais tinham sido um apêndice apagado (apenas brilhando no zelo do tribunal plenário ao julgar os opositores políticos). Por outro lado, por um breve período (o Verão quente de 1975), Portugal convertera o momento luminoso da Revolução de Abril na anunciação de um projecto socialista que levou a sociedade a uma polarização sem precedentes. A despolarização só foi possível, em 25 de Novembro de 1975, mediante um acordo que, não só garantiu a continuidade e a plena legalidade do partido que mais fortemente advogara a sociedade socialista (PCP), como propôs uma Constituição avançada assente num modelo de coesão social pautado por um conjunto robusto de direitos sociais e econômicos (Constituição de 1976). O impulso socializante era então tão forte que o “capitalismo democrático” que se começava a construir foi designado durante uns anos como socialismo e as forças políticas de direita (hoje no poder), como socialistas.



Ninguém de boa fé pode pôr em causa os benefícios que o modelo de coesão social então definido nos trouxe. Hoje, apostado em concretizar a maior transferência de riqueza de que há memória no Portugal moderno – das maiorias empobrecidadas para uma pequena minoria nunca tão rica como hoje – o governo quer pôr fim a esse modelo, mesmo sabendo que daí pode resultar o caos. A Constituição que temos defendeu-nos até agora do caos. Para nos continuar a defender tem, ela própria, de ser defendida.



Boaventura de Souza Santos

Fonte CES - AL

Celebremos os 25 anos da Constituição Federal!

 


Por Gilmar Mendes




Neste sábado, dia 5 de outubro, nossa Constituição Federal celebra bodas de prata. Se refletíssemos mais sobre a história constitucional do Brasil, haveríamos de valorizar nosso texto constitucional com a ênfase devida, não apenas por atributos óbvios como longevidade, robustez, abrangência, mas também por sua evidente significância para a bem-sucedida reorganização sociopolítica do País. Registre-se que essa data quase coincide com outra efeméride marcante do constitucionalismo mundial, a promulgação da Constituição austríaca de 1º de outubro de 1920, que trouxe contribuições importantes para o desenvolvimento do Estado Constitucional, como, v.g., a positivação da jurisdição constitucional, obra na qual teve participação marcante o gênio de Kelsen.

O que pode parecer mero truísmo para nações cujo arcabouço constitucional foi consolidado ao longo de séculos, a nós se afigura conquista sem precedentes. Hoje, não mais nos sobressalta qualquer temor sobre a estabilidade de nossas instituições, e a democracia consolidou-se como um valor em si mesmo. Há três décadas, um céu de dúvidas e de receios toldava nossos horizontes, dificultando projetos, atrapalhando avanços, bloqueando investimentos.

Desde o nascedouro, a Constituição de 1988 se diferencia por ser também produto de movimentos sociais generalizados e intensos, gestados, sob incômoda pressão ditatorial, ao longo de duas décadas. Daí o colorido libertário, a ênfase nas liberdades individuais, nos indefectíveis direitos fundamentais. Nada obstante, é de ressaltar o que a mim parece ser o maior mérito dessa Constituinte: o concerto político que catalisou a reivindicação popular para assentar as bases da construção democrática na Carta de 1988, como um casamento de valores e instituições democráticas[1].

Não é demais ressaltar que tal ênfase em uma agenda social, estampada no texto constitucional que hoje se celebra, é a constitucionalização do que Peter Häberle chama de “desejos de utopia”. Daí o surgimento de organizações sociais envolvidas criticamente na realização dos valores proclamados solenemente no texto constitucional, militando para a verdadeira obtenção destas esperanças normatizadas[2] Eventuais críticas quanto ao detalhamento do texto constitucional sucumbem diante da certeza de que a extensa proclamação de direitos pela Carta estimulou movimentos de representação da sociedade.

Ao discorrer sobre a continuidade do poder constituinte originário, Zagrebelsky, enfatiza que “as constituições do nosso tempo miram o futuro, mantendo-se firmes ao passado, ou seja, ao patrimônio da experiência histórico-constitucional que queiram preservar e enriquecer. Passado e futuro ligam-se a uma única linha e, como os valores do passado orientam a busca do futuro, assim também as exigências do futuro obrigam a uma contínua pontualização do patrimônio constitucional que vem do passado e a uma constante redefinição dos princípios de convivência constitucional”.[3] Por aqui, as reformas mais significativas foram por certo impulsionadas pelo motor da história e vieram, destarte, a reboque das transformações naturais de um povo que continua almejando alcançar os atributos naturais decorrentes da própria soberania. Um povo que deseja evoluir, mas não deixando para trás sua principal conquista: a democracia.

Fato incontestável é que a Constituição de 1988 tem demonstrado força normativa capaz de regular, com folga, situações extremas — e em ambiente de acentuada tensão. É de lembrar, por exemplo, que a Constituição regulou de forma plena e sem sobressaltos processo de impeachment sofrido por Presidente da República — e mal se iniciava o período democrático, aquelas haviam sido as primeiras eleições livres em trinta anos! —; a hiperinflação que aniquilava qualquer planejamento econômico e prejudicava sobretudo os mais pobres; além de crises econômicas internacionais e gravíssimos escândalos de corrupção.

Foi, sim, a crença na Constituição, a determinação da sociedade em orientar a própria conduta de acordo com a ordem legalmente estabelecida que pôs fim à transitividade. Enfim, o cidadão brasileiro entendeu que o caminho para a concretização de direitos teria – e tem! – de ser o processo democrático. Nossa Constituição Federal garante os pressupostos para que essa democracia plena seja atingida, sem a necessidade de deflagração de arranjos constitucionais inéditos para sua realização.

Em síntese, neste quarto de século, não houve perturbação externa ou crise interna, qualquer mínimo ou máximo percalço institucional que não tenha sido resolvido à luz das balizas normativas vigentes. Destaquemos reformas de peso como a da Previdência e da Administração, bem como a verdadeira revolução sem armas que foi o Plano Real, para afirmar com tranquilidade o sucesso de nossos marcos institucionais.

A pavimentação dessa normalidade institucional deve-se ao empenho do Constituinte de estabelecer parâmetros legais compatíveis com a realidade brasileira. Outro aspecto muito positivo foi o alargamento da estrutura de Poder — agora poliárquica — que, ao incluir o Ministério Público e prestigiar a atuação da imprensa, por exemplo, ampliou os canais representativos da cidadania. De outra parte, a extensa proclamação de direitos estimulou a participação de variados segmentos da sociedade em busca da materialização das promessas constitucionais, num bem-vindo círculo virtuoso que até hoje se retroalimenta e continua a nos fazer avançar. As reformas constitucionais, muitas delas extremamente relevantes, têm sido implementadas pela via das Emendas Constitucionais, sem apelo a qualquer fórmula aventureira.

Nesses 25 anos, bem testados os institutos políticos, o Estado de Direito tem se mostrado cada vez mais fortalecido, dando respaldo à realização dos compromissos assumidos à vista do mais amplo catálogo de direitos fundamentais existente no mundo, cuja efetividade vem sendo garantida constitucionalmente mediante mecanismos judiciais consistentes, a exemplo do controle de omissão legislativa.

Aliás, como órgão responsável pela higidez do texto constitucional, o Supremo tem atendido a essa missão de forma arrojada, assumindo coerentemente a responsabilidade de aplicar a Constituição de maneira a tornar concretos os direitos e garantias fundamentais constitucionalizados em 1988.

A Corte também vem se colocando em situação de vanguarda ao enfrentar com intrepidez o desafio de dirimir controvérsias que ainda dividem tribunais longevos, por versarem sobre temas ultrassensíveis, como o uso de células-troncos ou o aborto de anencéfalos. Quando se moderniza, favorecendo a transparência e o acesso dos jurisdicionados, ou quando franqueia a palavra à sociedade — como acontece nas audiências públicas e nos casos da colaboração voluntária dos amici curiae — o Supremo acentua o viés pedagógico inerente à jurisdição constitucional, sinalizando, ademais, que a interpretação e aplicação da Carta são tarefas cometidas a todos os Poderes, bem como a qualquer cidadão.

Daí por que se afirma que a Constituição é construção diária, um “projeto” (Entwurf) em contínuo desenvolvimento, cujo maior desafio vem a ser a rápida e definitiva incorporação dos direitos fundamentais ao patrimônio jurídico dos cidadãos. Por outro lado, engana-se quem aposta no concerto democrático como fim em si mesmo. Em última análise, mais relevante há de ser o exercício diário e consciente da cidadania — símbolo da aliança que mantém a Constituição. Nesse trajeto, temos dado sobejas provas de maturidade. A Constituição de 1988 forjou-se sob a força simbólica do recomeço. Vinte e cinco anos depois de promulgada, os dividendos econômicos e políticos da segurança institucional advinda com a Carta são de fato inquestionáveis.

É preciso dar continuidade a esse projeto sem concessões a concepções aventureiras ou a propostas miríficas, como constituintes exclusivas ou não, que poderão comprometer, definitivamente, o capital institucional acumulado com muito sacrifício. Devemos dizer sim às inovações e aos experimentos institucionais que buscam responder às complexidades de uma sociedade submetida a empreitadas de risco e um claro não a propostas de aventuras lastreadas em misto de despreparo e motivações políticas de curto prazo.
*Adaptação de artigo originalmente publicado na Revista Consulex, edição 401, em 1º de outubro de 2013.
[1] A análise e a reconstrução histórica da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988 é tema de grupo de pesquisa por mim coordenado, junto com os Profs. Rodrigo Mudrovitsch e Paulo Paiva, no Instituto Brasiliense de Direito Público. Para informações: http://www.idp.edu.br/pesquisa-academica/grupos-de-pesquisa/rhc
[2] HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Trad. Hector Fix-Fierro, México D.F: Universidad Autônoma de México; 2001, p. 7.
[3] ZAGREBELSKY, Gustavo. História y Constituición, p. 91.



Gilmar Mendes é ministro do Supremo Tribunal Federal.

Revista Consultor Jurídico, 5 de outubro de 2013

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