quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

“É temerário demonizar a prática de função pública”

Ministra Cármen Lúcia, presidente do Tribunal Superior Eleitoral TSE [Elza Fiuza, Agência Brasil]Em nome do equilíbrio, seria melhor que não houvesse reeleição no Brasil. Ou ao menos que o candidato se afastasse do cargo para a disputa. O rigor das regras que amordaçam os veículos de comunicação em períodos eleitorais deve ser repensado. Afinal, como o eleitor pode escolher bem seus candidatos se não souber tudo a seu respeito?
Essas são algumas das considerações da presidente do Tribunal Superior Eleitoral e integrante do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia. Em entrevista à revista Consultor Jurídico, concedida em seu gabinete na Presidência do TSE, a ministra mostrou a convicção de que há bons exemplos de políticos que ainda usam seus mandatos em favor do interesse público. E disse ter receio da demonização da política e da prática de função pública de maneira geral.
“Eu temo que os jovens não tenham interesse pela política. Porque a política é a opção à guerra. Ou nós praticamos a política de maneira ética, séria, responsável para que as coisas andem, ou então as pessoas de bem que ainda hoje se dedicam à política, a cargos públicos, daqui a pouco não vão mais querer. E esse é um dado muito grave”, afirma.
No comando das eleições municipais de 2012, que foram as mais baratas e tiveram a apuração mais rápida da história democrática brasileira — clique aqui para ler texto sobre o tema —, a ministra percorreu quase 20 estados do país e garante ter encontrado um eleitor que questiona, contesta e busca saber sobre a vida daqueles que irão administrar suas cidades.
Na entrevista, a ministra também abordou os questionamentos que se fazem das regras que coíbem o trabalho da imprensa durante o período eleitoral: “O rigor da lei não pode ser confundido com censura”. Falou, ainda, sobre reeleição, financiamento de campanhas políticas e controle de contas partidárias.
Leia a entrevista:
ConJur — Depois das eleições, é comum ver eleitores criticarem violentamente as pessoas que eles mesmos escolheram. O eleitor está bem informado? Ele participa? Qual a avaliação da senhora sobre as últimas eleições municipais?Cármen Lúcia — Há dois dados importantes. O primeiro que chama a atenção é a circunstância de que nós estamos de fato em um movimento de crescimento de cidadania e de consolidação da democracia no que se refere à representação popular. Nas últimas eleições, o cidadão brasileiro se preocupou muito em saber o que era a chamada Lei da Ficha Limpa, quais suas consequências. Ele procurou efetivamente a central de atendimento ao cidadão da Justiça Eleitoral. Mesmo quando a escolha recai sobre candidatos com pendências e que acabam afastados, ou têm o registro indeferido e não ficam nos cargos, o eleitor questiona quem é, por que é, por que aconteceu isso. O eleitor, hoje, procura informação. Por exemplo, recebemos cartas de eleitores querendo saber por que alguém foi eleito como o mais votado e, ainda assim, foi afastado. E não são poucos os questionamentos. É claro, estamos falando de eleição municipal. Então, o eleitor é muito mais convocado porque é a vida dele em jogo. A vida se passa ali, na cidade, porque ele sabe da rua que não está asfaltada, da escola... Ninguém mata por causa de um presidente da República, mas briga e vai às vias de fato por conta de um vereador. Eu levo em consideração esse dado. Mas, mesmo assim, a participação foi efetiva. Há um crescimento da vontade do eleitor brasileiro de participar, o que melhora a qualidade da cidadania.
ConJur — E o segundo dado?Cármen Lúcia — A segunda avaliação é que o Judiciário Eleitoral é muito mais presente. A Justiça Eleitoral é a única que não espera que o cidadão a procure. Parafraseando Milton Nascimento, “o juiz vai até onde o povo está”. Nós temos de falar com o cidadão independentemente de ele nos procurar, temos de chamá-lo. O juiz conversa sobre a possibilidade de ser mesário voluntário, por exemplo. E nós administramos as eleições, ao contrário do que acontece em outros países em que há o contencioso em um órgão e a administração fora do Judiciário. Aqui, nós administramos as eleições e exercemos a função jurisdicional.
ConJur — E isso é bom?Cármen Lúcia — Sim. O resultado, ano menos, é impressionante. As eleições municipais tiveram quase 500 mil candidatos. O período para o registro eleitoral termina no dia 5 de julho, que é o dia que a maioria faz o registro. E nós tivemos um movimento grevista intenso em alguns estados, justamente em 5 de julho. Em São Paulo, que é o maior colégio eleitoral, grevistas fecharam até as ruas onde está situado o cartório eleitoral. Houve um movimento intenso, muito trabalho dos tribunais regionais eleitorais, para não prejudicar os registros. Mas, às 19 horas, quem tinha de ser registrado estava registrado e nós não precisamos adiar nem um minuto o prazo.
ConJur — Quantas decisões foram tomadas pelo TSE nas eleições de 2012?Cármen Lúcia — Em relação às eleições de 2012, nós produzimos mais de quatro mil decisões e chegaram mais de cinco mil recursos. Na maioria dos recursos que ainda estão pendentes já houve ao menos uma decisão. Tivemos, portanto, 93% dos casos que chegaram ao TSE já decididos. É o índice mais alto que já tivemos até hoje antes da diplomação. E houve quase 100 pedidos de liminares só entre os dias 20 de dezembro e 4 de janeiro. E eu proferi 72 decisões em oito dias úteis.
ConJur — A senhora citou a Lei da Ficha Limpa. Ao mesmo tempo em que o sistema democrático impõe que a vontade do eleitor prevaleça, cria-se a Lei da Ficha Limpa, que, de certa forma, substitui a vontade do eleitor. Não é contraditório?Cármen Lúcia — Não. A Constituição estabelece que as condições de elegibilidade sejam definidas por lei. Restrições à candidatura existem desde sempre. Em Roma, na Antiguidade, quem quisesse representar o povo tinha que se apresentar em praça pública trajando apenas uma veste, espécie de tanga, deixando à mostra a maior parte do corpo. E essa veste era branca, cândida. Ele tinha que deixar à mostra o máximo do corpo para demonstrar que ele tinha condições físicas de exercer a representação, e a veste era branca com um símbolo de que ele tinha condições morais, que não havia manchas. A veste passou a se chamar cândida. Daí vem a palavra candidato. Portanto, sempre houve a ideia de que quem pode representar é aquele que possa trajar uma veste cândida a simbolizar exatamente a sua condição moral. A lei vem não para substituir o eleitor, mas para impedir que o eleitor seja fraudado na sua vontade. A vontade tem que ser legítima.
ConJur — Mas o representante não é a projeção do representado?Cármen Lúcia — Sim. Mas o cidadão pode se ver atraído sem o pleno conhecimento sobre o candidato. Essa é a grande mudança de que eu falava. Hoje, se busca saber em quem se vota, a história, as propostas mesmo. De qualquer forma, a construção da cidadania não se dá do dia para a noite. O que se percebe é que povo brasileiro não suporta mais corrupção, esse é o fato. Em qualquer lugar é possível ver a reação contra a corrupção. Todas as formas de ilegalidade são insuportáveis, agora não significa que o cidadão já disponha de meios para ter pleno conhecimento dessa situação. Por isso, a lei.
ConJur — Quando a Lei da Ficha Limpa foi aprovada, houve um período em que não se sabia se ela seria ou não aplicada às eleições de 2010. O Supremo definiu que não, mas depois das eleições. E aí se verificou que houve oito milhões de votos em candidatos que seriam barrados pela lei, enquanto o projeto de iniciativa popular teve pouco menos de dois milhões de assinaturas. A vontade de oito milhões de pessoas não vale mais do que a de dois milhões?Cármen Lúcia — É preciso pensar que a assinatura de um projeto é um ato de exercício de cidadania. A pessoa tem de conhecer o projeto, saber o que está assinando, qual o efeito da lei se aprovada, oferecer o título de eleitor, que depois é checado. Isso espalhado em pelo menos cinco estados do Brasil. A dificuldade é muito maior porque esse cidadão que assina o projeto não tem o conhecimento de um nome em quem ele vai votar. O ato demanda mais trabalho. Por isso, acho que quase dois milhões de assinaturas têm uma significação diferente. Não é fácil, tanto que a iniciativa popular está na Constituição desde 1988 e até hoje só dois projetos nesses moldes foram aprovados. E dois casos eleitorais. O outro foi o artigo 41-A, sobre compra de votos.
ConJur — Vigora no país a liberdade de expressão. Mas a legislação eleitoral não me permite expressar opinião sobre um candidato que eu considero melhor que outro. Isso não é censura?Cármen Lúcia — Eu sou a favor de se repensar isso. O que se alega para impedir que cada órgão de imprensa possa se manifestar livremente sobre a sua escolha é que isso poderia orientar indevidamente os cidadãos. Mas o conceito que se tem de imprensa, a própria imprensa, está em plena mutação com as redes sociais e outros meios de informação. Nós estamos assistindo a uma mudança muito grande no acesso à informação, na filtragem da informação e na legitimidade da informação. Por isso, acho que esse é um ponto que em pouco tempo será repensado no Brasil e discutido com a sociedade.
ConJur — O dever do jornalista é informar. Mas se eu sei que determinado candidato construiu sua carreira em cima de falcatruas ou de ilusão de ótica e decidir informar isso ao leitor, serei condenado. Mesmo que eu aja dentro do mais estrito interesse público, sem adjetivos, somente mostrando como ele construiu a carreira. Como equacionar isso?Cármen Lúcia — Nós caminhamos para que a liberdade de imprensa seja exatamente a informação de que o cidadão precisa para cada vez mais amadurecer democraticamente. A questão posta é o jornalista informar algo que não interessa a alguém que seja de conhecimento público. Transmitir a informação para o público de maneira séria e responsável não é falar mal ou contra alguém. É descrever o fato para que ele seja de conhecimento e avaliação de cada cidadão. O rigor da lei não pode ser confundido com censura. Os Estados Unidos, por exemplo, são a democracia que em grande parte influenciou pelo menos parte do constitucionalismo brasileiro. E sempre entregaram à imprensa o direito de ela não apenas se manifestar, mas tomar posições a favor ou contra, independentemente de ser porque há alguma ilegalidade. Porque, se houver ilegalidades na vida de alguém, eu não vejo como cercear a imprensa. Os modelos que foram adotados em democracias não estão aí para serem copiados, mas para serem pensados e escolhidos pelo povo brasileiro. Esse assunto está na ordem do dia.
ConJur — A internet desafia a competência territorial da Justiça Eleitoral? A partir de uma desavença local, no caso de eleições municipais, o juiz pode determinar a suspensão de um site nacionalmente?Cármen Lúcia — A competência e o dever do juiz é julgar a situação daquele candidato. A jurisdição é local, embora a decisão possa ter essa repercussão fora dos limites do município. O juiz pode determinar a retirada da ofensa e sua decisão extrapolar limites territoriais, porque virtualmente esse limite não existe.
ConJur — As resoluções do TSE não criam muitas restrições à propaganda política?Cármen Lúcia — As resoluções do Tribunal Superior Eleitoral apenas regulamentam aquilo que está previsto em lei, não inovam o ordenamento jurídico. A partir do que a lei estabelece, as resoluções pormenorizam, minudenciam as proibições que já existem e vêm das regras fixadas pelo Congresso Nacional.
ConJur — Há críticas de que há tutela demais em cima de propagandas. Houve recentemente a discussão no TSE em relação ao uso do Twitter. Isso não atrapalha o surgimento de novos nomes, novas lideranças políticas que não têm acesso ao dinheiro de campanha?Cármen Lúcia — Acho que o que acontece é o contrário. As proibições existem para que todos fiquem em um determinado patamar, em um determinado limite, e democracia aprende-se praticando. Temos, portanto, as regras no Estado de Direito para que essa prática se dê com vertentes de igualdade. Liberar seria como jogar na água o nadador profissional e uma pessoa que nunca nadou, e acreditar que o instinto de sobrevivência fará ambos se saírem bem.
ConJur — Três meses de campanha eleitoral são suficientes para que o eleitor conheça a proposta dos candidatos?Cármen Lúcia — São. Cada vez mais o cidadão há de procurar e encontrar, com tantos meios à disposição dele, tudo aquilo que precisa saber sobre o candidato no qual ele pretende votar. E também porque é necessário considerar que, especialmente nas disputas de cargos do Poder Executivo, um período de campanha maior poderia comprometer a administração em detrimento da prestação de serviços públicos. Não é pouco lembrar que nós temos reeleição e, portanto, um candidato à reeleição no Executivo fica cheio de limites, tem de tomar uma série de cuidados.
ConJur — Mas, na prática, já não há campanha muito antes disso? Mesmo com as proibições, há a crítica de que as multas impostas pela Justiça Eleitoral são irrisórias nos casos de propaganda antecipada.Cármen Lúcia — O papel didático da Justiça Eleitoral é importantíssimo. Em 2012, eu viajei a quase 20 estados antes das eleições e verifiquei o papel didático para os candidatos e para os eleitores. Os eleitores reclamam e houve quem reclamasse exatamente que a pessoa que não cumpre a legislação eleitoral não vai cumprir as leis depois, não vai cumprir a sua palavra. O papel da Justiça Eleitoral é definidor dessa mudança de comportamento. Continua acontecendo? Sim, ilegalidades continuam acontecendo e é para isso que existe o Ministério Público e o Judiciário, para coibir as más práticas.
ConJur — Isso não se resolveria se fosse exigido o afastamento do candidato à reeleição?Cármen Lúcia — O afastamento geraria a isenção para que o próprio candidato tivesse mais largueza, mais tranquilidade na sua atuação e o eleitor ficasse a salvo de questionamentos. Já houve casos de candidatos que se afastaram espontaneamente exatamente por isso.
ConJur — A senhora é favorável à reeleição?Cármen Lúcia — Eu preferiria que não houvesse reeleição. Não que eu ache que alguém que esteja fazendo um trabalho não possa continuar fazendo. O eleitor tem reconduzido muitos administradores. Em primeiro turno, muitos foram reeleitos prefeitos de cidades do interior e de capitais. Mas a principal razão alegada para a reeleição é que quatro anos é pouco. Mas, logo mais, o mandato de oito anos será pouco. Sempre acho que a transitoriedade é uma das características da República e era melhor que fosse assim. Antes era de cinco anos o mandato, sem possibilidade de reeleição. Essa é uma boa opção. Mas isso tem de ser discutido no Congresso e a escolha do legislador será cumprida. Mas consideraria cinco anos sem reeleição uma boa escolha.
ConJur — O fato de o Brasil ter 30 partidos políticos atrapalha ou ajuda a democracia?Cármen Lúcia — Temos partidos demais e precisamos fazer a seguinte separação: há partidos políticos, previstos na Constituição, e há legendas partidárias que não têm toda a construção que é a de um partido político. Porque o partido é uma experiência que vai fazendo uma história, criando uma cultura, que traz votos, que passa pelo processo eleitoral e aí ganha a sua estrutura interna e representação legítima a partir desse processo. A criação de partidos, ou seja, a oferta de legendas não me parece suficiente para dizer que nós temos 30 agremiações com representação na forma prevista constitucionalmente. O que me causa preocupação é que, com esse quadro, há de haver partidos registrados no tribunal que, no entanto, são apenas configurações, legendas, e não tem esse respaldo da legitimidade popular. Nesse caso, atrapalha porque na hora de se fazer a conta de tempo de televisão, de propaganda, eles vão entrar e, se não forem pessoas muito sérias, teremos uma porta aberta grave para composições que não são republicanas, o que é inadmissível.
ConJur — A senhora é a favor das atuais regras de financiamento de campanhas?Cármen Lúcia — Nós precisamos colocar em discussão de maneira séria a questão de financiamento. Em primeiro lugar, para afastar algumas ilusões. O financiamento pode ser feito por particular e tem uma parte que é o financiamento público de fundos partidários, e que não é pequeno. Existe o tempo de televisão que é público, que é caro. Nós temos, portanto, que afastar a ideia de que aqui no Brasil praticamente nós não temos financiamento público das campanhas, ao lado do privado.
ConJur — E o financiamento por empresas?Cármen Lúcia — O financiamento precisa ter uma ligação direta com a escolha daquele que é o doador da campanha. Qual a razão de ser do financiamento por empresas? A empresa não é eleitora, não vota. Obviamente, os empresários têm interesses, mas eles podem atuar como cidadãos. Fato é que a questão do financiamento precisa ser pensada em uma ligação direta com a figura do doador, pela singela razão de que ao lado do financiamento há outro dado que me causa preocupação como cidadã e como juíza, que é a questão de controle e fiscalização das contas partidárias, das contas de campanha, das contas em geral. Por isso constituí uma comissão externa para ver como podemos pensar a fiscalização e o controle de contas. Já o julgamento das contas, que até há pouco tempo era administrativo, agora é judicial.
ConJur — Quem compõe a comissão?Cármen Lúcia — Marcello Cerqueira; Everardo Maciel; Marcelo Lavénère; Antônio Fernando; e Hamilton Carvalhido. Cinco nomes experientes que estão estudando propostas novas para que possamos ter mais eficácia e celeridade no controle das contas. Porque, ao pensar sobre financiamento, é preciso pensar não apenas em quem financiou, mas como se controla quem financiou: quem doou, para quem doou e quanto doou? Não acho que haja certo e errado sobre financiamento público e privado de maneira definitiva, mas precisamos de regras mais claras. Por quê? Porque isso não pode significar uma porta aberta para, depois, quem fez “a doação” chegar ali na frente e achar que o eleito com a doação lhe deve alguma coisa. E não deve. Doação se faz sem qualquer retorno.
ConJur — A senhora concorda com a expressão de que, na forma atual, quem financia a democracia no Brasil são as empresas?Cármen Lúcia — Não. Eu acho que quem financia é o poder público. A campanha, em grande parte, na maior parte, quem financia é o poder público. E não importa quem financia. O representante deve o seu voto é ao cidadão, deve contas é à sociedade. Nem ao poder público, aos governos instalados, nem muito menos a particulares.
ConJur — Na prática é assim?Cármen Lúcia — Na prática nem sempre é assim, mas há ainda os que pensam no interesse público. Eu conheço bons exemplos. Porque também não acho que seja bom “demonizar” a prática da função pública. Eu temo que os jovens não tenham interesse pela política. Porque a política é a opção à guerra. Ou nós praticamos a política de maneira ética, séria, responsável para que as coisas andem, ou então as pessoas de bem que ainda hoje se dedicam à política, a cargos públicos, daqui a pouco não vão mais querer. E esse é um dado muito grave. É preciso que os jovens de hoje queiram cada vez mais participar efetivamente da vida política porque a sociedade precisa disso.
ConJur — A má imagem do político tem fundamento?Cármen Lúcia — Acho que tem em muitos casos. Basta ver que nós precisamos da Lei Complementar 135, que foi chamada de Lei da Ficha Limpa, exatamente para impedir que pessoas frustrassem a liberdade do voto transmitindo a imagem que alguns já sabiam de antemão que não era verdadeira.
ConJur — Qual é a origem dessa imagem que o político brasileiro tem hoje?Cármen Lúcia — As más práticas políticas no Brasil. Basicamente, o brasileiro não aguenta mais corrupção. Aliás, eu acho que em nenhum lugar do mundo as pessoas aguentam isso com facilidade, mas se olharmos a história do Brasil, já houve práticas em que a confusão entre o público e o privado acontecia e o cidadão não se indignava como se indigna hoje.
ConJur — Mas pesquisas já indicaram que o brasileiro ainda acha natural trocar o voto por um favor ou por dinheiro.Cármen Lúcia — O que eu vi nas eleições de 2012 não foi isso. E eu estive em 20 estados, conversei com membros de tribunais, juízes eleitorais, promotores, servidores da Justiça e com muitos cidadãos. Recebi uma grande quantidade de cartas e mensagens, especialmente por meio da central de eleitor. Não é isso que a gente vê. Pelo contrário, o eleitor hoje não acha natural, acha que isso é um absurdo e reclama muito disso.
ConJur — A senhora diz que o brasileiro não suporta mais a corrupção. A gorjeta, a comissão, a bonificação não fazem parte da cultura? A corrupção não está na gorjeta que se dá para o garçom tratar melhor a sua mesa que a mesa do vizinho? As mesmas pessoas que demonizam a política pedem recibos com valores maiores em táxis, por exemplo. A corrupção não está na cultura do brasileiro?Cármen Lúcia — Não acho que corrupção seja mais da cultura brasileira. Acho que foi da cultura brasileira, até pela forma que nós tivemos de viver com o coronelismo, por exemplo. Victor Nunes conta isso muito bem. Era na casa do coronel, em um dos quartos, um dos cômodos, onde se reuniam, confundindo-se integralmente o público e o privado. Dali vem uma raiz grave de confusão entre o público e o privado que facilita a prática da corrupção. Eu não acho que isso seja comum hoje. Eu vejo mudanças e vejo um marco constitucional mesmo.
ConJur — Mas depois da Constituição vimos vários escândalos de corrupção.Cármen Lúcia — Sim, tanto que precisamos das leis que introduziram o artigo 41-A e novas hipóteses de inelegibilidade no ordenamento jurídico para tentar coibir essas práticas. A minha pergunta é: isso é ainda resquício da cultura de aceitação dessas práticas ou é do mundo? Em outros países, o furto aumentou ou diminuiu? A segurança aumentou ou diminuiu? O que eu vejo hoje é o jovem mais atento. Por exemplo, na minha geração, era comum ver em um gramado a placa “proibido pisar na grama” e gente atravessando. Hoje se presta mais atenção a isso. O jovem está muito mais preocupado. E aí eu chamo a atenção para o jovem. Eu não vejo as pessoas não terem o cuidado de pelo menos olhar com o papelzinho na mão para ver se não acha uma lata de lixo. Há uma melhoria. Por isso, eu acho que ética se aprende, que corrupção se combate, sim, com uma acentuada e permanente educação cívica. Quando eu cheguei à Presidência do TSE, me diziam: “A senhora foi advogada de jornalistas a vida inteira. Defendeu a imprensa. E agora que virou vidraça?”. A imprensa me ajuda, porque eu não dou conta de ver tudo. Quando a imprensa me aponta alguma coisa, eu corro para saber se alguma coisa se passou sem que eu tivesse sabido. Portanto, não me atrapalha. E tem outros dados. Juízes dos mais longínquos locais me ligando às 23h do dia 21 de dezembro: “Ministra, não consegui falar com o TRE, mas estou ligando para a senhora porque consta...”. Eu acho ótimo, porque é a prova da mudança. Um juiz jovem preocupado em saber como ele cumpre a lei. Eu noto, quanto à ética, muito mais preocupação hoje. Vou usar uma palavra que talvez seja forte para o juiz, mas não vejo mais a desfaçatez de fazer e nem ao menos tentar esconder. Eu sou de uma geração que ainda escutou: “Sabe com quem está falando?”. Hoje ninguém tem coragem de fazer isso, eu acho. E se fizer provavelmente será vaiado.
Márcio Chaer é diretor da revista Consultor Jurídico.
Rodrigo Haidar é editor da revista Consultor Jurídico em Brasília.
Revista Consultor Jurídico, 3 de fevereiro de 2013

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

MINISTRO JOAQUIM BARBOSA DESTACA REFORMA DOS CÓDIGOS PENAL E DE PROCESSO CIVIL

 

Ao transmitir a mensagem do Judiciário na abertura dos trabalhos legislativos, em sessão solene do Congresso Nacional realizada na tarde desta segunda-feira (4), o presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Joaquim Barbosa, destacou a importância da aprovação pelo Legislativo das reformas dos Códigos Penal e de Processo Civil “sem os quais torna-se extremamente difícil a prestação jurisdicional em nosso País”.
O ministro, que também entregou ao Congresso o Relatório de Atividades 2012 do CNJ, ressaltou que sua presença na Casa simboliza mais que um ato formal. Para o ministro, significa “a necessidade do fundamental diálogo entre os poderes Judiciário e Legislativo”, afirmou.
Em seu discurso, o presidente do STF e do CNJ também ressaltou a independência dos três poderes da Nação. “A independência e a convivência harmônica entre Judiciário, Legislativo e Executivo são fatores essenciais ao fortalecimento da nossa democracia e à concretização dos direitos e garantias consagrados na Constituição”.
Fonte: CNJ

APEL VERSUS HABERMAS: COMO DISSOLVER A ÉTICA DISCURSIVA PARA SALVAGUARDÁ-LA JURIDICAMENTE




Delamar José Volpato Dutra
Departamento de Filosofia da UFSC, CNPq. djvdutra@yahoo.com.br




RESUMO
A relação entre direito e moral é a clef de voûte do problema da justificação do direito. De fato, a ocupação filosófica com a justificação do direito porta conexão com a moral, como, por exemplo, em Kant, Dworkin, Alexy, Rawls. Pretende-se apresentar o papel desempenhado pela ética discursiva na fundamentação do direito proposta por Habermas. Apesar de Habermas dispor de uma moral cognitivista e ter apresentado uma fundamentação para o princípio de universalização próprio para a mesma, tal princípio parece ter desaparecido do empreendimento tardio de fundamentação da correção jurídica. Tal acusação é endereçada a Habermas exemplarmente por Apel, Kettner e Heck. Pretende-se sustentar, no presente trabalho, especialmente contra Apel, que a moral discursiva não desaparece do empreendimento de fundamentação do direito, sendo apenas redefinido o papel que ela desempenha nesta tarefa, embora em um sentido mais forte do que Habermas pretende reconhecer. De fato, Habermas parece atribuir à moral um papel negativo na justificação do direito. Pretende-se defender que os direitos morais não cumprem uma função somente negativa no procedimento de justificação do direito, por mais importante que seja tal função assim concebida, seja porque tais direitos passam, de alguma forma, a compor a forma jurídica e mesmo os direitos básicos, seja porque a própria tese da complementaridade parece exigir que o direito positive a moral.
Palavras-Chave: Habermas, Apel, Filosofia do direito, Moral, Direito

ABSTRACT
The connections between the law and morality are the clef de voûte of law justifying problem. The philosophic preoccupation with those connections is well exemplified in the works of Kant, Dworkin, Alexy, Rawls. This paper aims to show the role discursive ethics plays in the foundation of the law, according to Habermas' perspective. Although Habermas had established a cognitivist morality and shown an argument for the principle of universalization, it seemed to have disappeared form his later intent of juridical correction foundation. This accusation, addressed to Habermas, was equally supported by Apel, Kettner and Heck. This article intends, especially against Apel's point of view, to demonstrate that discursive morality did not disappear, but have just traversed a period of conceptual modifications. Indeed, for Habermas, morality seems to play a negative role in the law justification process. Despite this underestimation of morality, the paper defends the relevance of moral rights for this process, which increases, even more, the importance of the connections between the law and morality in the discussion of Habermas' complementarity thesis.
Keywords: Habermas, Apel, Legal Philosophy, Morality, The law




Habermas, no prefácio a FG, ao mencionar a reformulação de sua própria teoria concernente ao tema da complementaridade entre direito e moral se refere à posição de Apel, do que se pode concluir que o estudo das divergências entre ambos é um bom método para poder tornar mais clara a própria posição defendida por Habermas em FG. Por isso, utilizar-se-ão as discordâncias de Apel em relação a Habermas como uma matriz daquilo que o autor de FG está provavelmente recusando como sendo a maneira correta de entender a mencionada complementaridade.
A discordância principal de Apel com relação a Habermas reside na neutralização moral do princípio do discurso operada em FG, o que teria levado a uma dissolução [Auflösung] da ética discursiva. Desta tese da neutralidade se seguem consequências das quais Apel discorda. A primeira delas pode ser vislumbrada na acusação feita de que, assim concebida a arquitetônica de FG, um dos intentos principais de Habermas, a saber, fundamentar o direito, resultaria contraditório. A segunda consequência é vislumbrada na acusação de que o próprio empreendimento da ética discursiva visando à fundamentação do princípio de universalização se tornaria impossível.
A primeira acusação pode ser encontrada no texto Auseinandersetzungen in Erprobung des transzendentalpragmatischen Ansatzes1 de 1998. Segundo Apel, Habermas pretende encontrar a base normativa do direito em um princípio do discurso moralmente neutro, mas, ao mesmo tempo, sustenta haver uma dependência da validade normativa do direito em relação à moral,2 visto Habermas sustentar que "o sentido universalista do princípio do direito" requer "um ponto de vista genuinamente moral".3 Nesse sentido, não é clara a conexão entre o sistema de direitos básicos e os direitos morais. Isso sem contar a tese de que o direito deve estar em harmonia com a moral. Esses pontos deverão se tornar mais claros a seguir.
A segunda objeção pode ser encontrada no texto "Regarding the relationship of morality, law and democracy: on Habermas's Philosophy of Law (1992) from a transcendental-pragmatic point of view".4 Para Apel, se Habermas partir da formulação dada ao princípio do discurso em FG, ele não poderá deduzir o princípio de universalização, porque aquele é neutralizado moralmente.5
No seu texto, Apel menciona, por duas vezes, a nota 4 do prefácio a FG. Na primeira menção ele afirma: "a minha tentativa de uma fundamentação do Direito, como implicação da parte B da ética do discurso, foi refutada por Habermas em Direito e democracia: entre faticidade e validade, na críptica nota 4".6 No contexto desta passagem, Apel é simpático, embora com reservas, à posição de Habermas nas Tanner Lectures. A sua ressalva tem conexão com a segunda menção que faz à referida nota 4. Nessa alusão posterior, Apel se reporta à seguinte afirmação de Habermas: "tentarei clarificar as determinações formais do direito, lançando mão da relação complementar entre direito e moral. Esta clarificação é parte integrante de uma explicação funcional, não de uma fundamentação normativa do direito. Pois a forma jurídica não é um princípio que possa ser 'fundamentado' epistêmica ou normativamente".7 Assim se pronuncia Apel:
aparentemente esta explicação um tanto repentina e abrupta guarda relação mais estreita com a minha exigência expressa de uma fundamentação normativa, e não só com a exigência de uma explicação funcional, da forma específica das normas jurídicas exigíveis por meio da coação estatal [...] Na nota de rodapé 4 (da "Introdução") de Direito e democracia, Habermas afastou esta minha exigência e, com ela, simultaneamente também, imagino, a sua própria posição anterior nas Tanner Lectures de 1986, como "abordagem normativa" do problema da relação entre Moral e Direito. No entanto, a minha irritação, no contexto atual do problema, não reside no rechaço (pretendido também, imagino, na nota de rodapé) de uma fundamentação moral da forma específica das normas jurídicas como normas de coerção (que, entretanto, considero necessária), mas no rechaço - que, ao que parece, vai além disso - de qualquer "fundamentação normativa" da "forma jurídica".8
A correta interpretação da afirmação da nota 4 depende da correta interpretação das Tanner Lectures, principalmente. Nesse ponto, Apel, por querer fundamentar normativamente a própria forma jurídica, interpreta equivocadamente as Tanner Lectures. Na verdade, a abordagem normativa das Tanner Lectures que é revisada em FG é outra e não aquela denotada por Apel. Ao que parece Habermas nunca pensou em uma justificação moral da forma jurídica, nem no contexto das Tanner Lectures. Tal rechaço parece ser uma constante em sua obra. O ponto de Habermas é que "a pretensão de validade deontológica de mandamentos morais seria relativizada e ligada a condições de sucesso do agir estratégico [...] caso o cuidado 'político' em sentido amplo para com o 'sucesso aproximativo do elemento moral em geral' (na figura de um outro princípio da responsabilidade ética, por exemplo) fosse incorporado à própria moral".9 Para ele, a política não se deixa moralizar diretamente, de tal forma que o único caminho aberto para uma reforma moral do nosso comportamento, ou melhor, para a civilização das condições de vida é o da domesticação do poder via juridificação controlada democraticamente, o que denota grande confiança no direito e mais ainda na democracia.
Outro ponto importante destacado por Apel se relaciona à definição do princípio do discurso. Ele observa, corretamente, que o "princípio do discurso pode e precisa ser formulado de modo tão neutro que nem sequer se mencionaria que nele haveria 'normas de ação' a serem fundamentadas; é que o princípio do discurso compõe também a base do discurso de formação do consenso, referente à verdade, da filosofia teórica".10 De fato, Habermas apresenta uma formulação do princípio do discurso que parece excluir sua aplicação às proposições teóricas, já que a formulação dada opera no âmbito da razão prática - "D: são válidas todas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais"11 -, embora não seja difícil encontrar formulações mais gerais do mesmo, como a seguinte: "sob a rubrica 'discurso' introduzo a forma de comunicação caracterizada pela argumentação, na qual se tornam tema as pretensões de validade que se tornaram problemáticas e se examina se são legítimas ou não".12 No entanto, o que é importante, para Habermas, é a independência do princípio do discurso em relação à moral, seja em qual formulação for, ao contrário de Apel, para quem "o princípio do discurso não é 'moralmente neutro'; ele pressupõe o reconhecimento da igualdade de direitos".13 Na verdade, a tese de Apel é que o princípio do discurso não só inclui o princípio de universalização da ética discursiva como também uma justificação da própria forma jurídica. Ele afirma: "parto da premissa de que o princípio do discurso - que, no modo de pensar, é irrecorrível - de fato já inclui, como conteúdo, o princípio moral primordial, e de que esse princípio moral, por sua vez, não só contém o princípio 'U' [...] mas, além disso, também um princípio de responsabilidade",14 sendo que este último daria uma justificação normativa para a própria forma jurídica. Dito claramente, "o princípio moral primordial, do qual a pragmática transcendental toma o seu ponto de partida como ética do discurso, é, a bem da verdade, uma pressuposição necessária de qualquer ato sério de argumentação, mas não é uma mera 'regra de argumentação'".15
Com relação a esse particular, o problema geral de Apel é confundir regras lógicas com conteúdos morais: "as tentativas feitas, até agora, para fundamentar uma ética discursiva, padecem do fato de que as regras da argumentação são curto-circuitadas com conteúdos e pressupostos da argumentação - e confundidas com princípios morais enquanto princípios da ética filosófica".16 Isso é um ataque frontal à formulação de Apel de que a lógica pressupõe uma ética. De fato, Apel afirma: "neste sentido também não se pode dizer que a lógica implica numa ética. Pode-se afirmar, no entanto, que a lógica - e com ela também todas as ciências e tecnologias - pressupõe uma ética como sua condição de possibilidade".17 Na verdade, o ponto é que se trata de duas ordens categorialmente distintas. Ou seja, é preciso distinguir a normatividade no sentido transcendental da normatividade no sentido deontológico.18 Quiçá, um dos possíveis motivos da confusão de Apel ocorra em razão - faute de mieux - da linguagem jurídica usada para descrever as condições de possibilidade do discurso ou da comunidade ideal de comunicação, fazendo com que seja sugerida uma leitura ética do que deveria ser uma condição de possibilidade lógica - embora pragmática - da racionalidade comunicativa.
Um outro aspecto importante do texto de Apel é apontar para o que parece ser um verdadeiro problema em Habermas. Apel, tendo em vista a afirmação contida em FG, a saber,
ele [Rousseau] não pode explicar a possibilidade de uma mediação entre a requerida orientação pelo bem comum dos cidadãos e os interesses sociais diferenciados das pessoas privadas, ou melhor, não sabe dizer como é possível mediar, sem repressão, entre a vontade comum, construída normativamente, e o arbítrio dos sujeitos singulares. Para que isso acontecesse, seria preciso um ponto de vista genuinamente moral, a partir do qual poderia ser avaliado se o que é bom para nós é do interesse simétrico de cada um. No final da versão ética do conceito de soberania popular [que Habermas imputa a Rousseau], perde-se o sentido universalista do princípio do direito,19
sustenta a proposição de que o próprio Habermas permaneceu caudatário da tese de uma relação positiva da moral na determinação da justificação do direito, pois, como conciliar a afirmação contida na citação "seria preciso um ponto de vista genuinamente moral", somada à afirmação segundo a qual "uma ordem jurídica só pode ser legítima, quando não contrariar princípios morais",20 com a tese da neutralidade? Sugere-se, neste estudo, um modo de ler o texto que permite admitir "um ponto de vista genuinamente moral", sem que com isso seja necessário abandonar a tese da neutralidade ou subordinar completamente, sob o ponto de vista normativo, o direito à moral. O que a construção de Habermas parece excluir são formulações como a de Kant, que sustentam o seguinte conjunto de teses:

  • tese da subsunção do direito à moral. De fato, Kant sustenta que "a doutrina do direito e a doutrina da virtude se distinguem, então, bem menos por deveres diferentes que pela diferença de legislação que associa à lei um móbil antes que um outro".21 Ademais, ele faz afirmações como as seguintes: (a) "o conceito do direito, enquanto relacionado a uma obrigação correspondente (i. e., seu conceito moral), diz respeito [...]";22 (b) "o direito como faculdade (moral) de obrigar outros, i. e., como um fundamento legal para os últimos (titulum), tem por divisão superior aquela entre direito inato e adquirido".23 Guido de Almeida chega a sustentar que para Kant as leis jurídicas são uma subclasse das leis morais.24 No mesmo diapasão Heck conclui: "deveres de direito não passam, para Kant, de uma subclasse da categoria dos deveres morais".25
  • tese do conhecimento moral da liberdade: "mas por que a doutrina dos costumes (moral) é ordinariamente (particularmente por Cícero) intitulada a doutrina dos deveres e não também dos direitos, dado que uns se referem aos outros? - O fundamento é este: Nós só conhecemos nossa própria liberdade (de que procedem todas as leis morais, portanto também todos os direitos tanto quanto os deveres) através do imperativo moral, que é uma proposição que ordena um dever, a partir do qual pode ser desenvolvida posteriormente a faculdade de obrigar os outros, i. e., o conceito do direito".26
A tese da subsunção Habermas a critica pelo seu viés platônico, ou seja, "subjaz a essa construção a ideia platônica segundo a qual a ordem jurídica copia e, ao mesmo tempo, concretiza no mundo fenomenal a ordem inteligível de um 'reino dos fins'".27 Com relação à segunda tese, Habermas propugna um autêntico conhecimento jurídico da liberdade e não um conhecimento moral.
Pretende-se argumentar no sentido de demonstrar que a filosofia do direito de Habermas se situa entre o caminho da completa subordinação normativa do direito à moral seguido por Kant e Apel e o caminho decisionista da completa separação seguido por Weber e Kelsen, de tal forma que o legislador mantenha sua autonomia, sem, contudo, poder contrariar normas morais. Portanto, é possível uma via intermediária que conecta a normatividade moral e a jurídica, sem que esta última seja reduzida à primeira. Nesse sentido, ele afirma no posfácio a FG que "a nau da teoria do discurso navega entre os escolhos do direito natural e do positivismo jurídico".28
Assim, se o princípio do discurso coincidisse com o princípio de universalização, então, "o princípio moral, oculto no princípio do discurso, passaria a ser novamente a única fonte de legitimação para o direito".29 Ainda que para Habermas os direitos humanos possam ser fundamentados como direitos morais,30 um dos pontos interessantes de sua obra é o de conseguir basear parte dos direitos humanos independentemente da moral, justamente partindo da análise das características formais do direito, de tal forma que o código do direito já "implica, ao mesmo tempo, a garantia de liberdades subjetivas".31 Ora, justamente as liberdades subjetivas são o coração de parte dos direitos humanos,32 sendo, quiçá, sua parte fundamental. O princípio do discurso, por sua vez, tem a função de dar conta de uma repartição igualitária desses direitos subjetivos, mormente por meio do procedimento democrático. É só assim que os direitos humanos não são impostos ao legislador de forma paternalista.
O que se poderia aduzir como possíveis razões que Habermas parece apontar para a defesa da tese da neutralidade avançada acima, como (1) a indeterminação dos princípios morais, carentes de um significado semântico melhor definido, e (2) a recusa do paternalismo moral com relação ao legislador político, parecem não ser motivos suficientes. Com relação ao ponto da indeterminação, Habermas - vale mencionar -, embora afirme em FG que, sob o ponto de vista conceitual, o princípio da moral e o princípio da democracia se expliquem reciprocamente,33 oblitera discretamente a positivação de princípios morais importantes e olha com certa desconfiança posições como a de Dworkin, por agudizarem a problemática da indeterminação do direito,34 pois dão eficácia plena a tais princípios, ainda que vagos no seu conteúdo. O próprio Habermas, com relação a este último ponto, não descarta os princípios morais mais importantes. Tanto é verdade que os mesmos, ou algo bem semelhante a eles, são alavancados como compondo o próprio código do direito e, portanto, como condição de possibilidade da própria formulação jurídica da democracia. Ou seja, os princípios morais mais importantes parecem ser elevados a princípios possibilitadores da ordem jurídica enquanto tal. De fato, liberdade privada e liberdade pública são pensadas como cooriginárias. Ainda que Habermas desafie a conotação moral de tais direitos, buscando conferir-lhes uma estirpe estritamente jurídica, ecoam pelo seu texto as semelhanças entre liberdade privada e direitos humanos ou direitos morais.
Veja-se que o próprio Habermas afirma que a complementaridade do direito, mesmo ao modo da neutralidade, não implica uma neutralidade moral do mesmo, justamente a acusação que Apel e outros parecem endereçar à nova posição em FG. Eis o que sustenta o autor de FG: "a relação complementar, no entanto, não significa uma neutralidade moral do direito".35 Tal caráter complementar não significa que o direito seja moralmente neutro, pois a moral adentra no processo legislativo e o direito não pode contrariar a moral.36 Ou seja, Habermas dilui a ética discursiva no interior do direito, seja no sistema de direitos, seja pelo caráter permeável do procedimento democrático que permite a livre circulação dos argumentos morais - embora não possa obrigar a tal -, seja na interdição dos produtos do procedimento democrático contrariar princípios morais. Sem contar que o direito é chamado a suprir os déficits cognitivos e institucionais da moral. O ponto é que a correção jurídica não se identifica mais à correção moral.37 No entanto, será que Apel chega a ponto da identificação? Se procedesse assim, como poderiam ser regradas as matérias carentes de consenso moral, como o aborto, a eutanásia, a clonagem?
A plausibilidade desta interpretação que dilui a ética discursiva para melhor preservá-la pode ser vislumbrada no modelo do processo da formação política racional da vontade apresentado a seguir. Nele, parece estar claro o papel de destaque que a moral desempenha, uma função mais importante seja do que o próprio Habermas parece explicitamente sustentar ao longo do texto, posto atribuir a ela apenas uma função negativa, seja do que os seus intérpretes o acusam. Pelo esquema a seguir, todos os argumentos têm que passar pelo "filtro" do discurso moral. Ou seja, "para que o princípio do discurso seja levado em conta por todos sem exceção, é preciso supor a combinalidade [Vereinbarkeit] de todos os programas negociados ou obtidos discursivamente com aquilo que pode ser justificado moralmente".38 Mas como operaria tal discurso? Ele só reteria o que com ele fosse incompatível, operando negativamente? Ele faria exigências de positivação, já que Habermas fala de transferências segundo o esquema a seguir?39 Tais pontos são importantes, inclusive tendo em vista a argumentação de que o direito depende de fontes de legitimidade que ele não tem à sua disposição.40



Cabe mencionar que a interpretação avançada - qual seja, a de que em FG Habermas vincula de alguma forma os conteúdos resultantes do procedimento moral e do procedimento jurídico, cuja base se encontra na sua afirmação, já exposta acima, de que uma ordem jurídica não pode contrariar princípios morais - encontra nesse modelo do processo da formação política racional da vontade também uma dificuldade, pois nele se sugere que uma matéria sobre a qual o legislador deve se pronunciar passaria, primeiro, pelo crivo dos discursos de negociação, pragmático e ético-político; em seguida, passaria pelo crivo do discurso moral para, então, provada a sua compatibilidade com argumentos morais, adentrar no discurso jurídico. Tal dificuldade pode configurar uma outra hipótese interpretativa, segundo a qual haveria uma sucessão de procedimentos pelos quais a matéria carente de juridicização deveria passar, sendo um deles o moral, no qual apenas se avaliaria sua compatibilidade ou não com uma argumentação moral, sendo os argumentos decisivos para sua legitimação avançados pelos outros discursos. O problema dessa hipótese é que ela só parece encontrar guarida na apresentação do próprio modelo, sendo que as demais menções à questão sugerem uma formulação mais substantiva que esta.
Outrossim, o modelo poderia querer apenas sugerir como o controle da moralidade do direito poderia operar, ou seja, processualmente, através do próprio discurso moral, e não solitária ou monologicamente. Mesmo essa formulação parece contrariar outras segundo as quais o processo jurídico faria uma combinatória de argumentos, como a que segue: "a relação complementar, no entanto, não significa uma neutralidade moral do direito. Pois o processo legislativo permite que razões morais fluam para o direito. E a política e o direito têm que estar afinados [Einklang] com a moral".42 Tal afirmação não parece albergar a interpretação de uma sucessão de procedimentos. Ademais, a própria ideia de complementaridade explicitamente sustentada por Habermas sugere uma relação entre direito e moral menos entrelaçada processualmente e mais mesclada funcionalmente, ainda que sob o ponto de vista do observador.43
Seja como for, o entrelaçamento entre direito e moral é enfraquecido em FG, melhor dito, ele será entendido de forma diferente, pois não se tratará mais de atar o procedimento jurídico ao moral, mas justamente de diferenciá-los. De sorte que a moral, neste texto, não pairará sobre o ordenamento jurídico como uma camada superior, mas emigrará para o direito sem, no entanto, implicar na perda da identidade deste último. A tese aqui sustentada é a de que, como contraponto a essa diferenciação, será forçada uma nova união ou novo entrelaçamento entre os produtos que resultam dos respectivos procedimentos, embora nada impeça que argumentos morais possam aflorar já diretamente no próprio nível do discurso jurídico de legislação.
Finalmente, então, as objeções de Habermas contra o fundamentalismo da posição de Apel podem ser assim compreendidas: (a) Apel visaria a fundamentar diretamente normas morais básicas sem passar pelo crivo discursivo da fundamentação de um princípio de universalização,44 visto que o conteúdo normativo das pressuposições gerais da argumentação possuiria um sentido deontologicamente obrigatório, ou seja, seria hábil a fornecer elementos concretos para uma inferência direta da reciprocidade e da igualdade de direitos exigidas fora da prática da argumentação. Habermas, por seu turno, nega ser possível extrair da substância normativa das pressuposições gerais da argumentação algo para exigências deontológicas concernentes à ação.45 Ou seja, "no final das contas, Apel confia, apesar de tudo, nas evidências infalíveis de um acesso direto, pré-analítico, às intuições de um participante da argumentação, já treinado na reflexão".46 Ademais, (b) Apel pretenderia "complementar a moral por meio de uma obrigação para a realização histórica da moral (ética da responsabilidade)".47
Tais críticas ao fundamentalismo de Apel, a saber, (a) à tese do caráter moral do conteúdo normativo das pressuposições gerais da argumentação que daria um acesso privilegiado à normatividade deontológica e (b) à tese da ética da responsabilidade que torna uma obrigação existencial realizar juridicamente a moral, constituem-se, portanto, em pontos de partida para se poder avançar uma compreensão melhor de como se deve compreender a relação entre a moral e o direito, discursivamente concebidos.

Referências
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Recebido em 12/02/2009.
Aprovado em 10/02/2010.




1 APEL, Karl-Otto. Auseinandersetzungen in Erprobung des transzendentalpragmatischen Ansatzes. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1998. Tal problema se encontra no cap. 13 do referido texto, cujo título é "Auflösung der Diskursethik? Zur Architektonik der Diskursdifferenzierung in Habermas' Faktizität und Geltung. Dritter, transzendentalpragmatisch orientierter Versuch, mit Habermas gegen Habermas zu denken". Este capítulo foi traduzido por Luiz Moreira e publicado no livro APEL; OLIVEIRA; MOREIRA, 2004, p. 201-321. Será usada a mencionada tradução para o vernáculo com a indicação da página da edição original.
2 APEL, 1998, p. 734-735.
3 TrFG1, p. 137 [FG, p. 132-133].
4 APEL(1992), 2002, p. 22.
5 No texto a seguir há uma tentativa de provar que tal é possível: VOLPATO DUTRA, 2002.
6 APEL; OLIVEIRA; MOREIRA, 2004, p. 208 [APEL, 1998, p. 737].
7 TrFG1, p. 147 [FG, p. 143].
8 APEL; OLIVEIRA; MOREIRA, 2004, p. 224 [APEL, 1998, p. 750].
9 HABERMAS, 2007, p. 111; HABERMAS, 2005, p. 103.
10 APEL; OLIVEIRA; MOREIRA, 2004, p. 210 [APEL, 1998, p. 738].
11 TrFG1, p. 142 [FG, p. 138].
12 HABERMAS, 1984, p. 130.
13 APEL; OLIVEIRA; MOREIRA, 2004, p. 210 [APEL, 1998, p. 738].
14 APEL; OLIVEIRA; MOREIRA, 2004, p. 273 [APEL, 1998, p. 794].
15 APEL; OLIVEIRA; MOREIRA, 2004, p. 278 [APEL, 1998, p. 798].
16 HABERMAS, 1989, p. 116-117.
17 APEL, 1994, p. 119. O texto foi originalmente publicado no livro Transformation der Philosophie.
18 "Quando nós, na base de uma distinção entre sentido transcendental e sentido deontológico de normatividade, entendemos que o potencial de racionalidade insertado de modo geral em discursos não é obrigatório em sentido deontológico, é possível interpretar o juízo imparcial sobre a consensualidade de normas, exigido de modo não-específico por 'D', como algo que ainda é 'neutro do ponto de vista da moral e do direito'" [HABERMAS, 2007, p. 104; HABERMAS, 2005, p. 96].
19 TrFG1, p. 137 [FG, p. 132-3]. Citado por Apel à p. 826 de seu texto Auseinandersetzungen in Erprobung des transzendentalpragmatischen Ansatzes.
20 TrFG1, p. 140-1 [FG, p. 137].
21 AA VI 220.
22 AA VI 230.
23 AA VI 237.
24 ALMEIDA, 2006, p. 209-222 passim. Wood sustenta uma posição diferente. Para ele: "Kant coloca o 'direito' à frente da 'ética', na sua exposição, para enfatizar que as duas partes são distintas e que deveres de direito não são meramente uma subclasse de deveres éticos, da mesma forma que D não pode ser derivado da FA, da FH, ou da FLU ou qualquer outra formulação do princípio da moralidade" [WOOD, 2005, p. 145]. Wood chega mesmo a sustentar que o princípio universal do direito não é um padrão moral, mas um padrão puramente jurídico de permissibilidade, implicando que "ações corretas, nesse sentido, incluem somente ações que, de acordo com os padrões fundados pelo princípio D, não podem ser coercitivamente obstados, mesmo se forem contrários a deveres morais" [WOOD, 2005, p. 144]. Uma razão que ele parece apontar para isso é que o princípio do direito "produz uma similaridade verbal superficial com a FLU, mas a diferença entre este e todas as formas do princípio da moralidade são muito mais significantes do que as similaridades" [WOOD, 2005, p. 144].
25 HECK, 2000, p. 61.
26 AA VI 239.
27 TrFG1, p. 140 [FG, p. 136]. Embora esteja suficientemente claro o sentido do termo platonismo aqui usado, ou seja, como hierarquia de normas, é necessário, porém, esclarecer que o ajuizamento da ética kantiana como um certo platonismo de forma alguma implica uma concepção substancial do bem, até porque Habermas tende a interpretar Kant, na linha de Rawls, como um processualista.
28 TrFG2, p. 313-4 [FG, p. 668]. Posfácio.
29 TrFG2, p. 321 [FG, p. 676].
30 FG, p. 670. Nesse sentido, Maria Clara Dias sustenta que os direitos básicos são princípios morais, imputando a sua satisfação como uma condição de possibilidade da democracia [DIAS, Maria Clara. O que pode a ética na política: considerações acerca do conceito de democracia. In: HECK; BRITO, 1997, p. 291].
31 TrFG2, p. 316 [FG, p. 671].
32 A formulação kantiana do direito à liberdade parece atender a este requisito de ser um direito subjetivo, já que ela é definida como a faculdade de buscar a felicidade a seu próprio modo: "ninguém me pode constranger a ser feliz à sua maneira (como ele concebe o bem-estar dos outros homens), mas a cada um é permitido buscar a sua felicidade pela via que lhe parecer boa" [AA VIII 290].
33 "Begrifflich erläutern sich Moral - und Demokratieprinzip wechselseitig" [FG, p. 123].
34 "Em todos os níveis de jurisprudência [Rechtsprechung], entram em jogo princípios que envolvem uma interpretação construtiva do caso particular, no sentido de Dworkin" [TrFG1, p. 303] [FG, p. 298].
35 TrFG2, p. 313 [FG, p. 667]. Posfácio.
36 FG, p. 667-8. Nachwort.
37 FG, p. 677. Nachwort.
38 TrFG1, p. 209 [FG, p. 206-207].
39 FG, p. 207.
40 "A compreensão discursiva do sistema dos direitos conduz o olhar para dois lados: de um lado a carga da legitimação da normatização jurídica das qualificações dos cidadãos desloca-se para os procedimentos da formação discursiva da opinião e da vontade, institucionalizados juridicamente. De outro lado, a juridificação da liberdade comunicativa significa também que o direito é levado a explorar fontes de legitimidade das quais ele não pode dispor" [TrFG1, p. 168]. "Andererseits bedeutet die Verrechtlichung der kommunikativen Freiheit auch, daß sich das Recht Quellen der Legitimation erschließen muß, über die es nicht verfügen kann" [FG, p. 165].
41 FG, p. 207.
42 TrFG2, p. 313 [FG, p. 667-8]. Posfácio. Na citação a seguir também parece haver uma concomitância da argumentação, antes que uma sucessão, ao menos nas três argumentações principais: "a formação política da opinião e da vontade, ultrapassando o nível pragmático, onde se procura saber o que podemos fazer em função de tarefas concretas, precisa esclarecer, em primeira linha, três questões, a saber: a que subjaz à formação de compromissos, onde se discute a possibilidade de harmonizar entre si preferências concorrentes; a questão ético-política acerca de nossa identidade pessoal e dos ideais que acalentamos realmente; e a questão prático-moral que nos leva a inquirir sobre o modo de agir para sermos justos" [TrFG1, p. 225] [FG, p. 222].
43 TrFG2, p. 313 [FG, p. 667-8]. Posfácio.
44 HABERMAS, 2007, p. 113; HABERMAS, 2005, p. 105.
45 HABERMAS, 2007, p. 112; HABERMAS, 2005, p. 103.
46 HABERMAS, 2007, p. 114; HABERMAS, 2005, p. 105.
47 HABERMAS, 2007, p. 113; HABERMAS, 2005, p. 105.






DUTRA, Delamar José Volpato. Apel versus Habermas: como dissolver a ética discursiva para salvaguardá-la juridicamente. Kriterion [online]. 2010, vol.51, n.121, pp. 103-116. ISSN 0100-512X.


LIBERALISMO VERSUS DEMOCRACIA SOCIAL




Alfredo Bosi
SE HÁ UM objetivo que Losurdo persegue de modo coerente ao longo desta Contra-história do liberalismo é o de preferir o exame das políticas liberais "em sua concretização" ao engessamento em definições genéricas pelas quais o termo "liberalismo" se toma como uniforme e abstrata doutrina. A sua regra de ouro é historicizar sempre, isto é, analisar os papéis efetivos que os diversos grupos políticos exerceram em nome de idéias e ideais liberais.
O método é fecundo, daí a riqueza dos resultados. Limito-me a pontuar alguns momentos fortes em que vemos, em ato, propostas e decisões tomadas por políticos assumidamente liberais.
John Calhoun, vice-presidente dos Estados Unidos entre l829 e 1832, líder do Partido Democrático, escreveu textos apaixonados em defesa da liberdade individual e das minorias, contra os abusos do Estado e a favor das garantias constitucionais. Sua fonte teórica é o pai do liberalismo político inglês, John Locke. Ao mesmo tempo e com igual convicção, Calhoun defende a escravidão dos negros como um "bem positivo", recusando-se a considerá-la como "mal necessário", fórmula concessiva de seus companheiros de partido e fé liberal.
Os abolicionistas, os philanthropists religiosos, eram, para Calhoun, "cegos fanáticos" que se propunham a destruir "a escravidão, uma forma de propriedade garantida pela Constituição".
Losurdo poderia, a partir desse primeiro exemplo, ter ido um pouco além e verificar que estudiosos e expositores de Adam Smith nos estados do Sul não viam nenhuma contradição entre proclamar os dogmas da Economia Política clássica e defender a peculiar institution, como chamavam o cativeiro negro.
O que inquieta nosso autor é constatar o prestígio neoliberal dos textos de Calhoun reeditados em 1992 em uma coleção norte-americana que se intitula "Clássicos da Liberdade".
A relação entre doutrina liberal e escravidão, que, teoricamente, pareceria uma disjuntiva radical, revela-se na "verità effettuale della cosa" (não por acaso, expressão de Maquiavel) uma conjunção reiterável nos mais diversos contextos. Começando por John Locke: solicitado pelos proprietários da Carolina a colaborar na redação das Constituições daquela colônia, o filósofo subscreveu um artigo (de n.110) pelo qual "todo homem livre da Carolina deve ter absoluto poder e autoridade sobre seus escravos negros, seja qual for sua opinião e religião".
Locke, entusiasta da Revolução Gloriosa e acionista da Royal African Company, escrevia no século XVII. John Stuart Mill, em pleno século XIX, retomaria galhardamente os ideais de liberdade individual na mais pura tradição britânica, mas não deixaria de afirmar que "o despotismo é uma forma legítima de governo quando se lida com bárbaros, desde que a finalidade seja o seu progresso e os meios sejam justificados pela sua real obtenção". Mais adiante, exige "obediência absoluta dos bárbaros", cuja escravização seria "uma fase necessária, válida para as raças não civilizadas".
São exemplos de atitudes que não se esgotam, porém, na hipótese, só em parte verdadeira, de que foi a situação colonial a responsável pela combinação de liberalismo com a escravidão. Calhoun era vice-presidente de uma nação que já desfrutava, havia mais de meio século, de altiva independência política. Losurdo lembra incisivamente:
Em 32 – dos primeiros 36 anos dos Estados Unidos – os que ocupam o cargo de Presidente são proprietários de escravos provenientes da Virgínia. George Washington, grande protagonista militar e político da revolta anti-inglesa, John Madison e Thomas Jefferson (autores respectivamente da Declaração da Independência e da Constituição Federal em 1787), foram proprietários de escravos.
Quanto à hegemonia da liberal Inglaterra no que se refere ao tráfico ao longo do século XVIII, sabe-se que a Royal African Company arrancou da decadente Espanha o monopólio do comércio de carne humana.
No caso da Holanda, pátria da tolerância religiosa nos séculos XVII e XVIII, a conivência assumida com o tráfico é de molde a abalar os corações eurocêntricos mais convictos.
O primeiro país a entrar no caminho do liberalismo é o país que revela um apego particularmente ferrenho ao instituto da escravidão. Em 1791, os Estados Gerais declaram formalmente que o comércio dos negros era essencial para o desenvolvimento da prosperidade e do comércio nas colônias. E deve-se lembrar que a Holanda abolirá a escravidão nas suas colônias só em 1863, quando a Confederação secessionista e escravista do Sul dos Estados Unidos caminha para a derrota.
Losurdo tenta, a certa altura, percorrer outro caminho para enfrentar a relação que se estabeleceu no Ocidente entre ideologia liberal-capitalista e trabalho compulsório. Lembrando que o número de escravos trazidos da África aumentou de modo extraordinário na primeira metade do século XIX, precisamente quando o liberalismo se convertia em ideal hegemônico além e aquém do Atlântico, o autor vai rastrear uma das razões então alegadas para justificar o cativeiro dos negros: a inferioridade racial. Os liberais, para manter a cara limpa em face da violência que os seus interesses os levavam a perpetrar, lançam mão do preconceito que a ciência do século já estava transformando em dogma. A discriminação permaneceria ainda mais viva depois da abolição, e aqui a observação de Tocqueville é de citação obrigatória: "Em quase todos os estados [dos Estados Unidos], nos quais a escravidão foi abolida, são concedidos aos negros direitos eleitorais, mas, se eles se apresentam para votar, correm risco de vida. Oprimido, pode até lamentar-se e dirigir-se à magistratura, mas encontra só branco entre os seus juízes". O que se conhece da discriminação racial ao longo dos séculos XIX e XX (linchamentos, apartheid...) só viria confirmar a reprodução dos limites internos da burguesia liberal que, chegando ao poder, sabe quem e como excluir.
No capítulo central da obra, Losurdo volta-se para a história exemplar do liberalismo francês entre as revoluções de 1789 e 1848. A admiração anglófila dos philosophes é conhecida. A Inglaterra é o modelo perfeito das liberdades para Voltaire e Diderot, como o fora para Montesquieu. O alvo, atingido na ilha, é o absolutismo combinado com os abusos da nobreza e do clero. Mas, passado o Terror, todo o esforço das novas gerações liberais será, desde o Diretório, "terminar a revolução".
A escravidão nas Antilhas é abolida pela Convenção, mas será restaurada por Napoleão em 1802, em nome dos sagrados direitos de propriedade dos colonos. Direitos que serão mantidos pela política de centro-direita da Restauração (1814-1830) e continuariam intactos sob a monarquia liberal de Luís Felipe (1830-1848). Direitos, enfim, plenamente confirmados pelos decretos da abolição que obrigavam o novo Estado republicano francês a indenizar os proprietários dos 250.000 escravos libertados.
As observações do autor rimam com o excelente (embora não citado) Le moment Guizot de Pierre Rosanvallon, que reconstituiu a história dos mecanismos antidemocráticos acionados pelos grandes mentores do liberalismo francês, Guizot, Thiers, Benjamin Constant. Entre esses mecanismos, o mais eficiente foi o voto censitário que entronizou a figura do cidadão-proprietário em todas as nações do Ocidente que emergiam da crise do Antigo Regime.
É curioso verificar que a questão do trabalho compulsório é aleatoriamente levantada por alguns liberais, que hoje situaríamos na conjunção de centro e esquerda, como Raynal, Condorcet e Brissot. Os três confiam na "revolução americana", modelo que substituiria, nos seus escritos, a anglofilia dos enciclopedistas.
Onde o liberalismo excludente encontra a mais firme resistência é no pensamento abolicionista radical. A voz enérgica do abbé Grégoire se faz ouvir na Convenção exigindo a supressão imediata e total do trabalho escravo nas colônias e enaltecendo a figura de Toussant Louverture e a revolução do Haiti. "Uma república negra no meio do Atlântico" – diz Grégoire – "é um farol elevado para o qual dirigem o olhar os opressores enrubescendo e os oprimidos suspirando. Olhando-a, a esperança sorri para os 5 milhões de escravos espalhados nas Antilhas e no continente americano". (De passagem, falta traduzir para o português a obra pioneira desse bispo republicano que tão bravamente denunciou a escravidão e o preconceito de cor: De la noblesse de la peau, ou du préjugé des blancs contre la couleur des Africains et celle de leurs descendants noirs e sang-mêlés.)
Quem retomaria a bandeira de Grégoire seria outro republicano radical, este agnóstico, Victor Schoelcher, que conduziu a luta final pela abolição em plena revolução de 1848.
Nessa altura de sua exposição, Losurdo pode traçar a linha principal de clivagem. De um lado, o liberalismo clássico, proprietista e excludente e, quando lhe é proveitoso, racista e escravista. De outro, o radicalismo democrático, que tem como horizonte precisamente superar as barreiras de classe e de raça que os liberais conservadores ergueram para defender os seus privilégios.
O autor detém-se longamente nas oscilações do mais fino e arguto dentre os liberais franceses, Alexis de Tocqueville. Não cabe nesta resenha enumerá-las. Verá o leitor que, após 48, Tocqueville retrai-se em face dos movimentos democráticos da Itália de Mazzini e da Hungria de Kossuth, perdendo o equilíbrio que marcara A democracia na América e chegando a augurar um projeto militar que reverta o processo revolucionário desencadeado em quase toda a Europa. Quanto à recente conquista da Argélia, Tocqueville não usa de meios-termos: é preciso domar completamente as populações árabes e forçá-las a viver sob a civilização branca, francesa. Involução ou coerência do capitalismo liberal europeu que está reiniciando, nesse momento, o ciclo da conquista colonial prestes a atingir todo o continente africano? A discutir.
Na esfera do radicalismo, Losurdo situa certas declarações de Simón Bolívar (hoje tão oportunas), que, louvando a revolução do Haiti, sonha para a América andina uma democracia de brancos e índios, negros e mestiços. Resta perguntar: o que fizeram os políticos liberais que assumiram o poder na maioria das novas nações americanas? O que sabemos ao certo é que houve uma reprodução local da conivência de liberalismo burguês e escravidão (caso do Brasil, das Antilhas e do sul dos Estados Unidos); e uma fusão do mesmo liberalismo formal com a semi-servidão do indígena na Colômbia, no Equador, no Peru e na Bolívia. Caso Losurdo houvesse tratado mais detidamente das formações sociais latino-americanas, muito lhe teria aproveitado a leitura dos Sete ensaios de interpretação da realidade peruana (1928), em que Mariátegui desvendou a estreita relação entre a política liberal-oligárquica, que regia o Peru após a Independência, e a brutal exploração do índio nos latifúndios da região serrana.
Os argumentos dos liberais conservadores brasileiros não eram nada originais: misturavam críticas anódinas à instituição com firmes recusas de enfrentar o problema de fundo, alegando sempre os interesses de nossa economia de exportação sustentada pelo braço negro. No plano político-jurídico, a Constituição de 1824, incorporando dispositivos da Carta da Restauração e o duro proprietismo do Código Napoleônico, omitia pudicamente o termo "escravidão", exatamente como fizeram os autores da Constituição norte-americana e as cartas liberais das monarquias européias. Cá e lá..., o cimento ideológico aplicado pelos donos do poder valeu-se largamente do rótulo prestigioso do liberalismo.
O cerne da questão desnuda-se e ganha atualidade quando o autor passa da relação senhor-escravo, ainda vigente nos meados do século XIX, para o par moderno patrão-operário. Vem então à luz a oposição estrutural entre capital e trabalho e, em termos ideológicos, entre o liberalismo e os vários socialismos que se foram gestando na prática das lutas operárias e na cabeça de pensadores revolucionários ou reformistas.
Em toda parte aonde chega a Revolução Industrial, a regra é a superexploração do trabalhador e a degradação de sua qualidade de vida, como agudamente a descreveu Engels na Manchester de 1844.
A tensão que se estabelece entre legisladores liberais e os sindicatos é recorrente e não podemos dizer que tenha desaparecido. O neoliberalismo é o grande adversário das garantias trabalhistas que pretende, à Thatcher e à Reagan, suprimir ou precarizar. Um dos apóstolos do fundamentalismo liberal-capitalista, Hayek, considera "dever moral do Estado" (sic!) impedir que os sindicatos interfiram no jogo livre do mercado.
É no mínimo estranho que ainda se diga, de boa ou de má-fé, que o liberalismo foi ou é sinônimo de democracia econômica e social. Ou então que só no Brasil a burguesia imperial e seus porta-vozes no Parlamento encenaram uma comédia ideológica ao protelarem a abolição do cativeiro. Se farsa houve, ela foi representada em diversos contextos e em todo o Ocidente desde que se criou o termo liberalismo. O ensaio de Losurdo contribui para desfazer qualquer equívoco eurocêntrico ao demonstrar que o poder liberal, onde quer que estivesse instalado, não se propôs jamais compartilhar com "os de baixo" as suas sólidas vantagens. Não se tratava de comédia, mas do drama composto, em nível mundial, pela estrutura contraditória do capitalismo em expansão.
A oposição entre liberalismo e efetiva democracia social oferece exemplos em toda parte, desde os mais grosseiros e violentos até os mais refinados. Um dos mais eminentes economistas liberais italianos, Einaudi, chamava, em 1909, o imposto progressivo de "banditismo organizado para roubar o dinheiro dos outros mediante o Estado".
Losurdo poderia fechar o seu belo ensaio citando uma tese de Karl Polanyi reexposta brilhantemente em As metamorfoses da questão social de Robert Castel:
O mercado auto-regulado, forma pura do desenvolvimento da lógica econômica entregue a si mesma, é, estritamente falando, inaplicável, porque não comporta nenhum dos elementos necessários para fundar uma ordem social. Mas poderia destruir a ordem social que lhe preexiste.
Alfredo Bosi é professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo e autor, entre outras obras, de História concisa da literatura brasileira,O ser e o tempo da poesia,Dialética da colonização, Machado de Assis: o enigma do olhar,Literatura e resistência e Brás Cubas em três versões. É editor da revista estudos avançados e membro da Academia Brasileira de Letras. @ – abosi@usp.br
 
 
BOSI, Alfredo. Liberalismo versus democracia social. Estud. av. [online]. 2007, vol.21, n.59, pp. 359-363. ISSN 0103-4014.

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