Todo contrato
celebrado destina-se ao cumprimento. Na célebre afirmação doutrinária,
as obrigações tendem ao adimplemento. É o fim a que devem servir. Ocorre
que nem sempre tudo ocorre como esperado, e não raras vezes o contrato
celebrado não chega ao adimplemento. Nessas situações, se pode falar do
fim negativo do contrato (ao contrário do seu fim positivo, que seria o
cumprimento). Esta expressão “fim negativo”, embora não seja de melhor
técnica, é bastante didática, ao indicar as situações em que não ocorre a
prestação ajustada pelos contratantes, seja em razão de inadimplemento
imputável ao devedor, ou outras situações previstas na legislação.
Nos
contratos de consumo, há inúmeras situações em que o contrato deixa de
ser cumprido pelas partes, dando causa à sua extinção, mediante
exercício do direito de resolução pelo credor quando ocorre,
propriamente, o inadimplemento, ou, ainda, em razão de situações que a
própria lei define um direito à resilição unilateral (caso do direito de
arrependimento, previsto no artigo 49 do CDC), ou subordine seus
efeitos a condição suspensiva (caso da venda a contento ou sujeita a
prova, prevista nos artigos 509 e 510 do Código Civil). É muito comum,
nesses casos, ocorrer a incidência comum de institutos próprios do
Direito do Consumidor e outros do Direito Civil, exigindo redobrada
atenção quanto aos limites de sua aplicação em acordo com a o caráter de
ordem pública das normas protetivas do CDC
[1], e o respeito à autonomia privada dos contratantes.
No
caso de inadimplemento contratual, o CDC basicamente limita seus
efeitos quando o inadimplente for o consumidor. Seu artigo 52,
parágrafo 1°, expressamente limita as multas de mora, definindo que não
poderão ser superiores a 2% do valor da prestação. Da mesma forma, o
artigo 53 do CDC não permite as chamadas cláusulas de decaimento, como
são conhecidas aquelas que estabelecem a perda total das prestações
pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a
resolução do contrato e a retomada do produto alienado.
Em ambos
os casos, orientou-se o CDC, segundo uma tendência também percebida nas
relações civis, de limitar e controlar seus efeitos, de modo que não
deem causa a um enriquecimento excessivo do credor
[2].
Naturalmente que o fez com maior intensidade no caso da multa moratória
(ou cláusula penal moratória), cujo limite, na legislação civil, é
definido até o valor da prestação principal (artigo 412 do Código
Civil), impondo ademais, ao juiz, o dever de sua redução quando reputada
excessiva (artigo 413 do Código Civil). Não é desconhecida, nesse
particular, que a estrita limitação da cláusula penal, embora encontre
plena justificativa nos contratos civis e de consumo, observa críticas
em relação aos contratos empresariais. Sobretudo em vista das funções
que lhe são normalmente reconhecidas, como de estímulo ao cumprimento da
obrigação e de pré-estimação dos danos
[3].
Ocorre
que, ao lado desses institutos, a criatividade negocial — porque não
dizer, a partir de uma inteligente estratégia jurídica de certos
fornecedores — vem dando uso a outros figuras típicas do Direito
Privado, para definirem efeitos distintos no caso do contrato de consumo
não chegar a seu fim positivo, o adimplemento.
A primeira delas
diz respeito às arras, instituto de tradição milenar e amplamente
utilizada em certos contratos civis, especialmente nas promessas de
compra e venda de imóveis. Como se sabe, a cláusula penal e as arras são
institutos que tem semelhanças quanto a certas funções que desempenham,
mas com substanciais diferenças em relação à sua estrutura. As arras
consistem na entrega, a um dos contraentes, de determinada coisa
(normalmente, certa quantia em dinheiro), no momento de celebração de
contrato ou pré-contrato, visando demonstrar a existência do acordo (daí
denominar-se também sinal), antecipar ou garantir seu cumprimento, ou
ainda, assegurar possibilidade de arrependimento. Quando se tomam as
arras em sua função de garantia ou reforço do acordo, conforme se
apresentavam no Direito Romano
[4],
percebe-se pontos de contato com a cláusula penal. O princípio é
simples: se quem deixou de realizar a prestação foi quem prestou as
arras, irá perdê-las em favor do outro contratante. Porém, se quem
deixou de cumprir foi quem recebeu as arras, deverá devolvê-las,
acrescidas do seu equivalente (as arras confirmatórias, do artigo 418 do
Código Civil). Como regra, as arras não excluem a possibilidade daquele
que sofre com o inadimplemento exigir indenização suplementar, se
provar que os danos sofridos são superiores ao valor prestado. A não ser
que seja convencionada expressamente a possibilidade de arrependimento
(artigo 420 do Código Civil), hipótese em que as arras se consideram com
natureza indenizatória, afastando-se indenização suplementar (as arras
penitenciais). É promessa de prestação condicionada ao inadimplemento
[5]. Uma vez prevista na obrigação, terá seus efeitos subordinados à condição do inadimplemento do devedor.
A
utilização das arras nos contratos de consumo se dá com frequência em
relação aos contratos de promessa de compra e venda de bens imóveis, em
que o consumidor promete adquirir da incorporadora seu imóvel
residencial. Ocorre que, mesmo nesses casos, a jurisprudência, ao
reconhecer a possibilidade de que seja convencionada, também controla
seus efeitos, especialmente para evitar a perda, pelo consumidor, de
parte substancial do que já tenha pago até a resolução do contrato. Há,
nesse caso, um controle de proporcionalidade pelo Poder Judiciário, em
especial para assegurar o cumprimento do artigo 53 do CDC, que proíbe as
cláusulas que imponham a perda total das prestações pagas
[6].
Mais
recentemente, viu-se que as arras passaram a ser utilizadas também na
aquisição de bens móveis de maior valor, em especial automóveis
recém-lançados, cuja encomenda pelo consumidor condiciona-se ao
pagamento de arras. A princípio, não há regra que impeça a prática,
desde que se trate de compra e venda presencial, na concessionária, por
exemplo, e sempre considerando a proporcionalidade assegurada pelo
artigo 53 do CDC. Em sentido contrário, não pode ter lugar as arras ou
retenção de pagamento a qualquer título, quando se trate de contratos
sobre os quais incidam o artigo 49 do CDC. Para compras feitas fora do
estabelecimento comercial, inclusive aquelas feitas pela internet,
assegura-se o direito de arrependimento do consumidor no prazo de sete
dias, para os quais não deve ser admitida limitação de qualquer espécie.
Outra
situação que merece atenção é o chamado abono de pontualidade. Embora
não diga respeito ao fim negativo propriamente dito, uma vez que, em
regra, tem lugar em contratos de duração, enfrenta séria discussão sobre
sua conformidade ou não com as normas do CDC.
Pode ocorrer de,
por livre convenção das partes, e visando assegurar a diligência do
devedor na realização da prestação devida no tempo ajustado, que se
convencione espécie de desconto ou abono, como estímulo ao cumprimento. É
convenção que resulta do exercício da autonomia privada. Nesse sentido,
o valor da prestação principal será reduzido se o devedor atenda a
determinada condição que, normalmente, é seu pagamento até determinada
data estipulada na obrigação. Nesse sentido é de reconhecer, conforme o
interesse das partes, que as fórmulas de incentivo à pontualidade tanto
podem conformar o desconto para o adimplemento pontual, quanto definir
valores distintos da contraprestação como forma de estimular certo tempo
de cumprimento. Quem pretende receber pontualmente pode, da mesma
forma, comprometer-se a contraprestar com acréscimo, no caso do
atendimento dessa condição.
Controversa é a possibilidade de
utilização do abono de pontualidade como espécie de cláusula penal
oculta ou disfarçada. O argumento, nesse caso, é que o desconto
oferecido para pagamento na data ajustada a rigor disfarçaria eventual
cláusula penal superior ao limite legal no caso de pagamento após o
vencimento, como efeito da purga da mora. Nos contratos de consumo, o
limite legal de 2% do valor da prestação principal, no caso de cláusula
penal moratória, é impositivo. Assim, por exemplo, suponha-se uma
obrigação de cumprimento diferido, na qual a parcela periódica a ser
adimplida é de R$ 100, com vencimento no dia 30 de cada mês. Todavia,
para quem pague antes, ou até o vencimento, se estipula abono de 10%.
Logo, quem faz o pagamento até o dia 30 deverá prestar, na verdade, R$
90. Já o devedor que cumpra um dia depois não fará jus ao abono, pagando
os R$ 100, mais os efeitos da mora. A diferença de valor da prestação
para o devedor em mora, superará 10%, o que — segundo esse raciocínio —
violaria a lei. O STJ ao decidir questão semelhante entendeu pela
licitude do abono de pontualidade como espécie de sanção premial,
incentivando o comportamento diligente do devedor
[7].
De
fato, não há razão em sustentar-se a proibição do abono de
pontualidade. E aqui nem se precisa argumentar em excesso. Não há
proibição, porque não há lei que o faça, prevalecendo, no plano
obrigacional, o predomínio da autonomia privada. O que se pode cogitar é
que, em certas situações, a convenção do abono de pontualidade com o
propósito de burlar limite legal impositivo ao valor da cláusula penal,
possa configurar fraude à lei, dando causa a sua nulidade (artigo 166,
VI). Daí porque outra solução indicada pela jurisprudência é a restrição
de cumulação, para o inadimplemente, dos efeitos próprios do
inadimplemento e da cláusula penal moratória
[8], ou ainda sua incidência sobre o valor com desconto
[9].
Por
fim, mencionem-se as cláusulas de limitação ou exclusão de
responsabilidade. Como regra, são expressamente proibidas nos contratos
de consumo, em acordo com o que estabelece o artigo 25 do CDC, ao
estabelecer: “É vedada a estipulação contratual de cláusula que
impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar prevista nesta
e nas seções anteriores”. No artigo 51, I, do CDC, todavia, admite-se a
possibilidade da convenção de cláusula limitativa de indenização,
quando se trate de consumidor pessoa jurídica, em situações
justificáveis. A determinação do que sejam essas situações
justificáveis, confia-se à concretização judicial. Alguns critérios
úteis, todavia, serão a identificação, em concreto, do poder de barganha
da pessoa jurídica consumidora, a possibilidade que teve de vistoriar,
antes, os produtos adquiridos, não reclamando vícios aparentes; ou a
vantagem que tenha obtido em razão do contrato, nas condições
específicas em que foi celebrado
[10].
De
tudo se vê que a criatividade negocial, útil ao desenvolvimento do
mercado, em relação aos contratos de consumo deve respeitar o necessário
equilíbrio entre o exercício da autonomia privada dos contratantes e o
balizamento definido pelas normas de ordem pública estabelecidas no CDC.
[1] Bruno Miragem.
Curso de Direito do Consumidor, 6ª ed. São Paulo, 2016, p. 68.
[2] Bruno Miragem.
Direito Civil: Direito das Obrigações.
São Paulo: Saraiva, 2017, no prelo; Karl Larenz, Derecho de
obligaciones, t. I. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1958,
p. 371; Denis Mazeaud, La notion de clause pénale. Paris: LGDJ, 1992;
Isabel Espín Alba, La cláusula penal. 1997, Madrid: Marcial Pons, p. 95 e
ss.
[3] Bruno Miragem.
Direito Civil: Direito das Obrigações. São Paulo: Saraiva, cit.
[4]
Max Kaser; Rolf Knütel, Römisches privatrecht. 20 aufl. München:
C.H.Beck, 2014, p. 241-242; Biondo Biondi, Istituzioni di diritto
romano. 4ª ed. Milano: Giuffrè, 1972, p. 448-449; Reinhard Zimmermann,
The law of obligations. The roman foundation of the civilian tradition.
New York: Oxford University Press, 1996, p. 230 e ss.
[5] Francisco Cavalcante Pontes de Miranda.
Tratado de Direito Privado, t. XXVI. São Paulo: RT, 2012, p. 145.
[6]
Assim o REsp 355.818/MG, rel. min. Aldir Passarinho Júnior, 4ª Turma,
j. 22/4/2003, DJ 25/8/2003; REsp 1056704/MA, rel. min. Massami Uyeda, 3ª
Turma, j. 28/4/2009, DJe 4/8/2009; AgRg no REsp 1.222.139/MA, rel. min.
Massami Uyeda, 3ª Turma, j. 1/3/2011, DJe 15/3/2011. Sobre a
impossibilidade de retenção quando tenha sido o vendedor quem deu causa
ao descumprimento: AgRg no REsp 997.956/SC, rel. min. Luis Felipe
Salomão, 4ª Turma, j. 26/6/2012, DJe 2/8/2012.
[7] STJ, REsp 1.424.814/SP, rel. min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, j. 4/10/2016, DJe 10/10/2016.
[8]
TJ-SP, ApCiv 10256919020148260007, rel. Ruy Coppola, 32ª Câmara de
Direito Privado, j. 17/9/2015, DJ 18/9/2015; TJ-SP, ApCiv
00051775920118260001, rel. Vianna Cotrim, 26ª Câmara de Direito Privado,
j. 18/12/2013, DJ 18/12/2013; TJ-SC, ApCiv 20120291749, 5ª Câmara de
Direito Civil, rel. Henry Petry Junior, j.12/9/2012. Na doutrina,
alinha-se com esse entendimento, Carlos Roberto Gonçalves,
Curso de Direito Civil Brasileiro, v. 2. Teoria geral das obrigações. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 425.
[9] REsp 832.293/PR, rel. min. Raul Araújo, 4ª Turma, j. 20/8/2015, DJe 28/10/2015.
[10] Bruno Miragem.
Direito Civil: Direito das Obrigações, cit.