segunda-feira, 3 de outubro de 2016

JT-MG reconhece rescisão indireta por rigor excessivo para atingimento de metas e condições precárias de trabalho de telemarketing

Julgando desfavoravelmente o recurso de uma empresa de telemarketing e serviços de call center, a 5ª Turma do TRT-MG manteve a sentença que declarou a rescisão indireta do contrato de trabalho e ainda deferiu à atendente de telemarketing uma indenização por dano moral. Os julgadores rejeitaram os argumentos da empregadora e reconheceram que a trabalhadora era tratada com rigor excessivo pela chefe para o atingimento de metas, além de trabalhar em ambiente precário. O voto foi proferido pelo desembargador Márcio Flávio Salem Vidigal.

Uma testemunha que trabalhou na mesma equipe da atendente confirmou a versão apresentada na inicial. Ela relatou que o trabalho era realizado em cadeiras quebradas e sem encosto, mesas sem regulagem e não havia apoio para os pés. O ar condicionado era extremamente gelado e sem possibilidade regulagem. O local não ficava limpo e havia insetos e baratas.

A testemunha também contou que não faziam exames periódicos, mas apenas admissional. Se ultrapassassem os cinco minutos de pausa para banheiro, a supervisora "ia atrás". De acordo com o depoimento, a chefe maltratava alguns empregados, inclusive a reclamante. Ela perseguia, xingava e gritava caso não batessem as metas. A testemunha afirmou que ela e a atendente batiam as metas e reclamavam com a própria chefe do comportamento dela. No entanto, nada era repassado à gerência.

Em seu voto, o relator lembrou que o princípio da Continuidade da Relação de Emprego e o valor social do trabalho consagrado na Constituição Federal (arts.1º, inc. IV e 170, caput) devem ser considerados em casos envolvendo término do contrato de trabalho. Conforme explicou, a rescisão indireta do contrato de trabalho deve se basear em falta que torne insustentável a manutenção do contrato de trabalho. "O tratamento discriminatório, com rigor excessivo do empregador, diretamente o por meio de seus prepostos, enseja ambiente hostil de trabalho, capaz de gerar constrangimento e angústia no empregado, culminando com a falta para a rescisão indireta. E ainda, um ambiente de administração por estresse e de exposição do trabalhador pode representar ofensa à honra e imagem, pois atinge o ser e todo o acervo extrapatrimonial que o acompanha, constitucionalmente protegido", acrescentou.

Com relação à cobrança por metas, esclareceu que isso, por si só, não induz, à rescisão indireta do contrato e nem ao dano moral. Todavia, se essa cobrança ultrapassa os limites daquilo que se permite na execução normal do contrato, poderá ficar caracterizada a falta grave.

Para o magistrado, esses limites foram ultrapassados no caso, ficando a falta grave do patrão caracterizada, nos termos das alíneas b e e do artigo 483 da CLT. Estes dispositivos consideram como motivos ensejadores do rompimento do contrato de trabalho por parte do empregado o tratamento com rigor excessivo e a pratica de ato lesivo da honra e boa fama pelo empregador ou superiores hierárquicos.

"O empregador deve zelar por um ambiente de trabalho em que não predomine a administração por estresse e que a imposição de metas não implique condutas abusivas. Assim, a gestão de pessoas merece o envolvimento cuidadoso do empregador a ponto de não tolerar ofensa à honra e à imagem de seus colaboradores, notadamente, capaz de gerar transtornos psíquicos sérios no trabalhador", registrou no voto.

O recurso foi provido apenas para reduzir o valor da reparação por dano moral para R$ 5 mil. Isto porque os julgadores entenderam que o valor de R$18 mil fixado na sentença seria excessivo. Para tanto, aplicaram os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, levando em conta, ainda, a extensão e a gravidade dos efeitos do dano, o grau de culpa do ofensor, a situação econômica das partes e o tempo de serviço prestado para que se possa restabelecer o equilíbrio rompido. ( 0000430-82.2015.5.03.0109 ED )


Fonte: TRT3

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Ativismo prejudicial "Magistrado que adentra arena do combate político perde legitimidade"




Por Sérgio Rodas e Otavio Luiz Rodrigues Junior


A crescente “judicialização da política”, no Brasil e na Europa, tem mostrado que as instituições estão funcionando bem e de forma imparcial. Mas, para continuar nesse rumo, os magistrados não podem virar ativistas e invadir a arena do debate político, o que tiraria a legitimidade de suas decisões. Essa é a opinião do civilista português Paulo Mota Pinto, que foi por nove anos juiz conselheiro do Tribunal Constitucional, corte equivalente ao Supremo Tribunal Federal brasileiro.

“É necessário que os juízes não resvalem para uma certa discricionariedade ou assumam posições dúbias, muito menos tangenciem para a arena do combate político, o que seria negativo e acarretaria perda de legitimidade. Os magistrados devem ter sempre a consciência do risco de sua deslegitimação”, afirma.

Dessa forma, juízes não podem participar de atividades partidárias nem fazer comentários políticos à imprensa ou em redes sociais, avalia Mota Pinto, que é professor da Universidade de Coimbra. Afinal, eles podem ter que vir julgar casos relacionados aos assuntos que comentaram.

Tal declaração vem de um integrante do Partido Social Democrático, que foi deputado de 2009 a 2015, e filho do ex-primeiro-ministro de Portugal Carlos Alberto da Mota Pinto. Mesmo com essas “tentações”, o civilista ressalta que sempre separou a atividade jurídica da política. Esta ele encara como uma missão transitória, ao passo que aquela seria sua verdadeira profissão.

No entanto, seu profundo conhecimento de Direito Privado pouco o ajudou no exercício da atividade parlamentar. Por outro lado, o conhecimento de como as leis são feitas foi muito útil nesse período, conta Mota Pinto.

Um dos pontos controversos abordados pelo jurista é a diferenciação do preço de seguros em razão das características dos contratantes. De acordo com Mota Pinto, o sexo do segurado não pode influenciar esse valor, mas a idade, sim.

Com relação ao ensino jurídico, o ex-integrante do Tribunal Constitucional defende a manutenção das aulas expositivas, porém, com a complementação de disciplinas práticas. Ele ainda é favorável à manutenção do Direito Romano nas grades universitárias, desde que a matéria seja “estudada e ensinada em uma perspectiva atualista, tendo em conta a sua explicação do direito atualmente vigente”.

Em entrevista à ConJur — da qual também participou Otavio Luiz Rodrigues Junior, professor doutor de Direito Civil da USP. ex-bolsista do Instituto Max-Planck de Hamburgo e coordenador da Rede de Direito Civil Contemporâneo —, Pinto comparou o Tribunal Constitucional ao STF, discutiu a autonomia dos ramos do Direito Privado e opinou sobre a viabilidade de um código civil europeu.

Paulo Mota Pinto esteve no Brasil a convite do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, da Rede de Direito Civil Contemporâneo e do Programa de Pós-Graduação da Faculdade 7 de Setembro. Proferiu conferências em Fortaleza e São Paulo sobre o tema da eficácia dos direitos fundamentais em relação aos particulares.

Leia os principais trechos da entrevista (a versão integral será publicada no volume 8 da Revista de Direito Civil Contemporâneo):

ConJur – A figura dos "catedráticos mandarins" é uma marca da vida política portuguesa. Vários professores universitários, particularmente das faculdades de Direito, também militam em partidos políticos. Sua atuação no Partido Social Democrático é uma parte relevante de sua biografia. O senhor poderia comentar sua experiência na política?
Paulo Mota Pinto – Separo os dois aspectos de minha atividade. Minha atividade jurídica, quer como professor, quer como jurisconsulto, é profissional, enquanto sempre encarei minha passagem pela política como um serviço público e transitório, não como uma carreira. Em certa fase, fui convidado para assumir responsabilidades no partido de que sou militante e para ser parlamentar, e achei que não devia recusar tendo em conta a fase difícil que Portugal ia atravessando.

ConJur – Como sua condição de professor de Direito Civil influenciou sua atividade parlamentar?
Paulo Mota Pinto – Eu fui deputado presidente de duas comissões de 2009 a 2015. Estive dois anos presidindo a Comissão do Orçamento e de Finanças em uma fase em que Portugal estava em dificuldades econômicas e teve de pedir ajuda externa. Minha experiência jurídica, mais do que civilista, foi útil. O conhecimento da forma de funcionamento do Parlamento, do processo legislativo, foi bastante útil, mais do que a experiência como civilista. Na segunda metade de minha experiência na Assembleia da República, de 2011 a 2015, eu presidi uma comissão de assuntos europeus que acompanhava a atividade europeia do Parlamento português. A experiência jurídica foi menos relevante nessa função. Enfim, eu não gostaria de voltar a ser deputado, mas é uma experiência enriquecedora para quem gosta da carreira pública. Quanto ao Direito Civil, de modo específico, eu optei por não ter uma atividade parlamentar vinculada à área de minha atividade profissional, até para evitar conflitos de interesses.

ConJur – O senhor foi o mais jovem juiz do Tribunal Constitucional da República Portuguesa, nomeado aos 32 anos, em 1998. Quais foram os aspectos mais marcantes de seu mandato, que se encerrou em 2007?
Paulo Mota Pinto – Participei de tantos acórdãos (fui relator de mais de 550) que tenho dificuldade em destacar um só aspecto. Certamente, há alguns acórdãos que me deram particular gosto, por achar que dei uma contribuição relevante – é, por exemplo, o caso das decisões de que fui relator e que declararam inconstitucional, por violação do direito à identidade pessoal, o prazo que existia no Direito Português (de apenas dois anos a contar da maioridade) para se mover ação de investigação de paternidade. Hoje este regime mudou, sobretudo por causa dessas decisões.

ConJur – Quais são as diferenças mais marcantes entre o Tribunal Constitucional português e o Supremo Tribunal Federal brasileiro?
Paulo Mota Pinto – O Tribunal Constitucional Português é um órgão com papel importante na realidade jurídica e também política portuguesa, mas tornou-se, talvez no plano político, mais central depois do programa de assistência financeira de 2011. Assim o entendo porque ele declarou inconstitucionais várias medidas contidas no orçamento de Estado, que se colocaram no centro da autoridade política. Há uma diferença importante: o Tribunal Constitucional português apenas controla a construção de normas, não tem recurso de amparo ou ações diretas de inconstitucionalidade, nem possui a figura das “queixas constitucionais”, muito menos decide conflitos de competência. O Tribunal Constitucional apenas julga normas em fiscalização abstrata no caso concreto ou em um recurso que venha do caso concreto. Essa é uma diferença importante.

Em segundo lugar eu diria que o Supremo Tribunal Federal brasileiro é um órgão que está mais no centro da atualidade porque, em comparação com o Tribunal Constitucional português, chegam até ele muito mais casos de grande relevância política, sob a forma de recursos e de ações diretas de inconstitucionalidade. Outra diferença importante está em que as deliberações do Supremo Tribunal Federal são filmadas e transmitidas em sessões públicas. Em Portugal, são públicos apenas o processo e o anúncio da decisão. Mas a deliberação, a discussão entre os juízes não é pública, não tem filmagem por câmera televisiva da sala de sessões. Isso tem vantagens e desvantagens.

ConJur – Em muitos países, de diferentes tradições jurídicas, assiste-se ao crescente protagonismo na vida pública do Poder Judiciário, especialmente das cortes constitucionais. Uma das consequências mais sensíveis desse processo é a chamada judicialização da política. Qual é a sua visão sobre esse processo no cenário europeu?
Paulo Mota Pinto – Dependendo dos países e dos casos, isso tem realmente acontecido. Em Portugal, nós temos inquéritos e precedentes até criminais bastante notórios em relação a personagens políticas. “Judicialização da política” talvez não seja a melhor expressão para tratar do que tem acontecido. Dito de outro modo, os tribunais têm realmente um papel a desempenhar e o têm desempenhado. Eu sou um observador, e o que eu vejo é que os órgãos jurisdicionais estão funcionando e atuam sem pré-juízos políticos. Isso é bastante positivo. É uma grande vantagem para o Brasil mostrar que as instituições estão a funcionar, mesmo com os problemas que nós conhecemos. Na Europa, penso que isso também aconteceu. Um pouco na Itália, um pouco na Espanha. Não é um retrocesso, mas é importante que os tribunais saibam sempre fundamentar juridicamente suas decisões, com a maior transparência.

É necessário que os juízes não resvalem para uma certa discricionariedade ou assumam posições dúbias, muito menos tangenciem para a arena do combate político, o que seria negativo e acarretaria perda de legitimidade. Os magistrados devem ter sempre a consciência do risco de sua deslegitimação. Enquanto se mantiverem na linha atual, que me parece uma linha de estrita fundamentação jurídica e de aplicação da lei igualmente para todos, eu penso que há um desenvolvimento positivo que corresponde a processos semelhantes ou paralelos, parecidos que aconteceram na Europa.

ConJur – Um juiz pode ser ativista?
Paulo Mota Pinto – Um juiz não deve ser ativista. Não deve participar de iniciativas partidárias públicas ou com fins ativistas. Não sei se podem ou se é lícito no Brasil, mas em Portugal os juízes não podem participar de iniciativas partidárias. Saber o que é uma iniciativa política, uma ação ativista, uma manifestação, ou o que é uma iniciativa partidária pode ser difícil. Definitivamente, os juízes não podem ter atuação partidária, a que título for. E mesmo que os juízes pudessem, não deveriam ser ativistas, especialmente quando se tratar de ativismo em áreas nas quais as pessoas podem vir a ser chamadas a julgar.

ConJur – E isso inclui fazer comentários políticos em redes sociais?
Paulo Mota Pinto – Sim. Houve casos desses em Portugal, em redes sociais inclusive fechadas, com centenas de juízes. Por mais fechadas que sejam, essas coisas acabam vazando, e isso não é bom para a Justiça em geral. Portanto, minha tendência é para achar que eles não devem fazer isso. Não quer dizer que eu não posso praticar a minha liberdade de expressão, mas eu penso que, deontologicamente, o juiz não deve fazer isso, sobretudo se forem comentários em áreas nas quais eles podem vir a ser chamados para julgar. Quer dizer, os juízes administrativos, os juízes de família, que não têm nem nunca virão a ter uma intervenção naquela matéria pública, talvez até possam, mas se não for assim, não devem fazer esses comentários.

ConJur – A reforma do Código Civil alemão, nas áreas de Direito das Obrigações e da prescrição, são questões que têm incomodado grande parte dos civilistas da Alemanha. Teme-se que haja uma perda da centralidade do Direito Privado nacional em face de diretivas europeias, muitas delas consideradas mal escritas ou traduzidas de modo polêmico. Qual sua visão desse fenômeno que está a alterar o cenário jurídico europeu? O senhor acredita em um código civil europeu?
Paulo Mota Pinto – Não penso que o Direito Europeu possa provocar a curto ou médio prazo uma perda da centralidade dos direitos privados nacionais dos estados-membros da União Europeia. O Direito é também um produto cultural, e não sou favorável a uma uniformização jurídica na Europa. Nessa medida, os receios a que alude são exagerados. As reações a tentativas de criação de regimes uniformes, ou a propostas da Comissão Europeia como a de um regulamento sobre um direito comum da compra e venda mostram isso mesmo. É claro, porém, que o Direito Europeu obriga a um confronto dos direitos nacionais com as liberdades fundamentais e os princípios da União, que é, e tem de ser, feito a nível europeu - e não só pelos tribunais e juristas de cada estado-membro -, bem como a um confronto com as soluções jurídicas noutros estados-membros. Para culturas jurídicas mais habituadas a uma certa autarquia, que rejeitam influências externas, isso pode ser difícil. Não é, felizmente, o caso português, onde sempre se deu muita relevância à comparação com outras ordens jurídicas.

Quanto a um código civil europeu, há projetos que procuram encontrar um núcleo comum do Direito Privado europeu ou tentam estabelecer um quadro comum de referência com um conjunto de regras, o famoso projeto Draft Common Frame of Reference do Direito Privado europeu. Houve, até recentemente, menos que um código civil, mas um projeto do regulamento europeu da compra e venda. No entanto, mesmo esse projeto não foi aprovado. Há algumas reticências sérias nos estados-membros quanto à hipótese de se substituir, ainda que parcialmente, os códigos civis nacionais. Isso também corresponde um pouco à ideia de que o Direito e o Direito Privado também são um produto cultural e a União Europeia não se deve fazer assimilando ou prejudicando a autonomia cultural, a exemplo das línguas, das tradições e das instituições. Se isso ocorrer, só poderá se dar na medida em que for necessário para a livre circulação, para o mercado único, em nome da harmonização jurídica, mas sem substituição das especificidades nacionais. Respondo, portanto, à última parte da pergunta: penso que não é para hoje nem para amanhã, talvez para depois de amanhã ou um dia futuro, termos um Código Civil europeu. A vocação de nosso tempo não é ainda do Código Civil europeu. Nosso tempo é o da harmonização de regras jurídicas na União Europeia, sobretudo na área econômica e do mercado.

ConJur – Trazendo-se essa questão para a realidade sul-americana, o senhor acredita que é possível ou conveniente avançar em um processo de harmonização ou de unificação normativa no Direito Privado para o Mercosul?
Paulo Mota Pinto – Talvez, para harmonizar regras que têm a ver com a liberdade de circulação de bens e mercadorias, de serviços, de pessoas, através de diretivas ou regulamentos comuns e regras que visam evitar medidas que tenham efeito equivalente às restrições das importações. No domínio econômico, acredito que possam existir regras capazes de dificultar essa livre circulação. Desse modo, é conveniente identificá-las e harmonizá-las. No entanto, desaconselho o caminho em direção a um código comum, cujas dificuldades já mencionei na pergunta anterior. É claro que a União Europeia é constituída por um maior número de países e que estes são menos homogêneos que os integrantes do Mercosul. Há mais diferenças culturais, institucionais ou de tradição entre um país do Sul, como Itália ou Portugal, e um país do Norte, como Suécia ou Holanda, do que entre o Brasil e o Chile ou a Argentina. Apesar disso, apesar de haver maior proximidade cultural na América do Sul, eu penso que não há condição para avançar para um código comum. Eu consideraria ser muito mais interessante seguir rumo a uma harmonização, como a União Europeia tem feito.

ConJur – No Brasil, inicia-se um movimento de crítica aos excessos no recurso aos princípios, às cláusulas gerais e a pautas axiológicas. Conhecendo a realidade brasileira, e inspirado pela experiência portuguesa, como o senhor considera que seria a forma adequada de examinar essa questão no Brasil?
Paulo Mota Pinto – Em um sistema de direito legislado, as cláusulas gerais são indispensáveis. Elas constituem muitas vezes os espaços de flexibilidade e as "válvulas de escape" que permitem ao julgador adequar a solução ao caso concreto e fazer valer por via delas as valorações mais relevantes (incluindo os valores e princípios constitucionais, mas não só). No entanto, é preciso ter sempre presente que uma cláusula geral ("ordem pública", "boa fé", "função social", entre outras) não pode ser entendida como uma autorização para o juízo discricionário ou para o livre-arbítrio do juiz. Pelo contrário: este deve procurar sempre, na sua concretização no caso, pontos de apoio e referências objetivas, tais como casos precedentes, o entendimento do sentido da cláusula pela comunidade jurídica e na doutrina, a situação dos interesses em presença e o seu melhor equilíbrio, as consequências sociais e econômicas gerais daquele tipo de solução. Só assim estará minimamente assegurado o cumprimento do dever do julgador de obediência à lei, que como se sabe, é, num regime democrático, desde logo uma exigência da democracia, e também uma condição de segurança e de certeza jurídicas.

Neste sentido, mais do que o combate às cláusulas gerais ou a sua eliminação, deve defender-se a segurança e objetividade na sua concretização, o que suscita também um problema de metodologia jurídica. Finalmente, há confusão entre a defesa da noção de dignidade da pessoa humana e o uso desta como um cheque em branco para o julgador avançar segundo o que é o seu próprio entendimento subjetivo da dignidade da pessoa humana. Essa confusão é indesejável e não se pode esperar que seja este o papel desse importante valor para a ordem jurídica.

ConJur – O senhor acredita que é útil a separação de matérias de Direito Privado em códigos distintos, como o Código Civil, o Comercial e o de Proteção ao Consumidor? No Brasil, tramita no Congresso Nacional um projeto de novo Código Comercial, o que iria de encontro à opção do codificador civil de 2002.
Paulo Mota Pinto – A minha tendência é para entender que os três ramos de Direito Privado (Direito Civil, Direito Comercial, e Direito do Consumidor) devem ter, cada um deles, a sua lei, o seu código. No Direito brasileiro, no entanto, havendo um Código de Defesa do Consumidor, eu não vejo o porquê de se ter um Código Comercial, depois de se ter integrado este no Código Civil. Como dito na pergunta, fez-se no Brasil um caminho próprio: unificaram-se no Código Civil as matérias civis e comerciais. Talvez não valha a pena fazer outro caminho e elaborar um outro código para cortar uma parte do Código Civil e instituir um Código Comercial autônomo.

ConJur – Discute-se no Brasil a criação de um Estatuto da Família e das Sucessões, retirando essas matérias do Código Civil. Qual sua opinião a respeito?
Paulo Mota Pinto – Sobre a localização formal do regime da família e das sucessões, não tenho uma opinião definitiva. Tendo fortemente, porém, a privilegiar sua localização no Código Civil, que não impede certamente que se consagrem as soluções mais adequadas aos tempos atuais. Julgo até que, ao contrário do que se possa pensar, essa localização confere mais, e não menos, dignidade a essas áreas, centrais para a disciplina da vida do homem comum em sociedade - isto é, para a matéria do Direito Civil.

ConJur – A divisão entre Direito Público e Direito Privado ainda é útil no Direito contemporâneo?
Paulo Mota Pinto – Creio que sim. Discordo das posições que defendem a "diluição" da distinção, e que resultam de uma incompreensão do seu sentido mais profundo. Este corresponde a dois domínios da vida - o do contato com o Poder Público e o exercício deste, por um lado, e o da vida em relação na sociedade civil e na economia privada, por outro - que continuam a existir. E ainda bem! Rejeito tanto a privatização do exercício do ius imperium como a "colonização" das escolhas e dos atos dos privados por uma racionalidade pública imperativa (com eliminação da liberdade emocional, a imposição a todos de padrões de proporcionalidade - isto é, com eliminação da liberdade dos privados).

ConJur – O que o senhor pensa da autonomia epistemológica do Direito Civil e do risco da "colonização" desse ramo jurídico pelo Direito Constitucional?
Paulo Mota Pinto – Não se deve confundir o que resulta das exigências do princípio da constitucionalidade (conformidade de todos os atos do Estado, executivos, legislativos ou judiciais, às regras e princípios constitucionais) com a negação de autonomia ao Direito Civil, e ao Direito Privado em geral. Esta última posição seria profundamente errada e nociva, e, até de inviável concretização. Defendo também que continuam a existir princípios jurídicos fundamentais que são específicos do Direito Privado (por exemplo, a autonomia privada, o reconhecimento e proteção da propriedade privada, entre outros), e que, neste sentido, ele mantém sua autonomia valorativa, desde que não desconforme com os princípios e regras constitucionais. O que muitas vezes alguns jusprivatistas afirmam é que a técnica dos direitos fundamentais não pode ser usada para substituir e ignorar as especificidades do Direito Privado, quer em suas construções, quer em suas soluções, em suas regras e até em seus valores. Nesse sentido, o Direito Privado tem autonomia, possui um espaço próprio de elaboração em relação ao Direito Constitucional, em relação aos direitos fundamentais, sempre com respeito à Constituição.

ConJur – Qual é sua opinião sobre o conceito de Direito Privado Constitucional?
Paulo Mota Pinto – A Constituição não é fonte imediata de Direito Privado, embora este deva sempre respeitar as regras e princípios constitucionais. A principal fonte de Direito Privado é o Código Civil e as leis de Direito Privado. Embora, como disse, essas normas devam obedecer ao disposto na Constituição, é necessário fazer uma distinção essencial. A afirmação de que há um Direito Privado Constitucional significa, das duas uma: que o Direito Civil está vinculado à Constituição e pelos direitos fundamentais, ou que haveria uma substituição do Direito Privado, do Direito Civil, pelo recurso direto aos princípios e às regras constitucionais, aos direitos fundamentais. Eu penso que, no primeiro caso, tem-se uma redundância. E, no segundo caso, isso seria indesejável, um erro, algo até mesmo inviável.

ConJur – Como o Código Civil português de 1966 e o Código Civil brasileiro de 2002 se relacionam na experiência jurídica comparada e na nova ordem constitucional nos dois países?
Paulo Mota Pinto – O Código Civil brasileiro de 2002 é um código jovem, que procurou incorporar alguns dos resultados da evolução da segunda metade do século XX. São exemplos disso uma grande quantidade de cláusulas gerais, isto é de conceitos indeterminados que têm conteúdo valorativo, tais como boa fé, ordem pública, função social. Essa é uma evolução que já se encontrava no Código Civil português de 1966. Isso é um aspecto positivo, que significa confiar ao julgador o papel de concretizar essas válvulas de escape, essas portas de entrada de valorações constitucionais e até de valorações correspondentes aos direitos fundamentais. Nesse sentido, os códigos de 2002 e 1966 têm algo em comum. Além disso, ambos os códigos têm uma sistematização que é bastante parecida, embora o código português não possua o livro de Direito da Empresa, como possui o brasileiro. O código de 1966 não fez incluir, portanto, o Direito Comercial. O código português também influenciou de certa forma alguns aspectos do código brasileiro e de outros códigos, como o italiano. Então, o Código Civil de 2002 é o produto da doutrina brasileira da sua metade do século XX e que, enfim, é comparável com outras experiências jurídico-normativas do período.

Na relação com a nova ordem constitucional está mais um ponto em comum: ambos os códigos são anteriores às constituições democráticas, que surgiram com grandes catálogos de direitos fundamentais, e, por essa razão, tiveram, de sofrer adaptações à nova realidade constitucional do Brasil e de Portugal. Quer dizer, o código de 2002 não é mais o que foi o projeto dos anos 1970. O código português de 1966 teve de sofrer uma grande adaptação para se ajustar à ordem constitucional de 1976. Mas eu penso que a promulgação do novo Código Civil brasileiro e a reforma no Código Civil português, de nenhuma forma diminuíram a autonomia do espaço civilístico, do espaço do Direito Privado em relação à Constituição, em relação aos direitos fundamentais. O Direito Civil deve obedecer aos direitos fundamentais, mas não pode ser substituído por eles.

ConJur – Em sua conferência na Faculdade de Direito da USP, o senhor ofereceu uma série de exemplos sobre questões atuais em torno do exercício ou da restrição a direitos fundamentais na esfera da autonomia privada e da autodeterminação das pessoas. Um deles é bastante relevante: um locador pode se recusar a celebrar um contrato de locação por causa da crença ou da religião praticada pelo locatário? Da mesma forma, poderia um empregador deixar de contratar um empregado por este professar determinada fé?
Paulo Mota Pinto – A regra é que não. Admito, porém, algumas exceções ligadas à esfera privada dos contratantes. Nos exemplos da pergunta: seria admissível a recusa quando o locador quiser alugar um quarto em sua própria casa. Admissível também seria o empregador rejeitar um empregado para uma função específica, como a de baby sitter, na qual a atividade é restrita para se trabalhar aos fins de semana. Nessa hipótese, o empregador poderia rejeitar uma pessoa de religião que a impeça de trabalhar aos sábados ou aos domingos. No segundo exemplo, há uma razão substancial: seria impossível que o candidato à vaga (trabalhador de fim de semana) pudesse executar suas funções. No primeiro exemplo, contudo, tem-se uma limitação ditada pelos limites da esfera privada da pessoa. Mas, salvo nesses casos específicos, não se poderia rejeitar locatários ou empregados. Essa proibição alcançaria incluir tais restrições nos classificados ou anúncios de empregos ou de locação. Muito menos seria lícita a invocação de tais questões para se negar à celebração de contratos de locação ou de trabalho.

ConJur – O senhor utiliza a expressão “elementos suspeitos” para fazer essas distinções. Poderia explicá-la?
Paulo Mota Pinto – Os “elementos suspeitos” são compreensivos de origem étnica, língua, aparência, raça, orientação sexual, religião, independentemente de sua utilização em sua expressão pública ou como fundamento para a recusa em contratar. Os elementos suspeitos, quando tomados de per si, não bastam ao exercício de restrições a contratar com outras pessoas em razão desses elementos. Só são aceitáveis quando houver uma razão substancial. Neste caso, eu já dei por exemplo a contratação de uma pessoa para trabalhar aos fins de semana, quando sua religião o impede de exercer tal ofício no sábado ou no domingo. Ou o exemplo da contratação de um ator para determinado papel que tem de ser desempenhado por uma pessoa com certa aparência étnica. O critério está, portanto, em saber se há ou não um motivo substancial para a recusa e que este seja aplicado proporcionalmente. A proporcionalidade entraria, por exemplo, no mesmo caso da pessoa que não pode trabalhar no sábado ou no domingo: se o emprego é para mais dias na semana, a circunstância de um deles recair no sábado ou no domingo não torna proporcional a recusa à contratação. Poder-se-ia acomodar a religião com o trabalho nos demais dias.

Deve-se ressaltar que essa regra vale tanto para empregadores e locadores quanto para empregados e locatários. Ela protege aqueles tanto quanto estes últimos contra o uso de “elementos suspeitos” para se recusar à contratação. Embora sejam muito mais raros os casos em que locadores e empregadores terminem por ser prejudicados quando a recusa parte de locatários ou empregados. A razão substancial facilita a análise da proporcionalidade. Não há, na maior parte dos casos, a razão substancial quando o problema se resolver apenas na esfera privada. Retomo o exemplo anterior: uma pessoa quer alugar um cômodo de sua própria casa. Se o locador é de determinada religião e isso for relevante para suas convicções, ele tem o direito de não querer permitir em sua própria casa uma pessoa de outra religião, que possa ter outra prática religiosa. Essa é uma questão de esfera privada, que se não confunde com o exemplo do empregado e do empregador.

ConJur – Haveria distinção se a locação ocorresse em uma hospedaria ou em um hotel?
Paulo Mota Pinto – Sim. Há um caso conhecido na Inglaterra. Trata-se da recusa de hospedagem de um casal do mesmo sexo por hoteleiros cristãos, de fortes crenças religiosas. Os donos da hospedaria negavam-se a alugar quartos ou a celebrar contratos de hospedagem com pessoas que não fossem casadas. A questão foi judicializada e entendeu-se que a recusa era ilícita, porque baseada na discriminação em função da orientação sexual. Não havia uma decisão fundada na esfera privada, por que era um estabelecimento aberto ao público. Esfera privada aí deve ser entendida estritamente.

ConJur – A discriminação das contratações pode abranger o gênero dos contratantes? O exemplo clássico é o que atribui valores maiores ou menores aos prêmios nos contratos de seguro de automóveis se o condutor for homem ou mulher.
Paulo Mota Pinto – Há uma diretiva europeia que proíbe a diferenciação de prêmios de seguro em função do gênero. Os estados membros da União Europeia têm de assegurar que os critérios que são aplicados aos contratos de seguro conduzem ao que se costuma designar como prêmios unissex, prêmios uniformes para os dois gêneros. Tal isonomia deve prevalecer mesmo que estatisticamente exista um risco maior em um dos gêneros que no outro.

Entende-se que é preciso fomentar a igualdade de gênero e uma das vias é realmente proibir a diferenciação de prêmios e de prestações de seguro com base no critério de sexo. Note-se que essa regra não vale para idade. Mas há certas propensões a doenças que podem ser utilizadas na celebração do contrato de seguro. Há discussão sobre se é lícita a utilização de tais critérios nos contratos de seguro. Quanto à idade, ela continua a ser admitida como critério de discriminação, porque a idade é um fator importante e o histórico de acidentes, o histórico anterior médico, tudo isso pode ser considerado. Tal se dá porque são fatores diretamente ligados ao perfil de risco da pessoa.

* Texto atualizado às 12h10 do dia 25/9/2016 para acréscimo de informações.



Sérgio Rodas é repórter da revista Consultor Jurídico.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

Revista Consultor Jurídico, 25 de setembro de 2016, 10h52

Rótulos de alimentos terão de informar sobre variação nutricional de até 20%


O consumidor tem o direito à informação sobre variação nutricional de até 20% nos rótulos dos alimentos, já que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária autoriza esse tipo de variação. O entendimento levou a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça a determinar que a Anvisa exija dos fabricantes de alimentos a inclusão da informação nos rótulos dos produtos.

Ao verificar irregularidades nos rótulos dos produtos light e diet, o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública para que a Anvisa, com seu poder de normatizar e fiscalizar os produtos alimentícios, exigisse a advertência nos rótulos. Por meio de atos normativos, a Agência já havia regulamentado a informação nutricional e a rotulagem de alimentos permitindo a variação de 20% nos valores indicados nos rótulos.

A decisão foi contra o entendimento do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que havia entendido que a variação de 20%, relacionada às matérias-primas utilizadas na fabricação dos alimentos, “não se caracteriza como informação relevante ou essencial, a justificar a inserção de advertência nos rótulos”.

Para o tribunal, não há justificativa para determinar a advertência sobre a variação de 20% nas informações nutricionais dos rótulos de alimentos, “quer por não trazer qualquer prejuízo ao consumidor, quer pela possibilidade de criar dúvida maior do que eventual esclarecimento”. O MPF recorreu então ao STJ.

Relator do recurso, o ministro Herman Benjamin, da 2ª Turma, entendeu que o consumidor tem o direito de ser informado no rótulo dos produtos alimentícios da existência dessa variação nos valores nutricionais, “principalmente porque existe norma da Anvisa permitindo essa tolerância”.

O ministro ressaltou que o direito à informação é assegurado pela Constituição Federal (artigo 5º, XIV), só sendo possível “limitar tal direito quando contar com evidente e razoável justa causa, o que, obviamente, não é a hipótese” em julgamento.

“Cabe ainda ressaltar que, sobretudo nos alimentos e medicamentos, o rótulo é a via mais fácil, barata, ágil e eficaz de transmissão de informações aos consumidores”, disse o ministro. O relator afastou ainda o argumento de que a inclusão da advertência representa custo excessivo aos fabricantes. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.


Revista Consultor Jurídico, 29 de setembro de 2016, 21h39

Terceira Turma autoriza quebra de sigilo bancário em ação de divórcio





A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) acolheu pedido feito por uma mulher para que fosse autorizada a quebra do sigilo bancário de pessoa jurídica que tem como um dos sócios o seu ex-marido.

O recurso teve origem em ação de divórcio com pedido de alimentos. Como o casamento foi celebrado sob o regime da comunhão universal de bens, no qual todo o patrimônio é comum ao casal, a ex-esposa alegou que, embora não fosse sócia da empresa, haveria copropriedade das cotas sociais.

O tribunal estadual negou o pedido sob o fundamento de que, como a mulher não ostenta a condição de sócia da empresa, seria “desaconselhável a violação do sigilo bancário de pessoa jurídica”. Além disso, o acórdão destacou que a apuração dos lucros e rendimentos poderia ser obtida por outros meios.

Pedido pertinente

No STJ, a decisão foi reformada. A relatora, ministra Nancy Andrighi, reconheceu a existência de limitações que impedem o ex-cônjuge de exercer o pleno direito de propriedade em relação a patrimônio constituído por cotas de sociedade limitada, mas destacou a pertinência do pedido.

“Não é desarrazoado o pedido de acesso aos extratos das contas correntes da sociedade empresarial, porquanto ele se caracteriza como comedida e limitada salvaguarda da recorrente quanto ao efetivo patrimônio representado pelas cotas sociais do ex-casal”, disse a ministra.

Nancy Andrighi afirmou que o fato de a ex-esposa obter um retrato das transações econômicas da sociedade empresária em nada prejudicaria o patrimônio dos sócios nem os projetos da organização, mas seria medida necessária ao resguardo do patrimônio partilhado.

“É inarredável o fato de que essa circunstância, não raras vezes, também dá azo à manipulação patrimonial por parte do ex-cônjuge, sócio da sociedade empresarial, que, se valendo dessa situação ímpar, pode fazer minguar o patrimônio pessoal – imediatamente partilhável com a ex-cônjuge –, em favor da empresa, onde ele, a priori, fica indisponibilizado para o casal, mas que, sabe-se, pode ser indiretamente usufruído pelo sócio”, explicou a ministra.

Precedente

Nancy Andrighi também destacou o entendimento da turma, firmado em precedente, que entendeu possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica em caso no qual um ex-cônjuge empresário utilizou a pessoa jurídica por ele controlada para subtrair da mulher direitos decorrentes do casamento.

“Se é possível, em determinadas circunstâncias – e esta turma já confirmou essa possibilidade –, a desconsideração invertida da personalidade jurídica e toda a devassa nas contas, livros e contratos da sociedade que dela decorrem, qual a razão para que não se defira o pedido singular de quebra de sigilo bancário da pessoa jurídica, por óbvio, medida muito menos gravosa para a sociedade empresarial? ”, questionou a ministra.

A turma, por unanimidade, acompanhou a relatora e deferiu o pedido de quebra de sigilo bancário. O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial.

Destaques de hoje
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Empregado rural que trabalhou 16 anos para a mesma família e ficou nove meses sem receber salários será indenizado



Ele era trabalhador rural e prestava serviços para a mesma família desde 1999, de forma contínua. Começou como empregado do pai do atual empregador, depois passou a trabalhar para a viúva dele e, finalmente, após o falecimento dela, o filho e único herdeiro do casal assumiu o papel de empregador. Durante todo o período, teve desrespeitados vários direitos trabalhistas, como férias, 13º salário, FGTS, repousos semanais remunerados horas extras e feriados. Além de tudo, estava, há meses, sem receber salário.

Esse o quadro dramático contado por um reclamante e analisado pelo juiz Luciano José de Oliveira, em sua atuação na Vara do Trabalho de São Sebastião do Paraíso. Procurando seus direitos, o reclamante interpôs a ação trabalhista contra o empregador e também contra os espólios de seus pais.

Apesar de regularmente citados, os réus não compareceram na audiência de instrução, o que levou à decretação da revelia deles e à aplicação da pena de confissão. Em consequência, foram considerados verdadeiros os fatos afirmados pelo trabalhador, já que não contrariados por qualquer prova existente no processo (artigo 844 da CLT e Súmula 74 do TST).

Diante do descumprimento das obrigações trabalhistas, o magistrado reconheceu a rescisão indireta do contrato de trabalho, com base no artigo 843, alínea d, da CLT, fixando a extinção do vínculo no último dia trabalhado pelo reclamante (em 15/07/2016) e condenando os réus, de forma solidária, a lhe pagar as parcelas rescisórias devidas, inclusive a multa de 40% do FGTS, bem como todas as parcelas trabalhistas descumpridas ao longo de todo o contrato, que durou cerca de 16 anos (13º salário, férias + 1/3, FGTS, horas extras, repousos semanais remunerados e feriados trabalhados).

Além disso, tendo em vista que o trabalhador ficou sem receber salário desde outubro de 2015, os reclamados foram condenados a lhe pagar os salários devidos até junho de 2016, no valor de 1,5 salários-mínimos mensais, conforme informado na petição inicial. E não foi só. Diante dessa absurda situação vivida pelo reclamante, trabalhador rural e pessoa de poucos recursos, os réus também foram condenados a lhe pagar indenização por danos morais, fixada pelo julgador em R$5.000,00. O magistrado não teve dúvidas sobre o abalo psicológico sofrido pelo reclamante, já que, por tanto tempo (cerca de nove meses), ficou privado de sua principal, senão única, fonte de sobrevivência.
PJe: Processo nº 0010954-75.2016.5.03.0151. Sentença em: 21/07/2016Para acessar a decisão, digite o número do processo em:
https://pje.trt3.jus.br/consultaprocessual/pages/consultas/ConsultaProcessual.seam



Fonte: TRT3

Trabalhador que apresentou laudo particular de silicose mas não teve a doença confirmada por perícia do juízo não consegue indenização



O empregado pretendia receber indenização por danos morais e materiais da empresa, afirmando que adquiriu a doença ocupacional conhecida como silicose, em decorrência da prestação de serviços à ré. Mas, apesar do relato do trabalhador ter sido confirmado pelos médicos particulares que o acompanharam, a perita oficial do juízo, médica especialista em pneumologia, concluiu em sentido contrário, ou seja, que ele não tinha silicose. Segundo a especialista, o trabalhador foi diagnosticado com tuberculose pulmonar em 2006, mas já tinha sido tratado e estava curado. Essa foi a situação encontrada pela 5ª Turma do TRT mineiro, ao julgar o recurso do trabalhador que não se conformava com a sentença que indeferiu as indenizações pleiteadas. A Turma acolheu o entendimento do relator, desembargador Manoel Barbosa da Silva, que concluiu que o reclamante, de fato, não tinha a doença e confirmou a decisão do juiz de primeiro grau.

A perita oficial, médica especialista em pneumologia, com base em exames de técnicas avançadas de imagem (multislice) e também de imagens analisadas com o apoio de médica radiologista citada como a "mais experiente em pneumoconioses de Minas Gerais", apurou que o reclamante não era portador de silicose. Segundo a especialista, em 2006, ele foi acometido por tuberculose pulmonar, mas havia feito tratamento e já estava curado. A perita esclareceu que o pneumologista que diagnosticou a silicose no reclamante em 2013, equivocou-se, "provavelmente porque não avaliou em profundidade a tomografia multislice no sistema PACS", como ela havia feito no laudo oficial.

Para reforçar seu entendimento, o desembargador recorreu ainda ao relato dos médicos/peritos forenses Quirino Cordeiro e Hilda Clotilde Penteado Morana, publicado em revista "on line" de psiquiatria, apresentando interessantes explicações sobre as diferenças da conduta procedimental do médico que acompanhou o trabalhador, assim como daquele que foi seu assistente técnico no processo, em relação ao perito oficial:

"As figuras de médico assistente e perito são completamente distintas, tanto em suas competências, como nas atividades que desempenham. Ao médico assistente cabe a realização do tratamento, devendo se empenhar em utilizar todo seu conhecimento e habilidades para o benefício de seu paciente, com quem mantém relação de extrema confiança. Por seu turno, ao médico perito cabe responder a determinadas questões formuladas pela autoridade que o nomeou. Assim, a relação estabelecida entre perito e periciando não é de confiança mútua, como acontece na relação médico/paciente, já que o compromisso do perito não é com ele, mas sim com a autoridade que o investiu da função pericial. Ademais, cabe ao médico perito, e não ao médico assistente, o enquadramento do quadro clínico do periciando nas normas legais ou administrativas, que estão em pauta na avaliação pericial".

Por isso, no caso, o laudo da médica pneumologista e perita oficial do juízo, no sentido de que o trabalhador não é portador de silicose, prevaleceu sobre o testemunho do médico do reclamante, em sentido contrário. "Havendo divergência entre os relatórios médicos particulares e o laudo pericial do Juízo, este deve prevalecer, porque elaborado sob o crivo do contraditório e por profissional imparcial", destacou o desembargador.

Além disso, o julgador ressaltou que o procedimento adotado no caso observou o que o próprio Conselho Federal de Medicina determina para casos de divergências. É que o artigo 6° da RESOLUÇÃO CFM N° 1.956/2010 dispõe que: "Caso persista a divergência entre o médico assistente requisitante e a operadora ou instituição pública, deverá, de comum acordo, ser escolhido um médico especialista na área, para a decisão. " E, conforme registrou o relator, "foi deferido o pedido do reclamante de substituição do perito primeiramente designado, quando se trouxe ao caso uma pneumologista, a qual detém capacitação de especialista e deu a resposta necessária para as divergências apresentadas". Por essas razões, a Turma rejeitou as indenizações pleiteadas pelo trabalhador. ( 0000794-46.2013.5.03.0102 RO )



Fonte: TRT3

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Crítica às teses que defendem o sistema de precedentes - Parte II





29 de setembro de 2016, 8h00

Por Lenio Luiz Streck


Na primeira parte (ler aqui), estabeleci as bases da discussão acerca da pretensão de parcela da doutrina em institucionalizar um sistema de precedentes no Brasil. Demonstrei as bases das teses pelas quais o judiciário se transformará (ou se transformaria) em um sistema em que os tribunais superiores (Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal) se transformariam em cortes de precedentes ou vértice, segundo fez constar, inclusive, o ministro Edson Fachin em voto no RE 655.265. De minha parte, apoio qualquer ideia que dê coerência e integridade ao Direito[1] (afinal, fui o protagonista da emenda que alterou o artigo 926 do CPC). Entretanto, preocupa-me a transformação do STJ e STF em cortes de vértice, conforme explicitarei.

Falei do acórdão do RE 655.265, no qual o STF fez constar que o artigo 926 introduziu uma vinculação ao estilo stare decisis; o STF disse também que o CPC estabeleceu um sistema de precedentes vinculantes e que a corte de vértice está vinculada aos próprios precedentes e, ao final, estabelece uma “tese” com pretensão generalizante (ver crítica minha e de Bruno Torrano aqui). Afinal: qual é a relação de um stare decisis com um sistema de precedentes à brasileira e a elaboração de “teses” vinculantes? O precedente é a tese? A tese é o precedente? Insisto em dizer que no common law isso não ocorre e não é assim. Mais: no common law, precedentes não são construídos para, a partir de teses, vincular julgamentos futuros.[2] Problema: se o Direito é o que o Judiciário, por suas cortes de vértice, disser que é, a quem reclamar? Caberia à doutrina contestar. Só que parcela da doutrina concorda com (ess)a precedentalização do Direito e com a mudança do papel de nossos tribunais superiores, o que, se ocorrer, dar-se-á ao arrepio de nosso arranjo constitucional — inclusive porque somente a Constituição pode estabelecer competências para os poderes, bastando lembrar que o famoso caso “Marbury vs. Madison” (1803) versou justamente sobre isso.

E este é um pressuposto ineliminável: a Constituição e o modo como ela estabelece o funcionamento de nossos tribunais. Taruffo, inclusive, em um texto recente, afirma ser uma tarefa de notável dificuldade desenvolver um discurso homogêneo e generalíssimo sobre o papel destas cortes em razão das diferenças de competência, estrutura, de composição e de modalidades de funcionamento que cada um possui.[3] Por exemplo, se na Suprema Corte o certiorari é um “pretexto”,[4] em face da autorização normativa de juízos discricionários de admissibilidade (Rule 10 das Rules of the Supreme Court), apesar de que isto não é utilizado para julgar e formar teses por lá, no Brasil os recursos extraordinários são impugnações para o julgamento de “causas” (artigos 102 e 105, CR/88) e nunca poderão ser interpretados como uma autorização de formar teses como comandos gerais e abstratos para resolução de casos repetitivos. Nunca é demais lembrar que não há entre nós a figura do “recurso só no interesse da lei”. Ademais, se não bastasse a diversidade de estruturas normativas e institucionais, a história e racionalidade decisória da Suprema Corte é completamente diversa de nossos tribunais superiores. Em seu novo livro sobre a invocação de precedentes estrangeiros pelos juízes nacionais, embora defenda o papel virtuoso da comunicação de entendimentos judiciais, Maurício Ramires faz notar que um dos perigos do entusiasmo desmedido com as experiências estrangeiras é justamente o da sua descontextualização pela falta de familiaridade com os outros sistemas judiciais.[5]

E, por fim, Taruffo afirma que “o precedente não tem uma eficácia formalmente vinculante nem sequer na Inglaterra e muito menos nos Estados Unidos. Com maior razão — e independentemente da eventualidade que se considere a jurisprudência como fonte do direito — deve excluir-se que o precedente tenha eficácia vinculante nos sistemas de civil law”. E complementa Taruffo: “Qualquer intenção de atribuir tal eficácia ao precedente está então destituída de fundamento: se poderá falar só de força do precedente entendendo que esta possa ser maior ou menor segundo os casos, de modo que se terá um precedente forte quando possua a capacidade de determinar efetivamente a decisão de casos sucessivos, e um precedente débil quando os juízes sucessivos tendam a não lhe reconhecer um grau relevante de influência sobre suas decisões.”.

Ou seja, o próprio Taruffo reconhece o caráter argumentativo da aplicação de precedentes e a impossibilidade de fechamento como se permitiria mediante algumas respeitáveis leituras por aqui.[6] E, para não esquecer: o CPC fala que juízes e tribunais “observarão”. Não há a palavra “vinculação”.

Voltando ao debate que iniciei na última semana, também falei que dois professores (Hermes Zanetti e Carlos Pereira artigo) defenderam que o judiciário venha a legislar, nos termos do CPC. Quando disse que os ilustres professores Zaneti (autor do importante livro O valor vinculante dos precedentes) e Pereira estariam “cobrando” que o Judiciário “legisle”, talvez eu não tenha sido suficientemente claro no sentido da minha crítica. Esclareço, então. Compreendo que os referidos autores estejam preocupados em dizer justamente o contrário, isto é, que as funções do legislador e do judiciário são distintas. Porém, sem que eles percebam, acabam atribuindo ao judiciário um papel de criar “normas gerais e concretas” com aptidão e conformar situações futuras de maneira vinculante como se lei fossem. Minha discordância com Zanetti reside justamente na ideia de que decisões vinculantes possam ser catalogadas, indistintamente, como normas gerais para o futuro e como precedentes, fazendo com que a jurisprudência possa, como ele diz, ser alçada à condição de fonte primária do direito junto à legislação. Por isso, indago: como podem ser fonte primária se visam, sob a ótica especialmente de Zanetti, justamente reduzir o grau de “equivocidade” [7] ou de “textura aberta” da lei — justamente o ponto de partida para que sejam criados os denominados “precedentes”? Não haveria aí uma contradição? E esses “precedentes” passariam a ocupar o mesmo lugar e patamar da lei no ordenamento jurídico, mesmo que equivocados? Como assim? Então, alguém deve dar a última palavra e essa “decisão interpretativa” acabaria valendo mais que a própria lei? E, fundamentalmente: por que é que um texto (um precedente) geraria menos “problemas” interpretativos que outro texto (uma lei)? Além disso, no final do artigo, Zaneti e Pereira assumem a posição realista (como também fazem alguns dos seguidores desta proposta).[8] De todo modo, parabenizo Zanetti e Pereira pelo diálogo e preocupação com este tema.

Aliás, fora do realismo jurídico (moderado ou não), torna-se difícil (ou impossível) sustentar esse tipo de tese. Isso no plano da teoria do direito, é claro. Mas aí é que está o problema. E por que? Porque tudo está a indicar que as teses precedentalistas não constituem teoria do direito e, sim, apenas teoria política. O que os autores fazem é uma tentativa de rearranjo institucional. Preocupam-se com “quem deve decidir” e não com o “como se deve decidir”. Até porque não há qualquer novidade em dizer que o positivismo clássico está superado, que as palavras da lei são plurívocas, que texto jurídico e norma são coisas diferentes, etc. É uma tese normativa de teoria política acerca de quem deve decidir e porque essas decisões valem por sua autoridade e não pelo seu conteúdo. Nesse sentido, há uma aproximação com o convencionalismo, porque, ao que se vê, o precedente integra a convenção. Posto o precedente, ele vale. Está na convenção (é apenas nesse ponto em que aparece um resquício de teoria jurídica na tese precedentalista).

Ou seja, o que fica claro — e parece ser um ponto central das teses precedentalistas — é que as cortes de vértice elaboram o material normativo básico e dentro dessa moldura (por assim dizer) escolhe a norma mais justa dentre os sentidos permitidos pelos precedentes. Ou seja, ao que se pode entender, o conceito de interpretação fica restrito, como forma de criação e atribuição de sentido, às cortes de vértice. Parece haver uma intencionalidade, com propósitos distintos do agente político que ocupa o vértice em relação àqueles que estão abaixo: um cria material normativo novo, fixando uma dentre as possíveis interpretações possíveis do material jurídico básico; os demais (do andar de baixo) adotam o precedente (o ponto final de alguma controvérsia interpretativa) como já integrante desse material normativo básico, explorando seus novos sentidos possíveis, com uma dupla missão: manter a unidade do direito e fazer “justiça”, dentro das balizas normativas. Presente, aí, a tese da convencionalidade.

Como explicamos Torrano e eu no artigo já referido retro, com isso corremos sério risco de arruinar o Estado do Direito pela institucionalização jurisprudencial de um realismo jurídico “à brasileira”, dedicado a proclamar a verdade de proposições jurídicas pela mera referência ao fato de terem sido proferidas por órgãos do Poder Judiciário (“O direito é aquilo que os Tribunais dizem que o direito é”), e não à luz de normas jurídicas previamente elaboradas pelo Poder Legislativo.

Por isso, penso ser arriscado defender um papel tão amplo — e poderoso — para as cortes superiores sem antes se ocupar de uma teoria da decisão jurídica, dos mecanismos de controle, públicos, intersubjetivos e da qualidade dessas decisões. Se a corte vai “normar”, parece-me ser sempre útil invocar, para demarcar as diferenças entre juiz e legislador, a distinção entre os argumentos de principio (obrigatórios para os primeiros) e argumentos de politica (no caso da tese dos precedentalistas, permitidos aos segundos). Nesse sentido, se for assim, que pelo menos esta norma (precedente) seja gerada por principio e não por um ato de vontade (Kelsen é quem diz que o juiz faz um ato de vontade — e não quero crer que alguém queira dar razão à Kelsen nesta quadra do tempo).

Agora, chegamos na sequência. De pronto, quero dizer que não estou tratando de precedentes como decisões que já nascem com aptidão de vincular para o futuro e que sejam espécies de "normas gerais" ou "razões generalizantes". Sei que nem todos os autores equiparam "precedentes" às súmulas e IRDR. Marinoni, Mitidiero e Arenhart, por exemplo, dizem que não são iguais. Porém, buscam definir o que é um precedente...e acabam chegando em algo muito parecido ao que dizem que não é precedente. De todo modo, o debate também serve para esclarecer estas dúvidas.

Daí minha cautela no ponto, para reconhecer, por óbvio, que Marinoni, Mitidiero e Arenhart sempre falaram que os precedentes são diferentes da SV e do IRDR. A meu favor, afirmo que não afirmei isso. Tenho que claro — e isso parece também estar pacifico para os autores — que precedentes são diferentes da SV e teses de IRDR.

Satisfeito, vejo que minha coluna gerou polêmica. Alguns afirmaram que eu não teria compreendido o ponto. Ou os pontos. Sendo assim, proponho aos defensores de um sistema de precedentes a partir de Cortes de Vértice e coisas do gênero, uma despoluição semântica do que estamos falando para clarear a discussão. Eis as premissas nas quais estou baseado:

1) O que temos no CPC não é uma “commonlização”; nem de longe se pode afirmar isso;

2) Os provimentos elencados no artigo 927 não são todos precedentes (e, lógico, precedentes não no sentido genuíno do common law). Nesse sentido, súmula não é precedente (nem no Brasil, nem seria no common law), julgamento de questões repetitivas, igualmente;

3) Todo precedente e provimento que deve ser observado (veja-se a palavra “observado”) são interpretáveis, ou seja, nunca são a norma decisória do caso concreto e nem podem ser vistos como o “ponto de chegada”,[9] sendo um principium argumentativo; precedente também é um texto, provimento é um texto, súmula é um texto;

4) Precedente não tem hierarquia em relação à lei;

5) Julgar precedente não é sinônimo de julgamento de tese; há que ficar clara a diferença entre precedente e tese; não podem ser a mesma coisa;

6) MacCormick só fala de precedente genuíno do common law (por óbvio, lá não tem sumula e não tem IRDR); também temos que estar de acordo que Schauer não trata de súmulas, não imagina IRDR e fala de precedentes no sentido do common law; também temos que estar de acordo que Taruffo também fala de precedentes e as citações acima esclarecem a extrema cautela com que esse autor fala desse tema;

7) Por último, uma questão teórica fundamental: penso que hoje em dia — com o avanço da teoria do direito — já podemos estar de acordo que o positivismo clássico (o que Mitidiero, por exemplo, chama de formalismo de matriz cognitivista[10]) está superado. E que não necessitamos fazer esforços e gastar preciosas energias para superar algo que Kelsen já havia suplantado. Sim, pode parecer estranho, mas Kelsen é um positivista pós-exegético. Portanto, creio que podemos estar de acordo, a partir de Hart — este pelo lado do positivismo (inclusivo) — e por Müller — este pelo lado do pós-positivismo — que já não há qualquer novidade em falar da e na superação do formalismo (ou exegetismo) ou equiparação texto-norma (nem preciso falar dos demais autores pós-hartianos, vivos e mortos). Se nos colocarmos de acordo com isso, ficará mais fácil falarmos em precedentes, teses, texto, norma, teoria da interpretação e conceitos afins (ou de uma teoria normativa de teoria política). Por fim, o cerne desta questão é: o que fazer neste ambiente de indeterminação gerado pelo pós-exegetismo? Tentando dar conta deste estado de coisas estão argumentativistas, interpretativistas, hermeneutas, positivistas de vários matizes, analíticos, dentre outros. A pergunta que surge é: seriam os precedentes suficientes para contornar esta realidade ou seria mesmo um retorno — ou a concessão fatalista — a um positivismo fático (jurisprudencialista)?

Preocupo-me com isso desde a década de 90. Georges Abboud, mais jovem, escreveu comigo o livro O que é isto — o precedente judicial e as súmulas vinculantes? (Livraria do Advogado, 3ª. Ed), já nos últimos 4 anos. É disso que estou falando. Portanto, por amor ao debate, quem estiver de acordo com estas premissas pode se aliar e passar a debater para encontrarmos, juntos, soluções. Mas, por outro lado, se não estivermos de acordo, deixemos claro que não estamos falando da mesma coisa. Embora isso não impeça que debatamos. Todos apreenderemos.

Digo isto porque há muita poluição semântica nesse tema. Por exemplo, tenho lido na vasta doutrina a disposição no país, coisas como: súmula é a ratio do precedente; Súmula é precedente; os provimentos enumerados no artigo 927 são todos precedentes — dando-se a entender que não haveria distinção conceitual entre eles. Temos de clarear isso. Parcela considerável dos meus críticos diz que estamos em face de um sistema de precedentes (conceito até agora que figura como performático [veja aqui artigo meu com Georges Abboud]). Já li também que a lei é sempre indeterminada e que, quando se estabelece o precedente (ou uma tese, como consta no RE 655.265), eliminar-se-ia (á) a discricionariedade. Só que essa posição não explica como se estabelece o precedente. Também não está explicado porque o precedente é/seria melhor do que a lei. Afinal, o que muda da lei para o precedente? Precedente não é texto? Ou precedente é um texto pré-interpretado? Ele já contém previamente as hipóteses de aplicação? Eis aí um ponto que tratarei com paciência e amiúde na sequência. Conclamo aos que concordam e aos que não concordam comigo para um tour de force e que possamos esclarecer esses conceitos. A doutrina é que sairá vencedora. Superando aguilhões semânticos.

Tenho que encerrar esta coluna. Espaço findou. Continua na semana que vem.


1 A integridade é entendida a luz de Ronald Dworkin: um prin cí pio legis la ti vo, que pede aos legis la do res que ten tem tor nar o con jun to de leis moral men te coe ren te, e um prin cí pio juris di cio nal, que deman da que a lei, tanto quan to pos sí vel, seja vista como coe ren te nesse sen ti do. A integridade exige que os juí zes construam seus argu men tos de forma inte gra da ao con jun to do Direi to, constituindo uma garan tia con tra arbi tra rie da des inter pre ta ti vas; colo ca efe ti vos freios, por meio des sa comu ni da des de princípios, às ati tu des solip sis tas-volun ta ris tas. A integridade é antitética a qualquer forma de voluntarismo, ativismo e discricionariedade. Ou seja: por mais que o julgador desgoste de determinada solução legislativa e da interpretação possível que dela se faça, não pode ele quebrar a integridade do Direito, estabelecendo um “grau zero de sentido”, como que, fosse o Direito uma novela, matar o personagem principal, como se isso — a morte do personagem — não fosse condição para a construção do capítulo seguinte. Portanto, ao contrário do que dizem alguns precedentalistas, Dworkin não autoriza uma correção moral do direito (aliás, nesse sentido tem isso em comum com Joseph Raz). Mas isto nem de longe possibilita o enquadramento de Dworkin como um “cognitivista” (formalista) como, equivocadamente, afirma Guastini. Cf. GUASTINI, Riccardo. Intepretare e argomentare. Milano: Dott. A. Giuffré Editore, 2011. p. 409. Na verdade, Dworkin é, sim, um cognitivista, mas jamais no sentido que Guastini (para falar só dele) entende. O cognitivismo de Dworkin é no sentido da meta-ética. Ou seja, antitético ao conceito descritivista (ato de conhecimento) referido por Guastini. Veja-se como a teoria do direito faz a diferença, clareando os conceitos.


2 Importante: Lá, precedentes são “principium” e, não, “telos” da discussão. Cf. RE, Edward D. Stare Decisis. Revista dos Tribunais, a. 83, v. 702, p. 7-13, abr. 1994; CASTANHEIRA NEVES, A. O instituto dos "'assentos" e a função jurídica dos supremos tribunais. Coimbra: Coimbra Editora, 1983. p. 62. Não esqueçamos que Castanheira Neves travou uma batalha similar a esta que travamos por aqui: ele derrotou o instituto dos assentos, espécie de súmulas portuguesas.


3 TARUFFO, Michele. Las funciones de las cortes supremas. In. TARUFFO, M. et al. La mision de los tribunales supremos. Madrid: Marcial Pons, 2016. p. 231.


4 Cit. p. 238-239.


5 Ramires, Maurício. Diálogo Judicial Internacional – O Uso da Jurisprudência Estrangeira pela Justiça Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 253.


6 Na mesma obra, Mitidiero afirma, em perspectiva realista (p. 99), que atuação da “Corte Suprema” se dirige ao futuro(p. 95) sendo uma “corte de interpretação do direito e não uma corte de controle das decisões”(p. 107) que “se autogoverna”(?!)(p. 111). Pondera ainda que "tendo a interpretação da corte suprema valor em si mesma (?!?), sendo o móvel que legitima sua existência e outorga sua função (?!?!) um eventual dissenso em sua observância por seus membros e por outros órgãos jurisdicionais é encarado como um fato grave, uma falta de respeito e como um ato de rebeldia ante sua autoridade, que deve ser evitado e, sendo o caso, prontamente eliminado pelo sistema jurídico e pela sua própria atuação." – destacamos. Ainda no referido texto afirma que: “A cultura jurídica subjacente a este modelo encara com naturalidade o fato que a última palavra acerca do significado do direito seja confiada à corte suprema." Mitidiero, D. Dos modelos de cortes de vertice- cortes superiores y cortes supremas. In. TARUFFO, M. et al. La mision de los tribunales supremos. p. 108 e 103.


7 Mesma tese de Mitidiero, D. cit. p. 98 e 113.


8 MITIDIERO, D. cit. p. 99.


9 MITIDIERO, D. cit. p. 108.


10 Demonstrarei em coluna próxima que, nesse caso, ao menos no plano do que diz Mitidiero no livro Dos modelos de cortes de vértice op.cit., sua percepção sobre a relação positivismo (formalismo)-cognitivismo difere daquela trabalhada contemporaneamente a partir da meta-ética. Ademais, o conceito de cognitivismo combatido por Mitidiero se aproxima do ato de conhecimento, puramente epistêmico, que já estava em Kelsen, na sua TPD. Kelsen justamente critica a jurisprudência dos conceitos por esta limitar o raciocínio judicial a um ato meramente intelectivo. Diferentemente, para Kelsen o juiz faz um ato de vontade, o que denota um não-cognitivismo. Neste caso, resta a pergunta: o papel do juiz em Kelsen seria o mesmo que Mitidiero prega para o papel do juiz hoje?



Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.

Revista Consultor Jurídico, 29 de setembro de 2016, 8h00

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...