"Princípios do Código Civil não autorizam juiz a atropelar a lei"
Zimmermann (esq.) e Jan Schmidt (dir.)
O Poder Judiciário brasileiro faz uso peculiar das cláusulas gerais doCódigo Civil, como a que exige a boa-fé nos negócios jurídicos e a que garante a função social do contrato. Com isso, decisões entram em choque com as leis, pois juízes as fazem com base nas suas visões de mundo. Essa é a opinião do jurista alemão Jan Peter Schmidt, pesquisador do Instituto Max-Planck de Hamburgo. Para ele, o Brasil deveria rever a função desses princípios e cláusulas gerais.
“O objetivo dessas cláusulas não é dar poder ao juiz para prevalecer sobre o legislador. A função delas é permitir que o juiz tome decisões razoáveis quando houver uma lacuna na legislação, para que, por exemplo, quando não houver normas, ele possa encontrá-las nas cláusulas gerais, que podem guiá-lo nessa direção”, afirma Schmidt.
Em dezembro de 2014, ele falou sobre o princípio da boa-fé objetiva no Ciclo de Estudos de Direito Privado Contemporâneo, organizado pelo Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e pela Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo, que congrega sete universidades brasileiras e duas europeias. O evento foi coordenado pelo professor titular Ignacio Poveda, secretário-geral da USP, e pelo professor doutor Otavio Luiz Rodrigues Jr, tendo contado a presença de mais de 30 professores de Direito Privado de diversas regiões do Brasil, além uma centena de estudantes de graduação e pós-graduação.
O destaque do evento foi o professor Reinhard Zimmermann, catedrático da Universidade de Ratisbona, diretor do Instituto Max-Planck de Hamburgo e estudioso do Direito Romano e do Direito Privado Europeu moderno. Zimmermann é considerado um dos maiores nomes do Direito Privado Comparado no mundo e exerce importantes funções públicas ligadas à pesquisa e à docência na Alemanha, além de ter sido homenageado na África do Sul por seu papel na luta contra o apartheid nos anos 1980. Em São Paulo, ele foi recebido pelo reitor da Universidade de São Paulo, Marco Antonio Zago. Zimmermann falou sobre a dificuldade para que sejam criadas normas europeias de caráter mandatório para o direito interno dos Estados-membros da União Europeia. Antes disso, é preciso restabelecer uma cultura científica comum — algo que o jurista não acredita que acontecerá em breve. “Houve uma época em que muitas pessoas pensavam que nós iríamos gradualmente obter um Código Contratual, ou inclusive um Código Civil comum. E aí, nós estaríamos em direção a uma Europa com Estados federativos, talvez no modelo dos EUA. Porém, no momento, há um grande ceticismo em diversos países. Quando tentaram aprovar uma Constituição Europeia em 2005, a iniciativa falhou. Então, o clima na Europa é menos positivo hoje do que foi no passado”, opina o professor.
Em entrevista à revista Consultor Jurídico — da qual também participouOtavio Luiz Rodrigues Junior, professor doutor de Direito Civil da USP e ex-bolsista do Instituto Max-Planck de Hamburgo —, Schmidt e Zimmermann comentaram as semelhanças e diferenças entre os ordenamentos jurídicos do Brasil e da Alemanha, destacaram a importância do Direito Romano na formação dos advogados e criticaram a fragmentação do Direito Privado em códigos específicos.
A entrevista publicada na ConJur é uma versão condensada do conteúdo original, cuja íntegra será publicada no volume 4 da Revista de Direito Civil Contemporâneo, de julho-setembro de 2015.
Leia a entrevista:
ConJur — Quais são as semelhanças e as diferenças, em geral, entre os ordenamentos jurídicos do Brasil e da Alemanha?
Jan Schmidt — Se olharmos para as leis, para a Constituição, para os tribunais, encontraremos muitas semelhanças, especialmente no Direito Privado. Nossa tradição é, basicamente, a mesma. É uma tradição que começa com o Direito Romano, e, mais tarde, evolui com o desenvolvimento do Direito Romano na Idade Média. Toda essa tradição veio da Europa continental para o Brasil. Então, se um advogado alemão chegar aqui e olhar para o Código Civil brasileiro, ele irá encontrar muitas, muitas semelhanças com o código alemão. A forma de estruturar as leis, a forma de pensar o Direito, os conceitos que são usados, tudo isso é muito similar, e podemos dizer que brasileiros e alemães pertencem à mesma família jurídica nesse sentido.
Por outro lado, há muitas diferenças na forma como o Direito funciona na prática. Por exemplo, uma significativa diferença, e que tem grande impacto na prática diária, é como os processos judiciais no Brasil demoram muitos anos até serem finalmente resolvidos. E o Judiciário brasileiro está sobrecarregado de processos. Em contraste, o Judiciário alemão – quando comparado com os de outros países, não só com o brasileiro – funciona de forma relativamente rápida, e é relativamente barato. Então podemos dizer que o acesso à Justiça é muito mais fácil na Alemanha. No Brasil, grande parte da sociedade tem um acesso muito pequeno à Justiça, também por causa da falta de recursos financeiros, da falta de conhecimento sobre os direitos que eles possuem. Por isso, eles não podem ir aos tribunais para reclamar seus direitos, porque eles nem sabem que direitos têm. Então, nesses aspectos, há muitas diferenças. A desigualdade social é muito menor na Alemanha do que no Brasil.
ConJur — Professor Zimmermann, o senhor estuda as normas da União Europeia. E elas estão se tornando mais complexas, regulando mais matérias. Quais são os limites à competência de legislar da União Europeia? E o que é reservado aos países regularem?
Reinhard Zimmermann — Eu estudo o desenvolvimento do Direito Privado europeu. E o aspecto interessante é que nós tivemos um Direito Privado europeu por muitos séculos, que veio do Direito Romano e do Direito Canônico, e que terminou por ter aplicação, ainda que subsidiária, por toda a Europa. E seu declínio começou com a era da codificação, quando todos os Estados nacionais codificaram suas leis – o Direito francês teve seu “Code Civil” em 1804, depois vieram os da Itália e Alemanha, e por aí vai. Em 1957, a Comunidade Econômica Europeia foi fundada. Desde então, passo a passo, tentaram desenvolver um mercado interno e hoje nós temos uma moeda comum. Na sequência, apareceu a questão inevitável: “Nós também não precisamos de um Direito comum, de um Direito Privado comum?”, especialmente um Direito Contratual, porque contratos podem ser o veículo do comércio internacional. E há esforços nesse sentido. Atualmente, existe um projeto no Parlamento Europeu. Trata-se de um direito opcional de compra e venda, mas não como se fosse um tratado. Ele não se aplicará automaticamente. As partes precisarão aderir a ele. Se você é inglês e eu sou alemão, e nós celebramos um contrato, poderemos querer que este se submeta às normas desse Direito europeu comum de compra e venda.
ConJur — Mas o senhor acredita que um dia haverá leis europeias aplicáveis automaticamente a todos os países, como um Código Civil comum, um Código Penal comum? E que os países somente legislarão sobre assuntos menores, como questões locais?
Reinhard Zimmermann — Houve uma época em que muitas pessoas pensavam que nós iríamos gradualmente obter esse Código Contratual, ou inclusive um Código Civil comum. Desse modo, nós estaríamos em direção a uma Europa com Estados federativos, talvez no modelo dos EUA ou de qualquer outro Estado federativo. Porém, no momento, há um grande ceticismo em diversos países. Quando tentaram aprovar uma Constituição Europeia em 2005, a iniciativa falhou. Então, o clima na Europa é menos positivo hoje do que foi no passado. Portanto, não está claro nem se conseguiremos obter um Código Contratual opcional, que é apenas um passo pequeno. Mas quando você pergunta se teremos algo como um Código Civil europeu algum dia, no momento, isso não é imaginável. Atualmente, eu sou cético.
ConJur — Hoje a União Europeia está sendo contestada, especialmente pelos países que mais sentiram os efeitos da crise econômica, como Grécia, Espanha e Portugal. Até mesmo o conflito na Ucrânia foi motivado pela divergência se o país deveria ou não ingressar na União Europeia. Nesse cenário de crise, o senhor acredita que é possível tornar as leis europeias obrigatórias? E elas deveriam ser obrigatórias?
Reinhard Zimmermann — Eu não acredito muito em leis europeias obrigatórias. Muitas das normas que tivemos foram mal redigidas e politicamente questionáveis. Não tivemos muitas experiências boas. Primeiramente, precisamos reconstruir uma cultura europeia comum, um conhecimento europeu comum. Isso porque, no momento, nós temos uma situação na qual advogados alemães tendem a se concentrar no Código Civil alemão, e ter discussões apenas entre eles próprios, e o mesmo ocorre na França, na Inglaterra, e por aí vai. Somente nos últimos 20 anos é que advogados, com uma mente mais internacionalizada em termos de Direito Comparado e de História do Direito, se abriram e formaram grupos acadêmicos para estabelecer princípios comuns e para escrever livros de precedentes ou de doutrina.
A situação é um pouco parecida com a de 1814. Em 1814, Napoleão havia sido exilado na ilha de Elba e na Alemanha existiam vários estados individuais. Em 1804, a França havia editado seu Código Civil. Então, na Alemanha de 1814, uns queriam uma unificação legal, outros queriam inclusive uma unificação política. Na França, eles tinham esse código incrível, nós não deveríamos ter um código para todos os estados alemães, um código comum? Esse era o grande debate. Nisso, alguém disse: “Se nós obtivermos um código comum para a Alemanha, isso também impulsionará uma unificação política. Os estados irão se unir”. Mas a opinião que prevaleceu foi a do jurista alemão mais importante até hoje, Friedrich Carl von Savigny. Ele argumentou: “Não. Vamos esperar até que tenhamos realmente construído um conhecimento comum, que tenhamos conceitos comuns, que tenhamos reafirmado nosso Direito de uma maneira que o torne suficientemente firme, que o torne suficientemente refinado, para daí procedermos à codificação”. Ele defendia que codificar primeiro e depois desenvolver um conhecimento jurídico comum seria o caminho errado. Esse é mais ou menos o mesmo debate de hoje. Um código, se decretado por Bruxelas, seria visto como um instrumento imposto de cima para baixo, e eu penso que as coisas dever-se-iam desenvolver mais organicamente.
ConJur — Direito Romano, atualmente, é uma matéria optativa na maioria das faculdades de Direito do Brasil. Qual é a importância do Direito Romano para um estudante de Direito do século XXI?
Reinhard Zimmermann — Na Faculdade de Direito da USP não. É disciplina obrigatória. O Direito Romano é a base da nossa cultura jurídica. Roma foi a única civilização antiga que desenvolveu um modelo muito sofisticado de Direito Privado. Esse Direito Privado foi herdado na Europa por meio de um processo que chamamos de “recepção”. Da Idade Média em diante, ele se espalhou por toda a Europa. E é uma influência civilizadora e unificadora na Europa. Ele impulsionou o nível de sofisticação dos sistemas jurídicos europeus a níveis nunca imaginados pelo Direito tribal germânico. Isso se deu devido ao fato de ele ser um Direito aprendido, um Direito sofisticado que era estudado em universidades. Um Direito que se afirmou por si só. E virou a base para a cultura jurídica predominante na Europa.
Agora, qual é a importância dele hoje? Por um lado, ele dá a visão geral de um sistema jurídico que pode ser estudado com um interessante distanciamento histórico, e permite ver como um sistema jurídico funciona em certa sociedade. Por si só, isso é muito interessante. Um sistema jurídico altamente sofisticado no passado, e que não é mais parte de nosso presente, onde se pode ver o que os advogados fizeram, como os textos evoluíram, quais eram as normas jurídicas, a doutrina, quais eram as características da sociedade etc. O mais importante, porém, é que muitas das normas jurídicas e dos conceitos jurídicos ainda estão conosco nos dias atuais. E eles moldaram nossa mentalidade jurídica moderna. Eu acredito que é essencial que um estudante não aprenda apenas as leis de seu país. Tal se deve porque se você for olhar para as leis – e isso se aplica tanto ao Brasil quanto à Alemanha e a todos os outros países –, se você aprender Direito alemão, se você aprender seu próprio sistema, você se acomodará, pensará que é assim que as coisas devem ser. Na realidade, você só começa a compreender o seu sistema jurídico se o enxergar em comparação a outro. Mas a perspectiva comparativa não é suficiente, porque, se você olhar para o Direito alemão, o Direito italiano, o Direito brasileiro, o Direito francês etc., verá certos pontos em comum e certas diferenças. Para entender os pontos em comum e as diferenças, é preciso saber como eles evoluíram. E então, você precisa de uma abordagem histórica e comparativa. Não por uma questão de Direito Comparado ou de História do Direito, mas por uma questão de se tornar um advogado sofisticado e refinado para seu próprio sistema jurídico, que entende as leis, que entende se elas são boas leis ou más leis. Assim, para saber disso, é preciso saber por que elas evoluíram, como elas evoluíram, como isso aconteceu em outros países, e é necessário, de uma certa forma, tentar adotar uma perspectiva exterior. Essa perspectiva é de vital importância para o aprendizado jurídico, e eu gostaria que houvesse muito mais ênfase no currículo nessa matéria, e que muitas disciplinas especializadas fossem suprimidas. Atualmente, as universidades estão obcecadas em treinar seus estudantes para a prática, ensinando-lhes matérias práticas como fusões e aquisições, Direito Societário 1, Direito Societário 2, Direito Societário 3, e por aí vai. Isso é algo que as pessoas vão aprender com muito mais facilidade na prática. Mas elas podem aprender muito melhor na prática se tiverem um sólido conhecimento geral, uma cultura geral do desenvolvimento das normas jurídicas. Eu tive diversos estudantes que escreveram teses de doutorado sobre a história do Direito Romano que agora estão comandando divisões jurídicas em grandes multinacionais. Para uma pessoa que tem bons conhecimentos em matérias fundamentais, não é problema, mexendo aqui ou ali, para entender os temas da prática jurídica. Mas, se já na faculdade você se especializar nesse sentido, a partir dessa especialização, não é possível ir para outra área. É preciso ter a base geral e essa visão histórico-comparativa.
ConJur — O Código Civil brasileiro tem diversas cláusulas gerais, como as que estabelecem função social do contrato e da boa-fé. Na opinião do senhor, como os tribunais brasileiros aplicam essas cláusulas?
Reinhard Zimmermann - Essa é uma questão sobre o Direito brasileiro e é melhor que o Jan trate do assunto. Mas, eu gostaria de fazer algumas breves considerações. Na Alemanha, nós também temos cláusulas gerais. Isso não é algo específico do Direito brasileiro. Nós temos essas cláusulas gerais e, é claro, elas conseguiram se incutir porque permitem ao juiz ter uma considerável margem de apreciação dos valores constitucionais. Nós também possuímos uma constituição com um catálogo de direitos fundamentais e assim por diante. Nosso Código é bastante antigo e quando a Constituição foi promulgada nós adotamos a doutrina da Drittwirkung, que significa que a Constituição tem eficácia em relação ao Direito Privado, mas por intermédio das cláusulas gerais. A maneira como as cláusulas gerais são interpretadas no Brasil, pelo que ouvi dizer, liga-se ao desenvolvimento da constitucionalização do Direito Privado, a qual me parece foi longe demais. Eu penso que sobre esse tópico o Jan pode dizer mais.
Jan Peter Schmidt — As cláusulas gerais permitem a constante adaptação do Código Civil às mudanças sociais. Por exemplo, se há uma cláusula que diz que você tem responsabilidade específica por objetos perigosos, então é possível aplicar essas regras a situações envolvendo um novo objeto que não existia na época em que o código foi promulgado. A norma é tão aberta que pode ser facilmente aplicável a uma nova situação. Se, em vez disso, houver uma legislação muito casuística, e, digamos, houver regras específicas para carros, para trens, para aviões, no momento em que surgir um novo meio de transporte, ele não se encaixará nessa legislação. Então, cláusulas gerais dão muito mais flexibilidade, e, em geral, são ferramentas jurídicas muito úteis. Outro exemplo: se houver uma norma proibindo os contratos que violem a ordem pública, os bons costumes, o juiz pode adaptar ou interpretar a situação de acordo com os pontos de vista da sociedade na época. Na Alemanha, houve casos na primeira metade do século XX em que um testamento por meio do qual uma pessoa não deixava seus bens para sua família, mas para seu ou sua amante, era considerado pelos juízes como contrário aos bons costumes e, por isso, declarado nulo. Em nossa época, essas opiniões, esses pontos de vista mudaram, nós somos muito mais liberais, então a visão da maioria não é mais tão cética. Atualmente, o juiz declarará válido o testamento. Veja, a norma não mudou nada, ainda é a norma que diz que, no Direito Contratual, uma transação jurídica, um negócio jurídico, que viole os bons costumes é nulo, e ela poderá ser interpretada diferentemente em épocas diferentes. Isso é mais uma vantagem da flexibilidade.
Mas, claro, as cláusulas gerais têm uma grande desvantagem, na medida em que elas criam incerteza jurídica e talvez deem muito poder ao juiz. Dito de outro modo: talvez as cláusulas não deem tanto poder ao juiz, mas o juiz pode acreditar que agora ele tem muito poder. Então, ele pode ir longe demais nos seus poderes discricionários. E isso é algo que pode ser observado hoje em dia em alguns tribunais brasileiros, quando determinados juízes revelam uma certa tendência a desprezar as normas específicas que foram promulgadas pelo legislador, e, em vez disso, preferem se basear diretamente no princípio da boa-fé, por exemplo, e recorrer a ele para solucionar o caso, mesmo se a solução for contrária ao que a norma específica diz. Então, na realidade, eles invertem as decisões que o legislador tomou. E o objetivo das cláusulas não é dar poder ao juiz para prevalecer sobre o legislador. A função delas é permitir que o juiz tome decisões razoáveis quando existir uma lacuna na legislação, para que, por exemplo, quando não houver normas, ele possa encontrá-las nas cláusulas gerais, que podem guiá-lo nessa direção. Ainda há algum trabalho a ser feito quanto a isso. É também muito importante que a doutrina jurídica ajude os tribunais nesse aspecto, elabore a fundamentação teórica para o uso correto das cláusulas gerais, de forma que haja equilíbrio entre a equidade, entre decisões justas, e decisões que fazem a justiça no caso concreto, mas também que garantam um nível suficiente de segurança jurídica. Neste momento, eu observo uma forte preferência dos juízes brasileiros pela equidade, pela decisão supostamente equitativa, muitas vezes em detrimento da segurança jurídica. É preciso restaurar o equilíbrio, até porque a justa solução em um caso concreto, muitas vezes, depende da opinião do juiz, e o que ele considera uma solução justa pode ser difícil de justificar sob um ponto de vista objetivo. Frequentemente, você pode encontrar decisões que são, na realidade, muito injustas, porque elas concedem um privilégio a uma pessoa específica em detrimento de diversas outras. Alguns juízes brasileiros, às vezes, podem revelar uma visão muito estreita de algumas questões. Eles apenas olham para o caso concreto e buscam oferecer justiça a essa pessoa específica, mas esquecem que as consequências para a sociedade como um todo podem ser negativas.
ConJur — Professor Jan Peter Schmidt, o senhor escreveu uma tese sobre o processo de codificação civil no Brasil. Há no Congresso Nacional um projeto de um novo Código Comercial, que unificaria diversas leis sobre o assunto existentes no país. Qual é a opinião do senhor sobre isso?
Jan Schmidt — Mesmo sem ter estudado esse projeto em detalhe, sou crítico dessa iniciativa por uma série de razões. A ideia de ter um código civil e comercial unificado é, na realidade, muito moderna. Muitas jurisdições, tanto na Europa quanto na América Latina, adotaram essa ideia. O último exemplo é o Código Civil e Comercial da Argentina, que foi promulgado em setembro de 2014. Há vários argumentos em favor dessa solução, que já foram apresentadas por Augusto Teixeira de Freitas no século XIX. É mais coerente, é mais simples… Na realidade, é muito difícil justificar a solução separada, a codificação separada do Direito Comercial. A codificação separada do Direito Comercial, que ainda encontramos em muitos países, como Alemanha e França, por exemplo, existe mais por razões históricas. Tal se deve porque, na Idade Média, o Direito Comercial se desenvolveu autonomamente como uma matéria a princípio não regulada pelos Estados, e sim como um Direito que os comerciantes criaram para eles.
No caso brasileiro, há outro detalhe interessante: desde o tempo de Teixeira de Freitas, então durante quase 150 anos, o Brasil havia almejado ter um código unificado. Com o Código de 2002, o sonho finalmente virou realidade. O fato de que pouco mais de dez anos depois alguns já querem dar volta atrás, é algo que expressa, de maneira bastante eloquente, uma certa obsessão brasileira com a reforma de códigos inteiros, apesar de a experiência mostrar claramente as dificuldades e os riscos que isso implica. Tanto o Código Civil de 1916 quanto o Código de 2002 foram adotados somente depois de processos legislativos muito longos e complicados, e em ambos casos a qualidade sofreu por isso. A lição a ser aprendida disso, que também é confirmada pela experiência de outros países, é que, no tema da reforma legislativa, é melhor proceder com pequenos passos e não querer fazer tudo ao mesmo tempo. Compreendo que os comercialistas não estejam satisfeitos com algumas regras do Código Civil. Mas, não vejo porque esses problemas não poderiam ser solucionados por intermédio de reformas pontuais. De onde vem a necessidade de um novo Código e quem garante que as regras dele seriam de uma melhor qualidade?
Aliás, há uma discussão semelhante na área do Direito de Família, onde soube que existe um projeto para a criação de um Código das Famílias. Contra essa ideia podem ser invocados basicamente os mesmos argumentos que os utilizados contra um novo Código Comercial. Não é preciso ser um profeta para predizer que o projetado Código das Famílias, por causa da amplitude e complexidade do tema, conteria muitas falhas técnicas e criaria muito contradições em face de regras do Código Civil. Se se acha que o Direito da família precisa de reformas, façam-se então essas reformas dentro do Código Civil. O Código Civil sempre respeitou a autonomia principiológica do Direito de Família. Não é necessário ter um Código autônomo para isso.
Reinhard Zimmermann — Se você olhar para o Direito Privado, há relações negociais consumeristas, e se você tirá-las e colocá-las em um código específico, você terá um código do consumidor especializado. E se você tirar os negócios jurídicos de natureza comercial, você terá um código comercial especializado. E então, o que sobra? O que sobra do Direito Privado, do núcleo do Direito Privado? Não muita coisa, apenas certas relações negociais de caráter não comercial entre indivíduos. E isso significa a completa desintegração do Direito Privado. Trata-se de algo para se arrepender, além de ser contra a corrente geral do desenvolvimento em termos comparados nos dias de hoje.
ConJur — Professor Reinhard Zimmermann, o senhor morou na África do Sul nos tempos do apartheid. Gostaria que contasse um pouco sobre sua vivência naquele país e de sua experiência como professor lá em tempos tão difíceis.
Reinhard Zimmermann — Eram tempos difíceis na África do Sul. Existia o apartheid universitário. Ou seja, havia universidades para brancos, universidades para negros, universidades para indianos. Eu estava em uma universidade para brancos. E as universidades para brancos eram subdivididas entre as para os descendentes dos imigrantes holandeses, os bôeres, e as universidades inglesas. Estas e a University of Cape Town [Universidade da Cidade do Cabo], onde eu estava, eram as mais influentes. Elas possuíam um espírito liberal inglês. A universidade se opunha ao regime do apartheid. Embora a universidade fosse destinada aos brancos, havia uma cota, o que significava que o governo tinha o poder de estabelecer cotas para estudantes que não eram brancos em universidades para brancos. Mas nenhuma cota jamais foi estabelecida. Então, na realidade, nós éramos livres para aceitar estudantes negros. E, durante o meu período na University of Cape Town, o número de estudantes negros aumentou consideravelmente. Era, porém, muito difícil, porque a maior parte das escolas para negros era de qualidade inferior asa das escolas para brancos. Então, os estudantes negros chegavam despreparados à minha universidade e nós tínhamos de baixar nossos padrões. Ora, se quiséssemos um número significativo de estudantes negros, teríamos duas opções: baixar os padrões de qualidade acadêmica ou suprir aquilo em que as escolas secundárias haviam sido falhas em suas atribuições. Fizemos a escolha, ao meu ver, certa: nós introduzimos cursos específicos, o que fazia com que a maioria dos estudantes negros que desejávamos ver aceitos na universidade tivesse de estudar dois anos a mais para chegar ao nível que queríamos que eles tivessem. Isso era visto como discriminação: “Por que os negros têm que estudar mais tempo do que os brancos?”, e por aí vai. Então, havia todos esses tipos de problemas, quando, na verdade, nosso desejo era permitir que mais negros tivessem acesso à universidade mas sem comprometer os níveis de qualidade acadêmica.
ConJur — Os estudantes negros tinham de pagar pela faculdade?
Reinhard Zimmermann — Os estudantes tinham de pagar para estudar na universidade. Note que a University of Cape Town é uma universidade privada, embora receba muito dinheiro do Estado. Ela tinha mensalidades, mas também bolsas de estudo. Havia bolsas de estudo particularmente para estudantes negros. Então, nós tínhamos um número crescente de estudantes negros, mas a próxima questão era “onde eles poderão morar?”. Nós éramos uma universidade com estrutura para residência estudantil. As pessoas moravam no campus, em residências estudantis que foram reservadas para brancos por efeito da lei que estabeleceu o território de cada grupo étnico. Então, negros tinham de viver fora da universidade. A University of Cape Town estava em uma área de brancos. Mas, na realidade, nós permitimos que todos os nossos estudantes morassem no campus e o governo fechou os olhos para isso.
Em 1986, as coisas ficaram realmente ruins quando foi decretado estado de emergência e o Estado de Direito foi abolido. Quando eu residia na Cidade do Cabo, eu sempre pensava: “O que fazer quando se está vivendo em uma sociedade injusta?” e também me indagava: “Nós podemos funcionar normalmente em uma situação anormal?”
Eu sempre pensei, no entanto, que seria positivo se existissem “fachos de luz”, onde nós providenciaríamos a educação de acordo com os valores liberais, com base na neutralidade política, nos direitos humanos e no Estado de Direito. Eu acreditava que era muito importante que nós instilássemos esses valores, pois algo iria crescer a partir daí. Mas se tornou mais difícil manter essa ideia quando o Estado de Direito foi abolido. Nessa época, eu era o decano da minha faculdade e presidente da South African Law Teachers Association [Associação Sul-Africana de Professores de Direito]. Na ocasião, era meu desejo que a South African Law Teachers Association protestasse contra o fato de que o Estado de Direito havia sido suprimido. Nós elaboramos uma resolução dizendo apenas que: “Se pregarmos na universidade algo que não seja condizente com o mundo real, com o que acontece lá fora, tal situação prejudicará nossa posição como professores de Direito”. Isso não foi levado adiante, e eu deixei o cargo. Minha decisão baseou-se na seguinte reflexão: nos tempos de Hitler, na Alemanha, quando os advogados não disseram nada quando havia violência e os judeus estavam sendo assassinados, o sistema jurídico se corrompia, os advogados e a maioria das organizações oficiais de advogados ficaram quietos. Mas mesmo dentro da nossa universidade, nós tínhamos diversas discussões nessa época sobre o que fazer diante desse problema. Havia dois slogans. Um deles era “Libertação antes de educação”. Nós não podemos ensinar em uma sociedade anormal e nesse estado de emergência. Primeiro é preciso haver libertação, e, aí, nós poderemos educar apropriadamente. Eu estava sempre no lado ligeiramente mais conservador da minha universidade, dizendo “Não! É muito importante que continuemos a educar da melhor forma que pudermos”. E aí, por meio da educação, podemos chegar a situação na qual os novos valores triunfem sem uma revolução violenta. Houve semanas em que a polícia foi ao campus, os estudantes protestaram e foram presos. Aqueles foram dias selvagens.
ConJur – Em 2006, o senhor recebeu um doutorado honoris causa da University of Cape Town em reconhecimento a sua contribuição à restauração do estado de direito durante o apartheid. O que esse título significa para o senhor?
Reinhard Zimmerman — Bem, como um acadêmico, é normalmente algo muito especial receber uma distinção universitária como essa. Como político, você também pode receber um diploma honorário como reconhecimento de seus feitos políticos. Nesse caso, quando eu fui para a África do Sul, eu era um estrangeiro, um alemão, e é sempre um pouco estranho interferir na política do Estado que lhe acolheu, por razões óbvias. Em primeiro lugar, eu apenas cumpri meu dever como acadêmico: ensinei e pesquisei. Mas, em seguida, quando eu fui eleito para cargos de responsabilidade de direção universitária e como presidente da Associação de Professores de Direito da África do Sul, para a qual fui eleito porque eu poderia servir de ponte entre as comunidades de língua inglesa e africâner, eu tive de assumir posições públicas. Isso é algo que sempre tentei sustentar como professor: em nossa condição temos de professar alguma coisa, temos que professar valores, professar uma certa integridade moral e jurídica, nós temos de fazer nosso melhor para preservar a integridade do sistema jurídico. Bem, e foi isso que eu tentei fazer. Em muitas ocasiões, enfrentei resistências de setores mais radicais. Em relação a eles eu argumentava que não poderíamos agir do mesmo modo que o Governo. Nossas práticas tinham de ser diferentes. Nesse aspecto, eu tive muita sorte de conviver em uma comunidade acadêmica formada por colegas que também eram amigos. Havia diferenças entre nós, mas elas eram resolvidas por meio do diálogo. Nós podíamos confiar uns nos outros, o que era muita coisa em um tempo no qual nós éramos vigiados e nossos telefones monitorados. Esse título de doutor honoris causa, por tudo isso, é muito especial para mim.
Sérgio Rodas é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 1 de março de 2015, 9h02