terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

O CNJ NÃO TEM COMPETÊNCIA PARA EXERCER CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

CNJ não pode exercer controle de constitucionalidade

 
O Conselho Nacional de Justiça é um órgão de natureza administrativa, por isso, não compete a ele exercer controle de legalidade ou de constitucionalidade sobre projetos de lei e, até mesmo, de lei. Seguindo esse entendimento, o ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello concedeu liminar suspendendo decisão do CNJ que, por aparente vício de inconstitucionalidade, impediu que o Tribunal de Justiça do Amazonas adotasse providências para preencher sete vagas para desembargador criadas por lei estadual.
ministro Celso de Mello - 20/11/2012 [Nelson Jr./SCO/STF]“O Conselho Nacional de Justiça, embora incluído na estrutura constitucional do Poder Judiciário, qualifica-se como órgão de índole eminentemente administrativa, não se achando investido de atribuições institucionais que lhe permitam proceder ao controle abstrato de constitucionalidade referente a leis e a atos estatais em geral, inclusive à fiscalização preventiva abstrata de proposições legislativas, competência esta, de caráter prévio, de que nem mesmo dispõe o próprio Supremo Tribunal Federal”, afirmou o ministro Celso de Mello.
Em sua decisão, o ministro apontou que há entendimento doutrinário diverso. Entretanto, Celso de Mello citou decisões do próprio CNJ reconhecendo que o órgão não tem competência para proceder ao controle incidental de constitucionalidade de diplomas legislativos. “Esse entendimento — que põe em destaque o perfil estritamente administrativo do Conselho Nacional de Justiça e que lhe nega competência para interferir na esfera orgânica de outros Poderes, inclusive do próprio Poder Judiciário quando este atua em sede jurisdicional,  ou, ainda, para intervir no âmbito de instituições estranhas ao Judiciário — encontra apoio em autorizado magistério doutrinário”, complementa o ministro, citando entre outros autores Sergio Bermudes, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery.
Ao fundamentar sua decisão, o ministro registrou a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a respeito da natureza das atividades que o Conselho Nacional de Justiça pode, legitimamente, exercer.
Após citar diversos precedentes, o ministro concluiu que “a Suprema Corte já proferiu decisões em igual sentido, advertindo, ainda, de outro lado, a despeito da controvérsia doutrinária existente, que o Conselho Nacional de Justiça — quer colegialmente, quer mediante atuação monocrática de seus Conselheiros ou do Senhor Corregedor Nacional de Justiça — não dispõe de competência para exercer o controle incidental ou concreto de constitucionalidade (muito menos o controle preventivo abstrato de constitucionalidade) de atos do Poder Legislativo ou, como sucede na espécie, de meros projetos de lei submetidos à instância parlamentar”.
Celso de Mello apontou ainda que a instauração do processo legislativo, ainda que por iniciativa do Poder Judiciário, especialmente naqueles casos em que a Constituição lhe confere reserva de iniciativa, configura ato de índole eminentemente política, de extração essencialmente constitucional, em relação ao qual o Conselho Nacional de Justiça não dispõe de qualquer possibilidade de legítima ingerência de ordem jurídica, sob pena de afetar, potencialmente, o exercício, pelo Poder Legislativo, de sua mais expressiva função institucional.
Entenda o casoNo dia 5 de novembro, o pleno do Tribunal de Justiça do Amazonas aprovou, por maioria de votos, o envio à Assembleia Legislativa do Amazonas (Aleam) do projeto de lei que aumenta o número de desembargadores do TJ-AM de 19 para 26. De acordo com o tribunal, a medida tem o objetivo de melhorar a prestação jurisdicional no Estado.
Dois dias após o envio, a Aleam aprovou o projeto de lei e o governador Omar Aziz sancionou a Lei Complementar 126/2013, criando sete novas vagas para desembargador. Entretanto, no mesmo dia, o Conselho Nacional de Justiça suspendeu, em decisão liminar, os efeitos da decisão do TJ-AM que aprovou o projeto.
A liminar foi concedida a pedido da desembargadora Graça Figueiredo, que, durante a votação, teve rejeitado pedido de vistas ao projeto que aumenta as vaga no TJ-AM. Negado pelo presidente da corte, Ari Moutinho, a rejeição ao pedido gerou bate-boca e protesto de nove magistrados durante a sessão, mas, ainda assim, a decisão foi mantida. Moutinho alegou que o pedido de vista não é possível em processos administrativos. Diante disso, a desembargadora acionou o CNJ.
Ao conceder a liminar, o conselheiro Rubens Curado entendeu que a decisão do presidente do TJ-AM de negar o pedido de vista impediu o debate sobre a necessidade ou não do aumento do número de desembargadores. Segundo o conselheiro, o pedido de vista é prerrogativa do magistrado e inerente a todo e qualquer julgamento colegiado, em processos judiciais ou administrativos, porquanto essencial à formação do convencimento nas hipóteses em que ainda não se sinta apto a votar.
Além disso, Rubens Curado apontou a importância do debate, pois, segundo o Relatório Justiça em Números 2013, com dados relativos ao ano de 2012, o 2º grau da Justiça do Amazonas é um dos menos eficientes do Brasil. “Basta dizer que o número de processos baixados por Desembargador foi de apenas 223 (duzentos e vinte e três), enquanto que a média nacional alcançou 1.193 (mil cento e noventa e três) processos. Com efeito, os números indicam que a alta taxa de congestionamento do 2º grau do TJ-AM (84,2%) tem como causa principal a baixa produtividade, e não na insuficiência do número de Desembargadores”, concluiu o conselheiro.
Por maioria a liminar foi ratificada pelo plenário do CNJ em 12 de novembro. Com isso, o Tribunal de Justiça do Amazonas ingressou com Mandado de Segurança com pedido de liminar no STF para anular a decisão, permitindo que o TJ-AM tome providências para preencher as vagas criadas.
O pedido foi analisado pelo ministro Celso de Mello, que concedeu liminar suspendendo cautelarmente, até o julgamento final do Mandado de Segurança, os efeitos da decisão do CNJ.
Clique aqui para ler a liminar.
 
Tadeu Rover é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 4 de fevereiro de 2014

RESPONSABILIDADE CIVIL, PENAL E ÉTICA DO MÉDICOS

 

Revista da Associação Médica Brasileira
Print version ISSN 0104-4230
Rev. Assoc. Med. Bras. vol.48 no.2 São Paulo Apr./June 2002
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-42302002000200039


Artigo Original

RESPONSABILIDADE CIVIL, PENAL E ÉTICA DOS MÉDICOS



ARTUR UDELSMANN
Departamento de Anestesiologia da Faculdade de Ciências Médica da Universidade Estadual de Campinas,SP





RESUMO – Nos últimos anos, os médicos têm sido alvo de processos indenizatórios, criminais e éticos com freqüência cada vez maior. A Medicina é uma profissão muito visada, não somente em razão dos riscos que comporta, mas também, em alguns casos, por uma visão equivocada do Poder Judiciário sobre as obrigações dos médicos. As decisões nos processos éticos dos Conselhos Regionais de Medicina repercutem na justiça comum, e por isso devem ser seguidas com bastante atenção. O objetivo desta revisão é dar uma visão ampla, do ponto de vista de um médico-advogado, dos processos envolvendo responsabilidade civil, penal e ética e tentar torná-los compreensíveis aos médicos.
Após breve introdução histórica, são abordadas as causas de responsabilidade civil e os artigos legais que lhe dão base. As responsabilidades do médico, do hospital e dos planos de saúde são vistas separadamente, bem como os mecanismos de indenização. Os crimes possíveis de ocorrer no exercício da Medicina são descritos, suas penas e a relação direta existente entre crime e a indenização é demonstrada. É feita a descrição da natureza administrativa do processo ético, chamando a atenção para o fato do caráter legal de suas penas, que com freqüência, serve de base para as decisões da justiça comum.
A prevenção ainda é o melhor remédio para fazer face ao problema; o bom exercício da Medicina e a boa relação médico-paciente ainda são as melhores soluções para minimizar as repercussões de tais ações. É conveniente que os médicos tenham noções dos mecanismos jurídicos de tais demandas, mas não devem nunca tomar iniciativas de defesa sem antes consultar um advogado.

UNITERMOS: Médico. Responsabilidade: civil, penal, ética.





INTRODUÇÃO

O exercício da Medicina, até um passado historicamente recente, era cercado de uma aura de divindade e não se discutiam os desígnios dos esculápios, pois estes eram tidos somente como intermediários da vontade divina. Mesmo assim, já no Código de Hammurabi da Babilônia do séc. XVIII a.C. havia regras que previam penas aos médicos em caso de erros1. Com a evolução dos conhecimentos, a arte da Medicina foi se tornando ciência, e com isso a sociedade passou a exigir dos médicos condutas científicas e reparação por eventuais erros cometidos. A sociedade muito evoluiu desde então, até chegarmos aos tempos de hoje, onde o exercício da Medicina em nosso país tornou-se quase uma atividade de risco. Não bastassem as inúmeras dificuldades das políticas governamentais de saúde, os conflitos com os planos e seguros de saúde, acrescente-se, mais recentemente, a tendência à institucionalização da "indústria da indenização", cópia deformada de modelos existentes em outros países mais evoluídos. Médicos não têm formação jurídica, mas deveriam começar a olhar a questão com interesse se pretendem continuar a exercer a profissão e sobreviver no mercado de trabalho. O objetivo da seguridade social moderna é, acertadamente, o de estender os cuidados à saúde e os cuidados médicos a toda a população, mas esta, freqüentemente, confunde o direito à seguridade com o direito à cura e tende, atualmente, a exigir indenizações quando seus objetivos não são atingidos, encorajada pela mídia sensacionalista.



OBJETIVO

O objetivo deste trabalho é apresentar as implicações médico-legais na área cível, penal e ética do exercício da Medicina em nosso país, a legislação que rege a prática da profissão do médico liberal, a do médico empregado de entidade privada ou ainda do servidor público. Mostramos ainda as leis que salvaguardam e as que responsabilizam o médico na sua prática profissional diária; propomos também aos colegas médicos algumas soluções preventivas no caso dos mesmos se verem confrontados a tais situações.



RESPONSABILIDADE CIVIL

A noção da responsabilidade civil, ou seja, a da necessidade de se compensar um eventual erro cometido, surgiu com a discussão sobre o Direito Natural, este mais antigo do que a própria Medicina, e através do qual se reconhecem direitos inalienáveis do ser humano, como o direito à vida, à felicidade e à liberdade; toda vez que esses direitos fossem ultrajados criava-se o direito a uma reparação. No Direito moderno essa reparação tem natureza pecuniária.

Inicialmente, o paciente é, indiscutivelmente, o último juiz da sua própria saúde, e não se tratando de uma emergência, só ele pode ter a última palavra sobre o interesse ou não de empreender determinado tratamento, sopesando os riscos e benefícios. A esse respeito, diz o artigo 94 do Código Civil (CC): "Nos atos bilaterais, o silêncio intencional de uma das partes a respeito de fato ou qualidade que a outra parte haja ignorado, constitui omissão dolosa, provando-se que sem ela não se teria celebrado o contrato". Disto já tiramos uma primeira lição: é imperativo que o paciente seja previamente esclarecido, em linguagem a ele compreensível, sobre sua patologia, os limites do tratamento proposto e eventuais reações adversas, além das possíveis complicações.

A responsabilidade civil do profissional da Medicina deriva da culpa no sentido amplo, esta engloba o dolo, ou seja, a vontade premeditada de causar dano, e a culpa em sentido estrito, ambos também previstos no Direito Penal. Inicialmente, há que se verificar a real ocorrência de algum dano ao paciente. Entende-se por dano a ofensa a bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica; resumidamente, há uma afronta à norma jurídica, há o caráter de antijuridicidade e um prejuízo. O dano pode ser patrimonial, de ordem financeira, ou extrapatrimonial (dano moral, por exemplo) e os dois podem ser cumuláveis2. Havendo dano, há que se auferir a noção do nexo de causalidade, ou seja, é imperativo que se estabeleça que a lesão foi realmente causada por ação ou omissão do médico e sua culpa. Se um paciente sofre uma anóxia durante a anestesia com lesão cerebral e comprova-se que houve descuido do anestesista, configura-se um dano, o nexo de causalidade e a culpa, a indenização será então devida. A essência da culpa está na previsibilidade: se o resultado desfavorável era previsível e não foi evitado, há culpa. Se o resultado desfavorável, nas circunstâncias do caso, não era possível de ser previsto, estamos face às excludentes de culpabilidade e são elas o caso fortuito e o de força maior, previstas no artigo 1058 § único do CC, quando então o médico não poderá ser responsabilizado3. Simplificando, denomina-se caso fortuito aquele estranho à vontade do homem, imprevisível, inevitável4 (choque anafilactóide em indivíduo sem antecedentes), e o de força maior aquele absolutamente necessário, que cause algum dano, porém se não tivesse sido praticado, daria lugar a dano maior ainda (histerectomia de urgência em hemorragia pós-parto causando esterilidade). Havendo dano, sem as excludentes de culpabilidade, o direito à indenização é certo segundo o caput do artigo 159 do CC que diz: "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano". Mais especificamente, o artigo 1545 do mesmo código esposou inteiramente a teoria da culpa: "Os médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiras e dentistas são obrigados a satisfazer o dano, sempre que da imprudência, negligência ou imperícia, em atos profissionais, resultar morte, inabilitação de servir, ou ferimento". A culpa em sentido estrito tem três vertentes: a imprudência, a negligência e a imperícia. A imprudência se caracteriza pela prática de atos de risco não justificados, afoitos, sem a cautela necessária. A negligência é um ato omissivo, quando o médico deixa de observar regra profissional já bem estabelecida e reconhecida pelos colegas da especialidade. E a imperícia é o despreparo, a prática de determinados atos sem os conhecimentos técnico-científicos necessários para realizá-los5. Mais recentemente, a lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), no seu artigo 14, § 4o confirmou a necessidade da verificação da culpa dos profissionais liberais, contrariamente aos demais fornecedores de serviços, como exigência para reparação de dano em caso de erro médico: "A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação da culpa". A aferição da culpa do médico obedecerá então a uma equação com três incógnitas: ação ou omissão culposa + relação de causalidade + dano = responsabilidade civil indenizatória6.

O Direito entende que, na relação entre o médico e o paciente, há o estabelecimento de um contrato quando do acordo para prestação de serviços, mesmo que este não tenha sido firmado em documento; neste último caso, o contrato é denominado "tácito". Mas essa relação poderá também ser extra-contratual quando não houver acordo anterior, como, por exemplo, quando o paciente procura um hospital ou Pronto-Socorro e é atendido pelo médico de plantão ou no caso de socorro a um acidentado na via pública. Em razão dessa relação, contratual ou extra-contratual, criam-se obrigações; as obrigações do médico são de informação, cuidados terapêuticos e de abstenção de abuso ou desvio de poder7. Juridicamente, as obrigações dos médicos são de dois tipos: obrigações de meios e obrigações de resultados. Nas obrigações de meios, o profissional deverá colocar à disposição do paciente todos os recursos, além de conhecimentos atualizados, visando o melhor resultado possível; a cura ad integrum, no entanto, não pode ser prometida, pois seres biológicos não respondem matematicamente ao tratamento e resultados adversos são assim possíveis, apesar do melhor empenho da equipe médica. Se o resultado esperado não for alcançado, inexistindo negligência, imprudência ou imperícia, não poder-se-á dizer que houve descumprimento do contrato e não haverá culpa. A jurisprudência atualmente entende que a grande maioria das especialidades médicas configura obrigação de meios. Já na obrigação de resultados, entende-se contratada a obtenção de um resultado específico, e se este não é obtido, independente de culpa ou não, haverá ruptura do contrato cabendo reparação do dano. No nosso país, praticamente todos os tribunais ainda entendem que a Cirurgia Plástica estética configura uma obrigação de resultados8 e alguns têm também assim considerado a Anestesiologia7,9, embora, felizmente, isso venha mudando recentemente10,11. Para os que entendem a Anestesiologia como uma obrigação de resultados, o profissional se comprometeria a anestesiar e recuperar integralmente o paciente, sem dano, desde que tenha tido a oportunidade de avaliar o doente antes da cirurgia e concluído pela existência de condições para a prática da anestesia12. Havendo portanto culpa, em qualquer das suas modalidades, configura-se o chamado "erro médico", melhor denominado erro de ofício13, e caberá a indenização. O "erro médico" distingue-se do erro profissional, pois este último é imputável, não à falha do profissional, mas às limitações da Medicina que nem sempre possibilitam um diagnóstico de certeza; conhecido também como erro de diagnóstico, no seu caso é descabida a indenização.

Tratando-se de uma obrigação de meios, o eventual descumprimento do dever contratual deve ser provado pelo paciente, autor da demanda, mediante a demonstração da culpa do médico, conforme prevê o artigo 333, inciso I do Código de Processo Civil (CPC): "O ônus da prova incumbe: I- ao autor, quanto a fato constitutivo do seu direito". Já no caso da obrigação de resultados basta ao autor demonstrar que o objetivo pactuado não foi obtido, o que é suficiente para demonstrar a ruptura do contrato e pleitear a indenização. Nesse caso, caberá ao médico provar que não agiu com culpa. É o que se convencionou chamar de inversão do ônus da prova. Nesse sentido, diz o artigo 1056 do CC: "Não cumprindo a obrigação, ou deixando de cumpri-la pelo modo e no tempo devidos, responde o devedor por perdas e danos".

O hospital, como pessoa jurídica, não realiza atos médicos, assim a ele não são aplicáveis os ditames do artigo 1545 do CC citado anteriormente. Porém, conforme o artigo 1521, inciso III do CC: "São também responsáveis pela indenização civil: o patrão, amo ou comitente, por seus empregados, serviçais, e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou por ocasião dele". Assim, o hospital responde solidariamente com o médico-empregado pelos erros de ofício deste durante o seu trabalho na instituição. E os médicos, pela mesma razão, respondem também pelos erros de seus assistentes e auxiliares, ou por tê-los mal escolhido (culpa in eligendo), ou por não tê-los supervisionado corretamente (culpa in vigilando)14. Em relação aos médicos que integram o quadro clínico do hospital sem serem seus empregados, há que se distinguir duas situações: se o paciente procurou o nosocômio, tendo nele sido atendido por um integrante do corpo clínico, ainda que não empregado, respondem médico e hospital solidariamente; essa é a situação do anestesiologista que integra a equipe exclusiva de determinado hospital12. Já se o doente procura um médico e este o encaminha ao hospital para tratamento, o contrato é só com o facultativo e o hospital não responde pela culpa dos atos deste.

Se numa ação de indenização contra um médico-empregado, este é o único réu, cabe a ele realizar o chamamento ao processo15 do hospital como maneira de dividir as responsabilidades; tal se encontra no artigo 77, inciso II do CPC: "É admissível o chamamento ao processo: de todos os devedores solidários, quando o credor exigir de um ou de algum deles, parcial ou totalmente, a dívida comum".

As entidades privadas de assistência à saúde respondem solidariamente pelos erros causados por seus médicos credenciados, conforme decisão recente do Supremo Tribunal de Justiça; entendeu este tribunal haver vínculo de responsabilidade entre a companhia e o médico por ela credenciado16. Diferentemente acontece com os seguros-saúde que dão liberdade de escolha de médicos e hospitais, reembolsando somente as despesas; nesses casos a empresa não pode ser responsabilizada pelos atos do médico escolhido pelo próprio segurado, caberá somente ao médico uma eventual indenização devida.

Até o presente, discutimos as situações que interessam à medicina privada liberal, abrangida pelas regras do Direito Privado. Diferentemente acontece nos hospitais públicos, suas fundações ou autarquias, que são abrangidos pelo Direito Público, particularmente pelo Direito Administrativo. Dispõe o artigo 37 § 6o da Constituição Federal (CF) sobre a responsabilidade dos hospitais públicos quanto os atos de seus empregados: "As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa". Surgem aí duas novas noções jurídicas importantíssimas: a da responsabilidade objetiva e a de direito de regresso. A CF faz menção ao princípio da responsabilidade objetiva pelos danos que seus agentes causarem a terceiros, o que significa que, demonstrado este dano, independentemente de culpa ou não, caberia a indenização pelo ente público. É a teoria do risco inerente à atividade, aliás bastante freqüente no Direito do Trabalho. Mas a doutrina hoje em dia está entendendo a possibilidade de exclusão ou atenuação da responsabilidade do Estado nos casos fortuitos ou de força maior e ainda naqueles por culpa exclusiva do próprio paciente12. Mas, havendo dolo ou culpa por parte do médico, poderá o ente público demandar, posteriormente, ressarcimento ao seu empregado; é o que se chama direito de regresso. O direito de regresso, juridicamente, se exerce através da denunciação da lide conforme os ditames do artigo 70, inciso III do CPC: "A denunciação da lide é obrigatória: III- àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda". O ente público, nesse caso, requer do médico reembolso da indenização que foi obrigado a pagar por culpa dele.

Em razão da responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas, da indenização independente de culpa, os médicos devem ser muito cautelosos ao formar uma sociedade para prestação de serviços, devendo sempre, antecipadamente, consultar um advogado sobre a melhor maneira de tal empreendimento e, sendo isso necessário, formar uma sociedade civil preferencialmente a uma comercial.

E mais, o nosso legislador, já na antiga Lei de Introdução ao Código Civil, em seu artigo 3o, precaveu-se contra defesas através de alegações de desconhecimento da lei, impedindo-as: "Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece".

Em suma, é indenizável aquilo que o paciente inesperadamente despendeu em razão do ato médico para seu tratamento e recuperação (dano emergente), o quanto deixou de lucrar no seu trabalho durante a convalescença (lucro cessante) e o dano moral. Dispõe o artigo 1538 do CC: "No caso de ferimento ou outra ofensa à saúde, o ofensor indenizará o ofendido das despesas de tratamento e dos lucros cessantes até o fim da convalescença, além de lhe pagar a importância da multa de grau médio da pena criminal correspondente. § 1o: Esta soma será duplicada, se do ferimento resultar aleijão ou deformidade. § 2o: Se o ofendido, aleijado ou deformado, for mulher solteira ou viúva, ainda capaz de casar, a indenização consistirá em dotá-la, segundo as posses do ofensor, as circunstâncias do ofendido e a gravidade do efeito". E mais, se o indivíduo tornar-se inabilitado ao trabalho, mesmo parcialmente, aplica-se ainda o artigo 1539 do CC: "Se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua o valor do trabalho, a indenização, além das despesas do tratamento e lucros cessantes até o fim da convalescença, incluirá uma pensão correspondente à importância do trabalho, para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu".

A indenização do dano moral, da dor pelo sofrimento imprevisto por eventual culpa do médico, leva em conta a natureza deste dano, a situação econômica dos interessados, o impacto negativo na vida do paciente17 e é a que se presta às maiores celeumas. Está prevista na Constituição Federal no artigo 5o, incisos V e X, mas seu montante não está legalmente previsto e ficará ao arbítrio do juiz1 conforme o artigo 1553 do CC: "Nos casos não previstos neste capítulo (das liquidações das obrigações), se fixará por arbitramento a indenização".

Por último, é bom lembrar o princípio da prescrição, que é a perda da pretensão punitiva pelo decurso do tempo sem seu exercício pelo interessado; decorrido um tempo determinado o acusado não mais poderá ser punido. Segundo o Código Civil atual, prescreve em um ano o direito do médico em acionar o paciente inadimplente para cobrança de seus honorários (artigo 178, § 6o, inciso IX); após um ano da prestação do serviço não poderá ele mais reivindicar judicialmente o eventual preço combinado e não honrado. Já o paciente tem o benefício legal de um prazo de 20 anos para acionar o médico por um suposto erro médico (artigo 177), só depois disso ocorrendo a prescrição. Isto nos obriga, atualmente, a mantermos por esse período toda a documentação relativa a nossos pacientes. Porém, e felizmente, foi recentemente sancionado o novo Código Civil que entrará em vigor a partir do próximo ano de 2003, nele encontramos uma substancial alteração legal que, em muito, beneficia os médicos: segundo o seu artigo 200 § 3o prescreverá em 3 anos a pretensão de reparação civil a partir do ano que vem. E ainda, segundo o § 5o do mesmo artigo, terá o médico cinco anos para cobrar os seus honorários.



RESPONSABILIDADE PENAL

A responsabilidade penal se origina pela ação ou omissão de um fato típico antijurídico com nexo de causalidade e um dano penal. Ao contrário da lei civil, são considerados ilícitos penais (crimes e contravenções) somente aqueles especificamente enumerados na lei: no Código Penal (CP), na Lei de Contravenções Penais e alguns outros em leis esparsas. Há, então, absoluta necessidade que o ato cometido esteja descrito com precisão na lei18 para que o agente possa ser responsabilizado criminalmente e penalizado conforme prescreve o artigo 5o, inciso XXXIX da CF e o artigo 1o do CP que têm a mesma redação: "Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal".

Diz o artigo 18 do CP quais são, genericamente, os tipos de crimes possíveis: "Diz-se o crime: I- doloso quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo; II- culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia". No crime doloso, a vontade do agente é de produzir o resultado danoso ou, ao menos, assumiu ele o risco dessa possibilidade ocorrer (dolo eventual). Já no crime culposo, a vontade do agente não era de causar dano, mas isso veio a ocorrer em razão de imprudência, negligência ou imperícia.

As penas aplicadas podem ser, conforme o artigo 32 do CP, privativas de liberdade, restritivas de direitos ou ainda multa e variam conforme a gravidade do crime praticado. Nos crimes culposos contra a vida e nas lesões corporais, segundo o § 4o do artigo 121 e o § 7o do artigo 129 do CP, a pena será aumentada de um terço se o crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, o que pode ser o caso de um erro médico. A prática de ilícito penal pode levar a indenização civil para reparação do dano e, em caso de condenação criminal definitiva, na justiça civil, discutir-se-á somente o montante da indenização devida (artigo 584, inciso II do CPC + artigo 63 do CPP) e não mais se o médico é culpado ou não.

Mas a absolvição na justiça criminal não significa simultaneamente absolvição civil. O Código Civil, em seu artigo 1525 diz: "A responsabilidade civil é independente da criminal; não se poderá, porém, questionar mais sobre a existência do fato, ou quem seja seu autor, quando estas questões se acharem decididas no crime". O mesmo diz o artigo 66 do CPP: "Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato".

No exercício da Medicina, o médico pode cometer crimes dolosos. A prática do aborto ainda é um crime na nossa legislação, excetuando-se as circunstâncias excludentes descritas no artigo 128 do CP (para salvar a vida da gestante ou em caso de estupro). Se um anestesiologista participa de um aborto criminoso, embora não seja ele que realize a curetagem, estará ele incorrendo nas penas do artigo 29 do CP que trata do concurso de pessoas: "Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida da sua culpabilidade". São também crimes possíveis de serem praticados por médicos no exercício da sua profissão segundo o Código Penal: o auxílio ao suicídio (art. 122), a omissão de socorro à pessoa ferida (art. 135), a exposição da vida ou da saúde de outrem a perigo direto e iminente (art. 132), o constrangimento a tratamento ou cirurgia contra a vontade do paciente (art. 146), a revelação de segredo profissional sem justa causa (art. 154), a omissão de notificação de doença compulsória (art. 269), o charlatanismo (art.284). A Lei das Contravenções Penais em seu artigo 66, inciso II penaliza ainda o caso de: "Deixar de comunicar a autoridade competente: II- crime de ação pública de que teve conhecimento no exercício da medicina ou de outra profissão sanitária, desde que a ação penal não dependa de representação e a comunicação não exponha o cliente a procedimento criminal". Por fim, o Código de Processo Penal, em seu artigo 207, proíbe o médico de depor como testemunha no seguinte caso: "São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho". Nesta última circunstância, deverá, no entanto, o médico porém comparecer em juízo e declinar as razões que o impedem de depor19 de acordo com os artigos 102 a 109 do Código de Ética Médica. Sobre o artigo 135 do CP acima descrito, é interessante lembrar que o Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo já confirmou a aplicação da pena nele prevista a familiares que negaram autorização para transfusão de sangue por motivos religiosos20.

Mas no exercício da Medicina os crimes culposos são os que têm maiores possibilidades de ocorrer. São eles o homicídio culposo e as lesões corporais culposas, que integram uma agravante se realizados por médicos no exercício da sua profissão:

Homicídio - art. 121: Matar alguém
§ 3o: se o homicídio é culposo
Pena – detenção, de 1 a 3 anos
§ 4o: no homicídio culposo, a pena é aumentada de um terço, se o crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício...

Lesões corporais - art. 129: Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem
§ 6o: se a lesão é culposa
Pena – detenção, de 2 meses a 1 ano
§ 7o: aumenta-se a pena de um terço, se ocorrer qualquer das hipóteses do art. 121 § 4º.

Praticando então um ato médico, se dele resultar a morte ou lesão corporal no paciente, tendo o médico agido com imprudência, negligência ou imperícia, incorrerá ele nas penas acima previstas, podendo ainda ser reclamado na justiça civil a ressarcir financeiramente o dano causado.

É conveniente lembrar que, em matéria penal, só podem ser réus as pessoas físicas, ou seja, o médico no que nos interessa, não cabendo processo contra o hospital, seguro saúde ou a empresa que emprega o médico.

Nos crimes ditos materiais, ou seja, nos que deixam vestígios, o Código de Processo Penal (CPP) exige a execução de perícia segundo seu artigo 158: "quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado". O exame de corpo de delito se materializa na perícia, e esta poderá ser realizada diretamente na vítima, ou indiretamente através de documentos comprobatórios (prontuário, etc, daí o interesse em ter tudo isso muito bem escriturado, documentado). Sem a perícia há nulidade insanável do processo21,22 conforme o artigo 564, inciso III, alínea b do CPP: "A nulidade ocorrerá nos seguintes casos: III- por falta das fórmulas ou dos seguintes termos: b) o exame de corpo de delito nos crimes que deixam vestígios, ressalvado o disposto no art. 167".

A exemplo da lei civil, o legislador penal também precaveu-se contra as alegações de ignorância da lei no artigo 21 do CP: "O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminui-la de um sexto a um terço".

A lei penal tem também seus prazos de prescrição e este variam conforme o máximo da pena aplicável conforme o artigo 109 do CP. No caso do homicídio culposo, a prescrição se dá em 8 anos e na lesão corporal em 4 anos, mas havendo a agravante do art. 121 § 4o, as penas serão aumentadas de 1/3 e os prazos prescricionais podem assim ser maiores.



RESPONSABILIDADE ÉTICA

O processo civil busca a reparação do dano material, o processo penal a proteção da sociedade, já o processo ético junto ao Conselho Regional de Medicina visa a disciplina da conduta profissional médica. O processo ético é de natureza moral com cunho administrativo, mas pode, em última instância, ser contestado juridicamente, pois a Constituição Federal garante isso em seu artigo 5o, inciso XXXV: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". A lei 3.268/57 que dispõe sobre os Conselhos de Medicina, em seu artigo 22, § 5o também confirma a possibilidade de recurso à justiça comum: "além do recurso previsto no parágrafo anterior, não caberá qualquer outro de natureza administrativa, salvo aos interessados a via judiciária para as ações que forem devidas".

As regras éticas, em geral, não têm caráter impositivo por carecerem de sanções legais; porém, se o Código de Ética Médica é uma resolução do Conselho Federal de Medicina (no 1246/88) sem força de lei, suas sanções, no entanto, estão previstas na Lei 3.268/57 em seu artigo 22, e isso lhes dá força impositiva com caráter jurídico: "As penas disciplinares aplicáveis pelos Conselhos Regionais aos seus membros são as seguintes: a) advertência confidencial em aviso reservado; b) censura confidencial em aviso reservado; c) censura pública em publicação oficial; d) suspensão do exercício profissional até 30 dias; e) cassação do exercício profissional, ad referendum do Conselho Federal". Essa mesma lei, em seu artigo 21, § único, confirma ainda o óbvio: "O poder de disciplinar e aplicar penalidades aos médicos compete exclusivamente ao Conselho Regional, em que estavam inscritos ao tempo do fato punível em que ocorreu, nos termos do art. 18 § único - § único: a jurisdição disciplinar estabelecida neste artigo não derroga a jurisdição comum quando o fato constitua crime punido em lei".

A apuração da responsabilidade ético-disciplinar, ao contrário do processo civil e do processo criminal, se faz em "segredo de justiça" segundo o artigo 38 do Código de Processo Ético-Profissional (resolução CFM no 1.464/96): "O julgamento disciplinar far-se-á a portas fechadas, sendo permitida somente a presença das partes e seus procuradores, até o encerramento da sessão". Esse segredo é, no entanto, relativo, pois a justiça comum, tanto civil como criminal, pode requisicionar cópias do processo para instruir demandas cíveis ou criminais, utilizando-as como meios de provas. A justiça comum não pode porém apreciar a questão de mérito ético-disciplinar que, legalmente, é da competência exclusiva dos Conselhos de Medicina segundo o artigo 2o da lei 3.268/57: "O Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Medicina são os órgãos supervisores da ética profissional em toda a República, e, ao mesmo tempo, julgadores e disciplinadores da classe médica, cabendo-lhes zelar e trabalhar por todos os meios ao seu alcance, pelo perfeito desempenho ético da medicina e pelo prestígio e bom conceito da profissão e dos que a exerçam legalmente". Os processos éticos estão também sujeitos à prescrição segundo o Código de Processo Ético-Profissional em seu artigo 51: "A punibilidade por falta ética, sujeita a processo ético-profissional, prescreve em 5 anos, contados a partir da data do conhecimento do fato".

Assim, em razão das sanções legais impostas nos casos das infrações éticas e do acesso às decisões dos Conselhos de Medicina pela justiça comum, as quais são freqüentemente solicitadas, é de todo interesse dos médicos com processos ético-disciplinares, que os mesmos sejam criteriosamente acompanhados, de maneira a não dar margens a outras demandas, por vezes bem mais vultuosas.

Em estatística solicitada ao CRM-SP, notamos que o número de queixas apresentadas tem aumentado progressivamente nos últimos 5 anos, conforme se observa no gráfico 1.









A discrepância entre o número de queixas recebidas e a somatória das arquivadas e das transformadas em processos administrativos, deve-se ao fato de muitas dessas queixas terem a sua decisão proferida em ano posterior ao da sua apresentação.

O gráfico 2 mostra o número de processos disciplinares instaurados e os julgados; novamente a diferença aparente dos números do gráfico anterior deve-se a que nem todos processos administrativos tornam-se disciplinares e muitos não são julgados no ano da sua instauração.









O gráfico 3 mostra o resultado dos processos disciplinares no CRM-SP. Mais uma vez a diferença entre os números deve-se a que processo são julgados, às vezes, mais de um colega.









O gráfico 4 mostra as penas previstas no art. 22 da Lei 3.268/57 e sua aplicação nos últimos 5 anos. Com exceção da cassação do CRM, nota-se um aumento progressivo do número de penas aplicadas.









A seguir, nos gráficos de 5 a 11, mostramos as 10 especialidades médicas mais visadas por ano e o número de queixas recebidas. Atenção deve ser dada às "queixas em branco" que envolvem ou mais de uma especialidade por queixa, ou não exatamente determinada especialidade; tal noção deve impedir uma falsa segurança que, talvez, a ausência nessa estatística causaria.













































CONCLUSÕES

Os médicos estão hoje, freqüentemente, sujeitos a acusações de "erro médico"; como em Medicina o melhor remédio é a prevenção, a boa e criteriosa prática profissional ainda é a melhor vacina contra essa epidemia que grassa entre nós. Devemos incentivar a realização de Termo de Ciência e Consentimento para os vários atos médicos, hoje exigência do Código de Defesa do Consumidor; o constrangimento que isso pode de início causar deve diminuir, paulatinamente, na medida em que se tornar costumeiro, ou mesmo obrigatório. O médico deve sempre preencher o prontuário de maneira clara e com letra legível; juizes vêem com maus olhos "hieróglifos" e não tendem a interpretá-los em benefício do médico.

Finalmente, frente a uma ação por "erro médico", três regras são importantes: a primeira diz respeito ao prazo para a defesa que, segundo o artigo 297 do CPC, é de somente 15 dias. A fase inicial da defesa, que se materializa na "contestação", numa área técnico-científica tão específica como a Medicina, é freqüentemente difícil e trabalhosa, o médico não deve perder tempo, procurando rapidamente um advogado da sua confiança assim que receber a citação que é a comunicação legal da existência de uma ação contra ele, em geral, feita por via postal. Segunda: é regra importante no CRM não acusar terceiros, outros colegas; tal prática é muito mal vista nos Conselhos de Medicina e deve ser evitada, pois pode causar mais prejuízos do que benefícios. E a terceira, mas talvez a mais importante das condutas, seja a de não praticar a auto-defesa, que aliás é somente possível no CRM. A auto-defesa está para o Direito como a auto-medicação está para a Medicina, um desastre. Se somente os médicos podem e devem tratar ou medicar os seus pacientes, da mesma maneira, somente os advogados têm a capacitação e só eles devem se ocupar da defesa dos médicos.





SUMMARY
Civil, Criminal and Ethical liability of medical doctors
In the last years doctors have been the target of a growing number of civil, criminal law suits, as well as ethical procedures. Medicine is a widely targeted career, not only owing to its inherent risks, but also owing to a mistaken approach of the Judiciary Power about the obligations of medical doctors. Decisions of the Medical Board in ethical procedures have an impact in civil and criminal justice and therefore should be followed closely. The purpose of this review is to provide a wide view from a doctor-lawyer perspective of cases involving civil, criminal liability of anesthesiologists as well as ethical procedures against them, in an effort to make them comprehensible to doctors.
After a brief historical introduction civil liability foundations and legal articles are examined. Responsibilities of doctors, hospitals and health insurance providers are discussed separately, as well as reparation mechanisms. Crimes possible to occur during medical practice and respective penalties are described; the direct relationship between crime and civil reparation is demonstrated. The administrative nature of ethical procedure is described, emphasizing that the legal character of its penalties often serve as grounds for civil and criminal justice decisions.
Prevention is still the best medicine. Good medical practice and a good medical-patient relationship are still the best ways to minimize lawsuits and their repercussions. Doctors should have some knowledge of juridical mechanisms in lawsuits and ethical procedures, but should not take defense initiatives without prior consultation of an attorney. Civil, criminal and ethical liability of physicians. [Rev Assoc Med Bras 2002; 48(2): 172-82]

KEY WORDS: Physician. Liability: civil, criminal, ethical.





REFERÊNCIAS

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2. Súmula 37 do Supremo Tribunal de Justiça

3. Diniz MH. Título VII – Das obrigações por atos Ilícitos. In: Diniz MH. Código civil anotado. 2a. ed. São Paulo: Ed. Saraiva; 1996, p.9954-73. [ Links ]

4. Negreiros AAF, Negreiros CC. Verificação da culpa do anestesiologista. Rev Bras Anestesiol 1993; 43:341-4. [ Links ]

5. Jesus DE. Título II – Do Crime. In: Jesus DE. Código penal anotado. 6a. ed. São Paulo: Ed. Saraiva; 1999. p.29-95. [ Links ]

6. Parecer nº 128. Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. [ Links ]

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8. Parecer nº 170/145. Revista Jurídica.

9. Kfouri Neto M. Responsabilidade civil em anestesiologia. In: Kfouri Neto M. Responsabilidade civil do médico., 3a. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais; 1998. p.136-49. [ Links ]

10. Romanello Neto J. Anestesista. In: Responsabilidade civil dos médicos. São Paulo: Ed. Jurídica Brasileira; 1998. p.129-32. [ Links ]

11. Albuquerque AC. Decisão do Tribunal de Alçada do Paraná define obrigações do anestesista. Arquivo do Conselho Regional de Medicina do Paraná, 1999; 16:65-6. [ Links ]

12. Aguiar Junior RR. Responsabilidade civil do médico. RJ 231 – jan.; 1997. p.122-50. [ Links ]

13. Ribeiro JB, Ribeiro NB. A tradução da palavra inglesa "mal practice". Rev Bras Anestesiol, 1990; 40:224-5. [ Links ]

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15. Nery Junior N, Nery RMA. Seção IV– Do chamamento ao processo. In: Nery Junior N, Nery RMA. Código de processo civil comentado. 2a. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais; 1996. p.458-62. [ Links ]

16. STJ REsp 138.059-MG, Rel. Min. Ari Pargendler, julgado em 13/3/2001

17. Valler W. Da avaliação do dano moral. In: Valler W. A reparação do dano moral no direito brasileiro. 3a. ed. Campinas: E.V. Editora, 1995. p.263-70. [ Links ]

18. Jesus DE. Título I – Da aplicação da Lei Penal. In: Jesus DE. Código penal anotado. 6a. ed. São Paulo: Ed. Saraiva; 1999. p.1-29. [ Links ]

19. RHC 3.946-DF-DJU de 1-7-96

20. TACrimSP, HC 184.642, RT 647:302

21. Revista dos Tribunais 561/329

22. Revista dos Tribunais 672/388





Artigo recebido: 25/10/2001
Aceito para publicação: 31/01/2002
Fonte: Scielo.org




*Correspondência:
Av. Prof. Atílio Martini, 213 – CEP: 13084-210
Campinas – SP – telefone: (19) 3289.4651
e-mail: artur@fcm.unicamp.br

JULGAMENTOS DE CASOS REPETITIVOS PODE VIOLAR GARANTIAS

 

 
Que fazer, quando indevidamente aplicado o regime de sobrestamento aos recursos extraordinário ou especial, nos casos previstos nos artigos 543-B, parágrafo 1.º e 543-C, parágrafo 1.º do CPC?
Sempre defendi, desde a alteração realizada no CPC pela Lei 11.418/2006 e, depois, pela Lei 11.672/2008, que seria cabível o agravo previsto no artigo 544 do CPC, em tal caso.
Esse entendimento, que ainda consideramos o correto, encontrava amparo no Enunciado 727 da Súmula do STF. A orientação retratada nesse Enunciado, porém, foi mitigada, ao menos nos casos em que o tribunal de origem determina o sobrestamento de recurso extraordinário.
De acordo com o artigo 328-A, parágrafo 1.º do RISTF (na redação da Emenda Regimental 23/2008), não apenas os recursos extraordinários ficam sobrestados se observada a hipótese prevista no parágrafo 1.º do artigo 543-B do CPC, mas também o agravo previsto no artigo 544 do CPC, se interposto contra decisão que sobrestou recurso extraordinário.
Essa mesma orientação vem sendo aplicada, mutatis mutandis, pelo Superior Tribunal de Justiça. A propósito, nesse Tribunal, a partir do julgamento da questão de ordem no Agravo 1.154.599/SP, firmou-se o entendimento de que não cabe o agravo previsto no artigo 544 do CPC não apenas na hipótese antes referida, mas, também, quando o Tribunal de origem não admite o recurso especial antes sobrestado, porque discordante da tese firmada pelo STJ, no julgamento do recurso especial selecionado (cf. artigo 543-C, parágrafo 7.º, I). O julgamento foi tomado por maioria, restando vencido o Ministro Teori Zavascki, à época Ministro do STJ.
Em tais casos, de acordo com o que têm decidido tanto o STF quanto o STJ, devem as partes valer-se de agravo interno, perante o próprio tribunal local. A questão, assim, acaba não podendo seguir a qualquer dos Tribunais Superiores.
Essa orientação tem graves conseqüências. Aqui, pretendo apenas mencionar duas delas.[1]
De um lado, ao não se admitir, em hipótese alguma, que lhes seja dirigido qualquer meio de impugnação contra a decisão que, equivocamente, determina o sobrestamento (artigo 543-B, parágrafo 1.º e artigo 543-C, parágrafo 1.º do CPC) ou não autoriza a subida (artigo 543-B, parágrafo 3.º e artigo 543-C, parágrafo 7.º, I do CPC) de recurso extraordinário ou especial, os Tribunais Superiores acabam criando embaraços, talvez intransponíveis, à revisão de orientações erradas, a respeito de determinada questão de direito.
Além disso, ao impedir que cheguem aos Tribunais Superiores recursos que versem sobre temas diferentes (indevidamente sobrestados), ou que, embora versem sobre o mesmo tema, veiculem fundamento autônomo, os Tribunais Superiores acabam violando o direito à diferença.
O direito ao tratamento isonômico previsto no artigo 5.º da Constituição também compreende o direito de ser considerado de modo particular, ou o reconhecimento do direito à diferença. Trata-se de um direito de ver respeitada a identidade. Viola-se o princípio ao se pretender dar tratamento isonômico a quem esteja em situação diferente.[2]
Essa percepção é relevante especialmente diante do movimento de julgamentos de teses jurídicas pelos tribunais superiores, com pretensão de resolução de grande quantidade de litígios de modo uniforme, o que somente pode ser admitido em se tratando de situações fático-jurídicas realmente idênticas.
Questões apenas semelhantes não são idênticas, mas diferentes (ainda que apenas um pouco diferentes), razão pela qual uma tese jurídica firmada em um caso particular poderá não ser aplicável aos casos que sejam tão somente parecidos, mas não absolutamente equiparáveis entre si, sob pena de violação ao princípio da isonomia.[3]
Cumpre à doutrina, ao invés de apenas capitular diante do que vêm decidindo os referidos Tribunais, apontar o erro, a fim de que a jurisprudência tome o rumo correto, que esteja acorde não apenas com o que dispõem os arts. 543-B e 543-C do CPC, mas, também, com o artigo 5.º da Constituição.

[1] Examino o assunto com mais vagar na obra Código de Processo Civil comentado, Ed. Revista dos Tribunais (3.ª ed. no prelo), bem como no livro Prequestionamento e repercussão geral – E outras questões relativas aos recursos especial e extraordinário, Ed. Revista dos Tribunais (7.ª ed. no prelo).
[2] Sobre o princípio da isonomia, escrevi na obra Constituição Federal comentada, Ed. Revista dos Tribunais (3.ª ed. no prelo).
[3] Sobre essa preocupação há poucas manifestações, nos Tribunais Superiores. A respeito, cf. voto vencido do Min. Teori Zavascki, mencionado no texto. Cf., também, no âmbito do STF, voto vencido do Min. Marco Aurélio, no julgamento do AgR na Rcl 9.540, que no sentido da admissibilidade de reclamação, “porque é possível o erro da Corte de origem quanto à observância do que decidido pelo Tribunal”.
José Miguel Garcia Medina é doutor em Direito, advogado, professor e membro da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto de Código de Processo Civil. Acompanhe-o no Twitter, no Facebook e em seu blog.
Revista Consultor Jurídico, 3 de fevereiro de 2014

ESTUDO APONTA QUE DIREITO EMPRESARIAL É ÁREA COM MENOR ÍNDICE DE APROVAÇÃO NA PROVA DA OAB

Direito Empresarial é área com menor índice de aprovação

 
Direito Empresarial foi a área que teve o menor índice de aprovação de todas as matérias cobradas na primeira fase no XI Exame de Ordem Unificado, aplicado em agosto de 2013. Santa Catarina é o estado com melhor desempenho na área, mas obteve apenas 19% de aprovação. Em situação oposta, o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil foi a matéria que menos reprovou, com mais de 66% de aprovação em todo o Brasil.
A porcentagem de aprovação de cada área cobrada no Exame de Ordem é resultado de um estudo feito pela Coordenação de Exame Unificado do Conselho Federal da OAB. O estudo mostra o índice geral de aprovação e cada instituição de ensino e detalha qual o resultado em cada área. Na primeira fase — composta por provas objetivas de 16 áreas do Direito e mais o Estatuto da OAB — o índice de aprovação geral foi de 19,6%.
Ao todo, foram avaliados os resultados de estudantes de Direito de 1.291 campi universitários. Desses, apenas sete conseguiram aprovar todos os examinados [veja abaixo]. Em compensação, 126 campi não tiveram nenhum candidato aprovado na segunda etapa.
“É um procedimento inovador (resultado por áreas). Queremos contribuir na formação do futuro advogado, uma vez que as instituições poderão aperfeiçoar o seus processos de ensino e aprendizagem em relação a possíveis deficiências”, pondera o presidente do Conselho Federal da OAB, Marcus Vinicius Furtado Coêlho.
Essa opinião é compartilhada pelo coordenador-geral de Exame Unificado de Ordem, Leonardo Avelino Duarte. “Essa metodologia permite que as universidades percebam em quais matérias, especificamente, o ensino não vai bem. Por outro lado, serve para avaliar também o trabalho feito com maestria. A OAB quer contribuir  para a formação de um ensino jurídico de qualidade”, avalia.
Na análise unificada por Instituições de Ensino Superior (IES), o destaque entre as instituições federais vai para o campus de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP): 88,46% dos 26 candidatos foram aprovados. Ao todo, 126 campi não tiveram nenhum candidato aprovado na segunda etapa. Com informações da Assessoria de Imprensa da OAB.
Clique aqui para ler o estudo detalhado. 

 
Tadeu Rover é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 3 de fevereiro de 2014

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

DESVIO DE FUNÇÃO OBRIGA SERVIDORES A RECORREREM AO PODER JUDICIÁRIO

ESPECIAL Desvio de função: servidores batem à porta do Judiciário para pedir diferenças salariais
O edital de abertura do concurso público, que é considerado a “lei” do certame, descreve a habilitação exigida para o exercício dos cargos e as atribuições correspondentes. Contudo, nem sempre o aprovado é designado para exercer as atividades legalmente previstas para o cargo que assumiu. Nessas hipóteses, fica configurado o desvio de função.

De acordo com o ministro Mauro Campbell Marques, da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), “apenas em circunstâncias excepcionais previstas em lei poderá o servidor público desempenhar atividade diversa daquela pertinente ao seu cargo”.

Conforme lição de José Maria Pinheiro Madeira, “embora a movimentação de servidor esteja inserida no âmbito do juízo de conveniência e oportunidade da administração pública, é certo que os direitos e deveres são aqueles inerentes ao cargo para o qual foi investido” (Servidor Público na Atualidade).

Para o autor, é inadmissível que o servidor exerça atribuições de um cargo tendo sido nomeado para outro, mesmo levando-se em conta o número insuficiente de agentes públicos. Segundo ele, o servidor tem “o direito de exercer as funções pertinentes ao cargo que ocupa, devendo a ilegalidade ser corrigida pelo Poder Judiciário, se acionado”.

Diante de tantos casos que chegam ao Poder Judiciário, em abril de 2009, o STJ editou a Súmula 378: “Reconhecido o desvio de função, o servidor faz jus às diferenças salariais decorrentes.” A partir de então, esse entendimento tem sido aplicado por diversos juízos e tribunais.

Retorno

Mas nem sempre as ações ajuizadas dizem respeito à questão financeira. Em agosto de 2013, a Quarta Turma julgou o caso de um servidor do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) que desejava simplesmente exercer as atribuições pertinentes ao cargo para o qual foi nomeado (RMS 37.248).

Ele foi aprovado para escrevente técnico judiciário em 1988, contudo, exercia a função de contador judicial – à qual foi designado por meio de uma portaria no mesmo ano em que tomou posse – havia mais de 20 anos.

Antes de entrar na Justiça, tentou retornar ao cargo de origem pela via administrativa, sem sucesso. O mandado de segurança impetrado também foi denegado pelo TJSP. Aquele tribunal considerou que a designação do agente público para o cargo de contador judicial não foi ilegal, nem mesmo violou direito líquido e certo.

Em seu entendimento, o provimento foi fundamentado pelo interesse público, já que o servidor tinha adquirido muita experiência no cargo, e pelo fato de não haver outra pessoa para exercer aquela função sem prejuízo da qualidade do serviço.

Remuneração inferior

No recurso para o STJ, o servidor argumentou que, além de não ter formação em contabilidade, recebia remuneração inferior à de contador judicial, o que, segundo ele, viola os princípios da legalidade, da moralidade e da discricionariedade.

Com base no princípio da legalidade, o ministro Mauro Campbell, relator do recurso, afirmou que “o administrador deve agir de acordo com o que estiver expresso em lei, devendo designar cada servidor para exercer as atividades que correspondam àquelas legalmente previstas”.

Quanto ao caso específico, ele considerou que, apesar do número insuficiente de servidores na contadoria judicial, não é admissível que o escrevente técnico judiciário exerça atribuições de um cargo, tendo sido nomeado para outro. Em decisão unânime, a Turma determinou o retorno do servidor ao cargo de origem.

Diploma

Em outubro do mesmo ano, a Segunda Turma negou provimento ao recurso de um servidor do Paraná que pretendia continuar em cargo de nível superior, no qual atuava havia mais de 20 anos, apesar de ter sido aprovado em cargo de nível médio (RMS 43.451).

Quando ingressou no serviço público, em 1987, ele afirmou que possuía diploma de nível superior e isso foi suficiente para que assumisse o cargo de agente profissional – que exige essa qualificação.

Por meio de processo administrativo disciplinar (PAD), foi constatado que o servidor somente se formou em economia no ano de 2007. O PAD deu origem à decisão administrativa que, em 2011, reenquadrou-o no cargo de origem.

No mandado de segurança impetrado no Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), o agente disse que a administração não poderia mais sindicar e rever o seu enquadramento, porque havia ocorrido a decadência.

O tribunal de segunda instância discordou e afirmou que a administração pública tem o poder-dever de sanar eventual ilegalidade existente, “não estando o ato de revisão, neste caso, sujeito a prazo prescricional”.

Reenquadramento

Segundo o relator do recurso no STJ, ministro Humberto Martins, “está correto o entendimento do tribunal de origem, já que se afigura como caracterizado o ilegal desvio de função por parte do servidor”.

Ele ressaltou que a jurisprudência do STJ orienta que o desvio de função não pode outorgar o direito ao reenquadramento. Além disso, quanto ao processo administrativo, o ministro verificou que foi dado o direito de defesa ao servidor.

“Não há falar em enriquecimento ilícito por parte da administração pública, porquanto nada obriga que o recorrente desenvolva atividades de nível superior, uma vez que o seu enquadramento correto está adstrito ao nível médio”, concluiu Humberto Martins.

Indenização de transporte
Embora o desvio de função não implique direito ao reenquadramento ou à reclassificação, quando o servidor exerce funções alheias ao cargo que ocupa, deve receber o pagamento das diferenças remuneratórias.

Com base nesse entendimento, a Quinta Turma reconheceu que um servidor que atuava como oficial de Justiça deveria receber, de forma retroativa, o pagamento de indenização de transporte correspondente ao período em que esteve em desvio de função (RMS 27.831).

O ocupante do cargo de escrevente juramentado foi inicialmente lotado na comarca de Iconha (ES). Em 2006, ele foi deslocado para Conceição da Barra, no mesmo estado, pois o quadro de oficiais de Justiça precisava de pessoal para dar cumprimento ao grande número de demandas pendentes.

No exercício das atividades de oficial de Justiça, passou a receber a indenização de transporte prevista na Lei Complementar Estadual 46/94, já que utilizava o próprio veículo para executar os serviços externos.

Contudo, em 2007, o pagamento da verba foi suspenso e, além disso, foi iniciado procedimento administrativo para reposição ao erário dos valores que já tinham sido pagos.

Negativa ilegal

O servidor apresentou pedido administrativo para receber os valores até então descontados, mas a administração negou, sob o fundamento de que a vantagem é devida apenas aos ocupantes do cargo de oficial de Justiça.

Inconformado, ele impetrou mandado de segurança com o mesmo intuito e o caso chegou ao STJ. O escrevente afirmou que a negativa de pagamento da indenização de transporte foi ilegal. Sustentou que “não constitui pressuposto para a indenização o exercício de cargo efetivo de oficial de Justiça, mas sim o efetivo exercício das atividades inerentes ao cargo de oficial de Justiça”.

A ministra Laurita Vaz, relatora do recurso, deu razão ao servidor quanto à pretensão de continuar recebendo a indenização de transporte, “enquanto perdurar o exercício das funções atinentes aos oficiais de Justiça, ainda que não seja titular do aludido cargo”.

Imposto de Renda
De acordo com o ministro Castro Meira, já aposentado, “a parcela recebida por servidor público em virtude do reconhecimento judicial do desvio de função ostenta nítida feição salarial, razão por que sobre ela incide o Imposto de Renda, por representar acréscimo patrimonial, base de incidência tributária”.

A mesma posição foi adotada pela Segunda Turma, em março de 2013, no julgamento do recurso especial de um servidor público que buscava o afastamento da incidência do Imposto de Renda sobre valores recebidos por reconhecido desvio de função, entre os anos de 1987 e 1999 (REsp 1.352.250).

Os ministros debateram a respeito da natureza jurídica dos valores pagos ao servidor –salarial ou indenizatória?

Para o ministro Humberto Martins, relator do recurso especial, “quando há desvio de função, caso a remuneração da atividade exercida seja maior do que a da atividade para a qual foi contratado, pode o trabalhador requerer a equiparação salarial”.

O relator explicou que a remuneração recebida com a equiparação tem nítida feição salarial, pois remunera o serviço que foi prestado em igualdade de condições, embora tenha sido o trabalhador contratado para função diversa.

“Reconhecida a natureza salarial da parcela, sobre ela incide o Imposto de Renda, já que representa acréscimo patrimonial, hipótese de incidência tributária”, concluiu Humberto Martins, no que foi acompanhado pelos demais ministros da Turma.

Auxiliar de enfermagem

A União bem que tentou, mas não conseguiu reformar decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) que reconheceu o desvio de função de auxiliares operacionais de serviços diversos que exerciam o cargo de auxiliar de enfermagem (AREsp 68.451).

Para a União, tinha ocorrido a prescrição prevista nos artigos 1º e 2º do Decreto 20.910/32, os quais dispõem que as dívidas da União, dos estados e dos municípios prescrevem em cinco anos, contados da data do ato ou fato do qual se originaram, inclusive restituições ou diferenças.

O relator do recurso, ministro Mauro Campbell Marques, concordou com o TRF1 quanto à ocorrência de desvio de função. Por essa razão, aplicou a Súmula 378 do STJ, que garante ao servidor o recebimento das diferenças salariais.

Quanto à prescrição, o ministro se baseou no texto da Súmula 85 do STJ para afirmar que, “em se tratando de desvio de função e não havendo negativa do direito reclamado, o servidor não tem direito apenas às parcelas anteriores aos cinco anos que antecederam a propositura da ação”.

Carga horária

Por meio do Decreto 4.345/05, foi fixada a jornada de 40 horas semanais para os servidores civis do Paraná. Para não contrariar legislação que estabelece jornada de 24 horas semanais para os técnicos de radiologia, devido aos riscos que a atividade causa à saúde, o decreto estabeleceu que as horas restantes fossem cumpridas em atividades administrativas, que não causam risco à saúde.

Para os ministros da Sexta Turma, essa situação não configurou desvio de função (RMS 23.475).

Após o aumento da carga horária, os servidores do estado impetraram mandado de segurança perante o TJPR, mas tiveram a pretensão negada.

No recurso para o STJ, eles defenderam que o decreto fere o direito de exercer suas funções em jornada de 24 horas semanais, “compatíveis, assim, com as atividades que desenvolvem”.

Sustentaram que a exigência prevista no decreto – de complementação das 40 horas semanais com outras atividades – caracteriza desvio de função, conforme previsto na Lei 7.394/85.

Oportunidade e conveniência

Segundo a ministra Maria Thereza de Assis Moura, relatora do recurso, o Decreto 4.345 não extrapola os limites da lei. “A fixação da jornada de trabalho é tema sujeito aos critérios de oportunidade e conveniência do poder público”, disse.

Ela explicou que, embora a lei federal tenha estabelecido jornada de trabalho de 24 horas para os técnicos de radiologia – por ser uma atividade prejudicial à saúde –, isso não significa que o servidor que exerce essa função não possa, nas horas restantes para complementar a carga de 40 horas semanais, desenvolver tarefas correlatas.
 
Fonte: STJ

A PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA E O PRESIDENCIALISMO BRASILEIRO

 


A Proclamação da República e o presidencialismo brasileiro

Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy



No imaginário brasileiro, o chefe do Executivo é o depositário de todas as esperanças, responsável por todos os erros e frustrações, fonte de todas as iniciativas de sucesso. A propaganda presidencialista foi muito forte no estado de São Paulo, especialmente na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, de onde saíram presidentes da República, a exemplo de Prudente de Moraes e Campos Salles.

Houve baixíssima participação política durante o Império, e entende-se a proclamação da República e a implantação do presidencialismo como arranjo de classes dominantes. Insiste-se na ambiguidade para com a experiência norte-americana; apologética em Rui Barbosa, demasiadamente cética em Eduardo Prado. Este último era um crítico da influência norte-americana no Brasil.

O presidencialismo é o sistema de governo que adotamos no Brasil com a proclamação da República, em 15 de novembro de 1889. A queda do Império teria ocorrido basicamente por causa da perda de apoio da dinastia Bragança, o que ocorreu a partir dos episódios da Questão Social — abolição da escravidão —, da Questão Religiosa — uma querela entre o Imperador e a Igreja, entre outros, sobre a validade dos decretos papais no Brasil —, e da Questão Militar — uma disputa entre o Imperador e alguns oficiais do Exército sobre a punição de militares que se pronunciaram publicamente sobre um projeto de lei que tratava do montepio nas Forças Armadas.

A crise do Segundo Reinado se alastrou de 1870 a 1880; tem-se “(...) o início do movimento republicano e os atritos do governo imperial com o Exército e a Igreja (...) além disso, o encaminhamento do problema da escravidão provocou desgastes nas relações entre o Estado e suas bases sociais de apoio[1]”. Militares, clérigos, fazendeiros e bacharéis derrubaram um regime que durou 77 anos. O Brasil era a única Monarquia na América.

Baixíssima participação popular marcou o movimento, circunstância narrada de modo irônico por Machado de Assis, testemunha ocular dos fatos, na expressiva cena da tabuleta da Confeitaria do Custódio, cume da sátira política machadiana em Esaú e Jacó.

Resumidamente, Machado de Assis nos conta a estória do dono de uma confeitaria, Custódio, para a qual fizera uma tabuleta, com os dizeres Confeitaria do Império. Porém, a partir de 15 de novembro de 1889, o mais prudente seria Confeitaria da República. Para evitar que a turba se pegasse em frente ao estabelecimento, o mais adequado mesmo foi a indicação Confeitaria do Custódio.

Forte foi também a influência do pensamento positivista, que mais tarde ficará gravado em nossa bandeira republicana, com fragmento de premissa de Augusto Comte, “ordem e progresso”. O positivismo cativou os militares. Um de seus maiores seguidores, Benjamim Constant, era professor da Escola Militar; mais tarde foi ministro da Guerra, e posteriormente foi ministro da Instrução Pública. Muito influente, foi o grande propagandista do positivismo no meio militar.

A questão abolicionista se arrastava desde a Proclamação da Independência, sempre marcada por intensa pressão inglesa. Internamente foi o núcleo de debate a propósito da modernização do Brasil, além, naturalmente, da pregação humanista, que marcou a trajetória de Joaquim Nabuco, para quem a escravidão era uma ilegalidade flagrante, eleita como eixo de um projeto de reforma social. Estávamos entre os últimos a abolir a escravidão no continente americano. Joaquim Nabuco associa seu nome a essa luta.

No Império (1822-1889) a cidadania era restrita, exclusiva e excludente. E, de cima para baixo, os protagonistas daquela pantomima de democracia desconheciam as razões pelas quais muitas vezes eram candidatos, ou eleitos. A propaganda republicana questionava nosso atraso institucional; nessa estratégia, militares e ascendente camada urbana se aproximaram; o impulso modernizador foi fortíssimo componente de uma revolução burguesa brasileira.

Primeira das intervenções militares na política brasileira, a Proclamação da República decorreu de movimento que contou também com o apoio de uma pequena burguesia urbana, canalizada por uma obsessão do Exército, que fez nosso primeiro presidente, o alagoano Manoel Deodoro da Fonseca.
[1] Fausto, Bóris, História do Brasil, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Fundação do Desenvolvimento da Edução, 1995, p. 217.


Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pós-doutor em Teoria Literária pela Universidade de Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 2 de fevereiro de 2014

INDIGNAI-VOS! E ESTOCAI COMIDA! NADA TENDES A PERDER NÃO SER...

 


Indignai-vos! E estocai comida! Nada tendes a perder a não ser...

Por Lenio Luiz Streck


Cena 1. Leio nos meios de comunicação (ler aqui) que passageiros de um voo da GOL ficaram presos na aeronave por 3h50 sem poder desembarcar no dia 24 de janeiro de 2014. "Todo mundo entende chuva e aeroporto fechado, ninguém entende ficar sem informação e sem perspectiva por horas e horas", desabafou a usuária Maysa Leão. A GOL simplesmente disse que não havia escada e ônibus para transportar os passageiros do avião que teve que pousar no Rio de Janeiro em face de chuvas em São Paulo. Alguns passageiros saíram pela porta de emergência, desesperados por tanta espera sem perspectivas. A GOL deu uma “boa” explicação: os passageiros violaram regras de segurança ao saírem pela janela. Bingo! Viva! Alvíssaras! Solucionado está o problema. “Matem o cantor e chamem o garçom”, parodiando um velho livro do inesquecível Fausto Wolff.

Cenas 2, 3 e 4. Em 21 de dezembro, a TAM atrasa 15 horas em um de seus voos de Brasília e 9 horas em Viracopos. Já no dia 24 de janeiro, mesmo dia em que a GOL manteve os passageiros retidos por mais de 3 horas no Rio, a TAM manteve seus passageiros retidos dentro do avião por nada mais nada menos do que seis horas no interior da aeronave. A manchete da Globo News foi: “Passageiros de um voo para Brasília ficam mais de seis horas presos dentro de avião”. Vejam: “ficam presos”... Ato falho ou podemos interpretar literalmente? Uma mulher diz claramente: disseram para nós que, se saíssemos, lá fora a Polícia Federal nos prenderia. Cárcere privado? Você julga, caro leitor.

De todo modo, o problema não é a GOL ou a TAM. Elas são apenas a ponta do iceberg do “estado de natureza consumerista” que atravessa o País.

Voltando ao tema da cidadania do tipo “azar o seu”, otário de terrae brasilis
Já escrevi aqui há algum tempo que havia participado de um seminário na Goethe-Universität de Frankfurt. Na ocasião, o jurista alemão Klaus Günther apontou um interessante esquema para aplicar em Justiça de transição. Claro que ele falava da transição política de regimes ditatoriais/autoritários para a democracia. Disso, fiz uma pequena adaptação para uma constante “justiça em transição” em países periféricos como o Brasil. Na verdade, a injustiça com o consumidor, esse idiota esquecido pelo direito.

Aqui, ultrapassada a transição da ditadura para a democracia, penso que lutamos, hoje, outra guerra. Ela é o resultado da não superação de nossa histórica desigualdade social (e simbólica). Da não superação da estrutura estamental que teima em se manter e se reproduzir. Talvez nisso resida o ponto fulcral. Trata-se também de falar da não superação da enredada sonegação de direitos da patuleia e a manutenção de privilégios dos estamentos. A propósito: por onde anda a regulamentação do imposto sobre grandes fortunas, previsto na Constituição? Cartas para a coluna.

É o cidadão desrespeitado, enganado pelas companhias telefônicas, pelos bancos, pela TV a cabo, pelas companhias aéreas, fábricas de automóveis, pela propaganda, etc. Sintomas que apenas desnudam desmandos históricos. Minha tese: vivemos um “estado de natureza consumerista”. Há, nisso tudo, uma inversão de “culpas”. Tentarei explicar isso na sequência.

Tudo por culpa sua ou por azar de sua parte?
O direito — e aqui me abebero da conferência de Günther — tem que levar em conta uma importante função: a comunicação de uma mensagem. Essa mensagem comunicativa de que quem erra deve ser punido é o que importa para as pessoas que sofreram a injustiça. Qual é o desejo primário dos que sofrem injustiças: querer que os perpetradores sofram um castigo — interessante notar as cifras ocultas da criminalidade... sem confiança no “sistema”, mais de 60% dos crimes sequer são levados ao conhecimento das autoridades... por que será?. O Estado tem que passar a mensagem de que o fato ocorrido foi ilícito. Caso contrário, podem acontecer três fatores, dos quais deixo um de fora, porque aplicável na especificidade da Justiça de transição no plano da política:

1) Eigene Fehler Dummheit — a pessoa pode pensar que o que aconteceu foi por culpa dela; porque deu mole; foi burra. Acrescento: as autoridades podem fazer crer à vítima que a culpa foi dela. Por exemplo, no caso da GOL, foi um erro ter pegado essa companhia ou não escolheu um bom dia para viajar...

2) Unglück (Pech gehabt) — a vítima pode pensar que o fato ocorreu porque deu azar — ela é mesmo uma “pessoa sem sorte”. No caso, azar o seu por não ter viajado de ônibus ou por outra companhia;

Em ambos os casos, há uma perda de autoconfiança do consumidor lesado — ou da vítima, no caso de assaltos, etc. O papel do Estado é o de provar a culpa, mesmo que não haja pena a ser aplicada. O Direito deve comunicar isso à sociedade e às vítimas. Fatos que envolvem a dignidade da pessoa e a segurança dela não podem ser interpretados como decorrentes do acaso, do azar ou de sua própria culpa.

Para evitar essas alternativas ruins acima referidas, o Estado deve investigar e dizer/apontar os culpados. O que fazem a Anac (aliás, já pensaram se a ANAC – Agencia Nacional de Aviação Comercial — se chamasse Agência Nacional de Aviação Livre?), a Anvisa, etc? Nossa fábrica de injustiças sociais e privilégios odiosos não fecha...

Vejamos como isso é tratado na cotidianidade do (não) exercício da cidadania: a vítima é assaltada e, quando reage, é criticada. E lá vem a mensagem da autoridade: “Não reaja.” Mais: “Carregue nos bolsos o dinheirinho do assalto”, “Não irrite o assaltante”. Não estou dizendo que a vítima deva reagir. O que quero denunciar é que se coloca uma espécie de alternativa ruim para a vítima: “Não dê mole para o assaltante...; não aparente posses etc.” Com isso, inverte-se a relação que está lá na Constituição: há um direito fundamental à segurança pública.

O sujeito é assaltado e se diz: “Também... o trouxa ficou dentro do carro... veio o assaltante e, bingo (!), consumou o ato.” É?! Quem sabe podemos ler isso de modo diferente? É um direito do cidadão andar por aí, pelas ruas etc. É o Estado que deve dar segurança para o cidadão. O cidadão está certo. O assaltante, não. O quero dizer é que isso deve ser comunicado à vítima. O cidadão deve saber que o Estado se importa com ele. Isso tudo serve para a relação usuário-companhias aéreas, telefônicas, bancos, etc.

O descaso com os presos já gerou Carandiru, Pedrinhas, Espírito Santo, Central de Porto Alegre, para dizer pouco. Sigo. O trânsito brasileiro mata mais do que a guerra. O que se diz por ai? Os experts, os governantes e os políticos dizem que “a culpa é dos motoristas”. Será mesmo? Quem sabe podemos ler esse fenômeno de outro modo... Por exemplo: seríamos nós os piores motoristas e, por isso, a matança no trânsito é a maior do mundo? Não seria também porque temos os piores carros do mundo, que são vendidos sem airbags — com a conivência do Estado —, com chassis fracos, que são rejeitados na Europa e nos Estados Unidos — para falar apenas nesses dois mercados? Vejam, por exemplo, a diferença entre bater um carro com airbag e um sem airbag... Mas, por que permiti(a)mos carros vendidos sem airbags e com chassis de lata velha? PS: antes que alguém diga que estou sendo “pequeno-burguês” (sic) e que estou preocupado demais com essas “coisas”, adianto-me para dizer que “estou preocupado, sim”, exatamente como estou preocupado com as contradições e idiossincrasias do Direito Penal, como, por exemplo, o fato de que tratamos com mais rigor os crimes de furto do que os delitos de sonegação de tributos — por exemplo, pagando o valor sonegado, extingue-se a punibilidade...

Há muitas mortes de pessoas tentando atravessar as rodovias. Dizem os jornais: “pedestres descuidados, imprudentes...”. Será mesmo? Qual a razão para que o Estado não construa passarelas? Por que o patuleu tem de andar 1 km (ou mais) para atravessar a rodovia? Ciclistas são mortos em acostamentos... Culpa deles? É? E por que permitimos que rodovias sejam construídas com acostamentos fora dos padrões internacionais — e com superfaturamento? O problema é que o Brasil foi feito para poucos!

Deu “mole para o ladrão”...
Esse é, pois, o “problema do cidadão”... Ele “dá mole para o ladrão, dirige mal, entra mal nas curvas, ultrapassa mal, compra passagens aéreas de forma descuidada, revolta-se por ficar três (ou seis) horas dentro de um avião...”. Vá se queixar ao bispo, enquanto continuamos a fazer dissertações e teses sobre “como é eficaz o direito do consumidor em Pindorama”. Manchete: “Neste final de semana, no RS, mais 27 pessoas ‘deram azar’ e foram esfaqueadas; 22 foram mortos ‘dando bobeira’ e 13 se ‘descuidaram’ e foram assaltadas.”

Você é multado no trânsito. Faz um recurso. 101% dos recursos são indeferidos em duas linhas. Imagino a seguinte explicação: “Piora o nível da advocacia”... O processo administrativo pátrio é uma piada (mas tem centenas de dissertações e teses tratando disso...). O guarda de trânsito tem “fé pública” — uma incrível fundamentação a priori, impossível sob o ponto de vista filosófico, além de inconstitucional (aliás, deve ser por isso que é inconstitucional!). Você é culpado até prova em contrário!

A “cidadania” é atuarial. As companhias de telefonia celular enganam milhões de pessoas. As companhias sabem que somente alguns milhares reclamarão. Vale a pena enganar o consumidor nessa “farra consumerista”. Seus direitos estão no “0800”: disque 1, para ser otário; 2, para idiota; 3, para voltar ao menu; 4, para ser atendido por um dos “colaboradores”, 9 para levar um “pito” da companhia área porque você se revoltou por ter ficado três (ou seis) horas retido dentro da aeronave.

Mas você sempre pode entrar com uma ação nos juizados especiais. Lá, à tardinha, o meirinho gritará: “Quem quer fazer acordo, lado direito; quem não quiser, lado esquerdo...” Suprema humilhação. Depois, uma estagiária tentará induzir você a fazer um acordo. A empresa — que engana milhões de pessoas — aposta: não vai fazer acordo... Deixa rolar. Poucos terão paciência para levar as ações até o final. Enganar a choldra vale muito a pena.

Movimente as pernas... Use meias para as varizes...
Você viaja como uma sardinha. Mas, seja esperto: “Chegue antes e consiga uma saída de emergência...”. Ou dispute à tapa uma saída de emergência... claro, pagando R$ 30 por trecho e viaje “confortavelmente”. Uau. Não conseguiu? Que pena. É porque você é um “vacilão”. “Deu azar, mané.” Mas, pergunto: a agência estatal encarregada de fiscalizar as companhias não deveria exigir que os espaços entre as poltronas sejam civilizados? Nas viagens longas, eis o conselho: “Movimente as pernas... Use meias para varizes...”. Não dê bobeira, otário! Com certeza, as companhias aéreas não são responsáveis por seu desconforto. A escolha da companhia é uma decisão do cliente... Bingo de novo!

Voltando ao Direito. O cidadão está com baixa autoestima. Mas parece que tudo conspira contra ele. Porque, de certo modo, terceirizamos nossos direitos e nossa cidadania. Ao invés de reivindicar, ou deixamos como está ou corremos ao Judiciário. Aliás, o Judiciário resolve tudo... até nos livra dos candidatos “fichas sujas” — como somos idiotas, não sabemos escolher. Sua vida está facilitada. Você não corre o risco de votar em um ladrão! Ufa! Mas, por que mesmo tivemos que esperar uma CPI para descobrir que as 235 empresas que se relacionaram com Charles Watterfall fizeram “movimentações financeiras atípicas”? Hum, hum.

Por que a sonegação é tão grande? Eis o paradoxo: quanto mais mecanismos de controle, impostos, fiscalização, etc., menos controle, menos democracia... e menos eficiência. E menos cidadania. O serviço público no Brasil parece ser um fim em si mesmo. Já notaram que ninguém quer trabalhar para os governos: todos querem ser “guardiões do Estado”. Além disso, há outro fenômeno: a defesa dos hipossuficientes. Todos querem fazê-lo. Já não há hipossuficientes suficientes. Algumas instituições já avançam para os não-hipossuficientes. É a “luta pelos pobres” — se me entendem... talvez não seja bem “pelos” no sentido de “a favor”, mas “pelos” no sentido de “tê-los”. E tudo por conta dela, “da viúva”... Como os juristas gostam de “ontologias”, fico imaginando a “viúva coisificada” como uma “senhora bem roliça”...

Consumidor: faça empréstimo para pagar o IPVA e IPTU e tire férias
Vejo na TV publicidade maciça de celulares e automóveis. Sim, os comerciais de carros são sempre feitos com ruas...vazias. Maravilha. Os engarrafamentos não existem nos comerciais de TV. O consumidor é considerado um débil mental. Vejo na TV um comercial de banco, em que um casal está no aeroporto prestes a embarcar de... férias. Malas, sorrisos, felicidade. E o anúncio do banco: viaje tranquilo, sem se preocupar com despesas de IPVA, IPTU etc. O Banco lhe empresta o dinheiro. Fico pensando: mas se esse casal não tem nem dinheiro para pagar o IPVA ou IPTU, quer viajar de férias... e de avião? Devo ser um retardado. Não consigo captar a inteligência desses comerciais.

Um comercial de cerveja pergunta para o sujeito: por que você paga um ano de academia e não frequenta? Resposta: porque sim; também pergunta para outro por que, no futebol, beija o gordo suado ao seu lado e ele responde: porque sim. E por que você bebe a tal cerveja? Resposta: porque sim! Uau! Ou seja, bebo pela mesma razão que cometo idiotices... Outro comercial de banco: crédito só para negativados. Quer dizer: se você é um fracassado, está devendo os tubos e está negativo no Serasa e SPC, vá tirar um empréstimo (e coloque sua mãe como garantia). Hum, hum. Vou estocar comida. Ou seja: o banco não procura os que pagam em dia; quer os outros...Isso não é anticapitalista? Meu comercial: Você está preocupado com o futuro? Está no SPC? Está sem dinheiro para o IPVA? Não importa: estoque comida. O caos vem aí. E por que você acha que o caos vem aí? Resposta em off: porque sim!

Ah: já viram como é fácil estacionar nas garagens dos condomínios? Quem será que bolou isso? Teriam os engenheiros estudado por EAD? Já viram como são “belos e confortáveis” os conjuntos habitacionais em que mora a malta? E os banheiros das suítes dos apartamentos grã-finos que são maiores que os quartinhos das empregadas? E as curvas nas estradas onde se lê placas do tipo “aqui já morreram x pessoas”... Céus: isso tudo é autogerado pelo próprio povo (meu estagiário levanta a placa de “ele está sendo sarcástico”!). Que é burro. Só pode ser isso. Viva os publicitários de Pindorama!

Cárcere privado? Dano moral?
Volto, então, para o caso dos utentes das companhias aéreas (e de TV a cabo, telefonia móvel,[1] etc, etc). Onde ficou a portaria ou resolução que determinava o aumento do espaço entre as poltronas? E como ficou o caso da moça que foi barrada pela Vá Se Katar Airueis, que, por causa de uma frase inocente do pai dela, não a deixou viajar? A Anac fez algo? Puniu a empresa? Já sei a resposta e vou farfalhar de tanto rir.

Ainda: Por qual razão uma companhia acha que pode reter por mais três a seis horas passageiros dentro de uma aeronave, no calor e sem alimentos? A resposta é simples: Impunidade. Estado-de-natureza-consumerista. “Faça o que quiser” — eis o lema; a multa não será paga mesmo. Só 10% das multas aplicadas pela Anac são pagas. Anatel é a mesma coisa. E os trouxas dos utentes não entrarão todos em juízo. Afinal, ir à tardinha nos Juizados... não é fácil.

Seria bom se alguns desses passageiros — os que ficaram três horas no avião da GOL e seis horas no da TAM — fizessem nottitia criminis por cárcere privado ou algo correlato. Que tal o comandante ou o supervisor da companhia responder por algum crime? Constrangimento houve. Há testemunhas que falam (está na TV) que, no caso da TAM, os passageiros foram ameaçados pela tripulação de que, se saíssem, poderiam ser presos pela Polícia Federal (particularmente, não creio que a PF faria isso, mas...). O direito de ir e vir foi solapado. Centenas de passageiros tiveram que ficar retidos contra a sua vontade. A ordem de permanecer no avião não tem respaldo jurídico, porque, conforme foi confessado pela companhia, faltou escada e ônibus... Quer dizer que, se tivesse escada e/ou ônibus, as pessoas não teriam sofrido? É isso? Ou o retardado aqui não entendeu? O que me dizem os meus milhares de leitores?

Utentes de todo o Brasil: uni-vos; indignai-vos (como clama Stéphane Hessel, veterano da resistência francesa, que morreu no alto de seus 95 anos de idade em 26 de fevereiro de 2013, sem que o mundo tivesse dado bola – o que é lamentável!); nada tendes a perder senão vossa senha nos Juizados Especiais!

Indignai-vos... e/ou “estocai comida”!

Quem sabe a ameaça penal funciona mais que a administrativa? Sim, já sei a resposta. Mas, vá que...

P.S. Sobre a “inconstitucionalidade da proibição da maconha”
Castoriadis dizia que tudo que está no mundo social histórico está inexoravelmente entrelaçado com o simbólico. Não que tudo seja simbólico. Mas nada existe fora de uma rede simbólica. Tudo isso que disse acima tem implicações simbólicas e são decorrentes das redes simbólicas que atravessam nosso imaginário. O gesto do carrasco é real por excelência, mas simbólico na sua “essência”. Por isso, quando no Brasil juiz legisla, passando por cima da legislação democraticamente votada pelo Parlamento — e sua liberdade de conformação em matérias relevantes —, sem fundamentação constitucional consistente, abre-se o flanco de “rupturas simbólicas” no imaginário jurídico-político. Posso ser favorável ou não ao consumo da maconha. Mas a sua descriminalização é tarefa do legislador, depois de amplo debate. Não creio que um juiz possa fazer isso simplesmente dizendo que a Anvisa não fundamentou a inclusão da substância ativa. No plano de uma jurisdição constitucional democrática, não me parece argumentação suficiente. A questão é: onde estão nossos limites hermenêuticos? Não foi Eros Roberto Grau quem publicou recentemente um livro chamado "Porque tenho medo dos Juízes"? Por que será que ele — ex-ministro do STF — afirma isso? Ou seja: temos que ter-muita-calma-nessa-hora, caso contrário daqui há pouco alguém defenderá o "direito-fundamental-a-fumar-maconha-como-cláusula-pétrea", tudo com base na Constituição. Temos que ter cuidado com qualquer Woodstock hermenêutico. Já escrevi muito sobre a diferença entre ativismo e judicialização... Aliás, uma pergunta final: na medida em que a ANVISA também não fundamentou a inclusão da cocaína (portaria 344/98), também será ilegal-inconstitucional a proibição de seu consumo? Nesse particular ela — a portaria — seria igualmente nula? Ou para a cocaína o argumento não vale? Cartas para a coluna.
[1] As telefônicas são um inferno. Por exemplo, a Vivo me liga todos os dias ameaçando cortar minha linha, por eu não ter pago. Já recebi mais de dez ligações. Dia 27 chegaram a ligar para o meu celular e o fixo, na mesmíssima hora. Dia 29 de janeiro me acordaram às 8h da manhã. Só que eu ligo para lá e dizem que eu não devo nada (p.ex, alguns dos protocolos 20141449269571, 20141462328598, 20141462412927). Na última ligação — a oitava que fiz —falei com Juliana e nada adiantou. “Vou estar abrindo um chamado”...disse ela. Falei pela segunda vez com a supervisora. Demorou 22 minutos, ela não atendeu e caiu a linha! Ouvidoria? Não funciona. Mais de 15 minutos de espera. Aliás, isso por si só já contraria a legislação. Dia 29 liguei de novo para a ouvidoria. 0800 para-trouxas. O atendente pediu o protocolo. Passei um deles. Disse que nada constava no protocolo. Mas me passou um novo protocolo: 20141480065160. Agora vai! Uau! Gravei a conversa com o atendente André (que disse: não autorizo a gravação!!!). Ou seja, tudo isso é uma grande ficção, que “funciona” assim com a conivência das autoridades. Desesperador! Por isso o estoque de comida é inevitável. A Vivo tem uma empresa terceirizada que atormenta os clientes. Ou é ela mesma que faz isso. Protocolo da Vivo entra no seu celular as 2 da manhã, acordando você (tenho tudo documentado). GOL, OI, Vivo, TAM, tudo a mesma coisa... Saí da Claro e nada adiantou. Perguntem por aí o que dizem dessas companhias. Sabem por que agem assim? Im-pu-ni-da-de! Sabem que estão na terra do estado-de-natureza-consumerista! Podem zonar com a choldra o quanto querem! Só estocando fichinhas de orelhão e andando de ônibus...


Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.

Revista Consultor Jurídico, 30 de janeiro de 2014

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...