quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

16 facadas e morreu envenenada? O Natal e a prova da OAB

 

 
Natal é época em que se reúnem parentes chatos e não chatos, advogados e não advogados, juízes e não juízes, promotores e não promotores, estudantes de qualquer coisa e o sobrinho que está fazendo a “escola” (que deve ser a dos juízes, do MP, da OAB ou algo assim, mas ele diz, com a boca cheia de panetone: “a escola”).
É tempo de discussões. O parente juiz conta como mandou o advogado se calar na audiência do dia anterior. Já o juiz dos juizados especiais relata como o juiz leigo coloca a malta em um corredor polonês. E acha engraçado. Todos riem. Menos um tio, que, lá do fundo, pragueja, dizendo que teve que ir no “foro” só para ouvir a Companhia Telefônica, que lhe passou a perna, dizer que não fazia acordo. Antes disso, teve que ouvir o meirinho gritar: “Quem quer fazer acordo, fique à minha direita; quem não quer, à minha esquerda”. Aliás, desconfio de que a cultura da conciliação termina sendo, para as concessionárias de serviços públicos e as grandes corporações, a obliteração da prévia efetivação de direitos coletivos. Paradoxalmente, os maiores violadores são, também, os maiores conciliadores... Bingo! Eis o paradoxo!
O parente promotor de justiça conta que, quando não vai à audiência, o juiz “faz tudo por ele”. Há casos em que “nem pedi a condenação e o juiz assim mesmo tascou uma pena dura no meliante”. Quieto em meu canto, pergunto-me: Será que um juiz que age assim faz tudo pela Constituição? Ou melhor dizendo, o que ele faz da Constituição? A velha tia diz: “ meu filho, esse juiz é dos bons, não? Tem de dar duro nessa gente”. E o velho tio, já na terceira dose, pergunta: “mas você concorda com isso? Quem é o promotor? Você ou o juiz?”. E o sobrinho promotor responde: “meu tio, tem uma coisa que você não conhece, chamada verdade real... Com ela, tudo se resolve”. E assim a conversa vai fluindo, na véspera da comemoração da chegada do Papai Noel. Deixei de acreditar em Papai Noel aos sete anos. Mas tem muito adulto por aí ainda acreditando na “verdade real”. Mas se a fantástica história de Papai Noel culmina em inocentes presentes, a única verdade da “verdade real” está nos abusos que causa ao Estado Democrático de Direito.
Outro advogado da família fala das agruras do processo eletrônico. Não se sabe se o processo foi enviado “via sistema”. Em tempos de Natal, imagino a virtualização como o rebento que nasceu para ser uma espécie de Messias da prática forense —o salvador de um Judiciário que não dá conta da demanda — mas que nunca chega. Pelo contrário, o “sistema” não avisa. Tem de pegar o carro e ir ao tribunal para verificar. Assim, o sistema é virtual, mas as dificuldades continuam bem reais... Realíssimas. O CNJ legisla. Para além do CPC. Para além da CLT. Para além da Constituição. Pelo desespero, parece ser o único sujeito sensato da festa.
E a conversa muda de rumo. Acabara de chegar a sobrinha gordinha, que chumbou em concurso para defensoria pública em Estado vizinho. Ficou por uma questão, que indagava se se transformar, por intermédio de operação plástica, em lagarto, com dinheiro do SUS, era um direito fundamental... Coitada. Respondeu que não. Perdeu! Cansada, traz uma sacola cheia de livros. Chega a estar com um ombro mais baixo que o outro. Mesmo na noite de Natal, diz que continuará a estudar, porque está inscrita para o concurso da AGU, MPU, TCU, CGU... Ela até já fez o cursinho de um professor (fácil de achar no Youtube) que ensina como se deve estudar direito para concursos. Começa confessando que chumbou em 20 concursos. E só depois passou. Hum, hum. Na verdade, com tantos concursos chumbados, deve ter passado por usucapião... Mas, enfim, lá vem a gordinha. Coloca em uma mesinha o seu material de batalha: manuais, manuaizinhos, resumos, resumões, resumos plastificados, direitos facilitados, simplificados e a grande inovação: direito em rimas... Ela acabou de comprar. Sim, direito ri-ma-dôo! Direito penal é lê-e-gal. Penso, rimando: afinal, qual é o busílis de terrae brasilis? Tem chance de dar certo? Muita flambagem. Como o personagem estudante de chinês do livro Reprodução, de Bernardo Carvalho, ela, a sobrinha, fala sobre o direito por intermédio de drops, siglas, palavras-chaves. Não há espaço para a reflexão. Só flexão. Ajoelhar-se diante dos pretensos doutrina-dores, que não fazem mais do repetir lugares comuns e chavões, tudo com a profundidade dos calcares de uma formiga anã. Ela parece um ser de outro mundo. Incrível: os concurseiros criaram uma novilíngua. Como em 1984, do G. Orwell. Ela lê o mundo por intermédio desse material. Some-se a isso os blogs, como o do concurseiro solitário (sic), com dicas “valiosas”, como a de não ler grandes doutrinas e se dedicar às apostilas, além de material do “ponto de concursos” (que deve ser sei-lá-o-que-de-concursos). Tem também os blogs com música de concurseiro, para decorar o Direito. E, para não esquecer, repito: tem também agora o direito rimado. Penso comigo: o mundo vai acabar. Sem chance. Meu bunker está pronto. Só falta cavar o fosso e colocar os jacarés. E vou estocar comida.
Um pouco atrasado, chega outro convidado, um magistrado de tribunal de segunda instância. Diz-se um pragmático. Não gosta de ler. Diz que “Direito é bom senso” (o dele, é claro). Só faltou dizer o clássico chavão do solipsista: o de que “sentença vem de sentire”. E eu, o que sinto? Sinto muito, Constituição... Para ele, qualquer coisa que ultrapasse cinco linhas é filigrana e firula. É idealizador do projeto sentença 60 linhas ou algo desse quilate (incluindo a assinatura, é claro). Seu sonho é dar sentenças via Twitter, intimando da mesma forma ou pelo Facebook. Idolatra Richard Posner, o rei dos pragmatistas. Posner é um Deus, ele diz, mascando três nozes ao mesmo tempo e golejando um espumante (já) com pouca perlaje. Claro, não conhece o Posner envergonhado do The crisis of capitalist democracy — no qual reconheceu (depois do fiasco de 2008) suas falhas em imaginar um mercado autorregulávele nem o abandono da maximização da riqueza como fundamento eficiente do Direito.
Junto com ele veio outro, da área cível. Julga causas de dano moral. Conta que julga as causas de acordo com a cara do “freguês”. Diz que apurou com o tempo o seu “sentirômetro” (sentença não vem de “sentire”?). O pragmático lhe dá um tapa nas costas, do tipo “esse é o cara”. “Ele bota o olho e já sabe...”. Fico pensando, cá com minhas pestanas: foi para isso que fizemos a Constituição? E, para homenagear (de novo) o direito rimado: qual será o busílis de terrae brasilis?
Também foi convidado um professor que dá aula em mestrado e doutorado. Publica dezenas de coletâneas de livros por ano. Tudo eletrônico, porque é a pós-modernidade. Custa R$ 10 a página. Os alunos é que pagam. Ele é o “cara das publicações”. Ninguém lê esses “livros”. Nem se sabe se o professor leu o que os alunos escreveram e ele colocou seu nome junto. Mas ele tem muitas publicações. Dezenas. Portanto, ele fala “de cadeira”. Desde logo, alia-se na discussão entabulada pelo magistrado pragmatista sobre a efetividade da justiça. “A culpa da morosidade da Justiça é da falta de gestão. Falta pós-graduação em gestão”. Para ele, o juiz não é mais do que o gerente de uma sucursal judiciária. E já se juntam em um canto, para propor uma especialização em gestão. Eles adoram isso. Penso com meus botões: Esse papo está me dando é indigestão... Onde está meu vidro de Olina, aquele composto de ervas bem gaúcho? Enquanto isso, olho para o tio, aquele: já está roncando baixinho num canto da sala.
Há também o mais novo namorado da mais velha filha do dono da casa. O tipo é metido a filósofo. Na verdade, apresenta-se como sendo “o filósofo da família”. De fato, cursou dois ou três semestres da faculdade de Filosofia, mas, vá lá. Começa a falar em um bolinho de gente. Ele fala cuspindo restos de panetone. Em pouco tempo, fica-se sabendo que a filosofia de Heidegger é “nazista”, que Gadamer “não escreveu nada de útil sobre o Direito” e que Habermas “não é um filósofo”. Também, que, “na Alemanha, ninguém lê essa gente”. O sujeito tem uma unha enorme: “Não há como levar Dworkin a sério”, diz, também, misturando gravidade e um ar blasé em doses equilibradas. Hum, hum. Sei. Quem presta, então? Ah, ninguém que eu conheça, claro! Sua dica? “Que os juristas estudem... Direito.” E que deixemos a filosofia para quem manja do riscado, como... ele. Chega o garçom e salva a festa. Eu estava pronto para pegar-lhe pelo pescoço. Mais uma dose? Claro, claro...
Outro professor na festa. Escreveu até hoje um fonograma e um texto em um site jurídico. Não conhece os conceitos da filosofia no Direito e se mete “de pato a ganso”. Não consegue escrever duas frases sem citar um autor... americano. Para ele, o Brasil é ruim. Aqui nada se produz. Sofre da síndrome de caramuru. E do complexo de vira-lata. Junto com ele veio para a festa outro jurista... Também não gosta do Brasil. Quando alguém escreve algo, diz: “não é por aí...”. Mesmo que muitos nativos já tenham escrito sobre determinado assunto, ele faz um texto “grau zero”. De todo modo, eles não se enturmam na festa. Ficam sozinhos, se auto louvando. Traço comum dos dois e tantos desse jaez: sempre estudando e viajando às custas da Viúva.
Ah, também veio um estagiário, que trabalha em uma Câmara de Tribunal. Diz, de boca cheia: “na nossa Câmara, decidimos desse modo... e blá, blá, blá”. “Faço dez acórdãos por semana”, acrescenta, orgulhoso. “Somos uma Câmara dura em Direito Penal... Não adianta o advogado vir com muita churumela. Advogado que argumenta muito, enchendo linguiça com princípios, teorias etc., não tem argumento. Ou ele cita os clássicos ou nem lemos...” (os clássicos que ele cita vocês já imaginam). E o tio, que acabara de acordar, pergunta: “nossa Câmara? Nós quem cara pálida?” Ouço aquilo e ligo para o meu fornecedor de jacarés: vou dobrar o número de Melanosuchus niger do fosso do meu bunker. Melhor me prevenir. Com um bom estoque de comida. E discos do Frank Sinatra.
Quem está faltando na festa? O professor de universidade pública, presidente de banca de concurso no qual os membros externos se negaram a assinar a ata. Já na chegada, um sobrinho, estudante de Direito, dá-lhe de presente um livro de Raymundo Faoro, Os Donos do Poder. Começa um bate-boca. Os contendores são retirados para a biblioteca da casa,de mala e cuia. Ô noite de Natal agitada.
Logo depois chegou o primo em segundo grau do tio do dono da casa. Ele é professor de Direito (mais um; afinal, quem não é?). Ele é daquelas figuras que aparecem nos programas de TV com gel no cabelo e sapatos grandes, bicudos, com iPad na mão, ensinando “coisas geniais” como agressão atual é a que está a-com-te-cen-do. Também dá aula sobre a complexa matéria chamada “direito de vizinhança”. Mas também já falou em Direito Marítimo. Esse não era ele? Sei lá. Todos são tão parecidos... Sabe(m) tudo, ele(s). Professor Totalflex. É amigão do pragmatista. Odeia que se fale em teoria, porque, para ele, na prática a teoria é outra. Gênio(s) da raça. É autor e coautor de literatura fofinha, flambada, dúctil, simplificatio-facilitatio. Nem tem tempo para começar a falar, porque o peru já está sendo servido. Alvíssaras. Finalmente o peru.
Ainda no meio da ceia chegou um professor que fez parte da banca que elaborou a última prova da OAB. Logo foi indagado por um recém bacharel acerca da questão 11, que perquiria sobre o utilitarismo. Eu, escutando, fico meditando, entre um gole e outro de John[1] Daniels... Quem teria sido o gênio que fez essa pergunta? Antifundacionalismo? Que coisa mais “brega”, filosoficamente falando. O utilitarismo era antifundacionalista? Sim? E daí? Para a prova da OAB? Hum, hum. E a pergunta sobre o estupro (59)? Bráulio (que nome mais cri-a-ti-vo, não? Vejam no Google os “bons tempos do Bráulio” — ver aqui) encontra moça em show de rock. Pratica sexo com ela, de forma consentida. Depois se descobre que ela tinha 13 anos... Ai, ai, ai. Céus. Onde estão meus jacarés? Pego meu celular. “Alô? Mande-me mais seis, agora da espécie Crocodylus niloticus e mais seis da 'marca' Crocodylus acutus.” Melhor ainda foi a questão 63: Paula desfere 16 facadas no peito de Maria... Esta morre duas horas depois. E se descobre que foi por envenenamento, porque tinha tendências suicidas. Parem as máquinas! Rufem os tambores! Pausa para que eu me role de rir. Farfalhar. Tomo dois goles de Olina. Agora, ligo para o meu fornecedor de óleo quente. Sim, além dos jacarés e crocodilos, colocarei tinas de óleo fervente para me proteger contra a barbárie. Paro por aqui. É Natal, batem os sinos... E o réu não se ajuda.
Os presentes que Papai Noel trouxeHo! Ho! Ho! Chega Papai Noel, finalmente, com um saco de livros (reais e imaginários) para distribuir. Para o sobrinho juiz, dois livros: o Círculo de Giz Caucasiano, de Brecht e o recém lançado, em alemão: Warum sollte Ich nicht autoritärsein (a versão em espanhol parece que é Las razones por las que no debo ser un déspota) do professor Fritz Selbstsüchtiger, da Universidade de Hinterden Hügeln). Para o promotor, dois livros: Como cumprir seu dever, de L. L. Sohannson e um sobre a verdade: As mentiras da verdade, de Llosa. Para o sobrinho que está fazendo a “Escola”, Machado de Assis (os contos A Teoria do Medalhão, no qual o pai Janjão ensina ao filho como se tornar um medalhão, exatamente porque o filho sofre de inópia mental e o conto Ideias de Canário).
Para o professor (o do concurso e da ata), dois livros: a Nau dos Insensatos e o recém lançado Why should not behave this way more, do professor Puller Ears, da University of Redneck, campus Behindthe Hills (lembremos que alguém já lhe dera o do Faoro). Para o professor de pós, os livros Como se Faz uma Tese (do Eco) e Publish or Perish, do professor holandês radicado nos EUA, Heeft Weinig, da University of Larceny, publicado pela PublisherBehindBackyard.
Para o advogado irritado com o processo eletrônico, vai minha solidariedade. Do Papai Noel ele recebeu o livro O Otimista, de Voltaire. Já para a sobrinha gordinha, além de Reprodução (B. Carvalho), o lançamento em alemão Warum sollte „Recht für Dummies“ nicht lesen (em português, a versão é Porque não devo ler “direito para ingênuos ou bobos”, publicada pela Editora Fondo di Casa). Para o magistrado de segundo grau (o do “bom senso” e pragmatista), o livro do Dworkin (A Justiça de Toga) em que ele assim qualifica Posner: "Um juiz preguiçoso, que escreve um livro antes do café-da-manhã, decide vários casos antes do meio-dia, passa a tarde dando aulas na Faculdade de Direito de Chicago e faz cirurgia do cérebro depois do jantar". Para o colega dele, aquele do “dano moral no olhômetro”, Santa Claus dá o livro O Idiota, de Dostoyevsky, com comentários do professor Nicht Nutzlos, da Faculdade de Scheizwald. E também um exemplar do livro O que é Isto – Decido Conforme Minha Consciência.
Para o sobrinho neo-proto-filósofo, Papai Noel dá o livro El Curioso Impertinente, de Cervantes. E outro, recém lançado, chamado Wie Philosophen kann langweilig sein, da Faculdade de Rammenschnitzel (a versão em espanhol é Cómo filósofos puedem ser aburridos, da Editora Fondo de la Casa, subsidiária da Editora Fondo di Casa). Também leva o livro Como Falar dos Livros que Não Lemos, de Pierre Bayard. Para a dupla que ficou em um canto (os que sofrem da síndrome de caramuru), Pai Natal dá dois livros: What is this - the academic silipsismo do professor Kleinnefuss Großen Nagel, radicado nos EUA (a versão em português é O que é isto – o solipsismo acadêmico, da Editora Fondo Di Casa (é italiana, recém instalada em Pindorama); e um em alemão: Wenn Sie aus dem Ausland kommen, ist es am besten (a versão espanhola parece que é assim: Se vem do estrangeiro, é melhor, da editora Burgo-Iuspostulandum, de Burgos, conveniada com a Editora Fondo de la Casa).
Para o professor dos cursinhos-que-dão-aulas-pela-TV-e-que-usam-sapatos-bicudos, o presente é a coleção completa das Seleções do Reader’s Digest, para aprimorar as piadinhas nas aulas e contar os “flagrantes da vida real”, uma seção especial dessa sofisticada revista. De lambuja, a coleção do Almanaque Biotonico Fontoura (se não sabe o que é, veja no Google — be a bá, be e bé, be e bi...o-to-ni-co Fontoura)! Eu adorava tomar o tal biotônico; mas minha tia Ana,[2] que pesava 120 kg, não deixava; ela dizia: nein, nein, mein Kleine, es sieht aus wie Pferdepisse; du must Emulsão Scott trinken — não, não, meu pequeno, isso parece urina de cavalo; tu deves tomar Emulsão Scott — que, registre-se, não tinha um gosto bom; o Biotônico é que era gostoso).
Aos demais que não estudaram o ano todo, que não sabem o que é (in)diferença ontológica e acreditam em ponderação (e a pregam) etc., por não terem se comportado, levarão um vale-presente do meu novo livro Os Alquimistas da Hermenêutica, no prelo (inspirado no mago Paul Rabbit). Não se comporte e Papai Noel, no próximo Natal, dar-lhe-á, além desta mesóclise, um kit (o livro mais uma vara de marmelo). Ah: o professor da prova da OAB recebe dois livros: Porque é feio fazer perguntas utilizando exemplos bizarros: uma releitura neoconstitucional(ista) e Porque Não Devo Fazer Perguntas Com Base em Resumos Plastificados, ambos escritos pelo catedrático Exnunco Abovo, da Editora Fondo Di Casa (que publica qualquer coisa a dez “real” a “foia”).
Pronto. Parece que Papai Noel fez uma boa distribuições de livros. Boas leituras. E Boas Festas para os meus leitores. Esta coluna já passou do 100. A propósito: Que livro você gostaria de ganhar? Comente aqui na ConJur e/ou no Facebook (Lenio Streck oficial). Está aberta a votação. Feliz Natal e Venturosíssimo Ano Novo a todos os leitores.

[1] Como no filme Perfume de Mulher, John é em face de minha amizade íntima com a família Jack Daniels, dos EUA profundos.
[2] Registro natalino: minha tia Ana é a mesma que tentava matar meu porquinho Bolão, cuja história já contei dia desses em uma coluna falando dos direitos dos animais. Ela era sogra de minha tia-madrinha Norma. Ou seja, a “norma” é algo que trago comigo de infância. Por isso é que “norma” só tem vontade quando diz “farei bolinhos de chuva para você, meu afilhado”. Lembram quando eu falo que “norma só tem vontade quando...”? E os juristas ainda falam em vontade da norma e do legislador...
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 26 de dezembro de 2013

O realismo ou “quando tudo pode ser inconstitucional”

 

 
Nos Estados Unidos... e não aqui, é claroEsse primeiro subtítulo da coluna é para completar o título acima e tranquilizar os leitores, no sentido de que o que tratarei é de outro sistema jurídico e de outra realidade. Nada a ver com o Brasil, portanto.
Aprenda se divertindoMeu amigo Dierle Nunes, professor da UFMG, mandou um vídeo que os alunos legendaram. Todos conhecem o desenho animado Pinky e Cérebro. O vídeo escolhido pelos alunos é um episódio em alemão. Claro que a legenda não corresponde à fala. Mas ficou muito engraçado e mostra a corrente jusfilosófica chamada “realismo jurídico”. Portanto, aprenda se divertindo. Não leia o resto da coluna sem ver o vídeo.

Então, o que é esse “realismo jurídico”? Visto o vídeo, vamos à lição. Primeiro, o realismo jurídico não tem nada a ver com o realismo filosófico, que é a concepção objetivista do mundo (sobre isso, por falta de espaço na coluna, ver meu Hermenêutica Jurídica em Crise).
Conforme explico em meu Verdade e Consenso, realismo e pragmati(ci)smo são irmãos siameses. As primeiras manifestações pragmaticistas no Direito podem ser encontradas no realismo escandinavo (Alf Ross, Olivecrona) e norte‑americano (Wendell, Pound e Cardozo), daí a “semelhança” entre as duas posturas sobre o direito (realismo jurídico e pragmatismo). Para os adeptos do pragmatismo, não se deve conferir “autoridade última a uma teoria, já que o objetivo crítico de raciocinar teoricamente não é chegar a abstrações praticáveis, mas, sim, explicitar pressuposições tácitas quando elas estão causando problemas práticos. Para o pragmatismo jurídico, teorias éticas ou morais operam sobre a formulação do Direito, mas, na maior parte das vezes (ou, ao menos, frequentemente), a porção mais importante de uma legislação é a previsão ‘exceto em caso em que fatores preponderantes prescrevam o contrário’”[1]. Contemporaneamente, o pragmatismo pode ser identificado sob vários matizes, como a análise econômica do direito, de Richard Posner, nos Critical legal studies e nas diversas posturas que colocam na subjetividade do juiz o locus de tensão da legitimidade do direito (protagonismo judicial). O pragmatismo pode ser considerado uma teoria ou postura que aposta em um constante “estado de exceção hermenêutico” para o direito; o juiz é o protagonista, que “resolverá” os casos a partir de raciocínios e argumentos finalísticos. Trata‑se, pois, de uma tese anti‑hermenêutica e que coloca em segundo plano a produção democrática do direito. No Brasil, o direito alternativo tinha raízes realistas. Nas práticas judiciárias, não é difícil encontrar uma série de manifestações realistas.
O jusfilósofo espanhol Garcia Figueroa é contundente, ao dizer que “na atualidade, parece haver uma espécie de realismo jurídico inconsciente na “motivação” dos juízes nos processos judiciais. Afinal, o realismo jurídico baseia-se na concepção de que o raciocínio judicial decorre de um processo psicológico. E isso acontece porque os juristas — em especial os juízes — descreem da capacidade justificadora do sistema jurídico. O realismo é cético diante das normas, pois a considera “puro papel até que se demonstre o contrário”. Assim, a vida do direito é “experiência”. Por isso, direito passa ser aquilo que os juízes dizem que é”.[2]
Desse modo, quando você ouve alguém dizer que “o-direito-é-aquilo-que-os-tribunais- dizem-que-é”, bingo! Está diante de uma postura realista (ou de uma Pantoffel theses do realismo). Compreendeu? Por isso, a estorinha do Pinky e do Cérebro retrata um pouco dessa velha corrente que — mesmo em tempos de intersubjetividade — ainda aposta no ceticismo em relação às normas e em raciocínios decorrentes de processos psicológicos.
No fundo, as posturas realistas e suas congêneres — lembremos que Posner é uma pragmati(ci)sta, que mata a sede no realismo — desconfiam da malta que vota. Desconfia das Instituições, a não ser a mais imaculada: o Judiciário. Por isso, o realismo (e seus genéricos) é também chamado de positivismo fático. Para quem gosta de estudar os mistérios do positivismo, saiba logo — e tenho insistido muito nisso — que positivista não é apenas o do velho formalismo (exegético-legalista). É muito mais do que isso. Enfim...
Direito é aquilo que os tribunais dizem que é?Claro que, quando penso nos Estados Unidos — e é só lá que isso pode(ria) acontecer, pois não? — lembro logo do caso Dred Scott v. Stanford e nas decisões da US Supreme Court dos anos 20 (claro que há outros julgamentos “do bem”... por assim dizer).
Paro por aqui. De fato, realismo jurídico e essas coisas do tipo “o-direito-é-aquilo-que-os-tribunais-dizem-que-é” são coisas dos outros. Como dizia Sartre, o inferno são os outros. Dos americanos. E quiçá das Antilhas Holandesas ou Guiné Bissau... Por aqui, nos trópicos, não se fazem dessas coisas... Longe disso. Se bem que, há poucos dias, o ministro Roberto Barroso, do Supremo Federal em entrevista à Folha de S.Paulo, a propósito do julgamento da ADI 4.650-DF, que trata das doações em campanhas eleitorais, que “(...) a gente, para fazer andar a história, não precisa estar com o povo gritando atrás. É preciso interpretar e fazê-la andar. (...) Está ruim, não está funcionando, nós temos que empurrar a história. Está emperrado, nós temos que empurrar”.
Se não estou enganado, a expressão “a gente” significa “o Poder Judiciário”, estou certo? Estaríamos, então, dando razão à dupla Pinky e Cérebro, do desenho animado? Pode o Judiciário empurrar a história? O dr. Cérebro, do desenho, acha que sim. Mas, permito-me insistir na pergunta: Pode empurrar a história mesmo quando a Constituição-não-diz-o-que-o-Judiciário-diz-o-que-ela-diz?
Como sou desconfiado — afinal, penso que essas coisas só acontecem nos outros países — vou atrás das notícias. Encontrei o Informativo 732 do STF, no qual o relator (ministro Luiz Fux) da citada ADI 4.650-DF “julgou inconstitucional o modelo brasileiro de financiamento de campanhas eleitorais por pessoas naturais baseado na renda, porque dificilmente haveria concorrência equilibrada entre os participantes nesse processo político”.
Vejam: o relator disse ser inconstitucional o modelo de campanhas eleitorais. Na sequencia, acrescentou que “a participação de pessoas jurídicas apenas encareceria o processo eleitoral sem oferecer, como contrapartida, a melhora e o aperfeiçoamento do debate e que a excessiva participação do poder econômico no processo político desequilibraria a competição eleitoral, a igualdade política entre candidatos, de modo a repercutir na formação do quadro representativo”.
Ainda, por fim, “recomendou ao Congresso Nacional a edição de um novo marco normativo de financiamento de campanhas, dentro do prazo razoável de 24 meses, observados os seguintes parâmetros: a) o limite a ser fixado para doações a campanha eleitoral ou a partidos políticos por pessoa natural, deverá ser uniforme e em patamares que não comprometam a igualdade de oportunidades entre os candidatos nas eleições; b) idêntica orientação deverá nortear a atividade legiferante na regulamentação para o uso de recursos próprios pelos candidatos; e c) em caso de não elaboração da norma pelo Congresso Nacional, no prazo de 18 meses, será outorgado ao TSE a competência para regular, em bases excepcionais, a matéria”.
Pronto. Faltou apenas acrescentar: tudo sob pena de chicoteamento... Fico pensando com meus botões já desgastados de tanto com eles pensar: Será que entendi bem? Ora, não preciso ser a favor ou contra o financiamento feito por empresas para entender o que está acontecendo. Por via das dúvidas, deixo claro que sou contra a doação por parte das empresas.
Mas, por favor, como lido com a Constituição e sou obrigado a defendê-la, tenho de me perguntar: a Constituição estabelece um (outro) modelo de financiamento de campanhas eleitorais? É assim tão fácil apontar onde está a parametricidade constitucional que sustenta as afirmações dos votos dos quatro ministros (relator e mais três) que votaram por essa inconstitucionalidade?[3] Há um porção de coisas das quais não gosto, mas daí a serem inconstitucionais no sentido daquilo que se entende por parametricidade, vai um zilhão de quilômetros de distância.
E desde quando o STF declara inconstitucionais “modelos” de alguma coisa? De forma moralista, ele faz a escolha pelo povo e em lugar do povo? O Parlamento serve para o quê? Alguém dirá: mas neste caso o STF está acertando... então por que você está criticando? Respondo: as questões (in)constitucionais não estão a disposição do STF. E um relógio parado também acerta a hora duas vezes por dia, pois não?
E desde quando o STF manda o Congresso fazer uma lei estipulando as condições e requisitos, se a própria Constituição, parâmetro maior para qualquer julgamento, nada fala a respeito? Além do problema da difusa e discutível parametricidade, o estabelecimento de prazo somente teria sentido se o STF dissesse — de forma fundamentada — estar em face de uma Appellentscheidung. Vou tentar explicar isso melhor: uma coisa é fazer uma Appellentscheidung (apelo ao legislador), que ocorre quando a Constituição determina algo, o Congresso não faz e a Corte Constitucional exorta a que o Parlamento faça a regulamentação em um prazo razoável para que aquela situação não se converta em uma inconstitucionalidade. Para ser mais claro: o apelo ao legislador (Appellentscheidung) só ocorre quando a Corte reconhece que a lei ou a situação jurídica não se tornou ainda inconstitucional. Então, faz a exortação. Em outras situações, o Tribunal restringe-se a constatar a inconstitucionalidade, sem, no entanto, declará-la. No caso da ADI essa, nem de longe se está em face da possibilidade de uma Appellentscheidung. Em verdade, parece-me que o STF simplesmente está não só legislando como também dizendo como o Congresso deverá fazer no futuro. Mas, ínsito: onde está a concreta situação que propicia(ria) o/um apelo ao legislador?
Não preciso pesquisar muito sobre a tal falta de parametricidade. Para tanto, valho-me dos exatos termos da declaração de um dos quatro ministros do STF que já votaram na ADI 4.650, o ministro Roberto Barroso: "Em tese, não considero inconstitucional em toda e qualquer hipótese a doação [a campanhas eleitorais] por empresa".
Não, os leitores não leram errado. Ele disse isso mesmo. Mas, então, perguntaria o Pinky da estorinha, ele votou contra a ADI 4.650-DF? Não, meu caro Pinky. Não, meus caros leitores. Ele votou a favor. Então, digo eu, com o meu bilhete aéreo de ida na mão para ir aos Isteites conhecer o tal “realismo jurídico”: se ela — a inconstitucionalidade — não existe... então... ela não existe. Questão de sintaxe e de semântica. Podem as doações ser ruins, inadequadas, aéticas, imorais, etc, etc (e mais um etc!). E o são. Mas, a pergunta que a Suprema Corte de terrae brasilis (e não a dos Isteites) deve responder é tão-somente essa: são elas, as doações, inconstitucionais? Podem ser ruins, mas...inconstitucionais? Aliás, as palavras não são minhas, são do próprio ministro Barroso, que-não-considera-inconstitucional-em-toda-e-qualquer-hipótese a doação a campanhas eleitorais por empresa. Vejam: em-toda-e-qualquer-hipótese.
Observação: por certo, alguém dirá que o Supremo invocou princípios e que, afinal, o direito é um sistema de regras e princípios. Correto. Mas, é possível extrair do princípio republicano um modelo de financiamento de campanha? E essa “extração de sentido” se faz agora, depois de tantas eleições? Nas anteriores o modelo valeu? Eu poderia discutir a questão se o princípio invocado fosse o da igualdade. Afinal, a igualdade de participação no processo eleitoral não está a disposição das maiorias políticas, porque essa questão está no núcleo do regime democrático. Mas não foi nessa linha que os quatro votos trilharam. Mas esse seria apenas o começo da discussão... Dizendo de outro modo: uma coisa é declarar inconstitucional determino dispositivo por ferir, na especificidade, a igualdade (ou outro princípio); outra coisa é dizer que todo o modelo conformado por tais dispositivos é inconstitucional; e outra coisa ainda é o STF se transformar em legislador positivo.
Mas, enfim, peço desculpas, porque desviei da rota. Estava falando das mazelas do realismo jurídico dos Estados Unidos e do ativismo de lá.[4] Mania que eu tenho de misturar os assuntos. Deve ser o final do ano. Cansado, dá tilt no meu sistema...
Ainda bem que o Brasil......está imune ao realismo jurídico, aos ativismos, decisionismos e coisas desse gênero. Todos sabemos disso. Por aqui tudo vai bem. Todos os julgamentos são feitos com base em critérios. Não há risco de uso abusivo de princípios (pamprincipiologismo). Em terrae brasilis não há panconstitucionalismo, variante perigosa do pamprincipilogismo.[5] Por aqui não se faz uso de argumentos metajurídicos. Vou me mudar para os Isteites. Só para ver como funciona esse tal de realismo, já que, como no livro de Alan Riding (Paris, a Festa Continuou), por aqui Tout va très bien dans le monde juridique (“tudo vai bem no mundo jurídico”, que adaptei da frase original “Tudo vai bem, Madame La Marquise”). Como vou para os Isteites ver o realismo — que aqui não tem — desejo a todos um Happy New Year (já estou treinando)!
PS 1: na bagagem, dois barões: O de Itararé e o de Charles-Louis de Secondat, barão de Montesquieu. Foi ele que teve a infeliz ideia de fazer divisão de funções nos e dos Poderes.
PS 2: diz-se por aí, à meia-boca, que a OAB, animada com o resultado parcial da ADI 4.650, vai ingressar com nova ação,[6] desta vez contra o sistema de partidos e o modelo de presidencialismo de coalizão. Afinal, por ele — o presidencialismo — ser de “coalizão”, pode estar violando vários princípios da Constituição. Logo, é inconstitucional (afinal, está abolida a exigência de parametricidade, porque, por certo, a Constituição é uma ordem concreta de valores[7] — veja-se, aí, o parentesco do realismo com a Wertungsjurisprudenz — a tal jurisprudência dos valores). Consequentemente, o próprio mandato da presidenta pode ser nulo. E também todos os seus atos. De todo modo, caberá modulação de efeitos...[8]
PS 3: para quem não entendeu o que escrevi, vai um resumo para Twitter em 123 caracteres: Na democracia, o Judiciário, inclusive o STF, não pode tudo. Tem limites. Caso contrário, esta(re)mos em uma juristocracia.
Ainda numa palavra, ... e falando muito sério, penso que é dever do STF, no exercício da jurisdição constitucional, garantir a igualdade de chances no processo eleitoral. E que, para isso, deve levar em consideração a desigualdade em termos de poder econômico (e também político-administrativo!). Entretanto, não concordo que o STF deva fazer isso em termos paternalísticos. Para mim, o STF deve dizer que condições de financiamento na atual legislação não garantem a igualdade de participação, ao invés de querer impor um sistema específico de financiamento ao legislativo, apenas para que esse o regulamente, sob pena de que, se não o fizer em 24 meses, a Justiça Eleitoral deverá fazê-lo. Esse é o ponto que fragiliza a decisão do STF até aqui. O STF não pode estabelecer "o" sistema de financiamento de campanha, optando por um modelo específico de financiamento, em substituição ao Congresso. Mas penso que o STF pode e deve declarar inconstitucionais pontos específicos da legislação vigente em matéria de financiamento de campanha, caso esses pontos não sejam compatíveis com a igualdade de participação política. Mas, haja, aqui, fundamentação. E fundamentação da fundamentação.
Todavia, em que perspectiva? Isto para mim é chave: o STF não pode dizer qual é "único" sistema que garanta a igualdade (se público, privado ou misto), mas quais pontos do sistema já vigente, seja ele público, privado ou misto, não garante a igualdade política. O problema é como o STF se vê, por um lado, como "legislador positivo" (concorrente ou subsidiário), já definindo qual sistema de financiamento garante a igualdade (o público, por exemplo) ou, mais especificamente para o caso da ADI 4.650, como o STF compreende o tal instituto do "apelo ao legislador" (predefinindo não apenas os prazos — 24 meses — para o legislativo legislar, mas predefinindo parâmetros dentro dos quais o legislador deve legislar), enfim, o modo com que o STF aplica a discutível Lei 9.868/1999. O interessante é que o tal “apelo” nem foi discutido até o momento.
Numa palavra: em uma democracia constitucional, são os próprios cidadãos, mediante seus representantes políticos ou diretamente, quem tem o direito de definir o que consideram relevante do ponto de vista da igualdade e da desigualdade, sobre o pano de fundo de uma história política de aprendizado constitucional vivido com a experiência da violação da igualdade, que não deve admitir retrocessos, embora eles possam acontecer.
Se o sistema deve ser só público ou não, e mesmo assim qual deve ser esse sistema público, penso que isso deve ser decidido "politicamente", obviamente dentro de parâmetros constitucionais que levem coerentemente os direitos políticos a sério, pelo Poder Legislativo, mediante debate público mais amplo.
Se permitirmos que o STF “regulamente” isso, estaremos dando uma carta branca a um Poder que não foi eleito para isso. Não confundamos demo-cracia com juristo-cracia.
[1] Cf. Eisenberg, José. Pragmatismo jurídico. In: Barretto, Vicente de Paulo (Org.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Unisinos, 2006, pp. 656‑657.
[2][2] Cf. García Figueroa, Alfonso. A motivação. Conceitos fundamentais. In: Moreira, Eduardo Ribeiro (Org). Argumentação e Estado Constitucional. São Paulo: Ícone, 2012, pp. 433 e segs.
[3] Essa crítica é muito bem feita por José Levi do Amaral, aqui na Conjur (leia aqui) e por Rafael Tomaz de Oliveira (leia aqui).
[4] Advertência: há sempre um estagiário comigo, com uma placa que é erguida quando falo determinada coisa. Neste caso, a placa levantada é “sarcasmo”.
[5] Como já havia inventado a expressão “pamprincipiologismo”, estou cunhando, agora, a expressão “pamconstitucionalismo”, que significa... “pamconstitucionalismo”.
[6] Nunca se esqueça, em nenhum minuto, do estagiário que me acompanha... Qual a placa os leitores acham que ele levantou, neste momento?
[7] Outra placa dizendo “ironia”.
[8] Outra placa!

Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 2 de janeiro de 2014

PROCESSO DO TRABALHO: O ÔNUS DA PROVA DEVE PROTEGER A PARTE COM MAIOR DIFICULDADE





A teoria da aptidão para a prova, pela qual se retira o ônus do autor das alegações e o transfere a quem tem melhores condições de prová-lo, tem aplicação para proteger o interesse da parte que tem dificuldade em demonstrar o seu direito. Com base na aplicação desse princípio, a 1ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (MG) deu razão a um empregado para reconhecer como data de admissão aquela informada por ele na petição inicial, uma vez que a anotada na carteira de trabalho não foi considerada verdadeira.

No caso, o empregado afirmou que foi admitido pela empresa em 5 de setembro de 2011, sem que a carteira de trabalho fosse anotada, e essa irregularidade foi sanada somente em 2 de janeiro de 2012. A empresa alegou a exatidão da data informada na carteira e negou a prestação de qualquer serviço em data anterior. Em 1ª instância, o juiz afirmou que o empregado não provou sua alegação, pois o único meio de prova foi um depoimento testemunhal, considerado frágil.

O trabalhador recorreu ao TRT-3. Segundo relator, juiz convocado Paulo Eduardo Queiroz Gonçalves, apesar da fragilidade da prova testemunhal, a questão mudou após o exame da prova documental apontada pelo reclamante: um controle de ponto, trazido pela própria empregadora. Nele consta que o reclamante faltou ao serviço nos dias 26, 27, 28, 29 e 31 de dezembro de 2011 e trabalhou normalmente no dia 30 do mesmo mês. E, conforme frisou o juiz, não haveria sentido em apontar faltas se a empresa não contasse com o trabalho do reclamante.

No dia apontado como efetivamente trabalhado havia a assinatura do reclamante, comprovando que ele estava na empresa e prestou serviços antes de 2 de janeiro de 2012. Em relação à prova testemunhal, ainda segundo o magistrado, revelou que o trabalho sem assinatura da carteira era uma prática comum na empresa.

Diante disso, o relator considerou que o trabalhador desincumbiu-se do ônus da prova quanto ao termo inicial do contrato antes de assinatura, apontando como correta a data de 5 de setembro de 2011. Assim, e tendo a prova principal da falsidade da data anotada sido produzida pela própria empresa, o magistrado concluiu, com base no princípio da aptidão da prova, que ela deve comprovar a data correta, já que é detentora dos registros de prestação de serviços. O relator acolheu a data informada pelo trabalhador na inicial e determinou a retificação da carteira de trabalho, arbitrando multa diária para o caso de atraso no cumprimento da obrigação. Com informações da Assessoria de Imprensa do TRT-3.


Revista Consultor Jurídico, 1º de janeiro de 2014

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

CHEGOU A HORA DA CÂMARA ANALISAR POJETO DO NOVO CPC

 


Chegou a hora da Câmara analisar projeto do novo CPC

Por José Miguel Garcia Medina



No próximo dia 22 completam-se três anos de tramitação do projeto de novo Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados.[1] O texto-base do projeto já foi aprovado. Restam, agora, as votações sobre os destaques.[2] De acordo com a Agência Câmara Notícias, os destaques poderão ser analisados na sessão do próximo dia 17.[3]

O projeto tramita há muito tempo. Tendo em vista que a Câmara dos Deputados realizou muitas emendas, o projeto deverá retornar ao Senado Federal, casa iniciadora do projeto.[4]

Aqui na Coluna Processo Novo foram levantadas questões relevantes em torno das quais gira o projeto, como, por exemplo, a importância de haver uma nova compreensão dos sujeitos da relação processual,[5] a integridade da jurisprudência,[6] a fundamentação das decisões judiciais,[7] a preocupação com a “jurisprudência defensiva”,[8] etc. Sobre esses pontos, dentre tantos outros, o projeto de novo CPC apresenta importantes avanços.

Embora tenha participado da comissão que elaborou o anteprojeto,[9] tenho me manifestado, ao longo da tramitação do projeto no Senado Federal e na Câmara dos Deputados, a respeito de dispositivos que, creio, devem ser aperfeiçoados, tal como aqueles relacionados à configuração do prequestionamento[10] e à repercussão geral.[11]

Tenho insistido que os debates em torno do projeto não podem ser superficiais e que o discutamos com seriedade.Um dos pontos que merecem o devido cuidado, por exemplo, diz respeito ao efeito suspensivo da apelação.

Como observei em texto anterior desta Coluna,[12] o Código em vigor padece de grave incoerência.[13] Afinal, a decisão que concede liminar antecipando efeitos da tutela pode ser executada de imediato, pois o agravo de instrumento (recurso cabível, no caso) não tem efeito suspensivo automático (cf. artigos 273, parágrafo 3º, e 558 do CPC). A decisão que concede liminar — fundada, portanto, em cognição sumária — pode ser executada liminarmente, enquanto a sentença condenatória sujeita-se a apelação, recurso que, como regra, deve ser recebido com efeito suspensivo (CPC, art. 520), impedindo sua execução imediata.

O Código em vigor, assim, permite a execução imediata de uma liminar fundada em cognição sumária, mas não a execução de sentença fundada em cognição exauriente.

De acordo com o artigo 1.025, caput do projeto, na versão em discussão na Câmara dos Deputados,[14] “a apelação terá efeito suspensivo”. Mantém-se, assim, a incoerência da legislação em vigor. Melhor, segundo penso, é a regra correspondente prevista na versão aprovada pelo Senado Federal.[15] De acordo com o artigo 949 do projeto aprovado pelo Senado, os recursos, inclusive a sentença, não impedem a eficácia da decisão. Quanto à possibilidade de concessão de efeito suspensivo à apelação, previu-se que o mero protocolo no tribunal da petição que o requerer impede a eficácia da sentença, até que seja apreciada pelo relator.

Melhor mesmo, segundo pensamos, é a versão inicialmente aprovada pela comissão que elaborou o anteprojeto, mas que acabou não constando de sua versão final. Em reunião realizada nos dias 12 e 13.04.2010, foi aprovada pela comissão, por unanimidade, a seguinte redação: “O cabimento da apelação impede a execução da decisão impugnada, até que o Tribunal se manifeste a respeito do juízo de admissibilidade, ocasião em que poderá conceder o efeito suspensivo eventualmente requerido pelo recorrente”.[16] Tal não foi, contudo, a redação que acabou sendo registrada na versão final do anteprojeto.[17]

O texto aprovado inicialmente pela comissão que elaborou o anteprojeto, a meu ver, tem a vantagem de evitar o risco de sentenças manifestamente errôneas produzirem eficácia de imediato, mas permitem que, após manifestação do relator sobre a admissibilidade do recurso, sejam as sentenças desde logo executadas. Resolve-se, no caso, a polêmica, dispensando-se a necessidade de apresentação de requerimento autônomo diretamente no tribunal, para a atribuição de efeito suspensivo à apelação, enquanto esta tramita perante o juízo de primeiro grau. A apelação, assim, como regra, não teria efeito suspensivo, mas a eficácia da sentença dependeria de exame pelo relator sobre a admissibilidade do recurso. Andaria bem a Câmara dos Deputados, a meu ver, se incorporasse tal redação ao projeto.

É importante, de todo modo, que a Câmara dos Deputados delibere logo a respeito dos destaques, aprovando o que tivesse que ser aprovado, e rejeitando o que tiver que ser rejeitado. É lamentável ver projeto tão importante tendo sua análise sucessivamente adiada, tal como tem sido, nas sessões mais recentes. Que a Câmara dos Deputados conclua logo sua análise e o envie ao Senado Federal para apreciação das emendas, é o que se espera.



[1] O Projeto de Lei 8.046/2010 tramita na Câmara desde 22/12/2010 (cf. tramitação do referido projeto aqui). A partir de meados de 2011, referido projeto foi apensado ao Projeto de Lei 6.025/2005 (cf. tramitação do referido projeto aqui). Na página de tramitação deste projeto é possível acompanhar a evolução mais recente do Projeto.


[2] A relação dos destaques pode ser lida aqui.


[3] Cf. notícia publicada aqui.


[4] No Senado Federal, o Projeto de Lei tramitou sob o n. 166/2010 (cf. tramitação do referido projeto aqui).


[5] Cf. “Advogados têm direito a trabalhar com dignidade”, disponível aqui.


[6] Cf. “O que precisamos é de uma jurisprudência íntegra”, disponível aqui, “Jurisprudência não está, nem pode estar, acima da lei”, disponível aqui, e “Os caminhos percorridos pela jurisprudência do STF”, disponível aqui.


[7] Cf. “Precisamos de regra sobre fundamentação de decisões?”, disponível aqui, e “Fundamentação de decisões ainda não dá conta do básico”, disponível aqui.


[8] Cf. “Pelo fim da jurisprudência defensiva: uma utopia?”, disponível aqui.


[9] Os intensos trabalhos realizados pela referida Comissão podem ser conferidos aqui.


[10] Cf. “Câmara deve rever 'prequestionamento ficto' no CPC”, disponível aqui.


[11] Cf. “Deve caber repercussão geral sempre que houver divergência”, disponível aqui.


[12] Cf. “É um pássaro? Um avião? Não, é o 'superjuiz'!”, disponível aqui.


[13] Cf. também, a respeito, o que escreve Fernando Gajardoni: “Efeito suspensivo automático da apelação deve acabar”, disponível aqui.


[14] Disponível aqui, para download.


[15] Disponível aqui, para download.


[16] A ata da referida reunião está disponível aqui.


[17] Cf. artigo 908 da versão final do anteprojeto, disponível aqui.




José Miguel Garcia Medina é doutor em Direito, advogado, professor e membro da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto de Código de Processo Civil. Acompanhe-o no Twitter, no Facebook e em seu blog.

Revista Consultor Jurídico, 16 de dezembro de 2013

TST APROVA DUAS NOVAS SÚMULAS

 


Tribunal Superior do Trabalho aprova duas novas súmulas

O Pleno do Tribunal Superior do Trabalho aprovou na última quarta-feira (13/12) duas novas súmulas. Em uma delas, a Súmula 447, foi firmado o entendimento de que tripulantes e demais empregados que prestam serviços auxiliares e permanecem dentro de aeronave durante o abastecimento não têm direito ao adicional de periculosidade.

Na Súmula 446, ficou determinado que “a garantia ao intervalo intrajornada, prevista no art. 71 da CLT, por constituir-se em medida de higiene, saúde e segurança do empregado, é aplicável também ao ferroviário maquinista integrante da categoria ‘c’ (equipagem de trem em geral)”.

Alterações
A sessão do Pleno também aprovou a inclusão do item II à Súmula 288, sobre a complementação dos proventos da aposentadoria. O novo trecho determina que, nos casos em que há dois regulamentos de planos de previdência complementar, instituídos pelo empregador ou por uma entidade de previdência privada, o beneficiário opta por um deles e tal ato representa a renúncia às regras do outro.

A Súmula 392, que trata de dano moral e material em relação de trabalho, teve sua redação alterada. O novo texto afirma que “nos termos do artigo 114, inciso VI, da Constituição, a Justiça do Trabalho é competente para processar e julgar ações de indenização por dano moral e material, decorrentes da relação de trabalho, inclusive as oriundas de acidente de trabalho e doenças a ele equiparadas”.

Instruções normativas
O Pleno do TST também aprovou alterações em três instruções normativas. A nova redação do item X da AI 3/1993 determina que “não é exigido depósito recursal, em qualquer fase do processo ou grau de jurisdição, dos entes de direito público externo e das pessoas de direito público contempladas no Decreto-Lei n.º 779, de 21.8.69, bem assim da massa falida e da herança jacente”.

Já na Instrução Normativa 20/2002, foram alterados os itens I,V,VI e IX, revogados os itens IV e VII e incluídos o item VIII-A. Isso porque a Justiça do Trabalhou passou adotar a GRU no lugar da Darf para recolhimento de custas. Também foi revogado o parágrafo 2º do artigo 5º da Instrução Normativa 30/2007.

As novas súmulas e as alterações nas súmulas já vigentes devem ser publicadas por três vezes consecutivas no Diário Eletrônico da Justiça do Trabalho, de acordo com o artigo 175 do Regimento Interno do TST. Já as alterações das instruções normativas serão publicadas uma única vez. Com informações da Assessoria de Imprensa do TST.
 
Revista Consultor Jurídico, 16 de dezembro de 2013

EQUÍVOCOS EM PROJETO DA MEDIAÇÃO PODEM SER SANADOS

 


Equívocos em Projeto da Mediação podem ser sanados

Por Rêmolo Letteriello



O Diário do Senado Federal, de 23 de outubro passado, publicou o Projeto de Lei do Senado 434, de 2013, que dispõe sobre a mediação. O Projeto deriva da conclusão dos trabalhos da Comissão de Especialistas instituída pela Portaria 2.148, de 29 de maio de 2013, do Ministério da Justiça, para discutir o marco legal da mediação e conciliação no Brasil, com o objetivo de avaliar, debater e elaborar propostas para subsidiar os devidos ministérios e órgãos do governo federal, visando o aprimoramento e modernização da legislação sobre as formas adequadas de solução de conflitos.

Ao examinar o texto integral, constatamos a existência de alguns equívocos e outras impropriedades e incorreções, que podem ser sanados quando da tramitação da proposição. Pensando em tornar melhor as disposições do Projeto, a título de colaboração, encaminhamos ao seu autor, senador José Pimentel (PT-CE), um tanto de sugestões que reputamos pertinentes e oportunas sobre a matéria. As propostas de alterações das regras constantes do Projeto foram todas acompanhadas de justificativas que, seguramente, serão sopesadas e bem examinadas pelo autor e demais eminentes senadores.

As sugestões apresentadas são as seguintes:

No Capítulo I das Disposições Gerais, o parágrafo único do artigo 1°, ao definir a função do mediador, estabelece que ele “promove a comunicação” entre as partes, para prevenir o conflito e buscar o consenso. Sugerimos a substituição da palavra “promove” por “restaura”, porque, na verdade, na mediação, não se promove, não se provoca, não se dá início a uma comunicação entre os mediandos, mas se restaura, se restabelece a comunicabilidade perdida, perda que deu causa ao conflito.

O artigo 2° aponta, entre os princípios fundamentais da mediação, o “consensualismo”, expressão que, no nosso entender, deve ser substituída por “consensualidade”. É que “consensualismo” significa uma posição que seria adotada, no caso, pelos conflitantes, ao passo que a expressão “consensualidade” representa uma característica da mediação, sendo, portanto, o termo apropriado.

No Capítulo II — Dos Mediadores, o artigo 6° prescreve que o mediador “conduz o processo de comunicação”. É de se anotar que o mediador conduz o processo de mediação e não de comunicação; o facilitar da comunicação entre as partes é um dos atos de desenvolvimento da mediação que integra o seu procedimento e não o processo. Registra-se, também, que entre as atividades do mediador está a de eliminar a causa primordial do conflito, que se assenta, recorrentemente, na ausência de comunicação entre as partes, cumprindo-lhe, portanto, torná-la acessível para permitir, a partir daí, o desenrolar eficiente do procedimento com o estabelecimento de uma relação confortável entre os mediandos. Em vista disso, sugerimos que se estabeleça que o mediador “conduz o processo de mediação, abrindo os canais de comunicação entre as partes”.

O artigo 14 do Capítulo que cuida dos Mediadores (III) estabelece os “critérios” a serem preenchidos por aquele que pretende se cadastrar como mediador judicial. Propomos a substituição do vocábulo “critérios” por “requisitos”, justificando que critério admite apenas três sentidos: com relação a método pode significar modo, norma, preceito, regra, sistema, etc.; referentemente a parâmetro pode representar base, medida, padrão, fundamento, etc., e relativamente a discernimento pode exprimir bom senso, discrição, equilíbrio, juízo, ponderação, razão, etc. Nenhum deles tem aplicação na hipótese, de sorte que a denominação dos pressupostos para que uma pessoa seja apta a exercer a função de mediador judicial não há de referir-se a critério e sim a requisito que tem o significado de condição — condição para ser mediador.

Na regulamentação do Procedimento da Mediação (Capítulo IV), na Seção I — Disposições Gerais, o parágrafo 3° do artigo 18 do Projeto estatui que o dever de confidencialidade aplica-se às partes, seus advogados ou defensores públicos, bem como aos assessores técnicos e outras pessoas de confiança do mediador, não constando a exigibilidade daquele dever ao mediador. Por isso, oferecemos sugestão de se incluir a figura do agente mediador no rol daqueles que devem guardar confidencialidade do processo e de todo o sucedido no seu transcorrer, ajuntando que a confidencialidade é uma das normas éticas mais importantes na atuação do mediador, não fazendo sentido a omissão da sua pessoa na redação do aludido parágrafo.

O artigo 19 impõe às partes interessadas na mediação a obrigatoriedade de assinarem um “termo inicial de mediação”. A experiência tem demonstrado que a hipótese mais frequente é a do comparecimento de apenas uma das partes ao serviço de mediação, haja vista que as pessoas em conflito dificilmente se colocam em acordo para acorrerem a tal serviço. Lembramos, então, a necessidade de se acrescentar dois parágrafos ao artigo: o primeiro, prevendo a pressuposição da existência de um (a) único (a) interessado (a), caso em que a outra parte seria convidada ao comparecimento e, acedendo ao convite, receberia informações sobre o processo de mediação; e o segundo, anunciando as providências a serem tomadas no caso de aceitação da parte convidada.

O artigo 20, que relaciona o que deve conter o termo inicial da mediação, estatui, no inciso I, a obrigatoriedade de se registrar o nome, a profissão, o estado civil e o domicílio das partes e, se houver, de seu advogado ou defensor público. Ante a omissão da hipótese de as partes renunciarem à assistência daqueles profissionais, apresentamos proposta no sentido de também constar tal ocorrência no termo, justificando que, se a renúncia das partes à assistência de advogados ou defensores públicos, no processo da mediação, deve ser expressa, como inscrito no artigo 23, tal ato só pode ser registrado no termo da mediação.

Os incisos do artigo 24 anotam o conteúdo do termo final da mediação, assentando o IV, “a descrição dos direitos e das obrigações das partes, a declaração de tentativa infrutífe ra ou a descrição do consenso obtido pelas partes”. Ao propor mudança no texto, sugerimos a supressão da obrigatoriedade de se descrever os “direitos” das partes, justificando que o termo de acordo não deve fazer referência a direitos que os conflitantes possam ter, uma vez essa questão não é de ser agitada no procedimento da mediação. Como se sabe, o reconhecimento e a declaração de direitos são obtidos na esfera judicial. Na instância da mediação, o que se pondera são os interesses e posições dos mediandos, questões que não importam ao termo. Durante o procedimento da mediação, em nenhum momento se perquire sobre a existência de direitos das partes. Ainda com relação ao inciso IV, recomendamos acrescentar, no seu final, a descrição “das obrigações individuais contraídas”, posto ser necessário que se explicite as obrigações de cada mediado, particularizando os respectivos encargos, o que seria de vital importância e evidência palpável do que as partes convencionaram fazer. Finalmente, mostramos a conveniência de se remeter a expressão “declaração de tentativa infrutífera” da mediação para inciso autônomo a ser criado, nomeadamente, o VII, porquanto o registro de eventual mediação frustrada deve constar em dispositivo apartado daquele que trata da mediação bem sucedida, não fazendo sentido a previsão de dois resultados distintos num único inciso, como está no Projeto.

O artigo 25 diz que “O termo final de mediação tem natureza de título executivo extrajudicial e, quando homologado judicialmente, de título executivo judicial”. Propusemos a troca do vocábulo “natureza”, pela palavra “eficácia”, ponderando o seguinte: a natureza de um título executivo diz respeito a um documento com função de provar um direito subjetivo, ou a um ato jurídico, cuja validade depende do preenchimento de determinados requisitos. Essa simples sustentação justifica a objeção que se faz ao texto do artigo 21, uma vez que este pretende exprimir o efeito do acordo e não definir a sua natureza. Por isso, a expressão correta e adequada, do ponto de vista jurídico, é eficácia, que dá o sentido de aptidão, a permitir a instauração de uma execução extrajudicial ou de uma execução de sentença.

Na Seção II, que disciplina o Procedimento da Mediação Judicial, estabeleceu-se no artigo 26 a solicitação de mediação através de petição inicial que seria distribuída ao juízo e ao mediador. Fizemos objeção aos dois procedimentos, argumentando que a exigência de petição inicial atenta contra uma das características fundamentais da Mediação — a informalidade, que é uma das grandes vantagens desse método alternativo de resolução de conflitos. Lembramos que na mediação judicial existem duas modalidades, quais sejam, a pré-processual e a processual, sendo que a primeira, invariavelmente, é provocada pelas partes, em grande maioria, não assistidas por advogados ou defensores públicos e que têm a natural dificuldade de formular um pedido, especialmente quando dirigido a um órgão do Poder Judiciário. A outra modalidade, a processual, se inaugura ou por triagem das causas em tramitação e passíveis de mediação, ou quando remetidas pelo magistrado aos centros, núcleos ou unidades organizados para a realização de conciliação e mediação, sendo despicienda qualquer tipo de petição. Não haveria, então, distribuição ao juízo, mas encaminhamento do termo inicial (artigo 19) ao mediador que figurasse no quadro de mediadores judiciais.

Sugerimos, ainda, incluir-se no aludido artigo 26 dois parágrafos: o primeiro, para que se observassem as disposições do artigo 19 e seus parágrafos, uma vez que na mediação judicial também se faz necessário firmar o termo que consolida o início do Processo, e o segundo, para dar outra redação ao parágrafo único do Projeto, que prescreve: “Competem (sic) aos Tribunais a organização e a disciplina de funcionamento do órgão que agregará os mediadores”. Pensamos em ampliar e melhor definir a competência dos Tribunais, ponderando que as suas atribuições não devem alcançar apenas a regulamentação da organização e funcionamento do órgão que reúne os mediadores, mas também e principalmente o regramento do procedimento que, embora informal, deve ser minimamente estruturado.

O Projeto determina que, na hipótese de inexistência de consenso, o mediador lavre certidão a respeito, encaminhando-a, juntamente com a petição inicial, ao juízo (artigo 27, parágrafo 2°). A sugestão apresentada foi no sentido de se inscrever que nas duas modalidades de mediação (processual e pré-processual), o mediador determine a expedição do termo de mediação negativa, não lavrando, ele próprio, qualquer certidão ou termo. É que a tarefa de lavrar termos ou certidões compete aos servidores que atuam nos cartórios ou secretarias, e não ao mediador, que tem outras atividades e funções mais importantes a desempenhar no procedimento da mediação.

De outra sorte, ordena o parágrafo 3° do artigo 27 que, no caso de acordo, o termo respectivo “será encaminhado pelo mediador ao juízo que o homologará, desde que requerida a homologação por ambas as partes”. Apresentamos proposta para, alterando o texto, permitir que o requerimento de homologação seja feito por uma ou ambas as partes. A justificativa se assenta em que o pedido de homologação do termo de acordo é uma faculdade a ser exercida por qualquer das partes ou por ambas. É possível que um dos mediados não se interesse pela homologação, se conformando com a posse de um título executivo extrajudicial; isso, contudo, não será causa impediente para que a outra busque a homologação, a fim de possuir um título executivo com eficácia judicial e melhor se garantir em futura e eventual execução.

O artigo 28 prevê a possibilidade de isenção de custas processuais no caso de obtenção de consenso na mediação. Sugerimos o acréscimo da palavra “processual” após a expressão “mediação”. O dispositivo tem aplicação apenas na mediação processual, porquanto na pré-processual, não havendo processo, não há despesas.

O Projeto se dispõe a regular a Mediação Extrajudicial, na Seção III, do Capítulo IV, estatuindo o artigo 29 que “O convite para iniciar procedimento de mediação extrajudicial poderá ser feito por qualquer meio de comunicação”. Essa redação não condiz com o sentido daquilo que se busca normatizar, daí porque indicamos a substituição do texto por outro, invocando as disposições constantes do artigo 19, que cuidam do início da mediação, e dos parágrafos 1° e 2° (se aceitas as propostas que oferecemos a respeito), que tratam do convite, da aceitação da mediação e da firmação do termo inicial pela parte que, de início, não se interessou por ela.

Não pode prevalecer, também, a redação do parágrafo único do artigo 29 que estabelece que “será considerado rejeitado o convite para participar da mediação” se não houver resposta ao pedido, no prazo de trinta dias. Ora, o não comparecimento da parte convidada não resulta em se rejeitar o convite, mas em tornar prejudicada a tentativa de mediação. A rejeição do convite, como previsto no texto original, implica considerar em desenvolvimento um procedimento que, na verdade, sequer foi instaurado e que, se fosse, não poderia prosseguir, simplesmente, por falta da parte contrária. Entendemos que o dispositivo se torna mais lógico com a seguinte redação: “Se a parte convidada não atender à convocação, no prazo de trinta dias da data de recebimento, restará prejudicada a tentativa de mediação, consignando-se o não comparecimento no termo inicial a que se refere o art. 19”.

Sobre a conclusão do procedimento da mediação, fixou o Projeto, no artigo 31, a regra que sustenta que a mediação conclui-se com a obtenção do consenso por vontade de qualquer das partes manifestada a qualquer momento, ou pelo mediador, quando este reputar inviável o consenso. Apresentamos três sugestões para a necessária correção do artigo: a primeira, visando à substituição da expressão “por vontade de qualquer das partes manifestada a qualquer momento”, por “a que tiverem chegado as partes”, com a justificativa de que o acordo que finaliza a mediação concretiza-se quando há consenso de ambas as partes. Se um dos conflitantes resiste ou não adere às propostas apresentadas, por não satisfazer aos seus interesses, é evidente que não há consenso e, consequentemente, não há acordo, que é o principal objetivo da mediação. Por outro lado, não faz sentido a proposição de se concluir a mediação pela “vontade de qualquer das partes manifestada a qualquer momento”. É que existe um momento certo para a manifestação do consenso que leva ao acordo, momento esse que ocorre na fase final do procedimento; a segunda proposta foi a de acrescentar a conjetura da tentativa infrutífera de mediação como causa de conclusão do procedimento, ponderando que a malograda tentativa, que muito se verifica na prática, também deve constar ao lado das outras causas de encerramento do procedimento, caso contrário este permanece em aberto; e a terceira, no sentido de se eliminar a hipótese de conclusão da mediação quando o mediador reputar inviável o consenso. Sobre isso, justificamos que não é só a falta de consenso que motiva a conclusão do procedimento; outras causas como, por exemplo, o abandono ou a desistência do procedimento por uma das partes, antes mesmo da formulação das propostas, a concordância de todos os mediados no sentido de encerrar o processo, a tentativa mal sucedida de resolução do conflito etc., são também razões que justificam a finalização da mediação. Oferecemos, então, a seguinte redação para o artigo 31: “O procedimento de mediação conclui-se com a obtenção do consenso a que tiverem chegado as partes, quando frustrada a tentativa de mediação, ou pelo mediador, quando este entender que, por qualquer razão, a mediação restou prejudicada”.

São essas as propostas que apresentamos, de alterações de algumas disposições do Projeto de Lei do Senado 434, de 2013, todas elas fundadas nos conhecimentos retirados dos estudos sobre mediação e da experiência adquirida na prática da resolução de conflitos através do notável instituto. Esperamos que elas possam contribuir para o aperfeiçoamento do texto dirigido à formação de uma legislação que realmente garanta aos cidadãos o efetivo acesso ao extraordinário método alternativo de solução de disputas e de pacificação social, que é a mediação.


Rêmolo Letteriello é desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul e Mediador.
Revista Consultor Jurídico, 16 de dezembro de 2013

"A SUSEP ESTÁ LIMINTANDO O NEGÓCIO DE SEGUROS NO BRASIL"

 


"A Susep está limitando o negócio de seguros no Brasil"

Por Tadeu Rover






Há três décadas na área de seguros, o advogado Sérgio Barroso de Mello está receoso com os rumos do mercado de seguros no Brasil. Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico ele critica os rumos da Superintendência Nacional de Seguros Privados e afirma que ela está fechando um mercado que é crescente.

O advogado divide o tempo entre seu escritório, Pellon & Associados Advocacia, e a presidência do Comitê Ibero-Latino Americano da Associação Internacional de Direitos de Seguros (Cila/Aida), entidade que reúne esforços em defesa do estudo e a divulgação do direito de seguros e de suas matérias afins.

Em junho, Mello esteve à frente do Congresso do Cila/Aida. De lá trouxe novidades como a criação do tribunal arbitral para países latinos, batizado de Arias Latam (Tribunal Arbitral da Aida na América Latina). O tribunal está localizado na Universidade Católica do Chile, em Santiago. “Por estar em uma faculdade tem custos menores e está em um ambiente onde o Direito é o Direito Romano, como o nosso, o Direito positivo que privilegia a lei, as normas, e muito menos a jurisprudência”, explica Mello.

Formado em 1988 pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mello possui vasta experiência na área de seguros do Brasil e do Exterior. Além da experiência profissional, Mello conta também com especializações na área como o doutorado em Contrato de Seguro e Resseguro pela Universidade de Santiago de Compostela, Espanha.

Além do escritório e da presidência do Cila/Aida, Sérgio Melloatua como árbitro do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem. Também é professor de Direito e Previdência Complementar Privada do MBA em Previdência Complementar da UFRJ, da Cadeira Direito de Seguros e Resseguros MBAs da Universidade Cândido Mendes, da Fundação Nacional Escola de Seguros (Funenseg), da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da Pontifícia Universidade Católica de Belo Horizonte (PUC Minas).

Leia a entrevista:

ConJur — Quais são os principais problemas do seguro hoje em dia?
Sérgio Barroso de Mello — No seguro em si, nós temos um problema hoje que é o nosso órgão regulador. Nele há dois problemas. O primeiro é que a Susep, a Superintendência Nacional de Seguros Privados não é uma agência, e sim uma superintendência. Com isso não possui mandato e a cada um ano e meio ou dois anos troca o superintendente e muda a filosofia. Isso é muito ruim porque você perde o norte.

ConJur — E qual seria o outro problema?
Sérgio Barroso de Mello — A falta de profissionais que conhecem seguro com profundidade. Ao longo do tempo a Susep perdeu gente que tinha a memória do seguro, que se aposentou, e não absorveu profissionais com capacidade. Nos concursos são contratados basicamente atuários recém-formados, que nunca trabalharam em uma rotina de seguro, de resseguro ou mesmo junto a um corretor. Além disso falta treinamento. O investimento em treinamento é muito baixo. Com isso, nos últimos dois ou três anos começaram a estabelecer normas que criam padrões. Quando você cria padrão é fácil regular. Você tem uma receita, tudo que está fora dela é penalidade, multa.

ConJur — Quais as conseqüências dessa prática?
Sérgio Barroso de Mello — O mercado de seguro nacional e internacional é muito criativo e faz negócios de risco. A essência do segurador é a criatividade. Se você limita a sua criatividade, você limita o negócio de seguros. Quando esse órgão regulador cria padrões ele começa a impedir o mercado de produtos específicos para cada necessidade. A gente tem isso historicamente, a gente chama de seguros taylor made, feito especificamente para cada tipo de risco. A partir de agora a Susep começou a expedir várias circulares criando padrões. Isso é muito ruim porque ela proíbe uma série de práticas que são absolutamente salutares e a Susep não entendeu isso. O que acaba prejudicando os clientes.

ConJur — O senhor fala a partir de agora. Agora quando?
Sérgio Barroso de Mello — A Susep editou algumas normas pequenas em 2010 e 2011, mas a grande norma que mais assusta foi a Circular 437 de 2012. Ela trata dos seguros de responsabilidade civil, que entrou em vigor em junho. Era para ter entrado em vigor em dezembro do ano passado, mas a Federação Nacional de Seguros Gerais (FenSeg) e nós da Associação Internacional de Direito de Seguros (Aida) conseguimos a prorrogação por seis meses após apontarmos em um relatório uma série de circunstâncias ruins da circular. Existem alguns seguros de RC, de grandes segurados, que eram para ser renovados e que não estão podendo ser renovados devido a essa circular. Esses segurados estão tendo que comprar uma apólice com muito menos cobertura do que antes.

ConJur — Menos cobertura?
Sérgio Barroso de Mello — Os grandes prejudicados são os segurados. Porque não só no que diz respeito à RC, mas também quanto às outras modalidades que a Susep está padronizando, a Susep está impedindo essa criatividade para você dar certas coberturas.

ConJur — Pode dar um exemplo?
Sérgio Barroso de Mello — No seguro de RC, especialmente o D&O [sigla em inglês para Directors and Officers Liability Insurance] — que o executivo faz para cobrir uma responsabilidade dele, uma penalidade qualquer que ele venha receber por algum erro que cometeu — a Susep não deixa você cobrir mais multa. E isso não tem justificativa. A multa é da essência do seguro de RC. Isso está causando no Brasil uma crise de produtos específicos de seguro. O país vai perder prêmio de seguro, prêmio de resseguro, pois muitos segurados, multinacionais especialmente, vão contratar nas suas chamadas apólices guarda-chuva.

ConJur — Como funciona isso?
Sérgio Barroso de Mello — As grandes multinacionais têm o que eles chamam de programa mundial, que nada mais é do que uma grande apólice contratada na matriz. Você pega uma Volkswagen, por exemplo, está na Alemanha e ela contrata uma apólice gigantesca para o mundo inteiro. Só que ela estabelece uma franquia. Por exemplo, uma franquia de R$ 50 milhões para o Brasil, abaixo disso eles não cobrem. Então a Volkswagen vem aqui e contrata uma apólice de R$ 50 milhões. Isso já é feito há muito tempo e a tendência é que se amplie.

ConJur — E como que a Volkswagen daqui será indenizada?
Sérgio Barroso de Mello — É muito fácil. Acontece o sinistro e eles enviam técnicos, os reguladores e isso não passa pela Susep. Os advogados estrangeiros virão para acompanhar e vão entregar os relatórios para um segurador de fora. Para enviar o dinheiro eles fazem um aumento de capital social e pronto. O dinheiro entra aqui no Brasil como alteração societária. Essa é apenas uma das formas. Tem outras. Isso acontece muito, só que ninguém vê.

ConJur — Essa é a ponta de uma crise no mercado?
Sérgio Barroso de Mello — Exato.

ConJur — E só acabará com o fim da Susep?
Sérgio Barroso de Mello — Então, quando você me pergunta qual é o maior problema hoje no mercado, é a intervenção. Tem outra circular, a 458, que estabelece a proibição para contratação do que a gente chama de planos singulares. Essa proibição de você fazer os seguros específicos ou singulares é a morte do nosso mercado. Essa circular cria padrões: se você não fizer um seguro igual àquele que a Susep estabeleceu, com aquelas condições básicas, você não pode fazer outro. Como não poderemos mais cobrir, o cliente vai procurar seguradoras de fora. Essas circulares citadas são os dois maiores exemplos nefastos de perda de receita e de morte de uma boa parcela do nosso mercado de seguros. Todos vamos perder lamentavelmente.

ConJur — Essa criação de padrões é uma tendência da Susep ao longo dos anos ou é pontual da atual gestão?
Sérgio Barroso de Mello — A gente está vivendo o ápice de várias medidas equivocadas tomadas ao longo dos últimos 15 ou 20 anos, especialmente pela falta de gente capacitada, de treinamento, de uma norma mais perene transformando a superintendência em um órgão de regulação, propriamente dito, como uma espécie de agência, que pudesse ter mandatos bem definidos. Então, essas mazelas todas prejudicaram um setor que é pujante.

ConJur — Como você iniciou na área de seguros?
Sérgio Barroso de Mello — Estou no mercado há quase 30 anos. Comecei muito novo, logo no primeiro ano de faculdade comecei a estagiar em uma companhia de seguro onde eu fique 12 anos. Chamava-se Companhia Internacional de Seguros. Quando comecei lá pertencia à família Rocha Miranda. Depois o Naji Nahas comprou e, em março de 91, ela foi liquidada. Nessa época montei o escritório com o meu sócio, o Luís Felipe Pellon. No início éramos nós dois, um office boy e uma secretária. Hoje nós somos 480 pessoas, 160 advogados.

ConJur — Como o escritório cresceu tanto?
Sérgio Barroso de Mello — Quando comecei, o mercado de seguros era 0,7% do PIB, hoje é mais de 5% do PIB. Não teve ano que o mercado de seguro não crescesse menos de 10%. Agora essas restrições regulatórias são um tiro no pé. Isso vai prejudicar fortemente os prêmios de seguro e resseguro, cuja indústria hoje é muito forte e muito importante. Gera empregos, gera impostos. Vamos pegar só o exemplo do resseguro. Quando o mercado se abriu há cinco anos, o Instituto de Resseguros do Brasil (IRB) faturava de prêmio de resseguro de R$ 2,7 bilhões. Hoje, com cinco anos de mercado aberto, temos R$ 7 bilhões, entre seguradores locais, admitidos e eventuais.

ConJur — E não é um aumento de sinistro, é um aumento de cobertura.
Sérgio Barroso de Mello — Exatamente. É um aumento de produtos. A gente começou a ter uma serie de produtos — que chamamos de produtos de coberturas — que começou a ser oferecida ao mercado que não tinha antes. O D&O é outro exemplo. Quando o mercado de resseguros abriu todos os resseguradores trouxeram os seus produtos de D&O para o Brasil e começaram a vender. Com a concorrência, estima-se que os prêmios de D&O estão 40% abaixo do que deveria estar, o que é bom para o segurado. O recall é outro problema sério do mercado de seguros.

ConJur — Temos visto muito recall ultimamente. Por quê?
Sérgio Barroso de Mello — Você não tem um produto no Brasil de recall. Você tem os seguros de responsabilidade civil que garantem uma parte de recall. O que nós conseguimos vender é uma cobertura chamada recall. A Susep nessa circular ela fechou ainda mais essa cobertura. Na Europa, que é sempre uma referência, você tem os produtos de responsabilidade civil e de recall específicos. Você chega a ter apólices com 20 ou 30 laudas, muito bem definidas, com várias coberturas, para as diferentes situações: momento de recolhimento do produto, momento de reconstituição e o da reparação do dano. No Brasil, com esse fechamento pela circular 437, com padrões que diminuem a cobertura, os clientes vão procurar as seguradoras estrangeiras.

ConJur — Isso em um momento em que temos muitos casos de recall no Brasil.
Sérgio Barroso de Mello — Exato. No momento que aumenta a demanda por recall a Susep, que é o órgão regulador que deveria dar condições para todo mundo vender recall, diz: “Não. Não quero que você venda recall. Se vender, vende só com essa ou aquela cobertura.” Os clientes vão buscar esse mercado lá fora. Há uma demanda, o mercado precisa e a Susep não deixa o mercado oferecer.

ConJur — Qual a conseqüência disso no mercado?
Sérgio Barroso de Mello — Isso vai ocasionar uma crise, perda de receita, essa pujança toda de empregos, de geração de impostos. A arrecadação do governo cresceu junto com esse faturamento do mercado, que hoje é de R$ 7 bilhões. Também tem a geração de empregos. Antigamente você só tinha 600 empregados no IRB. Hoje, estima-se que você tem mais de 10 mil pessoas trabalhando diretamente com o resseguro. Então, um país tem que ter modelos que possam produzir um desenvolvimento adequado ao mercado. O que a gente vê no nosso mercado é a superintendência em uma visão contrária, na contramão de toda atividade econômica.

ConJur — Isso está relacionado com a política do governo federal?
Sérgio Barroso de Mello — Acredito que não está diretamente relacionada a política do governo. Hoje quem está no comando não está ligado ao PT propriamente dito, o que é perverso também. Quando você pega um órgão absolutamente técnico e coloca representantes da classe política e não da categoria, você pode criar o que está acontecendo, que é falta de compromisso com o negócio. Falta compromisso com a perenidade das regras que seriam suficientes para a gente ter um crescimento com consistência. O que eles estão fazendo é criar regras para fechar esse crescimento, em beneficio, infelizmente, dos países concorrentes.

ConJur — Existe um seguro para agente público no Brasil?
Sérgio Barroso de Mello — É o mesmo do agente privado, é o que a gente chama de D&O, para diretores e gerentes. Esse seguro foi montado para qualquer diretor ou gerente. Mas é claro que todo produto privado sempre é acessível em um primeiro momento pelas empresas privadas e se tornou um produto de grande importância — há casos em que na entrevista para determinados cargos você é questionado se possui seguro D&O. Esse sucesso na área privada começou a ser melhor visualizado pela área pública, os gestores públicos começaram a se preocupar com isso, especialmente gestores de economia mista, empresa pública de capital direto. Esses executivos começaram a buscar uma forma de contratar, alguns poucos até contrataram do seu próprio bolso, outros menores ainda a empresa pagou. Mas há uma discussão dentro do governo se é possível ou não que uma empresa pública pague o prêmio do seguro D&O. É uma discussão que, pelo que eu tenho acompanhado, tende a ser superada no sentido de confirmarem essa possibilidade. E se isto ocorrer a tendência é você ter também, em um curto espaço de tempo, apólices de seguro D&O para todos os gestores públicos, porque ela não faz distinção, o que cobre para o privado cobre para o público também.

ConJur — Não importa o tipo de empresa?
Sérgio Barroso de Mello — É a responsabilidade dele como gestor. Qualquer ato de gestão que não seja doloso, porque se for doloso é má-fé, aí não tem cobertura, mas qualquer ato de gestão que venha a causar um dano à sociedade, a terceiros, etc., ele está coberto.

ConJur — E no caso, por exemplo, de funcionário que causou um acidente de trabalho. Quando a culpa é provada do funcionário. Foi ele que não seguiu uma regra da empresa, a seguradora cobre isso?
Sérgio Barroso de Mello — Cobre e isso acontece muito. Um exemplo: um canteiro de obras em que a empresa oferece material de prevenção de acidentes, mas não fiscaliza. O ato de não fiscalizar foi o que gerou o não uso dos equipamentos.

ConJur — A culpa então é de quem não fiscalizou?
Sérgio Barroso de Mello — Isso. Mas é culpa e não dolo. Quer dizer, o segurado que não fez a fiscalização, ele não fez por quê? Porque ele esqueceu, porque ele não contratou. Ele não fez a fiscalização porque queria que o sujeito morresse. Então, não dá para negar a indenização, está coberto. O que o mercado está fazendo é estabelecer com os seus clientes linhas preventivas para evitar esses acidentes.

ConJur — Como assim?
Sérgio Barroso de Mello — Em situações como essas na área de engenharia há uma obrigação de se manter uma vigilância, uma fiscalização mais efetiva, sobre o uso, por exemplo, dos equipamentos de proteção e que evitam os acidentes. Com isso a gente estava indenizando bastante os acidentes, o que é bom, porque no fundo é o seguro contribuindo para que a população não perca vidas. Isso é muito bom, muito importante.

ConJur — E a questão da arbitragem no seguro, como que ela funciona? Em regra, o segurador pede uma cláusula arbitral?
Sérgio Barroso de Mello — A lei de arbitragem não permite que o segurador faça uma cláusula e obrigue o segurado. A lei de arbitragem exige, para que haja validade em uma cláusula arbitral, que o segurado assine nela com duas testemunhas. Mas poucos fazem. Em geral, apenas alguns grandes têm solicitado nos últimos anos uma cláusula compromissória.

ConJur — Por que apenas grandes clientes?
Sérgio Barroso de Mello — Motivados por dois aspectos fundamentais: o primeiro é que eles sabem que se tiver um litígio na Justiça com a seguradora vai durar no mínimo seis anos. Ninguém está disposto a esperar esse período todo. Uma arbitragem dura um ano, um ano e meio ou dois, no máximo. E segundo, a qualidade da decisão arbitral. Na Justiça comum seu processo é distribuído a um juiz que tem centenas de outros para julgar e que não tem uma estrutura funcional que o ajude a pesquisar. Esses juízes procuram resolver a maioria dos casos por questão de ordem processual de forma que passam ao lado do mérito. Quando tem que examinar o mérito eles demoram, porque é mais fácil enrolar. Ouvir testemunha, juntar documento, fazer a perícia, cada procedimento são meses e meses. Quando termina tudo isso bate aquela preguiça, o processo vai para a banca do juiz e fica lá no gabinete junto com um monte de processos. Ele olha o tamanho do processo e junto um monte de pequenos. Ele vai soltando os pequenos e aquele vai ficando. Quando finalmente pega para examinar, faz de maneira superficial. Não vai estudar cada documento, cada evidência de direito como deveria. Vai dar uma opinião singela no campo do Direito que vai prevalecer. Pode ver que as sentenças são todas assim, nenhuma dela vai dar profundidade no caso.

ConJur — E como funciona na arbitragem?
Sérgio Barroso de Mello — Se duas partes forem fazer uma arbitragem, cada uma vai nomear o seu árbitro. Se os dois não chegarem a um acordo a câmara nomeia um terceiro, porque tem que ser um número ímpar. Os árbitros escolhidos são aqueles profissionais que conhecem o problema que será decidido. Ele vai dialogar com você e com seus advogados na arbitragem em um nível muito mais elevado que o juiz. Em uma audiência arbitral você, advogado, tem que conhecer muito, sobre aquela matéria, porque está diante de um sujeito que conhece muito mais que você. Não adianta você querer usar filigranas, chicana forense, encher de celulose, fazer o que parece uma Disneylândia jurídica. Se você fizer isso na arbitragem é ruim para você e seu cliente.

ConJur — Podemos dizer que é uma decisão mais justa?
Sérgio Barroso de Mello — As relações na arbitragem são muito mais éticas. Não é justo e correto trabalhar, como na justiça, com essa chicana toda. Então temos uma relação mais correta, mais leal, entre advogados, partes e árbitros, mas exige alto nível. A consequência é uma decisão arbitral, normalmente, muito bem fundamentada. Você pode até perder, mas você vai ver que eles foram a fundo em todo caso. Não tem decisão sem qualidade. Você pode até discordar da tese, mas é uma tese que vai ser apresentada a você com uma série de elementos, de evidências, de apoio. Bem diferente de uma sentença.

ConJur — Mas depois desta sentença não há mais contestação.
Sérgio Barroso de Mello — De fato a decisão arbitral é única e ao decidir se fará ou não uma arbitragem é preciso ter consciência disso. A arbitragem é uma decisão só. O máximo que você pode fazer é o chamado embargo, mas ele serve apenas para corrigir erros materiais, o mérito não se altera.

ConJur — A arbitragem deveria ser mais utilizada?
Sérgio Barroso de Mello — Acho, mas é caro. Arbitragem não é um procedimento barato e por isso não é possível popularizar. Para se ter uma relação custo/beneficio boa você tem que partir de um caso de no mínimo de R$ 1 milhão, porque senão você acaba gastando muito entre honorários de advogado, árbitro, câmara e não compensa. Talvez esse seja o calcanhar de Aquiles da arbitragem, ela é cara. Mas tem esse custo porque é feita sob medida e é célere. O fato é que se você tem um caso grande vale a pena não vai ficar 10 anos esperando.

ConJur — Qual é exatamente o papel da Aida?
Sérgio Barroso de Mello — Nosso trabalho é intelectual. Nós fazemos um congresso anual e temos 15 grupos de trabalho temáticos que produzem leis e dão apoio aos legisladores. Nós damos apoio atualmente a quatro projetos, por exemplo, que estão no Congresso Nacional.

ConJur — E quem financia a Aida?
Sérgio Barroso de Mello — A fonte de receita é a anuidade que os advogados pagam e, eventualmente, a receita dos eventos. Uma característica interessante é que praticamente todos advogados que são sócios são concorrentes, porém, como a associação tem um objetivo bem acadêmico, a gente consegue conviver bem.

ConJur — Como é a composição da Aida?
Sérgio Barroso de Mello — A Aida é formada por advogados, juízes, estudantes, magistrados e professores do mundo inteiro. Sua sede fica em Londres, mas ela tem as chamadas sessões nacionais espalhadas por 92 países, entre eles o Brasil. Aqui a sede é em São Paulo e conra com cerca de 480 sócios. O Conselho Mundial da Aida tem 18 membros, eu sou o membro que representa os países de língua latina. A Aida mundial tem dois comitês, um de países latinos e um de países de outros idiomas. Esse comitê chama-se SILA, ele faz um congresso a cada dois anos de todos os países que falam português ou espanhol. A Aida tem ainda o que a gente chama de Arias, que é o Tribunal Arbitral da associação. Há tribunais em Londres, em Paris, em Nova York, em Sidney, na Austrália e no México.

ConJur — E agora tem um Arias ibero americano?
Sérgio Barroso de Mello — Tomamos essa decisão por perceber o aumento de litígios envolvendo seguro e resseguro em países latinos sendo levados para Londres, o que é muito caro, e que a Inglaterra é um pais que não tem a tradição do nosso Direito. Então escolhemos montar um Tribunal Arbitral no Chile por ser geograficamente o melhor ponto e porque é um país que tem uma tradição de arbitragem muito boa.

ConJur — Em caso de empresas, existe alguma tipo de seguro tributário? No caso da empresa receber uma multa do Fisco ou algo nesse sentido?
Sérgio Barroso de Mello — Essa é uma grande demanda do mercado, mas a Susep não está mais permitindo. Havia no seguro de Responsabilidade Civil a cobertura para multa, agora, sem a menor justificativa, a Susep não permite mais. Certamente essa é uma das coberturas que começará a ser comprada no exterior.

ConJur — Falta uma legislação no Brasil especifica para evitar esse tipo de ingerência da Susep?
Sérgio Barroso de Mello — Não. O que falta é o governo transformar a Susep em uma agência. A atividade de seguros é uma atividade com uma participação muito significativa no PIB. Não é mais possível a gente conviver com um órgão regulador que não tenha uma perenidade, e só uma agencia pode ter, porque são constituídas por lei com regras muito fixas. O mercado de seguros precisa disso, para ter mais tranquilidade, segurança jurídica e poder continuar crescendo.

ConJur — O resto não precisa mexer na legislação do seguro.
Sérgio Barroso de Mello — Não. Não há conflitos no Judiciário que não encontrem um amparo no Código Civil, que está em vigor há 10 anos e possui 50 artigos sobre seguros que deixa tudo muito bem definido. O que está ali regula perfeitamente as relações. Nós temos um player de normas que vão ao encontro do que se faz no exterior. São normas que vão ao encontro do direito, do seguro nos países mais desenvolvidos. Essas leis são muito parecidas com o nosso Código Civil, porque são os direitos fundamentais que precisam estar estabelecidos.

ConJur — O senhor falou do crescimento do mercado. Como é que fica para a advocacia a falta de gente que entende dessa área no Brasil?
Sérgio Barroso de Mello — Há 10 anos faltava, agora há muitos advogados que estão envolvidos com a operação. Nós tivemos nos últimos anos vários cursos de extensão, de pós graduação, vários advogados começaram a atuar mais no setor, a treinar, a ir para o exterior, aprender um pouco mais. A própria abertura do mercado de resseguros propiciou uma integração dos advogados brasileiros com os advogados estrangeiros, e isso fez com que houvesse uma troca de experiência. O número de profissionais hoje supre o mercado, não tem nem carência, nem excesso. Há um número razoável de advogados e há mercado para todos.

ConJur — Existe um tipo de seguro para jornalistas, para dano moral em caso de publicações?
Sérgio Barroso de Mello — A evolução dos seguros de Responsabilidade Civil estava indo em uma linha no chamado seguros de Responsabilidade Civil profissional. Hoje você tem seguro de advogados, de engenheiros, de arquitetos, de médicos, e uma das coisas que o mercado estava preparando era seguro para áreas de comunicações, dentre outras áreas. Que tipo de garantia? Basicamente todas as garantias relativas a um dano que você causa a terceiros com as medidas que você venha a adotar, matérias publicadas, etc., desde que não sejam dolosas. Só que a Susep com a circular cortou pela raiz esses produtos. Então, o produto não existe.

ConJur — E é possível eu contratar um seguro estrangeiro?
Sérgio Barroso de Mello — Isso é interessante. A Lei de Seguros diz que é possível você contratar um seguro no exterior quando o Brasil não tem aquele tipo de cobertura. Mas para isso você tem que seguir uma regrinha, de pelo menos buscar em cinco companhias de seguro diferentes um pedido de seguro e eles têm que dizer que não vendem o produto. Se você conseguir isso aí você pode contratar de fora. Eu não tenho dúvida, por exemplo, na área de comunicação essa é uma demanda que a cada momento aumenta. Esse aumento deveria resultar no produto no mercado, mas o mercado não consegue ter produto porque o órgão regulador não permite. Com isso, contratar no exterior é a saída.

ConJur — E no caso de advogado é a mesma coisa?
Sérgio Barroso de Mello — Advogado não. A gente já tinha um produto especifico para profissionais liberais que englobava advogado, médico, engenheiro, arquiteto... Você tem isso disponível no mercado. Mas são coberturas que tendem a se reduzir por conta dessas normas nefastas. Eu não sei nem como será nas renovações, porque muitas coberturas não vão mais poder ser concedidas como antes, como as multas.


Tadeu Rover é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 15 de dezembro de 2013

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...