terça-feira, 7 de maio de 2013

O STJ APLICA O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PARA PESCA ILEGAL A RÉU FLAGRADO COM SEIS PEIXES

A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) aplicou o princípio da insignificância para absolver um réu acusado de crime ambiental. Denunciado por pescar ilegalmente em período defeso às margens do rio Uruguai, em Garruchos (RS), no dia 6 de outubro de 2006, ele foi condenado a um ano de detenção, em regime aberto, substituída por pena restritiva de direitos.

O réu foi flagrado com seis peixes, devolvidos com vida ao rio. Por maioria, a Quinta Turma entendeu que a conduta não provocou lesão ao bem jurídico tutelado pela lei ambiental. O ministro Jorge Mussi, autor do voto vencedor, argumentou que a apreensão de seis peixes, devolvidos ao rio com vida, não afetou o equilíbrio ecológico.

A decisão da Turma foi proferida em agravo regimental interposto contra decisão que, inicialmente, havia negado seguimento a recurso especial do Ministério Público Federal.

Ao julgar apelação do réu, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) manteve a condenação, com o argumento de que o princípio da insignificância não se aplicaria a delito ambiental.

O TRF4 apontou jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) no sentido de que não se aplica esse princípio em casos de pesca em local ou período proibido ou quando da captura de espécies ameaçadas de extinção.

Atipicidade

O ministro Jorge Mussi, por sua vez, apresentou outro precedente do STF, em que um pescador flagrado com 12 camarões foi absolvido da infração penal pela atipicidade da conduta. Citou também jurisprudência do próprio STJ, cujas Turmas de direito penal têm admitido o princípio da insignificância nos casos em que fica demonstrada a ínfima ofensa ao bem ambiental legalmente protegido.

O Ministério Público Federal deu parecer favorável à aplicação do princípio da insignificância.

Segundo Jorge Mussi, embora as leis ambientais visem proteger bem jurídico de “indiscutível valor social”, o direito penal deve intervir somente nos casos em que a conduta ocasionar lesão jurídica, devendo ser reconhecida a atipicidade de perturbações jurídicas mínimas ou leves.

“A tipicidade penal não corresponde a mero exercício de adequação do fato concreto à norma abstrata, pois além da correspondência formal, para a sua configuração, é necessária análise materialmente valorativa das circunstâncias do caso concreto, a fim de se constatar a ocorrência de lesão grave e penalmente relevante do bem jurídico tutelado”, defendeu o ministro.

Embora a conduta do réu atenda tanto à tipicidade formal quanto à subjetiva, na medida em que comprovado o dolo, não se reconhece a tipicidade material com base na relevância penal da conduta, acrescentou.
Fonte: STJ
A notícia ao lado refere-se
aos seguintes processos: 

segunda-feira, 6 de maio de 2013

PEDESTRES E CICLISTAS TAMBÉM SÃO RESPONSÁVEIS POR ACIDENTE


A análise que aqui se faz não tem por objetivo transferir a responsabilidade dos condutores de veículos, inclusive náuticos, para os pedestres e ciclistas, estes, na maioria das vezes, realmente vítimas e pessoas economicamente mais necessitadas. Sem dúvida, são os motoristas os causadores dos danos patrimoniais e pessoais e, por isso, a jurisprudência obriga-os a indenizar.

No entanto, é estranho que, mesmo em índices absolutamente menores, pedestres e ciclistas não sejam nunca responsabilizados, fato que se evidencia pela ausência de precedentes judiciais. Quais os motivos? Façamos uma análise, sob o foco administrativo e civil.
O Código Brasileiro de Trânsito (CBT) é atualizado e rigoroso. Proíbe, com razão, que se guie falando ao telefone celular, exceder-se na velocidade ou dirigir após tomar um copo de cerveja. Policiais e filmadoras estão sempre a postos para registrar as faltas e não abrem espaço à defesa, obrigando os infratores a pagar multas severas ou a passar uma boa temporada usando, involuntariamente, o transporte coletivo ou se dedicando a caminhadas.
Do ponto de vista da reparação civil, face ao contido nos artigos 186 e 927 do Código Civil, raramente, um dano praticado por um motorista passa imune a um pedido de indenização. Os advogados estão alertas, as vítimas mais conscientes, e, quando não dispõe de recursos, são bem orientadas pelos Defensores Públicos. Condenações a indenizar são rotina nas Varas e Juizados Especiais Cíveis.
Mas, invertendo a ordem natural das coisas, e se a culpa for de um pedestre? Ou de um ciclista?
Do ponto de vista administrativo, o CTB, no artigo 254, veda ao pedestre determinadas condutas, como desobedecer à sinalização de trânsito específica. Por exemplo, atravessar a rua com o sinal vermelho. A infração é considerada leve. Já o artigo 255 considera infração, de natureza média, dirigir bicicleta em passeios, ou seja, parte das calçadas ou das pistas de rolamento destinadas a pedestres e/ou ciclistas, onde a circulação não seja permitida.
Sob a ótica civil, são indenizáveis quaisquer danos causados por pedestres ou ciclistas (artigo 927 do CC), desde que tenham praticado ato ilícito. Mas, a jurisprudência, tão rica em ações causados por automobilistas, não registra julgamentos oriundos de multas administrativas ou de ações indenizatórias por dano causados por culpa de pedestres e ciclistas.
Os julgados em que aparecem pedestres são os resultantes de ações movidas por eles contra motoristas. Nestas hipóteses, como ensina Rui Stoco, “quando se verifica a culpa exclusiva da vítima,tollitur questio: inocorre indenização. Inocorre igualmente, se a concorrência de culpas do agente e da vítima chegam a ponto de, compensando-se, anularem totalmente a imputabilidade do dano” (Tratado de Responsabilidade Civil: doutrina e jurisprudência, 7ª edição, RT, página 185).
Por exemplo, se a vítima atravessa a rua em local impróprio e inseguro. Como decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo, “impõe-se a improcedência do pedido indenizatório, tendo em vista a culpa exclusiva da vítima no atropelamento, que empreendeu a travessia da via quando havia sinalização de passagem livre para os veículos.” (APL 9185065-71.2007.8.26 SP, relator Vanderci Alves, julgado em 29 de maio de 2012).
Nos acidentes ocorridos em rodovias a jurisprudência mostra-se mais rigorosa, invertendo muitas vezes o ônus da prova. Cita-se, a título de exemplo, o acórdão do TJ-PR em que afirma: “vítima embriagada que intenta atravessar uma avenida/rodovia de intenso movimento, desprezando a faixa de pedestre e uma passarela existente nas proximidades, age com manifesta imprudência, de modo a afastar a culpa do motorista do veículo” (Processo 8754134 PR 875413-, relator Nilson Mizuta, julgado em 26 de abril de 2012).
A jurisprudência revela também a existência de casos de culpa recíproca, ou seja, do atropelador e do atropelado. Nestes casos, a reparação divide-se pela metade. Vejamos duas decisões do TJ-SP:
Indenizatória. Atropelamento. R. sentença de improcedência. Apelo só da autora vencida. Culpa recíproca reconhecida. Danos materiais cortados pela metade, dos comprovados, e danos morais de 10 salários mínimos. Apelação parcialmente provida, com sucumbência recíproca. Embargos declaratórios opostos pela demandada. Arguição de obscuridade e contradição. Embargos rejeitados. (ED 9244961112008826 SP, rel. Campos Petroni, j. 17.7.2012).
INDENIZAÇÃO - Danos morais e materiais - Atropelamento de ciclista em rodovia - Velocidade incompatível com o local - Tráfego de bicicleta, por sua vez, em desacordo com as normas de trânsito - Culpa recíproca reconhecida - Procedência parcial da ação - Recurso provido em parte.( APL 9129851032004826 SP, rel. Souza Lima, j. 28.9.2011).
A pesquisa por acidentes praticados por ciclistas revela a quase inexistência de registros. Uma raranotícia é a de que no município de Toledo (PR), um menor de 13 anos atropelou uma mulher, causando-lhe lesões corporais de natureza leve. Este fato poderia ensejar ação indenizatória, figurando o pai como responsável civil (artigo 932, inciso I, CC).
Porém, infrações administrativas praticadas por ciclistas são rotineiras. Por exemplo, dirigir contra a mão de direção. No entanto, não se tem notícias de que sejam objeto de lavratura de auto de infração e, menos ainda, que existam precedentes das Câmaras de Direito Público dos Tribunais de Justiça.
Consultas ao site do TJ-RS, sabidamente dos mais produtivos, sob os temas “multa de trânsito aplicada a ciclista” e “multa de trânsito aplicada a ciclista”, revelou a inexistência de precedentes. Aí a prova de que os dispositivos do CTB são de ineficiência absoluta.
Mas, então, se infrações existem, o que as torna apenas uma norma do “dever ser” e não da realidade? Não há uma resposta, mas várias. A primeira delas é a falta de consciência do dever dos pedestres e ciclistas. A segunda é a ausência de uma política púbica por parte das autoridades de trânsito, a fim de tornar a norma efetiva. A terceira é a mais complexa: a lavratura do auto de infração poderia levar o agente do trânsito à desmoralização. É que o autuado, na tensa relação pessoal, poderia não fornecer seus dados, sair andando ou até mesmo reagir com violência.
Seja qual for a situação, o Estado revela-se despreparado para enfrentá-la. E por isso permanece inerte, como se o fato não existisse. Vivemos tempos de responsabilização de tudo e de todos, dos administradores públicos aos profissionais liberais. Se assim é, nada justifica que uma parcela da sociedade permaneça imune à ação do Poder Público, como vem ocorrendo.
Portanto, e encerrando, se a evolução do nosso convívio no trânsito depende de educação, que é o mais importante, e de repressão, via responsabilização administrativa e civil, é chegado o tempo de pedestres e ciclistas também assumirem o seu papel na busca da segurança.
Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF 4ª Região, onde foi presidente, e professor doutor de Direito Ambiental da PUC-PR.
Revista Consultor Jurídico, 5 de maio de 2013

ENTREVISTA COM NAUM ROTENBERG, SÓCIO DO ESCRITÓRIO DEMAREST E ALMEIDA ADVOGADOS


Naum Rotenberg - 03/05/2013 [Spacca]
Ao comemorar seu 65º ano de vida no último dia 17 de abril, o ainda Demarest e Almeida Advogados colocava no disputado palco da Sala São Paulo, templo da música clássica, duas gerações de artistas. A cantora Maria Rita, ícone pop da MPB contemporânea, empolgava o público ao interpretar canções que fizeram sucesso na voz de sua mãe, Elis Regina, quando chamou à ribalta Gilberto Gil, surpreendendo o seleto público de 1,2 mil convidados. Do evento, a banca saiu mais moderna do que entrou, com novos nome e logomarca. O agora Demarest Advogados adotou como símbolo, usando suas iniciais, as circunferências cruzadas que remetem à lemniscata (um oito deitado), o símbolo do infinito. 

O sócio Naum Rotenberg está além das metáforas planejadas pelo escritório, sendo o exemplo pronto da imagem da banca. Primeiro advogado contratado pelos fundadores Kenneth Elmer Demarest e João Batista Pereira de Almeida Filho há mais de seis décadas, ele ainda circula pelos corredores do escritório como um garoto. Os passos são firmes e os movimentos, ágeis, mesmo que o "garoto" tenha 86 anos. 
Desde 1965, quando a Ordem dos Advogados do Brasil passou a cadastrar as sociedades de advogados, Rotenberg tem seu nome grafado no escritório ativo de registro mais longevo de São Paulo, o de número 9: Almeida, Rotenberg e Boscoli Sociedade de Advogados — nome oficial do Demarest. Mesmo aposentado, Rotenberg não admite parar de trabalhar e ainda opina em casos comerciais e cíveis na sua especialidade: arbitragem e contencioso. "Hoje só atrapalho os mais jovens", brinca. 
Não é verdade, como faz questão de ressaltar Mário Nogueira, sócio-diretor da banca. "Ele tem uma série de funções institucionais importantes. É uma referência para todo mundo, inclusive para os sócios", conta. "Quando a coisa aperta, quando precisamos de alguém que seja acima de qualquer suspeita, recorremos a ele. É uma pessoa cuja opinião é indiscutível. Tudo o que fazemos, comunicamos a ele antes. Também é uma espécie de pacificador."
É com esse respaldo que Rotenberg, em entrevista concedida à revista Consultor Jurídico na sede da banca, em São Paulo, comenta sua participação nas últimas saídas de sócios importantes, sem, no entanto, se referir especificamente a nenhum. Rogério Lessa, antigo CEO da firma, e mais recentemente Geraldo Baraldi e um time de 40 advogados da área trabalhista são exemplos de divórcios marcantes. "Eu tento intervir quando acho que o caso merece a intervenção", limita-se a responder. Ele acredita que a tendência é aumentar a concorrência, mas não sabe dizer se a estratégia de criar boutiques é interessante. "O tempo é que vai definir se eles vão ter continuidade ou se vão ter a vida um pouco mais curta do que se imagina", diz. 
Testemunha e cúmplice do desenvolvimento de um novo jeito de advogar, Rotenberg tem na ponta da língua o que diferenciou o escritório de seus contemporâneos. "O que o Demarest queria, como advogado americano, e o Batista, não era ter o escritório nos moldes tradicionais brasileiros. Eles queriam um escritório institucionalizado. É um escritório-empresa, uma pessoa jurídica. A filosofia deles era que o cliente que entrasse no escritório encontrasse advogado para qualquer tipo de problema jurídico, e não ouvisse: 'olha, seu caso é trabalhista, procure outro escritório'". Embora outro escritório cinco anos mais velho já tivesse vislumbrado o mesmo foco no país — o Pinheiro Neto Advogados —, também se espelhando na advocacia praticada no exterior, a ideia ainda era uma novidade, e fazê-la funcionar, um desafio.
Formado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em 1951, Rotenberg chegou ao Demarest por meio de um anúncio de "procura-se", no jornal. Ao ganhar a confiança dos sócios, foi ele quem passou a fazer as contratações. Uma das que mais se orgulha é a de Orlando Di Giacomo, fundador e presidente do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa) e uma sumidade na advocacia paulista. Morto em setembro do ano passado aos 72 anos, Di Giacomo era funcionário da Justiça quando foi abordado por Rotenberg. "Ele me pareceu adequado. Tinha experiência, podia atender a um cliente e sabia acompanhar um processo", conta.
Com três filhos, seis netos e quatro bisnetos, Naum Rotenberg foi, por duas vezes, presidente da Hebraica, associação judia paulista que tem 60 anos — cargo que o filho Arthur também já exerceu. Arthur seguiu outras pegadas do pai: formou-se advogado e também fez parte da equipe do Demarest por dez anos, até abrir o próprio escritório. Foi o único a optar pela profissão. 
Leia a entrevista:
ConJur — Como era a vida do jovem advogado há 60 anos?
Naum Rotenberg — A maioria dos jovens não se dirigia para o curso jurídico. Não era como hoje, em que há mais faculdades de Direito que jardins de infância — o que pediu uma atitude do Ministério da Educação em fechar a torneia de novos cursos. Naquela época, os jovens se dirigiam para os cursos de Medicina e Engenharia, só depois vinha o Direito. Faculdade de Direito, só a da USP. Depois veio a PUC-SP e, depois, o Mackenzie. Hoje, há uma enxurrada de faculdades. Além disso, os estudantes entravam na faculdade um pouco mais velhos. Hoje, tem estudante que se forma com 22, 23 anos. Naquela época, se formava com 25.

ConJur — Mesmo ainda sem ter terminado o curso de Direito na USP, o senhor já trabalhava na advocacia, no departamento jurídico do Centro Acadêmico Onze de Agosto. Como foi a experiência?
Naum Rotenberg — Naquela época, as atividades do centro estavam começando. Éramos estudantes do quarto e quinto ano de Direito. Nossa função era atender pessoas que não podiam pagar. Aprendíamos advocacia trabalhando para pessoas sem recursos para contratar um advogado. Fui um dos primeiros presidentes do departamento jurídico do centro, o cargo era de um ano.

ConJur — Qual foi seu primeiro emprego na profissão?
Naum Rotenberg — Comecei a trabalhar quando estava no terceiro ano da faculdade. Fui estagiário na Promotoria, auxiliando o promotor Paulo Teixeira de Camargo. Depois, fui para um escritório de advocacia. Lembro que disse ao camarada que me contratava: “Olha, eu não quero ganhar. Eu quero só que você me pague a condução e o almoço”. Porque o que eu queria era estudar.

ConJur — A família ajudava?
Naum Rotenberg — Meus pais eram comerciantes. Minha família era muito pequena: meu pai, minha mãe, eu e meu irmão. Tinha um tio, também. Todos eram comerciantes. Meu pai tinha uma loja de móveis. Depois teve bar, restaurante... Moramos no Bixiga e no Bom Retiro. Eu morava no Bixiga e ia a pé para a faculdade para economizar o dinheiro da condução.

ConJur — Como foi a vida acadêmica?
Naum Rotenberg — Eu era um aluno razoável. Fiz o ginásio normal nos Campos Elíseos, depois o curso primário Rui Barbosa, no Brás, na Rua do Hipódromo. Depois, não sei como, fui parar no colégio Rio Branco. Depois fui para a faculdade.

ConJur — E o primeiro escritório?
Naum Rotenberg — Naquela época, era tudo no centro da cidade. Estou falando de 1947, 1948, por aí. Fui a um escritório para ser estagiário, aprender. Eles tinham que me pagar o almoço e a condução. Era qualquer coisa simbólica. O camarada, cujo nome eu não vou citar, era sozinho. Era um bom advogado. Só que não me pagava, nem o valor simbólico. Mas me dava muito serviço. Eu ia muito ao fórum. Realmente estava aprendendo muito. Esse advogado tinha uma peculiaridade interessante. Ele tinha duas famílias. Tinha filhos com as duas mulheres. E uma não sabia da outra. Eu acompanhava as peripécias dele. Era moleque, me divertia. Lembro de uma vez em que ele estava com uma das mulheres, quando chegou a outra. Ele disse: “Fique com ela na outra sala e não deixe ela passar para essa sala aqui. Se as duas se encontrarem, eu te ponho na rua!” Então eu fiquei lá, falando com a outra mulher. No fim, a outra foi embora e ele veio para a sala em que estávamos. Certo dia, perdi a paciência e falei: “Vou embora! O senhor não me paga nada, nem o almoço!” Ele respondeu: “Naum, o que é que você quer? Você está aprendendo aqui, está indo bem, está conhecendo muita gente no fórum, está aproveitando. E além do mais, você está se divertindo com as minhas mulheres!” (risos) “E vem aqui discutir comigo almoço e condução?”

ConJur — Como foi sua contratação no Demarest?
Naum Rotenberg — Meu pai me mostrou um anúncio no Estadão: “Procura-se advogado”. Nem dizia qual era o escritório, só pedia que o interessado mandasse uma carta. Eu mandei. Como referências, mencionei o promotor Paulo Teixeira de Camargo. Eu já não fazia nada, tinha me formado e estava desempregado. Comecei a trabalhar em seguida.

ConJur — E como foi no início do Demarest?
Naum Rotenberg — Éramos apenas nós três: o doutor Demarest, o doutor João Batista Pereira de Almeida e eu. Alguns advogados de fora ajudavam em algumas coisas, mas eles não eram do escritório. Um deles era o Martin Francisco Ribeiro de Andrade Filho, tataraneto do patriarca da Independência. Ele estudava para ser juiz. Aí, quando eu fui contratado, aquela turminha que ajudava parou. O Batista não ia ao fórum, quem ia era eu. O que foi ótimo, porque eu fazia tudo: cível, trabalhista, criminal... O que vinha, pá! Bola pra frente.

ConJur — O Demarest teve ícones da advocacia em sua equipe. O senhor participava das contratações?
Naum Rotenberg — Claro. Contratei vários que se tornaram sócios do escritório. O Orlando [Di Giacomo] é um deles. Na época, eu precisava de advogado para a área comercial, cível, e ele me pareceu adequado. Tinha experiência, podia atender a um cliente e sabia acompanhar um processo. Eu estava no fórum quando lhe disse: “Orlando, por que você não vai trabalhar no Demarest? Vai ser funcionário público, servidor aqui?” Ele veio. Falei para ele: “Faça uma carta dizendo que quer trabalhar conosco”. Eu ainda tenho essa carta. Foi uma ótima contratação. Da mesma forma que contratei o Arion [Jouacyr Arion Consentino], por exemplo. Ele trabalhava na Fazenda, naquela época, e tinha experiência com os processos dessa área federal. Eu o tirei do fórum e o trouxe para o escritório.

ConJur — O fórum era o celeiro de talentos?
Naum Rotenberg — Sim, porque você sabe que, no começo, eu punha a “barriga no balcão”. Ia ao fórum acompanhar os processos. Fazia tudo: civil, trabalhista, criminal, família, qualquer coisa. Há sessenta e tantos anos não tinha esse negócio de especialização. Não tinha leis como hoje, sobre abuso do poder econômico ou Direito Ambiental. Quando entrei no escritório, apesar de haver uma filosofia diferente que estava em consolidação, eu como único advogado contratado, além do Demarest e do Batista, fazia tudo. O Batista e o Demarest, felizmente, tinham muita confiança em mim. Nunca precisei pedir aumento. Sempre vieram espontaneamente. Às vezes, mais do que eu esperava. Os dois transferiram para mim muitas das responsabilidades administrativas do escritório. E eu fazia as contratações e fixava ordenados. É verdade que eu falava com o Batista e com o Demarest, mas eu é que contratava os advogados e as secretárias.

ConJur — Que filosofia estava sendo implantada no Demarest quando o senhor chegou?
Naum Rotenberg — O que o Demarest queria, como advogado americano, e o Batista, não era ter o escritório nos moldes tradicionais brasileiros. Nada disso. Não queriam um escritório em que o advogado é o nome, ele é tudo. E se ele morrer? Acaba o escritório? Não. Eles queriam um escritório institucionalizado. Um escritório para sempre. Tem gente que não gosta muito de usar essa expressão, mas tem que usar. É um escritório-empresa, uma pessoa jurídica. A filosofia deles era que o cliente que entrasse no escritório encontrasse advogado para qualquer tipo de problema jurídico, e não ouvisse: “olha, seu caso é trabalhista, procure outro escritório”. Não. Tem tudo aqui dentro. É uma pessoa jurídica que atende a clientela em todo e qualquer problema jurídico que ela tenha. Não precisa sair daqui.

ConJur — Houve alguma influência das ideias trazidas por José Martins Pinheiro Neto ao fundar o Pinheiro Neto Advogados, anos antes?
Naum Rotenberg — O Pinheiro Neto e o Demarest são mais ou menos da mesma época. Dizer quem foi o primeiro ou o segundo é difícil. Eu diria que foi uma coincidência de momento. Ambos têm a mesma mentalidade. Nós somos pessoas jurídicas e o nosso escritório não existe para nós, existe como instituição, como pessoa jurídica, para servir hoje, amanhã e sempre, nos moldes internacionais.

ConJur — Quais foram os primeiros clientes?
Naum Rotenberg — O escritório era pequeninho, lá na rua XV de Novembro. Eram quatro ou cinco salas, com divisórias de papelão. No centro ficavam duas secretárias e a recepcionista. Eles tiveram muitas dificuldades no início. Quando fui contratado, o escritório estava prestes a não poder continuar, porque não tinha clientela. Mas aí apareceu um caso famoso, um choque de navios no Porto de Santos. O Demarest e o Batista foram contratados pela empresa prejudicada, que ganhou do seguro uma quantia apreciável. E os honorários garantiram o escritório por algum tempo.

ConJur — Como era advogar sem computador?
Naum Rotenberg — Havia livros de jurisprudência. Além disso, valia a pena ir ao fórum para tomar conhecimento, ver como foram peticionadas outras causas, como decidiu o juiz, você tinha de se socorrer de tudo. Mas a petição, você mesmo tinha que fazer. Não tinha de quem copiar.

ConJur — As decisões judiciais demoravam como hoje?
Naum Rotenberg — Não. Hoje é pior. Sempre demorou, só que hoje é pior.

ConJur — Como era o relacionamento com o cliente?
Naum Rotenberg — Nós éramos, eu e o Batista, mais do que advogados. Éramos amigos dos clientes. Enchia a paciência. Era jantar na casa deles, jantar na nossa casa, mas era um relacionamento muito efetivo e que dava muito resultado. E o campeão — o que nos Estados Unidos chamam de rainmaker — em conseguir clientes chamava-se Demarest. Era uma coisa inacreditável. Ele dizia: “Amanhã vou almoçar com fulano de tal, presidente da empresa tal, um americano. Vamos ver”. E o que ele trazia de cliente para o escritório dessa forma era impressionante. O Batista também. Só que o Demarest era o campeão. Era uma coisa inacreditável. Era uma pessoa muito inteligente e cativante. Atraía o cliente, era muito simpático, tinha pinta de ator de cinema. Às vezes, saía bêbado das reuniões. Uma vez fui chamado para carregar ele e o cliente.

ConJur — Que tipo de envolvimento o advogado deve ter com o cliente?
Naum Rotenberg — É difícil generalizar porque cada pessoa tem a sua formação. Eu, pessoalmente, vivia os problemas do cliente. Até hoje, no pouco em que posso me envolver, assumo o problema da parte que eu represento. E acredito que a maior parte assim faz. Você não objetiva só seu resultado pessoal, mas a satisfação de atender bem a quem você representa. Isso foi uma coisa no escritório que não se impôs, era uma filosofia natural. Não precisava nem falar, porque era um sentimento generalizado. Os profissionais do escritório vibravam, como hoje vibram, pelo sucesso do cliente. Quer dizer, você tem que se incorporar àquilo que o cliente deseja. Tem que ser parte, e não apenas advogado. Não pode dizer: “O resultado disso não me importa, é problema do meu cliente”. Não é assim. O resultado desse processo me interessa porque se eu não for bem sucedido, eu é que vou sentir que perdi, vai me machucar. Então, eu defendo o cliente, quero para o cliente aquilo que quero para mim. Ou, como eu costumo dizer numa entidade sem fins lucrativos que presidi, é mais importante você cuidar dos interesses de quem confia no seu trabalho do que das suas próprias coisas. Então, se eu puder dizer a você que eu fico mais feliz em ver um cliente bem sucedido do que as minhas coisas caminharem mais ordenadamente, é verdade. Eu quero um cliente bem sucedido.

ConJur — Captar clientes é uma tarefa a que nem todo advogado consegue se adaptar. Kenneth Demarest trouxe essa visão de negócio?
Naum Rotenberg — Claro. Ele procurava os clientes. E um trazia outro. Como consequência, começamos a ter uma série de clientes norte-americanos, às vezes até de alguma outra nacionalidade. Uma das formas pelas quais a gente mantinha o cliente era ter relacionamento pessoal, sempre além do profissional. O que eu recebi de cliente em casa para jantar... E o Batista, então? Hoje em dia, as coisas mudaram bastante. Mas naquela época era importante. E o que era também muito importante é que, pela proximidade que você obtinha com o cliente, acabava de tal forma ganhando a confiança dele que ele te convidava para ser diretor da empresa. Eu cheguei a ser diretor, no Brasil, de mais de 30 empresas estrangeiras. O Batista, mais de 50. Fui diretor da Kibon e da Goodyear, só para lembrar algumas. Como diretor da Kibon, fui presidente do Sindicato dos Congelados e Subcongelados da Indústria. Representava a indústria de sorvetes da Federação das Indústrias. Éramos considerados diretores, sem designação específica, cuja função era representar o acionista, o cotista do exterior na assembleia de sócios. Quando acontecia um problema, a gente já estava lá. Isso durou muitos anos. Era uma maneira de você atrair e manter o cliente, porque eles gostavam.

ConJur — Como os dois sócios fundadores se conheceram?
Naum Rotenberg — O Demarest procurou o Batista. Ele queria constituir um escritório aqui, nos moldes americanos. O Batista era diretor jurídico da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo e o Demarest apostou nele por ele conhecer muita gente do setor. A firma não ia ser Demarest e Almeida, ia ser Demarest, Almeida e Garcia. Manoel Garcia Filho era advogado, diretor da Goodyear. Tanto é que o endereço telegráfico do escritório era “Dealgar”, de "Demarest, Almeida, Garcia". Só que na hora que o escritório alugou a sala e começou, o Garcia desistiu.

ConJur — Como foi aprender com advogados tão experientes?
Naum Rotenberg — Quando comecei, o Batista via tudo o que eu fazia. Lembro do primeiro trabalho que eu fiz. Ele falou: “Naum, escreve um pouco mais, você não escreveu nada”, porque sempre fui muito conciso. Eu respondi: “Pois é, mas eu disse tudo”. Mas ele mandava fundamentar mais. Hoje, ainda existe esse controle de qualidade no escritório. O advogado responsável tem que olhar tudo o que se está fazendo.

ConJur — Qual a diferença entre o advogado de hoje e o advogado de antigamente?
Naum Rotenberg — Houve evolução, sem dúvida. O advogado progrediu e muito, não só no Direito, mas também no exercício da profissão. Hoje em dia, com a tecnologia e com os ensinamentos que a tecnologia nos traz, o advogado, como qualquer profissional, recebe uma gama de conhecimentos que o colocam em uma situação muito mais vantajosa do que há 50 anos. Eu poderia ser um grande jurista há 50 anos. Só que não dá, hoje, para conhecer tudo. Naquela época, não havia lei de abuso econômico, Direito Ambiental, biotecnologia. Hoje, para você ser um bom advogado, tem que também entender da tecnologia computadorizada. Se não, você não trabalha mais.

ConJur — Qual a sua recomendação para quem está começando agora na profissão?Naum Rotenberg — A primeira coisa é pegar um avião e estudar lá fora. O advogado precisa se aprimorar. E a melhor maneira de fazer isso é fica um ou dois anos no exterior. Quando ele volta para cá, está valendo mais.
Alessandro Cristo é editor da revista Consultor Jurídico
Revista Consultor Jurídico, 5 de maio de 2013

sexta-feira, 3 de maio de 2013

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS DECIDE QUE FURTO EM ESTACIONAMENTO GERA INDENIZAÇÃO POR DANOS



O furto de pertences de dentro do carro de cliente que estava no estacionamento de supermercado justifica o pagamento de indenização por danos morais e materiais pela empresa. Com esse entendimento, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais deu provimento a apelação cível movida contra o Extra Hipermercados.
O incidente ocorreu no Extra de Uberlândia (MG). Um servidor público federal afirmou que, em 5 de fevereiro de 2009, seu carro foi arrombado e foram furtados um notebook, um forno micro-ondas, o estepe e documentos pessoais. A companhia, por outro lado, disse que o autor não comprovou a ocorrência do furto e nem que seu carro estava estacionado no pátio, pois não juntou no processo os tickets que comprovariam a entrada e a saída do veículo.
O juiz da 7ª Vara Cível de Uberlândia acolheu somente o pedido de indenização por danos materiais. Segundo o juiz, o arrombamento ocorrido no estacionamento do hipermercado foi “comprovado documentalmente e corroborado pelos depoimentos testemunhais”.
No julgamento do recurso, porém, o desembargador relator, Marcos Lincoln, da 11ª Câmara Cível do TJ-MG, confirmou a condenação da empresa ao ressarcimento dos danos materiais, mas acolheu também o pedido de indenização por danos morais.
“Diante do desconforto, constrangimento, aborrecimento, mal-estar e abalo psicológico que um furto acarreta, especialmente em se tratando de bens de elevado valor econômico como notebook — usado na atividade profissional do autor —, estepe e micro-ondas, é patente o dano moral indenizável”, afirmou o relator.
Dessa forma, o relator fixou a indenização por danos morais em R$ 6 mil, sendo acompanhado pelos desembargadores Wanderley Pasiva e Selma Marques. O hipermercado terá ainda de pagar R$ 3.562 pelos danos materiais. Com informações da Assessoria de Imprensa do TJ-MG.
Apelação Cível 1.0702.11.011051-8/001
Revista Consultor Jurídico, 20 de agosto de 2012

ESTACIONAMENTO PRIVADO SOMENTE RESPONDE PELA GUARDA DO VEÍCULO SEGUNDO ENTENDIMENTO DO STJ



A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu que não é possível responsabilizar empresa de estacionamento por assalto à mão armada sofrido em seu pátio por cliente que teve pertences roubados, mas preservou o veículo.
Ao se dirigir a uma agência bancária para sacar R$ 3 mil, o cliente utilizou estacionamento que, segundo ele, era destinado a usuários do banco. Quando retornou, já dentro do estacionamento, foi assaltado. Foram levados seus óculos de sol, o relógio de pulso e o dinheiro sacado.
Mesmo sustentando que o estacionamento era oferecido pela agência bancária, o cliente ajuizou ação atribuindo a responsabilidade pelo prejuízo sofrido exclusivamente à administradora do estacionamento.
O convênio entre os estabelecimentos, suscitado pelo usuário desde a apelação, não foi reconhecido pelo tribunal de segunda instância, situação que impede a análise do fato pelo STJ, pois a Súmula 7 do tribunal não permite o reexame de provas no julgamento de recurso especial.
Além disso, o acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo manteve a posição da primeira instância, declarando que se tratava de estacionamento privado, independente e desvinculado da agência bancária. Também confirmou a tese de que não houve defeito na prestação do serviço, já que a obrigação da empresa se restringia à guarda de veículos.
O cliente recorreu ao STJ alegando violação aos artigos 14 do Código de Processo Civil (CPC) e 927, parágrafo único, do Código Civil, e ainda divergência jurisprudencial. Contudo, a 3ª Turma não observou as violações mencionadas.
Como não foi reconhecido vínculo entre as empresas, o que afasta a responsabilidade solidária, “o estacionamento se responsabiliza apenas pela guarda do veículo, não sendo razoável lhe impor o dever de garantir a segurança do usuário, sobretudo quando este realiza operação sabidamente de risco, consistente no saque de valores em agência bancária”, declarou Andrighi. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.
REsp 1.232.795
Revista Consultor Jurídico, 3 de maio de 2013

quinta-feira, 2 de maio de 2013

O "SENTIRE" DO PROFESSOR E O VALOR DA PALAVRA "NÃO"



A introdução da diferença
O grande filósofo Ernildo Stein tem uma frase genial sobre a introdução de qualquer discussão (principalmente se esta vir acompanhada de uma cerveja Paulaner, privilégio que disfruto com meu amigo aos domingos no final de tarde): ou se introduz a diferença ou se discute sobre o idêntico, sobre o mesmo. Pois bem.  Assim, tanto no Direito como nos meios de comunicação, tem-se que as discussões acabam sobre o idêntico, sem a identificação da diferença. Quando “todos os gatos são pardos”, perde-se o sentido da diferença. Veja-se, por exemplo, o episódio da Lei dos Juizados Especiais Criminais (mormente a que aumentou o teto da competência). Se eu posso delinquir de 60 maneiras diferentes e ter a mesma punição (cesta básica), é porque a própria sociedade não se importa com os diferentes modos de delinquir. Se uma criança pratica várias “malcriações” e é castigada do mesmo modo, poderá escolher as “malcriações” mais atrevidas, pois não? E assim por diante. Assim também o é quando se discute temas como “novos” direitos das empregadas domésticas. Também quando se discute relações entre poderes. Logo quer se falar em “crise”, golpes institucionais. Nada disso. Nossa democracia é madura o suficiente para que possamos discutir desde a PEC 33 até a 37, assim como tantos outros assuntos. Só temos que saber introduzir, sempre, a diferença, para não discutirmos o mesmo ou o idêntico.

O Professor e a “pólvora”
Os alunos me contaram que, dia destes, assistiram a uma conferência de um Professor craque de cursinho. O assunto devia ser algo relacionado ao “novo juiz”. Dizia o professor que, nestes “novos tempos”, o juiz já não precisa buscar na lei a solução. Agora ele pode atuar com a sua ética. Com seus valores. Inclusive utilizou um exemplo de Direito do Trabalho, algo como “vejo um contrato e não importa o que está escrito; eu sei que o sujeito foi explorado; o juiz sente isso; sabe isso”. Com base do “princípio da realidade”. Pois é. Deve ser a tal da “busca da verdade real”, certo? Deve ser porque esta é a era dos “princípios” e dos “valores”... Pensei comigo: que coisa isso, não? Eis ai um bom exemplo entre a diferença e o mesmo. O que seria democracia para o referido professor? Provavelmente aquilo que “sente que é”. Afinal, sentença vem de sentire, pois não? Diante disso, digo apenas, com o poeta: faz escuro, mas eu canto. No entremeio da discussão da PEC 33 (para mim, uma discussão normal, que não deveria causar esse stress institucional), bem que que o Congresso poderia aproveitar para fazer umas emendas no projeto dos Códigos de Processo Penal e de Processo Civil (como sugerem Marcelo Cattoni, Dierle Nunes e Alexandre Bahia). Em que lugar? Ali, bem ali onde fala do “livre convencimento” ou “livre apreciação da prova” (enfim, enfrentar a questão da “gestão da prova” de frente!). Atacar-se-ia o problema na origem. Meus fiéis leitores sabem do que estou falando.

A PEC das domésticas e a resistência das “elites”
Leio que o imaginário “Carolina Ferraz-Daniela Diniz” (clique aqui para ler) toma força contra a PEC das Domésticas. As elites (com ou sem aspas) teimam em aceitar que o andar de baixo possa ter direitos. Há no ar um “quê” de conspiração contra a implementação da emenda aprovada. Isso pode ser visto pelas reportagens que agora mostram como é “lá fora”. Jornais e revistas informam que na França quase não há domésticas e assim por diante. “Fulano e fulana moram em Londres e fazem eles mesmos os serviços de casa”. E vem a repórter dizendo que, “com os novos direitos, haverá desemprego, porque as pessoas farão elas mesmas o trabalho antes-feito-pela-empregada-doméstica”. Esse é o plano A do nosso “andar de cima”. Fazer terrorismo contra a nova legislação, para, com um plano B, arrancar algum da viúva. Explico: com os novos direitos, quer-se “repartir” o prejuízo. E sabem com que é a repartição? Com o restante da patuleia, ou seja, ao invés de pagarem 40% de multa do FGTS, só querem pagar 10%. O restante seria subsidiado pela Viúva, com os impostos da rafanalha que não tem empregadas (ou não pode tê-las).

É incrível a capacidade de adaptação darwiniana de nossas classes médio-superiores. Ou se penduram no BNDES, formando aquilo que se pode chamar de “capitalismo chapa branca”, ou buscam diretamente na bolsa da Viúva o modo de se “ressarcirem” das “injustiças”. Não impressiona essa conversa, trazendo o exemplo francês, inglês, norte-americano etc. Quer dizer que agora é possível fazer o serviço que antes a empregada fazia? Quer dizer que, se for para pagar mesmo, “a gente mesmo pega no batente”, como diz um entrevistado para a repórter? Pois é. Confissão de Casa Grande & Senzala. Por isso o sucesso daquela propaganda que falava na “volta dos bons tempos”. Por isso, nossa função é a de perguntar: “Bons tempos para quem, cara pálida”?
A importância da palavra “não”
Um dos testes que se utiliza(va) no neopositivismo é a aposição da palavra “não” a um enunciado. Não vou explicar aqui o que queria o neopositivismo lógico, remetendo o leitor para o meuHermenêutica Jurídica e(m) Crise e Direito e O Direito e sua Linguagem, de Luis Alberto Warat e Leonel Severo Rocha. Uma dica grátis: um enunciado só seria científico se passasse pelo filtro da sintaxe e da semântica (a pragmática ficava de fora). Assim, por exemplo, se quero saber se um enunciado passa pelo critério da semântica, coloco um “não. Se eu digo “chove lá fora”, posso comprovar o enunciado até se não estiver chovendo, bastando colocar o “não”. Logo, é verdadeiro dizer que não está chovendo lá fora. Por outro lado, se eu disser “que os fantasmas apreendem Direito lendo resumos plastificados de Direito e resumos de livros simplificados”, de nada adianta colocar um “não”, porque fantasmas não existem (além de que, e me permito fazer a blague,  é impossível comprovar que alguém possa apreender algo em resumos plastificados e nos livros simplificados de Direito...!).

Assim, parcela considerável do que se diz em acordão ou na doutrina (há bons indicativos disso em bons livros) não passaria pelo critério do velho neopositivismo (veja-se que, como adepto da hermenêutica, sou um crítico implacável do neopositivismo, mas...). Pegue a frase e coloque um “não”. Se nada muda, é porque o argumento é irrelevante, írrito (ao menos, nesse plano de discussão). Assim, quando alguém invoca máximas ou enunciados meramente retóricos, coloque um “não” na frase. Se não mudar “o mundo” (ou a sua vida), é irrelevante.
Quando não existem elementos seguros que demonstrem determinada afirmação, a sua negação tem o mesmo “valor”. Podemos fazer um teste com os princípios. Peguemos um e testemos: “afetividade” é um princípio; mas se dissermos que afetividade não é um princípio, nada muda(rá). Pela simples razão de que a afetividade não possui normatividade (afinal, princípios não são normas?). Gosto desse teste: “Fulano foi solto em face da aplicação do princípio da confiança no juiz da causa...” Pergunto, então: qual é a diferença em dizer que “fulano não foi solto com base nesse mesmo princípio”? Não há nem comprovação teorética, nem qualquer possibilidade de comprovação empírica acerca da normatividade de tais princípios... Sequer há dados em tais decisões que diretamente explicitem as razões pelas quais se estaria confiando (ou não) no juiz da causa. E assim acontece com outros 57 princípios (no mínimo) que “andam por aí feito andarilhos medievais”. Façam o devido teste. Sugiro mais um: o da cooperação processual. E ponha um não...!
Sigo. Dizer que a maioria das pessoas gosta de tal coisa, sem qualquer pesquisa séria ou algo do gênero, pode facilmente equivaler a dizer o contrário. Isso está presente nos estereótipos, raciocínios de varejo que são transportados ao atacado. Frases como “o carioca é gozador”, não leva em conta a seguinte questão: de qual carioca estão falando? O da zona sul (das novelas!) ou do sujeito que pega três ou quatro ônibus e sofre com um cotidiano insalubre? E frases como “hoje a mulher na sociedade está emancipada”, etc (sugiro, aqui, a leitura de um livro de Dante Moreira Leite, de 1954, chamado O Caráter Nacional Brasileiro — A História de uma Ideologia). Trata-se de um enunciado estereotipado, porque não leva em conta as milhões de mulheres não emancipadas, por exemplo, as empregadas domésticas.[1] Afinal, existiria o conceito de “a mulher fundamental” ou uma “essência de mulher”? Quero dizer com isso que o Direito está recheado de estereótipos e mitos. A verdade real é um desses mitos. Dizer que “o juiz no processo penal busca a verdade real” equivale a dizer o contrário. Verdade real é “puro” exercício de voluntarismo. Ponha um “não” e nada muda (a não ser para quem sofre a condenação, é claro).  Pura anemia significativa. E assim por diante. Para não esquecer: que diferença faz entre dizer que o ordinário se presume e o ordinário “não” se presume? Nem o Malatesta saberia explicar nos seus (chatíssimos) dois volumes.
Trago isso à baila porque estava relendo textos antigos meus e organizando os velhos xerox de aulas de antanho. Dei-me conta que, ouvindo o que se diz sobre a PEC das Domésticas e da PEC 33, o velho neopositivismo lógico (ou empirismo contemporâneo) — considerado superado (e disso tenho convicção) — ainda poderia nos ajudar a, pelo menos, rejeitar um conjunto de argumentos. E no cotidiano das práticas jurídicas. Por exemplo: se somente 7% dos homicídios são resolvidos pela polícia, qual seria o argumento empírico para dizer que, se a polícia tivesse o monopólio da investigação (caso da PEC 37), isso mudaria? Qual é a prognose? Falar por estereótipos é se colocar do lado mais fácil da linguagem. “Haverá demissões em massa”, por exemplo, é um enunciado carregado de significado, que, a par de estar destituído de qualquer dado empírico, tem o fito de assustar a malta.   
Outdoors paulistanos e o conhaque Veterano
Na linha de raciocínio que estou trabalhando nesta coluna — que, não esqueçamos, chama-se Senso Incomum —, leio na Folha de S.Paulo que “empresas usam brecha legal para fazer propaganda em São Paulo” (clique aqui para ler). Desde 2007, pela Lei da Cidade Limpa, a cidade de São Paulo proibiu outdoors. Ocorre que, segundo a notícia, as empresas estariam fazendo um desvio na legislação, com banners que ficam um metro dentro do estabelecimento. Já estão pensando, inclusive, em mudar a lei, para fechar a aludida “brecha” (i)legal.

O Direito tem dessas coisas. Não fosse assim e não teríamos emprego. O papel do jurista é, entre outras coisas, localizar essas nesgas na legislação. Aí começa a discussão entre a “intenção da lei” (sic), a vontade da norma e/ou a vontade do legislador. Claro que são argumentos retóricos.
O episódio de São Paulo me fez lembrar a discussão da Lei das Carreteras, da Espanha, case que discuto no livro “Garantismo, Hermenêutica e Neoconstitucionalismo — diálogos com Luigi Ferrajoli” (Livraria do Advogado, 2012).  Trata-se do “caso do touro Osborne”[2], julgado pelo Superior Tribunal de Justiça da Espanha. Em 1988, foi aprovada na Espanha a Lei das Carreteras, que, em um dos seus dispositivos (artigo 24), proibiu a colocação de publicidade nas zonas vizinhas e visíveis da estrada. A pena era uma pesada multa. A empresa Osborne, antes da entrada em vigor da lei, retirou a palavra “veterano” dos imensos touros negros à beira da estrada (eram imensos outdoors, contendo ao centro a marca do conhaque Veterano).
Entrando em vigor a lei, a ampresa fabricante do conhaque foi multada. A querela chegou ao STJ espanhol. A discussão: o que é publicidade? O “imenso touro negro” é publicidade, mesmo sem a palavra “veterano”? O tribunal deu ganho de causa ao fabricante do conhaque, utilizando argumentos mais ou menos como “o touro já não transmite qualquer mensagem aos espectadores, na medida em que a palavra ‘veterano’ fora apagada”; “para a generalidade dos cidadãos, o touro se transformou em algo decorativo, que já faz parte da paisagem”; “a presença da expressão ‘veterano’ não faz com que aumentassem o consumo do conhaque”; “o touro é esteticamente bonito”; “o touro é como uma escultura, não como um outdoor”.
Percebe-se, aqui, nitidamente, o modo com a decisão foi exarada sob o crivo da discricionariedade (ou do livre convencimento). O tribunal decidiu sem qualquer respeito à integridade e à coerência do Direito, além de não ser uma decisão de princípio. Por exemplo, como saber o modo como as pessoas veem os grandes touros negros à beira das autopistas? Está-se diante de um enunciado empírico, em que o “sim” e o “não” são absolutamente arbitrários. Do mesmo modo, o argumento acerca do (não) aumento do consumo é irrelevante. Mais ainda, qual é a importância de se afirmar que o touro é esteticamente belo? Como aferir o gosto? E qual a relevância jurídica desse argumento? Por fim, fosse relevante o argumento acerca da “finalidade decorativa” do touro, estar-se-ia liberando a colocação de qualquer escultura à beira das autopistas espanholas.
Observe-se: o único argumento plausível, mas não (tão) convincente, foi o da perquirição acerca da finalidade da regra. O fim seria duplo: a) evitar a distração dos motoristas; b) evitar a contaminação paisagística. Disse o tribunal: a presença do touro não vai contra essas duas finalidades da lei. Logo, o touro pode ficar. Ora, mesmo que se aceite o argumentos de que o fim da lei é evitar a distração dos motoristas (o que é plausível), fica a pergunta que diz respeito às especificidades do caso concreto (à faticidade): como pode o tribunal afirmar que o touro não atrapalha, se não havia qualquer pesquisa empírica a respeito? Portanto, essa afirmação do tribunal é fruto de uma indevida discricionariedade (eis, aqui, o busílis de minha cruzada antidiscricionária). O mesmo se aplica ao segundo argumento: o touro não contamina a paisagem. Sob qual argumento empírico (e estético) pôde o tribunal fazer tal afirmação?
Veja-se, desse modo, os problemas que envolvem a admissão do poder discricionário do Poder Judiciário. E, mais do que isso, o problema de afirmações sem qualquer possibilidade de comprovação empírica. Como no caso das empregadas domésticas; como na PEC 33 (aliás, poderíamos aproveitar a temática dessa PEC para discutir as Súmulas Vinculantes, pois não? Não seria bom que o Congresso pudesse verificar se o processo de formação do enunciado obedeceu um DNA, como sustento em Verdade e Consenso? E não seria bom também que se aprovasse um dispositivo permitindo a arguição da inconstitucionalidade de uma Súmula Vinculante, como Georges Abboud e eu sustentamos em O Que é Isto — O precedente e as Súmulas Vinculantes?); como, provavelmente, ocorrerá no caso da Lei que proíbe outdoors em São Paulo.
Entre a “segurança” e o “naufrágio... a diferença!
Liguemos os fios da PEC das Domésticas, da fala do professor “dos valores” e da pólvora que ele “descobriu”, da validade do argumento neoempirista e o caso dos outdoors das carreteras da Espanha e da cidade de São Paulo. De tudo isso podemos retirar uma conclusão, já antecipada por mim no momento de abertura dessas reflexões: é preciso fazer esforço para, no interior do debate, ser produzida a diferença. Se for para dizer o mesmo, aquilo que todos já disseram, melhor não se pronunciar. A diferença é a marca necessária para a proficuidade das discussões.

Evidentemente, lançar-se nos meandros dessa produção de diferença é algo arriscado. Um filósofo chamado Hans Blumenberg já disse que a metáfora básica para se referir à existência é a do naufrágio. Durante muito tempo, em outros tempos históricos, os seres humanos se lançavam ao mar arriscando a sua vida numa busca indefinida por novos lugares e novas formas de vida. Esforçando-se, enfim, pela produção da diferença.
O naufrágio é o risco que circula toda essa empreitada. Mas, entre a segurança proporcionada pela vida em terra firme — que representa um pouco de mais do mesmo — e os perigos do naufrágio, melhor ficarmos mesmo com os segundos. Afinal, como já percebera Guimarães Rosa, enunciando insistentemente pela boca de Riobaldo: “viver é muito perigoso...”

[1]Atenção: escrever na internet é um mergulho nas profundezas da alma humana (embora possamos talvez colocar um “não”...). Mexe-se com os melhores e os piores instintos, sentimentos de todos os tipos, amores, ódios, inveja, burrice, nesciedade, ansiedade, ignorância e tudo o mais que possamos imaginar. Este texto está recheado de metáforas. Espero que ninguém venha discutir o periférico (por exemplo, se o Touro deveria ficar nas “carreteras” ou sobre “o carioca da zona sul”). No escurinho das redes, os néscios perdem a timidez (neste caso, confesso que posso estar correndo o risco de alguém dizer que também se poderia dizer que “os néscios não perdem a timidez”, porque não tenho elementos seguros para a afirmação...). Pois é. Os leitores julgarão a frase. Ou “os leitores não julgarão a frase”...!
[2] Agradeço ao meu amigo e grande jurista professor doutor Antonio Garcia Amado os comentários e discussões acerca desse exemplo do Direito espanhol.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine oFacebook.
Revista Consultor Jurídico, 2 de maio de 2013

A IATROGENIA E O DIREITO: QUANDO TUDO VIRA GRAU ZERO



Pensamento individual não cria ideologia
A cada semana leio um livro ou quase um. Por duas razões, que, na maior parte das vezes, se conjuminam. A uma, leio para elaborar o roteiro que seguirei para o Programa Direito & Literatura (já estamos no programa 197); a duas, para buscar inspiração para a próxima Coluna aqui na ConJur. Não é fácil ser responsável por uma coluna semanal e mantê-la no ranking das dez matérias mais acessadas no maior portal jurídico de terrae brasilis. Nesse sentido, agradeço a confiança dos milhares de leitores, com a ajuda dos quais batemos um recorde, emplacando, na semana que passou, em segundo, terceiro e quarto lugares duas colunas e um artigo, tudo em um espaço de 5 a 7 dias. Gracias, parceiros.

Pois de sábado para domingo, em uma vista d´olhos em minha biblioteca de literatura, encontrei o livro de Caryl Emerson, chamado Os 100 Primeiros Anos de Mikhail Bakhtin. Qual é a vertente ideológica que não tenha debatido Bakhtin? Lembro-me de quando cursava mestrado, em que Luis Alberto Warat nos indicava a leitura dos livros Problemas da Poética de Dostoiévski e Cultura Popular na Idade Média (em que está a origem do Carnaval e do qual Warat se inspirou para construir o seuA Ciência Jurídica e seus Dois Maridos) e o que mais fazia sucesso, Marxismo e Filosofia da Linguagem, no qual Bakthin descobre no signo linguístico um signo social e ideológico, que põe em relação à consciência individual com a interação social. Dizia ele que o pensamento individual não cria ideologia, é a ideologia que cria pensamento individual.
A boa crítica ao pós-modernismo
Mas não vou falar propriamente de Bakhtin. Nessa obra sobre Bakhtin, Emerson cita uma crítica do escritor russo O.V. Vainshtein, feita em 1993, numa mesa redonda sobre pós-modernismo e cultura: “Sob o signo de pós-modernismo pode-se não apenas ver performances e poesia escrita, como também fazer panquecas, vestir roupas extravagantes, fazer sexo e brigar, além de arrolar como predecessor qualquer autor que se queira o panteão da cultura mundial, de Marquês de Sade a Santo Agostinho. (...) O que importa para o pós-modernismo não é a profundidade nem a intensidade, mas o deslizar sobre a superfície, o optar entre vários significados.”

E vejam o complemento de Vainshtein: “Profundamente pós-modernista, nesse sentido, é a imagem do passeio veloz pelos canais de televisão com um aparelho de controle remoto, consistindo o prazer do telespectador, em grande medida, no próprio apertar dos botões — atividade que propicia uma agradável sensação de poder sobre a imagem na tela e que no campo da estética visual promete inesperados efeitos de montagem”.
A epistemologia rasa um ponto zero
A citação de Vaishtein me remeteu de volta à coluna da semana passada, em que tratei dessa espécie de “pós-modernidade” que tomou conta do Direito, do ensino do Direito, da doutrina, da jurisprudência e dos concursos públicos. Não há (mais) fundamento. Há, apenas, o grau zero de sentido. Trata-se de uma epistemologia rasa “tipo” 1.0 (câmbio manual, sem direção hidráulica, sem bancos de couro, sem air-bag, sem tapetes e sem espelho retrovisor do lado direito), na qual é possível dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa. A partir dela, pode-se perguntar qualquer coisa em concursos públicos. E pode-se, sobretudo, dizer qualquer coisa em sala de aula. Estamos em umlaissez faire de sentidos. Inclusive podemos ensinar um Kelsen que nunca existiu. Um Recaséns Siches que não tem nada a ver com a pergunta do concurso público. Podemos falar de um Malatesta absolutamente contraditório e que entra em julgamentos de Pindorama como se fosse um conjunto de axiomas coerentes (o Malatesta vira alguém que Mal-Atesta). Na outra ponta, toda essa algaravia está aliada à tecnologia. Muita internet. Vamos eletronizar tudo.[1] Mais tecnologia, menos cultura. Mais informação, menos saber. E bem menos sabedoria.

É a vitória do senso comum, que joga os juristas de volta à pré-modernidade. Sim, porque o senso comum teórico que habita na fala da maior parte da comunidade jurídica está assentado em uma espécie de “mito do dado”. “É assim porque é”, diz-se. Mergulhados no senso comum teórico, os juristas simplificadores, nas suas mais variadas facetas — em que não está excluída a pós-graduação, porque, há, por aí, teses de mestrado e doutorado em Pindorama tratando de temas pequeno-monográficos, como embargos infringentes, embargos declaratórios, cheque sem fundos, limitação de fim de semana na LEP, o papel do oficial de justiça etc. — não alcançaram a modernidade, isto é, não agem como o sujeito moderno que olha para fora e se pergunta: “Céus, por que isso é assim?” “ Eu penso; logo, existo”. Já seria um bom começo se nossos juristas fossem cartesianistas e apelassem para a dúvida. Como diz Bento Prado Jr., em Por que Rir da Filosofia?, “a consulta que fazemos ao senso comum nada nos informa, portanto, a respeito do mundo, deixa ‘as coisas como estão’ e, a nós, no grau zero da filosofia”. Bingo. Sabia muito esse Bento Prado, não?
Warat dizia que senso comum é o lugar dos segredos. E eu acrescento: é o lugar dos segredos falsos. Dos simulacros epistêmicos. Da coagulação dos sentidos. De cada dez professores de Direito, seguramente sete nunca leram a Teoria Pura do Direito (atenção: para aqueles que reclamarem, já de pronto dou de barbada: fique tranquilo, você está nos 30% que leram!). E muitos dos que leram não entenderam, certo? (de novo, para aqueles que reclamarem, fiquem tranquilos: vocês não estão nesse percentual que não entendeu). Se não é assim, por qual razão essa algaravia em torno do autor? Por que a maldição em torno do 8º Capítulo da TPD? Na coluna passada (clique aqui para ler) mostrei como Kelsen é ensinado para o Exame de Ordem. Espantoso. Mas não fica por aí. Há livros ensinando que o AI-5 é a Norma Fundamental (a Grundnorm) da Constituição do Brasil. E há decisões de altos tribunais dizendo que Kelsen falava de interpretação pura da lei. Sim, gente importante diz e disse coisa desse gênero.
Mas isso não é o pior: minhas pesquisas empíricas — embora o universo não seja cientificamente suficiente para um cálculo correto — mostram que parcela considerável de docentes nunca leu, de cabo a rabo, outros autores de renome (ou seja, nem Kelsen nem Dworkin ou os clássicos da própria dogmática jurídica). Assim, de cada dez professores de Direito, arrisco a dizer que 70% sucumbem à literatura descomplicada/facilitada (entendida lato senso). Ou, no mínimo, fecham os olhos quando os alunos levam para as salas de aula essa literatura de perfil “pequeno-gnosiológico”. E o que dizer da literatura jurídica que está descansando sobre as bancadas dos tribunais? Não esqueçamos que, na lista bibliográfica constante na Resolução do CNJ sobre o uso de disciplinas humanistas nos concursos (as demais não seriam humanistas?), consta como inovação, além de Kelsen, Recaséns Siches. Sim, como constou na questão aquela do concurso da Justiça do Trabalho (clique aqui aquipara ler), Siches é tido como uma espécie de antídoto de Kelsen. Portanto, dois erros: Kelsen não é o que pensam dele e seu antípoda não pensa aquilo que se diz que ele pensa. Um é positivista normativista e o outro é um positivista axiologista, que acredita(va) em valores objetivos (espécie de objetivismo moral difícil de ser explicado, hoje, à luz dos avanços paradigmáticos do campo da Filosofia no Direito. Vejam: disse “Filosofia no Direito” e não “do Direito”; a primeira, que busco fazer, de caráter estruturante; e segunda, apenas uma capa de sentido, que busca colocar “verniz” no discurso jurídico). Mais uma vez se pode constatar a máxima de que o Direito é um fenômeno complexo, difícil de “pegar”. Fosse fácil, seria “piriguete” (pedindo desculpas por me repetir, mas, no contexto, não achei outra passagem que mais bem ilustrasse a situação posta).
Aplique-se aí um fator geométrico: se é assim, de cada dez estudantes de Direito, no mínimo sete saem da faculdade totalmente descomplicados. Mas onde está o fator geométrico? É que essa descomplicação, quando aplicada na "sociedade de juristas" vai dobrando, triplicando e assim, geometricamente, criando uma imensa sociedade descomplicada de juristas. Pronto: vivemos a sociedade dos juristas descomplicados ou a sociedade descomplicada de juristas. Escolhamos o título. Cartas (ainda gosto delas) para a coluna.
A arte de ser um aluno ruim
Aliás, aqui cabe muito bem a certificação daquilo que estou dizendo. Nada melhor do que fontes externas. Com efeito, permito-me trazer à lume o texto intitulado A arte de ser um aluno ruim[2] , em que o autor, especializado em Exames de Ordem, define o perfil do estudante de sucesso para os concursos para a OAB, qual seja, o ruim. Em suas palavras sentencia: “Costumo sempre falar em minhas aulas que o aluno de Direito que possui maior facilidade em passar em provas da OAB é aquele que na época da graduação era fraco, ruim ou péssimo. (...) E antes que comecem a me atirar pedras, me permita dizer que se trata de uma constatação sociológica. Faça um exercício mental. Lembre-se dos piores alunos da sua turma. Aqueles que você tinha certeza que sequer iriam terminar o curso. Agora se lembre dos melhores, os queridinhos dos professores. Qual dos dois passou mais rápido na OAB? Qual dos dois passou mais rápido em concurso? Qual dos dois está progredindo mais rápido na profissão?”

Mas a melhor parte do artigo está aqui: “O bom aluno sabe demais e por isso ele briga com a prova.OAB não é lugar para você defender o que acha mais certo ou errado, mais lógico ou ilógico, mas sim para responder exatamente o que a banca quer que seja respondido. Fugir disso é pedir para não passar. Caso a FGV queira que seja você indique como a resposta de 2+2 o resultado 05, é isso que você vai ter que responder”. (sic) — grifei.
Observo que, não obstante o autor declarar que usa o adjetivo ruim de forma caricatural no intuito de dizer que o estudo para a OAB deve ter um direcionamento específico, esta expressão denota, de fato, o resultante desta relação ensino-concursos: estudantes sem reflexão crítica, preocupados em decorar conceitos, códigos, leis, artigos, jurisprudências e dispor-se ao alvedrio da empresa organizadora do certame. And I rest my case. Não sou eu quem está dizendo. Portanto, não é implicância minha. Tirem-me esse peso das costas.
Sigo, nestes jardins de los senderos que se bifurcan (parafraseando Borges e Warat). Meu Amigo e fiel leitor, professor Ivan Guérios Curi, a propósito da coluna da semana passada, diz-me que o texto o fez lembrar de Juan Ramon Capella. Em suas palavras: “Recordei, ao ler já pela terceira ou quarta vez, Poulantzas, Castoriadis, o velho Carlos Marques (gostei do aportuguesamento do nome que você fez na coluna). Bem, fiquei aqui a pensar: a sociedade sem juristas seria pior que a sociedade descomplicada de juristas?” Sim, meu caro Ivan: qual seria a diferença, no plano simbólico?
E segue o e-mail de Guérios Curi: “Meu querido Lenio: deu-se conta que tocou num ponto muitíssimo sério? A sociedade organizada (descomplicada, mas institucionalizada, e quando digo isso, refiro-me também aos tribunais etc.) de juristas é iatrogênica! Com certeza que sim, mas gostava (ao modo lusitano) de ver uma próxima coluna com o seguinte título: "Sociedade sem juristas: a nêmesis do Direito".
Isto porque — e segue Guérios Curi — o tipo de subcultura institucionalizada (foi o que você apontou na coluna) não só (re)produz uma cultura metafórica, como produz todos os males que o direito vai depois curar. Aí está a iatrogênese, porque os males sociais acabam por ser criação dos próprios juristas. Resumindo: cria-se a doença, mas o remédio já está (antes) sendo produzido pela indústria médico-farmacêutica. Não valeria a pena retomar, ainda que com reservas as teses (nas quais me baseio para argumentar) de Ivan Illich em suas obras Sociedade sem Escolas e ‘A Expropriação da Saúde: Nêmesis da Medicina’?”
O e-mail de Curi faz pensar. Façamos algumas analogias sobre a iatrogênese e a iatrogenia. Países desenvolvidos não possuem (e não cultuam nem escrevem sobre) uma coisa como “embargos declaratórios” ou “agravo de agravo”. E, por que? Porque não tem a doença a “ser curada pelos embargos e agravos de agravos”. Sentenças contraditórias lá são nulas. Írritas. Em Pindorama, inventamos a doença e, logo depois, vendemos — e bem — o remédio. Não cura. Mas vai dar muito pano para manga. E muito livro para vender. E muita pegadinha em concurso público.
Confesso: ...eu não estou me sentindo muito bem!
Nestes tempos de fragmentação, institucionalizou-se “o impessoal”, aquilo que Heidegger chamava deDas Man, isto é, “a gente acha que...”. Ou “tipo-a-gente-acha-que-Kelsen-queria-dizer-que-a-lei-deveria-ser-interpretada-de-forma-pura...” ou “tipo-assim-regras-são-no-tudo-ou-nada-e-princípios-são-na-ponderação”...

Essa coisa “tipo-assim-pós-positivismo-neoconstitucionalismo-pós-modernismo” coloniza, dia a dia, mais e mais, o nosso cotidiano. Que fizeram com a palavra que lhes foi dada, perguntaria o poeta Stefan George? Ou Heidegger perguntando: Quando as palavras voltarão a ser palavras?
Conta-se que durante uma exposição um oficial nazista indagou a Picasso: “Foi você quem fez isso?”, ao que ele respondeu: “Não, foram vocês que fizeram. Pois é. Quando falo, aqui, das mazelas do ensino jurídico, nessa simbiose “ensino-doutrina-jurisprudência-concursos”, quero apenas dizer que não fiz nada disso que está aí. Apenas procuro retratar tudo de forma crítica, revolvendo o chão linguístico em que está assentada o senso comum teórico.
O que fazer? Difícil dizer. Bobbio era um pessimista metodológico, segundo dizia. Já eu sou um otimista metodológico. Algo como um otimista “als ob”, ou seja, um otimista “como se” (homenageio o filósofo Hans Vaihinger, da filosofia do als ob, que, por sinal, inspirou Kelsen a mudar o “comando” filosófico de sua Grundnorm, de hipotético-dedutiva, para uma “ficção” necessariamente útil). É “como se” pudéssemos fazer uma teoria do Direito apta à superação do senso comum teórico dos juristas; é “como se” isso pudesse dar certo. É como se pudéssemos construir uma teoria da decisão pela qual... enfim, paro por aqui.
No século passado li uma frase em um belo livro de Jair Ferreira dos Santos — e que aqui adapto (ou faço uma pequena corruptela) — , que falava da pós-modernidade e fazia uma caricatura destes novos tempos, que nunca esqueci e que passo para os meus parceiros-leitores:
“Deus está morto, Tim Maia está morto, tem um monte de filme sobre zumbis por aí, Big Brother é comparado a Guimarães Rosa, Naldo e Michel Teló são neo-gênios, a Grundnorm kelseniana foi pausteurizada, estão vendendo aos milhares resumos de livros simplificados, dizem por aí que isso é só o começo... e, querem saber? — eu não estou me sentindo muito bem!”

[1] Chegará o dia — e isso está quase acontecendo (permitam-se à licença vernacular do “quase-acontecendo) — em que o advogado pedirá por código e a decisão sairá por código. Voltaremos à lógica proposicional. Ao invés de dizer que João subtraiu uma bicicleta, colocaremos “p”. Assim, decidiremos com base em uma “tabela de verdade”, como no neopositivismo lógico (ou empirismo contemporâneo). Lidaremos com “p” e “q”. Se “p” é V(erdadeiro) e “q” é V(erdadeiro) e a proposição é conjuntiva, o resultado será sempre V. Já se for disjuntiva, o resultado será sempre F(also). Será o nirvana.
[2] Disponível em: http://blog.portalexamedeordem.com.br/blog/2013/04/a-arte-de-ser-um-aluno-ruim/ Acesso em: 10/4/2013.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine oFacebook.
Revista Consultor Jurídico, 25 de abril de 2013

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