O novo Código de Processo Civil tem como marco inicial de vigência o dia 18 de março de 2016. O Código Buzaid pautou as relações processuais no Brasil por mais de 40 anos. Ainda que o novo CPC não represente uma revolução processual, é inegável que sua entrada em vigor, revogando a lei anterior por completo, tem significativo impacto no Processo Civil brasileiro.
Em verdade, aquele impacto produz ondas concêntricas que findam por atingir, em maior ou menor grau, diversas leis e relações jurídicas que gravitam em torno do novo CPC. O novo código, não bastasse tratar-se de norma geral em processo civil, deixa às claras sua natureza central em relação às outras leis, ainda que representem microssistemas. É o quanto se extrai já do artigo 1º, combinado com o artigo 15, daquele diploma.
Certamente haverá bastantes discussões sobre diversas inovações trazidas pelo novo CPC; mas um aspecto em particular merece especial atenção, quando se tem em conta as leis protetivas: em que medida o novo CPC se lhes aplica?
Para efeito destas linhas, considera-se lei protetiva aquela que apresenta claro e inegável objetivo de destacar determinado feixe de relações jurídicas das demais, atribuindo-lhe caráter especial, e equipando-a de normas que lhe conferem tratamento distinto (mais benéfico, célere e efetivo) do que as relações jurídicas por ela não abrangidas. Aquelas leis não estabelecem privilégios, algo ademais incompatível com a ordem constitucional[1], mas, sim, refletem determinações constitucionais, dando-lhes o aparato instrumental para serem exigidas, quando for o caso, em juízo.
Assim é que a Carta, ao consignar em seu magno texto os deveres fundamentais de pagar tributos ou de cuidar das crianças, exige da legislação processual normas que façam valer aqueles deveres. O mesmo se dá em relação à proteção do consumidor e do trabalhador. Não por outra razão, a Lei de Execução Fiscal, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código do Consumidor e a CLT engendram microssistemas que buscam efetivar comandos constitucionais. São, como se diz na práxis forense, leis especiais. Todavia, sua “especialidade", não decorre apenas de estarem veiculadas em Leis outras que não a lei geral; é o background constitucional que lhes empresta a distinção que possuem.
Diante de um tal grau de incertezas, gerado pela multiplicidade de fontes normativas (no que pertine a este artigo, a incidência de um norma geral posterior sobre normas especiais anteriores), é de se indagar se continuam válidos os tradicionais princípios utilizados pelo Direito para solucionar aparentes antinomias. Segundo vetustos brocardos, lex specialis derogat legi generali, ao passo que lex posterior derogat lex priori. Ou ainda, lex posterior generalis non derogat priori speciali[2].
As soluções apresentadas, já clássicas, não atendem satisfatoriamente casos em que a lei geral incide — e, por vezes, aparenta se impor — sobre a lei especial protetiva. Com efeito, a questão central aqui não se resume a derrogar ou não trechos de determinada lei anterior. A preocupação do intérprete, tendo em vista os fundamentos constitucionais da lei especial protetiva anterior à lei geral, é preservar a ratio legis da lei especial anterior aplicando-se a lei geral posterior.
Muitas vezes é possível fazer o texto legal evoluir de forma a abarcar situações novas, não previstas ou ignoradas anteriormente. Não foi necessária qualquer alteração legislativa para que o conceito de obrigação, embora já constasse do centenário Código Bevilácqua, fosse aplicado aos contratos virtuais. Outras vezes, mormente nas searas do Direito em que se veda a analogia[3], faz-se mister edição de lei que revogue ou modifique lei anterior, adequando seus termos às situações presentes.
Seguindo à risca o quanto disposto na LIDB[4], nada do que dispõe o novo CPC pode ser aplicado às leis especiais, por não derrogá-las. A problemática se impõe quando a nova lei geral é mais moderna e efetiva que a lei especial anterior, caso em que o aspecto protetivo da lei reclamaria a aplicação da norma que melhor atendesse ao fundamento constitucional da lei protetiva.
Para equacionar a complexa questão, a doutrina se tem valido da teoria do Diálogo das Fontes. É consenso que, por ocasião da entrada em vigor do Código Reale, em 2002, Cláudia Lima Marques difundiu no país aquela teoria. Sendo o CDC uma lei de 1990, havia dispositivos do novel Código Civil que estavam mais adequados à proteção do consumidor do que a própria lei consumerista. Sobre o tema, assim já se pronunciou a ilustre doutrinadora:
Na pluralidade de leis ou fontes, existentes ou coexistentes no mesmo ordenamento jurídico, ao mesmo tempo, que possuem campos de aplicação ora coincidentes ora não coincidentes, os critérios tradicionais da solução dos conflitos de leis no tempo (Direito Intertemporal) encontram seus limites. Isto ocorre porque pressupõe a retirada de uma das leis (a anterior, a geral e a de hierarquia inferior) do sistema, daí propor Erik Jayme o caminho do "diálogo das fontes", para a superação das eventuais antinomias aparentes existentes entre o CDC e o CC/2002.[5]
Deveras, com o advento do novo CPC e as implicações dele decorrentes, são ainda mais atuais as palavras do mestre Erik Jayme:
Dès lors que l’on évoque la communication en droit international privé, le phénomène le plus important est le fait que la solution des conflits de lois émerge comme résultat d’un dialogue entre les sources les plus hétérogènes. Les droit des l’homme, les constitutions, les conventions internationales, les système nationaux: toutes ces sources ne se s'excluent pas mutuellement; elles “parlent" une à l’autre. Les juges son tenus de coordoner ces sources en écoutant ce qu’elles disent.[6]
Corroborando as palavras acima, o insigne professor Flávio Tartuce, assevera que “a teoria do diálogo das fontes surge para substituir e superar os critérios clássicos de solução das antinomias jurídicas (hierárquico, especialidade e cronológico). Realmente, esse será o seu papel no futuro”[7].
Ainda em 2007 o CPC anterior sofreu uma microrreforma que impactou os processos de execução fiscal. A PGFN, por meio de excelente Parecer da lavra do doutor Paulo Mendes de Oliveira[8], examinou a questão e trouxe os seguintes ensinamentos:
94. Desta forma, existindo uma legislação especial que foi editada com a finalidade maior de conferir um tratamento mais benéfico para certas categorias, não é razoável que uma alteração na lei geral, aplicável a todas as demais pessoas, que venha a conferir um tratamento ainda mais benéfico do que aquele previsto na lei especial, não derrogue os ditames dessa. Sim, pois, se a lei especial foi introduzida no Ordenamento com o escopo de conferir um tratamento privilegiado a certa categoria, o fato de não ter sido atualizada em consonância com as normas gerais, não pode implicar um tratamento pior, mais prejudicial, àquele quem o legislador pretendeu privilegiar.
95. Estaríamos diante de uma insuportável contradição, admitir a idéia de que o legislador especializou o tratamento de certa categoria para beneficiá-la e, pela sua inação em alterar também a lei especial, editou regramentos ainda mais benéficos na regulação geral. Ora, quem deveria ser privilegiado acabaria sendo prejudicado com a evolução da lei geral.
96. Pois bem. Diante dessa linha de idéias, a regra segundo a qual a lei especial jamais será derrogada pela lei geral deve sofrer alguns temperamentos.
Em meu livro Lei de Execução Fiscal Comentada e Anotada[9], tive a oportunidade de assim me manifestar:
Eis o ponto central: o microssistema de execução fiscal existe para cumprir as finalidades acima já declinadas. Trata-se de procedimento voltado à recuperação do crédito do público, à promoção da justiça fiscal e do equilíbrio concorrencial. Seria ilógico que os créditos fiscais, todos eles cercados de garantias e privilégios, tivessem tratamento processual menos efetivo do que os créditos comuns. Por isso, faz-se necessário constante esforço interpretativo para integralizar o procedimento previsto na LEF, adequando-o a legislações mais modernas, ainda de caráter geral, como o é o CPC, ou reservadas a matérias especificas, como é o caso da lei 9.494/1997, art. 1º - D.
É importante registrar que a Teoria do Diálogo das Fontes não se limita às elucubrações doutrinárias. Seu uso já é bastante comum nas diversas cortes do país, e mesmo o Superior Tribunal de Justiça, em pelo menos duas oportunidades, já lastreou suas decisões, em sede de recurso repetitivo, na Teoria do Diálogo das Fontes. Não por acaso ambos os Acórdãos tratam da LEF. Há mais de três décadas editada, a Lei 6.830 não acompanhou as relevantes alterações processuais ocorridas ao longo dos anos: tornou-se, em muitos aspectos, obsoleta ao ponto de a recuperação do crédito comum, restar mais bem eficiente do que a busca pelo adimplemento do crédito público.
Duas decisões do STJ são extremamente significativas, pois aplicam as reformas do anterior CPC à LEF. Noutro giro: aplicou-se a lei geral posterior à lei especial anterior, visando a atender às finalidades desta:
a) Decisão aplicando a regra geral do CPC sobre a ausência de efeito suspensivo nos embargos à execução fiscal.[10]
b) Decisão reconhecendo a penhora on line, prevista na norma geral do CPC, às execuções fiscais.[11]
Como se vê, a Teoria do Diálogo das Fontes está consolidada no STJ, não restando dúvidas que será uma das balizas que guiará a Corte Especial nos casos que haverá de apreciar em relação ao novo CPC, sobretudo quando em aparente conflito com as leis especiais protetivas, cuja finalidade principal é a de proteger um conjunto de relações jurídicas, disciplinando-as e produzindo as ferramentas processuais adequadas a sua proteção. Remarque-se não se tratar de institucionalização de privilégios, já que aquele tipo de lei responde diretamente a um comando constitucional.
Além dos exemplos já mencionados, a Lei do Mandado de Segurança e a Lei da Ação Civil Pública se encaixam perfeitamente naquele perfil. Ambas se referem diretamente a garantias constitucionais, razão pela qual não se lhes aplica simplesmente o procedimento processual comum.
Como o novo CPC é lei recém-editada, não impressiona que contenha diversos dispositivos mais modernos do que as leis especiais protetivas que lhe antecedem. Como primeiro exemplo, veja-se que a Nova Tábua Processual determina ordem cronológica de julgamento dos processos na primeira instância e nos tribunais, segundo o artigo 12.
A teor do inciso VIII do artigo 12, os processos criminais não se submetem à ordem cronológica para julgamento. A intenção óbvia é preservar as peculiaridades de cada caso, tendo em conta fatores relevantes, como a supressão da liberdade: há processos em que o réu responde em liberdade, mas, em outros, está encarcerado. Ora, se para adultos a regra geral exclui o julgamento por ordem cronológica, com mais razão deverá fazê-lo em relação aos atos infracionais, previstos no ECA.
Um segundo exemplo vem do confronto do novo CPC com a LEF. Observe-se que a fiança bancária, para substituição de penhora, ocorre “desde que em valor não inferior ao do débito constante da inicial, acrescido de trinta por cento” — artigo 835, §2º. Já as condições para aceitação da fiança como garantia da execução fiscal estão previstas no artigo 7º, II, da LEF, que foi recentemente alterado, embora antes do novo CPC.
O ponto que merece destaque é o requisito mais severo imposto pelo novo CPC para aceitação da carta de fiança: não basta a apresentação de fiança no valor do débito, mas àquele montante deve ser acrescido 30% do valor total.
Embora a LEF nada mencione a respeito, conforme a teoria do diálogo das fontes, não faz sentido deixar de aplicar a norma à LEF. E por que não valeria, aqui, a máxima lex specialis derrogat lex generalis? A resposta é simples. O microssistema de execução fiscal tem como matriz condutora a finalidade específica da execução fiscal: recuperar o crédito do público. Exatamente por ser uma lei reservada à cobrança de um crédito especial (porque pertencente ao público) não faz qualquer sentido que uma lei geral, como é o novo CPC, seja mais benéfico ao credor comum do que a LEF.[12]
Como norma procedimental, a LEF recebe influxo direto do novo CPC. Muitos são os casos em que, por meio do recurso à Teoria do Diálogo das Fontes, ora o novo CPC prevalecerá sobre a LEF, como no caso da aceitação das cartas de fiança; ora se dará o inverso, cujo exemplo maior é a não aplicação, aos executivos fiscais, do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica, previstos nos Artigos 133-137 do novo CPC[13].
Assim, a Teoria do Diálogo das Fontes funciona como critério para interpretação do novo CPC, diante de aparentes antinomias existentes entre a nova legislação, de cunho geral, e as leis específicas protetivas. O Diálogo das Fontes é uma das chaves que destranca o código Novel Codex, ampliando seus horizontes de aplicação e atualizando, sem revogar, as leis especiais protetivas.
[1] Observe-se que o já citado Art. 1o dá como parâmetro interpretativo do NCPC a Constituição Federal.
[2] No vernáculo, em tradução quase literal, o Art, 2º da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro, novo nome dado à LICC, Decreto-Lei 4.657/42: “§ 2º A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.”.
[3] Como sói ocorrer com o Direito Penal e o Direito Tributário.
[4] Cf. o já citado art. 2º, §2º do Decreto-Lei 4.657/1942.
[5] MARQUES, Cláudia Lima. Superação das antinomias pelo Diálogo das Fontes: o modelo brasileiro de coexistência entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002. Revista da Escola Superior da Magistratura de Sergipe, Aracaju, SE, v. 7, p. 15-54, 2004.
[6] JAYME, Erik. Cours général de droit international privé, p. 259. in Collected Courses of Hague Academy of Internatioal Law. 1995. Tome 251de la collection. Martinus Nijhoff Publishers. USA.
[7] TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 2. ed. ver., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012, p. 66.
[8] PGFN. Parecer n. 1737/2007. Disponível emhttp://dados.pgfn.fazenda.gov.br/dataset/pareceres/resource/17322007. Acessado em 20/02/2015
[9] MOURA, Arthur. Lei de Execução Fiscal Comentada e Anotada. 1ª ed. Editora Jus Podivm. Salvador, 2015.
[10] STJ. REsp 1272827
[11] STJ.REsp 1184765
[12] Ob. cit.
[13] A propósito, fui um dos primeiros a abordar o tema sob aquela perspectiva. Já recentemente, a jurisprudência vem ao encontro do que defendo em meu livro sobre execução fiscal:
ENUNCIADO APROVADOS PELA ENFAM:“53) O redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente prescinde do incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto no art. 133 do CPC/2015.”
ENUNCIADO FOREXEC:“6. A responsabilidade tributária regulada no art. 135 do CTN não constitui hipótese de desconsideração da personalidade jurídica, não se submetendo ao incidente previsto no art. 133 do CPC/2015”
Arthur Cesar de Moura Pereira é procurador da Fazenda Nacional, especialista em Direito Tributário e em Gestão Tributária, professor e escritor. Autor de Lei de Execução Fiscal Comentada e Anotada, publicada pela Jus Podivm.
Revista Consultor Jurídico, 29 de março de 2016, 9h30