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segunda-feira, 12 de setembro de 2016

"Advocacia precisa aprender a lidar com os fatos, e não mais só com o Direito"






Por Pedro Canário


Em prol do direito de defesa, a advocacia precisa mudar para acompanhar quem investiga e acusa seus clientes. Na opinião do advogado Rodrigo Mudrovitsch, com o avanço da tecnologia e da informatização do Judiciário, os órgãos de investigação e acusação estão muito mais bem preparados para lidar com volumes enormes de informação. Por isso, a defesa precisa estar pronta para enfrentar uma realidade em que todo o aparelho de Estado trabalha em conjunto em prol da apuração de fatos.

Para Mudrovitsch, isso quer dizer que o advogado deve estar preparado para lidar com fatos e dados, e não mais apenas com questões teóricas do Direito. As denúncias, por exemplo, explica, costumam ser um pedaço de uma apuração muito maior, e a defesa que desconhecer esse contexto pode acabar pega num contrapé e prejudicar seu cliente.

“Não dá mais para querer tocar uma ação no piloto automático”, afirma, em entrevista à revista Consultor Jurídico. Segundo ele, a defesa que empurra o processo para deixar a briga para os tribunais superiores está perdendo espaço. “Num processo cada vez mais calcado em questões factuais, a margem de reversão nos tribunais superiores diminui.”

Ele fala por experiência. Doutor em Direito do Estado pela USP e mestre em Direito do Estado e Constituição pela UnB, ele tem clientes envolvidos em grandes operações Brasil afora, tanto políticos quanto empresas. Entre os mais proeminentes, os senadores Lindbergh Farias (PT-RJ), Humberto Costa (PT-PE) e Gleisi Hoffmann (PT-PR), todos investigados na operação “lava jato”.

Na opinião de Mudrovitsch, a delação premiada deu ao advogado um duplo papel. “Ele pode ao mesmo tempo ser um contraponto à acusação”, diz, “e pode também virar um parceiro da acusação, caso o cliente passe a ser colaborador”. “A chave é compreender que o advogado jamais vai ser uma barreira para o processo. Ele vai ser alguém que está defendendo o cliente dele da melhor maneira possível.”

Leia a entrevista:

ConJur – A “lava jato” mudou a forma de advogar?
Rodrigo Mudrovitsch – A “lava jato” é um exemplo. Não acho que ela seja a razão, mas ela exemplifica uma série de novidades para as quais a advocacia precisa se adaptar. A primeira é uma coordenação mais sólida entre os órgãos de investigação e de acusação. O que a gente percebe hoje quando olha para o Paraná é uma relação muito estreita e muito bem concatenada e com poucas vaidades entre a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, e a sensação que a "lava jato" passa é que esses núcleos vão se replicar em outros locais. A gente vê isso hoje no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Goiás e essa concatenação dá um apuro técnico e factual para as investigações muito grande.

ConJur – A defesa acaba sendo mais difícil?
Rodrigo Mudrovitsch – A advocacia fica muito mais complexa, porque não basta lidar com a acusação apenas juridicamente. Tem que lidar também com ela factualmente. Então os escritórios têm que saber fazer frente ao que esse bloco investigativo traz. Eu, por exemplo, faço muitas reuniões com técnicos que examinam e-mails, que examinam chamadas feitas e recebidas. A gente acaba tendo que sofisticar o nosso trabalho de inteligência para, dentro do mar de dados que eles têm, também saber rebater. Hoje a Receita, PF, MPF etc. trabalham em bloco, cada qual com a sua expertise de inteligência, e o resultado disso muitas vezes é uma denúncia que trata só de um pedaço de tudo o que eles têm. Se eu não souber compreender o todo, não vou saber identificar as fragilidades da denúncia. Isso é uma novidade.

ConJur – A informatização desses dados também contribui, não?
Rodrigo Mudrovitsch – Claro. A informatização do Judiciário tem feito com que o julgamento tenha uma agilidade enorme. Um processo que começa em agosto é sentenciado em fevereiro, e você tem que se organizar para não deixar passar oportunidades e para fazer impugnações muito bem medidas, porque senão acaba deixando o processo passar. Não existe mais aquilo de querer tocar diversas ações ao mesmo tempo e só se envolver com elas na véspera. Tem que usar um pouco da técnica que a magistratura mais moderna tem usado, chamada de early involvement: você se envolve com o processo desde o começo para saber onde quer chegar com ele. O advogado tem que fazer isso também.

ConJur – Não é esquisito o Judiciário usar dessa técnica de envolvimento? É normal o Ministério Público, órgão que faz a ação, ter uma estratégia e definir onde quer chegar. Mas o juiz pode querer chegar a algum lugar numa ação?
Rodrigo Mudrovitsch – Vejo isso com bons olhos. Imagine uma vara com 7 mil processos. Se você deixar o processo te conduzir, acaba deixando também com que os advogados te conduzam. Então para que você saiba se uma diligência é protelatória, se uma testemunha é necessária, o que perguntar pra testemunha, ou que cuidados tomar ao analisar uma resposta de acusação, por exemplo, precisa se envolver rápido com o processo.

ConJur – A “lava jato” também pode ser exemplo desse tipo de envolvimento?
Rodrigo Mudrovitsch – Talvez este seja um dos grande diferenciais de Sergio Moro: o envolvimento meticuloso com os processos em todas as decisões dele. O juiz tem que ter domínio dos casos da vara dele desde o começo. Se não fizer isso, naturalmente quem tiver mais domínio do caso vai conduzi-lo.

ConJur – Mas se o MP, Receita, PF etc. chegam com um mar de dados para o juiz, isso evidentemente o influencia, não?
Rodrigo Mudrovitsch – Não é que o juiz vá formar a convicção dele cedo. Se ele faz isso antes de ouvir a versão da defesa, está prejulgando a causa, e aí acaba tornando o processo desnecessário, o que é inaceitável. Eu me refiro ao juiz que se envolve com os limites da controvérsia.

ConJur – Como assim?
Rodrigo Mudrovitsch – É muito comum que o processo caminhe no automático até a hora em que os autos são conclusos para a prolação da sentença. Muitas vezes nessa fase o juiz percebe fragilidades na instrução que ele não soube suprir, ou que a acusação não supriu ou a defesa não supriu. Quando ele se envolve com a questão desde o começo, acaba deixando o processo mais eficiente.

ConJur – Isso é um problema para a defesa?
Rodrigo Mudrovitsch – Evidentemente impõe desafios para o advogado. Não dá mais para querer tocar uma ação penal, ou de improbidade, ou qualquer outra no piloto automático. Às vezes até o próprio cliente imagina que pode começar o processo em marcha lenta e que o advogado vai resolver nas instâncias superiores. Num processo cada vez mais calcado em questões factuais, a margem de reversão nos tribunais superiores diminui. Muitas vezes a sentença vai estar embasada numa multiplicidade de elementos e dados que os tribunais superiores não podem revisar.

ConJur – Os escritórios, então, devem se especializar menos?
Rodrigo Mudrovitsch – A advocacia passa por um momento de maior interdisciplinariedade. A defesa mais eficaz, hoje, exige que o advogado saiba lidar com facilidade em distintas áreas. Você não consegue chegar ao final da defesa do seu cliente da melhor maneira possível se você for um advogado que se limite a uma área do conhecimento. O advogado precisa necessariamente saber pular do criminal para a improbidade, da improbidade para a legislação anticorrupção etc. Mas vejo também um momento de transposição da lógica da atuação.

ConJur – Como seria isso?
Rodrigo Mudrovitsch – O momento atual é o da conformidade. Essas operações têm revelado fragilidades dentro da gestão de contratações, e as empresas têm dado saltos de governança e de conformidade que a advocacia precisa dar. Hoje eu preciso carregar comigo as regras de conformidade que os meus clientes têm e isso passa também por uma advocacia mais cuidadosa.

ConJur – Conformidade em que sentido?
Rodrigo Mudrovitsch – Em termos éticos. Mas ética no sentido de conflito, não em termos de moralidade. Nos Estados Unidos, por exemplo, a lógica de um único escritório defender duas pessoas que possam ter envolvimento direto ou até indireto num dado tema é muito mais rígida. Os escritórios têm comitês de ética que são bastante duros.

ConJur – Aqui isso não existe?
Rodrigo Mudrovitsch – Aqui a gente percebe que, dentro da mesma operação, uma mesma pessoa pode advogar para interesses antagônicos sem que haja nenhum problema nisso. É uma questão ética que precisa ser analisada. A própria colaboração é um bom exemplo. Dentro de uma operação é complicado um advogado se permitir se transformar em parceiro da acusação por mais de duas pessoas que possam ter interesses antagônicos, ou fazer a colaboração de quem corrompeu e de quem foi corrompido. Ou, ao mesmo tempo, advogar para a empresa e para o empresário.

ConJur – Então aquele advogado que tem uma salinha num prédio de escritório, com uma placa na porta escrito “Cível, Família e Trabalhista”, está condenado a sumir?
Rodrigo Mudrovitsch – O Brasil é muito grande. Há espaço para todos os tipos de profissional e a nossa sociedade tem muito conflito. Mas, pelo menos nesses processos mais intrincados, nessas questões que chamam a atenção dos tribunais, ou que chegam aos tribunais superiores e mexem com interesses mais relevantes, a advocacia “mais moderna” acaba se tornando inevitável.

ConJur – Voltando à sua fala sobre os advogados estarem preparados para lidar com o imenso volume de dados e o envolvimento de todos com fatos desde o início de grandes operações. Isso quer dizer que as discussões processuais ficaram em segundo plano?
Rodrigo Mudrovitsch – Não vou dizer que ficou em segundo plano, mas não acredito mais numa advocacia que prega a teoria das nulidades como sua bandeira única. O advogado tem que descer no factual, até para poder fazer uma análise verossímil e honesta com o cliente dele sobre as reais chances de ele chegar ao final do processo com um resultado positivo.

ConJur – Essa visão se opõe um pouco ao discurso tradicional da advocacia, de que o rito a seguir é tão ou mais importante que a conclusão.
Rodrigo Mudrovitsch – Isso é de uma tradição mais romano-germânica da nossa formação jurídica, mas eu sou partidário de um Direito mais pragmático. Isso não significa defender que o advogado abdique das garantias processuais penais, mas, além de saber o que significa uma garantia processual penal e o que significa o processo, o advogado precisa compreender como o sistema funciona como um todo. Não estou dizendo que menosprezo as garantias e direitos processuais penais, mas, dentro de uma teoria constitucional, parto do pressuposto de que temos que ter um sistema que funcione bem. Essa é a mentalidade que está posta na magistratura e no Ministério Público e nós, advogados, temos que entender e saber lidar com ela.

ConJur – Mas isso não tem se traduzido em flexibilização do direito de defesa, ou da relativização de garantias?
Rodrigo Mudrovitsch – Há exemplos isolados. Mas também percebo que, principalmente nos tribunais superiores, há juízes que compreendem o papel real do advogado.

ConJur – E qual é o papel real do advogado?
Rodrigo Mudrovitsch – Hoje é duplo. O advogado pode ao mesmo tempo ser um contraponto duro à acusação nas hipóteses em que houver algum direito do cliente dele sendo ultrapassado, e pode também virar parceiro da acusação, caso o cliente dele passe a ser colaborador. A chave é compreender que o advogado jamais vai ser uma barreira para o processo. Ele vai ser alguém que está defendendo o cliente dele da melhor maneira possível. Todos os lados eventualmente podem cometer abusos, mas eu não diria que estamos num momento de antagonismo ferrenho. Há debates de alto nível. Há abusos, mas abusos sempre vão existir.

ConJur – A delação premiada, então, entraria nessas estratégias de defesa?
Rodrigo Mudrovitsch – Sim, claro. A delação ainda é um tabu, mas ela não pode ser execrada nem banalizada. Os extremos não ajudam. Não pode ser nem o advogado que, antes de ler a capa do processo, já diz pro cliente que ele tem de fazer delação, e nem o advogado que se recusa a fazer. Com isso, ele se recusa a dar para o cliente uma opção que a própria legislação deu. A gente tem que fazer uma análise fria. Se, em determinada situação factual ou processual, o cliente precisar deixar de ser um opositor à acusação e passar a ser um colaborador, o advogado precisa saber explicar quando isso deve acontecer e como ele deve proceder.

ConJur – Mas temos visto o surgimento de uma especialização em delação premiada.
Rodrigo Mudrovitsch – Isso não existe. O que existe é o advogado que sabe avaliar quais são as opções que o cliente dele tem. Senão a delação é banalizada e fica a impressão de que não houve qualquer raciocínio ali. E os dois trabalhos, tanto a defesa clássica quanto a delação, exigem alta dedicação do advogado, porque você tem que ir até o fim nas duas situações. Se você está fazendo uma defesa clássica, tem que exaurir as possibilidades de enfrentamento factual e processual. Se você está fazendo uma colaboração, tem que se transformar num verdadeiro auxiliar da acusação para que possa fazer com que o seu cliente tenha os melhores benefícios possíveis. É um trabalho altamente complexo.



Pedro Canário é editor da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 11 de setembro de 2016, 9h06

quarta-feira, 13 de julho de 2016

"Período de crise econômica exige reforma da legislação trabalhista"



Entrevista publicada na Conjur no 15 de maio de 2016, 8h45

Por Marcos de Vasconcellos


É em tempos de crise econômica que a reforma trabalhista se faz mais urgente. A opinião é do presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Ives Gandra da Silva Martins Filho, que vai contra o discurso do senso comum segundo o qual, em momentos de dificuldade financeira, é preciso reforçar as garantias trabalhistas.

Para o ministro, mais do que proteger quem já está empregado, cabe ao Estado buscar garantir que haja emprego. Se as leis e o Judiciário fazem exigências exageradas, acabam com postos de emprego e prejudicam os trabalhadores, avalia. Para ele, este é momento de afrouxar um pouco a corda “que vai enforcando a todos” e encontrar o ponto de equilíbrio entre a justa retribuição ao trabalhador e ao empresário empreendedor.

A fala do mandatário da Justiça do Trabalho parece ir ao encontro das intenções do presidente da República interino Michel Temer. A reforma trabalhista foi um dos temas abordados por Temer em seu discurso de posse, nesta semana. Segundo ele, a matéria é controvertida, mas as mudanças por ele propostas, diz, têm como objetivo a geração de emprego.

Na presidência do TST desde fevereiro deste ano, Ives Gandra Filho chegou à corte em 1999, em uma vaga do quinto constitucional, como membro do Ministério Público do Trabalho. Com o passar dos anos, suas posições ganharam destaque, pois costumam fugir da visão paternalista da Justiça do Trabalho.

Como presidente do tribunal, o ministro tem atuado na interlocução com o Supremo Tribunal Federal — que recentemente decidiu contra o TST em relação aos Planos de Demissão Incentivada e já dá sinais de que discordará também da visão da corte trabalhista em relação à terceirização. As decisões do STF, diz, mostram que é hora de rever a jurisprudência em relação aos limites da autonomia negocial coletiva. Mas sem extremos. Ives Gandra Filho é claro ao dizer que não defende a prevalência do negociado sobre o legislado, mas que haja mais respeito ao que foi negociado.

Em entrevista à revista Consultor Jurídico, o presidente do TST falou ainda sobre a necessidade de um marco regulatório para a terceirização; o fim da contribuição sindical compulsória; e os impactos do novo Código de Processo Civil na Justiça do Trabalho.

Lei a entrevista:

ConJur — O momento de transição política pelo qual o país passa é propício para uma reforma das leis trabalhistas?
Ives Gandra Filho — A crise econômica pela qual passa o país tem sua origem clara na crise política existente. Poderia ser um contexto adverso para uma reforma trabalhista. Mas é justamente em período de crise econômica que um sistema legal trabalhista mostra se oferta uma proteção real ou apenas de papel ao trabalhador. Quanto mais rígido o sistema, menos protetivo ele é. As empresas quebram e os trabalhadores ficam sem emprego. Daí que o período de crise não apenas é propício, mas até exigente de uma reforma legislativa que dê maior flexibilidade protetiva ao trabalhador. Dizer que em períodos tais, quando os trabalhadores estão fragilizados, não se devem promover reformas, é esquecer que também as empresas estão fragilizadas e quebrando, o que exige rápida intervenção para recuperar uns e outros. E isso só se faz afrouxando um pouco a corda que vai enforcando a todos, encontrando o ponto de equilíbrio de justa retribuição ao trabalhador e ao empresário empreendedor.

ConJur — Os juízes têm colocado o “livre convencimento” acima da prova material ou testemunhal como razão de decidir. O TST tem respaldado esse tipo de fundamentação?
Ives Gandra Filho — No campo do exame da prova, a evolução foi de um extremo ao outro, até se chegar ao ponto de equilíbrio atual. Do princípio da hierarquia da prova do CPC de 1939, passou-se ao livre convencimento do CPC de 1973, chegando-se ao convencimento fundamentado do novo CPC. Recentemente, em discussão na SDI-1 do TST, chegou-se à conclusão de que, fundamentada a decisão regional na valoração das provas, não cabe ao TST valorá-las, ainda que transcritos os depoimentos testemunhais no recurso.

ConJur — Há dados do TST que confirmem que a Justiça do Trabalho é mais demandada durante a crise?
Ives Gandra Filho — Sim. Nos últimos anos, a média de reclamações novas por ano girava em torno de 2 milhões. Em 2015, fruto do aumento de desempregados, chegou-se a um total perto de 2 milhões e 600 mil reclamatórias novas. A projeção para 2016 é de cheguemos aos 3 milhões, o que dificilmente será assimilado por uma Justiça que teve seu orçamento tão reduzido que corre o risco de fechar as portas a partir de agosto em vários estados.

ConJur — Como o senhor viu as reações à sua afirmação de que a justiça do trabalho é paternalista?
Ives Gandra Filho — Ouvi a afirmação de que a Justiça do Trabalho tem sido paternalista ao extremo do deputado Ricardo Barros, relator do orçamento e responsável pelo substancial corte no orçamento da Justiça do Trabalho. Disse-lhe, à época, que não lhe tirava inteiramente a razão, pois em dois pontos lhe faço eco, que são o intervencionismo exacerbado da anulação de inúmeras convenções e acordos coletivos de trabalho perfeitamente válidos à luz da jurisprudência do Supremo, e o da criação de novos direitos trabalhistas com base na aplicação de princípios jurídicos de caráter mais genérico, onerando substancialmente as empresas, a ponto de muitas não resistirem. No entanto, expliquei ao deputado que também tem havido excessivo descumprimento de normas trabalhistas claras, que não dependem de interpretação por parte do Judiciário, o que resulta em milhares de ações, que devem ser julgadas pela Justiça do Trabalho. E sem recursos orçamentários, podemos vir a fechar as portas. Enfim, não me surpreendo em relação às críticas, pois vêm justamente daqueles que pecam por excesso de proteção, em detrimento do próprio trabalhador. No fundo, comungamos quanto aos fins da Justiça do Trabalho, de harmonizar as relações de trabalho e de proteger o trabalhador, mas divergimos legitimamente quanto aos meios. Penso que o ativismo judiciário emergente não tem conseguido ofertar uma proteção real ao trabalhador, a par de ter a capacidade de desorganizar a economia, razão pela qual dele humildemente divirjo.

ConJur — O STF decidiu contra o TST em relação aos Planos de Demissão Incentivada e já dá sinais de que discorda também da visão do TST em relação à terceirização. O tribunal está ficando isolado?
Ives Gandra Filho — Penso que devemos rever nossa jurisprudência em relação aos limites da autonomia negocial coletiva, não ampliando tanto o conceito de direitos indisponíveis do trabalhador e admitindo a flexibilização da legislação naquilo em que a própria Constituição admite, que são o salário e a jornada de trabalho. Quanto à terceirização, o simples fato de se ter reconhecido a repercussão geral da matéria, em face das decisões substancialmente restritivas do TST, é um alerta.

ConJur — Como resolver o problema da terceirização? Basta que o Supremo decida os parâmetros ou é necessário que haja uma lei?
Ives Gandra Filho — Acredito que um marco regulatório para a terceirização seja necessário, especialmente no que diz respeito ao setor público, onde os abusos são mais notáveis. Atualmente, apenas a Súmula 331 do TST funciona como parâmetro, o que é notoriamente insuficiente, já que até fiscais do trabalho passam a ser juízes, interpretando o que seja atividade-fim e atividade-meio, para efeito de fixação da licitude da contratação. Se o Supremo entender que atividade-fim também é passível de terceirização, então o marco regulatório será mais necessário ainda, já que não se pode admitir dois trabalhadores laborando permanentemente no mesmo local de trabalho, realizando o mesmo serviço, e um ganhando a metade do que o outro recebe, por ser contratado por empresa terceirizada. Penso que a tanto não chegaria nossa Suprema Corte. O que vejo, no entanto, é a jurisprudência do TST ampliar superlativamente o conceito de atividade-fim, no que tenho sido vencido, para abarcar, por exemplo, call center de empresas de telefonia, pelo simples uso do telefone, quando tal atividade tem sido terceirizada por empresas aéreas, hospitais e demais seguimentos do mercado.

ConJur — Como tem sido comandar uma corte na qual seu posicionamento é visto como minoritário?
Ives Gandra Filho — Até que não tem sido tão minoritário assim. Nas últimas sessões que presidi, é certo que a corte estava bem dividida, mas não me encontrei na corrente minoritária, como foram os casos do banco postal e da imposição a shopping center para instalação de creches, já que não é empregador dos trabalhadores das lojas. De qualquer sorte, nos temas em que divirjo da maioria, apenas ressalvo meu entendimento, seguindo por disciplina judiciária a orientação jurisprudencial pacificada. Mas academicamente não deixo de sustentar meus pontos de vista, como o fazem os demais colegas com os seus, referindo, de qualquer modo, qual a jurisprudência majoritária e suas razões.

ConJur — Quais são os principais desafios para o TST?
Ives Gandra Filho — O principal, certamente, é o de cumprir sua missão institucional, de uniformizador da jurisprudência trabalhista. E isso não está sendo fácil de conseguir. Desde a publicação da Lei 13.015, em 2014, o TST ainda não conseguiu julgar nenhum caso sob seu regime, pois a lei acabou criando um mecanismo que, digamos assim, terceirizou a atividade-fim do TST aos TRTs, devolvendo-lhes os processos, para que uniformizassem sua própria jurisprudência. Ora, isso gera apenas um efeito bumerangue, pois a divergência entre tribunais haverá e os processos voltarão a subir ao TST. A frustração que sinto é que, até o momento, nenhum tema ainda foi julgado no TST sob o palio do incidente de recursos repetitivos, dada a complexidade do sistema. E veja que o sistema recursal de uma Justiça célere deveria ser mais simples! Espero que no segundo semestre deste ano já comecemos a decidir os primeiros temas sob o regime da nova lei.

ConJur — O Ministério Público do Trabalho tem cumprido a sua função?
Ives Gandra Filho — O MPT está mais ativo do que nunca, agora com sua Procuradoria-Geral em nova sede. E tem cumprido bem sua missão. Às vezes até com um pouquinho de excesso de zelo, ao ajuizar algumas ações anulatórias de convenções e acordos coletivos, que o próprio STF tem considerado válidas.

ConJur — Vemos ações do MPT contra escritórios de advocacia por causa da contratação de advogados como associados, quando, segundo o órgão, estariam cumprindo a função de empregados. É possível afirmar que advogados assinam contratos sem ler e precisam desse tipo de proteção?
Ives Gandra Filho — Advogado não é hipossuficiente, mas, em contexto econômico adverso, pode acabar se submetendo a esse tipo de situação. mas não sei se seria o caso de ações do MPT contra escritórios.

ConJur — Temos acompanhado o MPT abordar temas-chave como trabalho infantil, trabalho escravo e amianto. Esses são problemas de grandes dimensões mesmo ou servem mais como espaço para propaganda, uma vez que são áreas que não encontram resistência?
Ives Gandra Filho — Quanto ao trabalho infantil, o próprio TST está engajado nessa campanha, dando-lhe agora um viés positivo. Não apenas de combate ao trabalho infantil, mas também de estímulo à aprendizagem. Hoje, temos no TST dois programas mais próprios do Executivo, com o qual colaboramos, de políticas públicas, que são o do Trabalho Infantil e do Trabalho Seguro, este último focado na prevenção dos transtornos mentais, que vão se tornando cada dia mais frequentes, pelo estresse no trabalho. E dois programas tipicamente judiciários, que são os de estímulo à conciliação e de efetividade da execução. Quanto ao trabalho escravo, infelizmente, ele ainda é encontrado no país, com ações do MPT junto com a Polícia Federal liberando trabalhadores que não queriam mais trabalhar em determinadas fazendas, mas eram ali mantidos contra sua vontade. No caso do amianto, penso que haveria um meio termo possível, com a adoção das medidas de proteção que minimizassem a insalubridade do trabalho, como em outras atividades.

ConJur — Negociações de sindicatos com empresas são invalidadas na Justiça por disporem dos chamados “direitos indisponíveis”, como hora de almoço. O senhor acha que o negociado deveria prevalecer sobre o legislado?
Ives Gandra Filho — Não defendo a prevalência do negociado sobre o legislado. Defendo que se prestigie a negociação coletiva, como mandam as Convenções 98 e 154 da OIT e nossa Constituição Federal, em seu artigo 7º, inciso, XXVI. E, no momento em que vivemos, ela está bastante desprestigiada. Ao conversar com parlamentares, empresários e sindicalistas, tenho sugerido que se adote um critério bem claro nesse tema. Que os direitos trabalhistas flexibilizados por acordo ou convenção coletiva tenham, no próprio instrumento normativo, cláusula expressa da vantagem compensatória do direito temporariamente reduzido em sua dimensão econômica, de modo a que o patrimônio jurídico do trabalhador, no seu todo, não sofra decréscimo. Verifico que, nesse sentido, o Projeto de Lei 4.962 deste ano, alberga muito do que tive de experiência positiva, conciliando conflitos coletivos nacionais na vice-presidência do TST nos anos de 2014 e 2015. Portanto, é bem diferente falar em prevalência de um sobre o outro e falar de prestigiar um deles, que hoje se encontra desvalorizado, em detrimento das boas relações laborais.

ConJur — Como melhorar a qualidade e a representatividade dos sindicatos no Brasil?
Ives Gandra Filho — Com uma boa reforma sindical, que acabe com a contribuição sindical compulsória e com a unicidade sindical. Penso que o caminho seria o pluralismo sindical, sendo os acordos coletivos firmados com os sindicatos de maior representatividade e as ações de substituição processual protegendo apenas os associados, de modo a estimular a filiação. De qualquer modo, no momento, penso que uma forma de se minorar o problema seria a aprovação do PL a que me referi, com a inclusão de dispositivo que previsse também a fonte de custeio sindical da atividade negocial, que poderia ser de um dia de trabalho dos empregados da categoria, mas sujeito à não oposição do trabalhador, nos moldes do antigo Precedente Normativo 74 do TST. Assim, não teríamos que voltar a discutir jurisprudencialmente o Precedente Normativo 119, já por duas vezes mantido pela corte em rediscussão do tema.

ConJur — Sabemos casos de empresas que saem do Brasil por causa do prejuízo e da insegurança jurídica causados pela Justiça Trabalhista. O senhor acredita que a Justiça do trabalho é pouco consequencialista?
Ives Gandra Filho — Tenho insistido nessa tecla do juízo de consequência que qualquer juiz deve fazer quanto às implicações socioeconômicas de suas decisões. Não podemos ser apenas juízes de gabinete, que extraem pura e simplesmente suas conclusões de processos lógicos a partir de premissas principiológicas, como também não podemos pretender transformar o mundo através de despachos e sentenças. O excesso de ativismo judiciário e a carência de um maior realismo sócio-econômico talvez sejam as explicações para a insegurança jurídica da qual tanto reclamam as empresas atualmente e que tanto tem espantado os investimentos financeiros em nosso país.

ConJur — Os governos petistas mudaram alguma coisa para os trabalhadores nas leis ou na Justiça do Trabalho?
Ives Gandra Filho — Recentemente, em encontro com o Ministro Rossetto, do Trabalho, elogiei a sabedoria do Programa de Proteção ao Emprego, promovido pelo governo, pelo seu realismo, ao contemplar expressamente a flexibilização da jornada de trabalho e de salários, com ajuda parcial aos trabalhadores pelo FAT. Digo sabedoria, porque o ministro soube perceber que o maior patrimônio do trabalhador, em momentos de crise econômica, é seu emprego! Ademais, temos com o Ministério do Trabalho, como já disse, parcerias efetivas, no que diz respeito à promoção do trabalho seguro e de combate aos trabalho escravo e infantil.

ConJur — Tribunais regionais do trabalho têm ameaçado fechar as portas no segundo semestre por falta de verba. Como resolver esse problema?
Ives Gandra Filho — A crise orçamentária que se abateu sobre a Justiça do Trabalho pode-se dizer que é devastadora, se não for prontamente superada. O corte em nosso orçamento foi maior do que o dos outros ramos do Judiciário Federal. Mas o pior de tudo é que não foi racional. Cortou-se 90% do orçamento do PJe, nosso processo eletrônico. Ora, dos cerca de 70 milhões de ações que tramitam no Judiciário atualmente, perto de 7 milhões pertencem à Justiça do Trabalho. E desses 70 milhões, apenas 10% estão no PJe. Só que são praticamente todos da Justiça do Trabalho, ou seja, 6 milhões e meio de 7 milhões e pouco. Esqueceu-se que a Justiça do Trabalho está 100% no processo eletrônico, sem papel. E se não há dinheiro para manutenção e aprimoramento dos sistemas, eles travam e param. Tivemos dois tribunais regionais fechando por uma semana, por crescimento do sistema sem a ampliação dos bancos de dados e servidores. A partir de agosto, não tendo como manter os contratos de funcionamento dos sistemas, estaremos parando! E a solução seria simples. Basta remanejar de outras rubricas do orçamento da própria Justiça do Trabalho para cobrir as necessidades de custeio e manutenção de sistemas, mas o atual governo se nega a fazê-lo, por insistir em que agora isso deve ser feito mediante projeto de lei, o que não se conseguirá este ano, sendo que se poderia fazer perfeitamente por medida provisória, com já foi feito no começo do ano, sem retirar do Congresso Nacional o controle orçamentário geral. Chega a ser kafkiana a crise pela qual passamos!

ConJur — A embriaguez contumaz é motivo para justa causa na CLT, mas a Justiça do Trabalho interpreta que o alcoolismo é doença e, por isso, não pode servir como fator para a demissão. Como se diferencia o que é embriaguez contumaz e o que é alcoolismo?
Ives Gandra Filho — Essa é típica matéria em que cada caso deve ser analisado pelo juiz. O alcoolismo como doença supõe a perda, por parte do indivíduo, de seu livre arbítrio, em face da aquisição de um vício do qual tem dificuldade de se libertar. Já a embriaguez contumaz supõe a repetição de situações em que o empregado é pego embriagado, mas não se pode dizer que seja um alcoólatra.

ConJur — Estabilidade por gravidez se aplica a trabalhadoras com contrato temporário?
Ives Gandra Filho — A jurisprudência atual do TST e do STF aponta que sim, em face do bem maior do nascituro, mas é uma situação de difícil solução, pois as empresas de trabalho temporário não têm tido condições de manter em seus quadros empregados que não se consegue colocar em uma empresa tomadora de serviços. Não vislumbro, de momento, solução melhor para o problema.

ConJur — O que as empresas condenadas por assédio moral podem ou devem fazer com os assediadores que levaram elas a serem condenadas?
Ives Gandra Filho — Exercer seu direito de regresso, postulando a reparação do dano que sofreram ao ter de indenizar empregado em razão de ato praticado ilicitamente por seus prepostos.

ConJur — Quem são os autores que mais inspiram o senhor na área trabalhista?
Ives Gandra Filho — Se me permitir, prefiro falar dos exemplos que mais me inspiram na atuação como magistrado, pois o papel aceita tudo, mas o exemplo de conduta foi sempre o que mais me inspirou. E são aqueles com os quais convivo diuturnamente no tribunal que mais me ensinam e com quem mais aprendo. Desculpe querer lembrar de todos, mas não posso deixar de invejar o equilíbrio do ministro Renato, a fidalguia do ministro Bresciani, o bom humor do ministro Emmanoel, a presença de espírito do ministro Brito, o despojamento da ministra Maria Helena, a fé da ministra Calsing, o entusiasmo da ministra Kátia, a disponibilidade do ministro Cláudio, a combatividade do ministro Aloysio, a objetividade do ministro Hugo, o realismo da ministra Dora, a sinceridade da ministra Cristina, o conhecimento do ministro Levenhagen, a clareza do ministro Dalazen, a discrição do ministro Márcio, a atenção do ministro Lelio, a flexibilidade do ministro Alexandre, a perseverança do ministro José Roberto, a profundidade do ministro Philippe, a ponderação do ministro Fernando, a equidade do ministro Guilherme, o estudo do ministro Walmir, a proficiência do ministro Maurício, a dialética do ministro Augusto, a simpatia da ministra Delaíde e a laboriosidade do ministro Douglas. Penso que é uma sadia inveja, que me leva a retificar muitas vezes, reconhecendo meus erros e procurando imitar os bons exemplos. Oxalá, presidindo a corte por dois anos, consiga adquirir um pouco de todas essas virtudes!



Marcos de Vasconcellos é chefe de redação da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 15 de maio de 2016, 8h45

"Com Executivo e Legislativo em crise, o Judiciário tomou conta de tudo"





Por Lilian Matsuura e Marcos de Vasconcellos


Ada Pellegrini Grinover é uma das mais respeitadas juristas no país. Ao longo dos seus 83 anos, participou da reforma do Código de Processo Penal e do Código de Defesa do Consumidor, foi coautora da Lei de Interceptações Telefônicas, da Lei de Ação Civil Pública e da Lei do Mandado de Segurança, e, hoje, pesquisa meios alternativos de solução de controvérsias. Mas toda a sua experiência não foi suficiente para entender os decretos, empréstimos e créditos que levaram ao afastamento da presidente Dilma Rousseff do cargo.

“Quem é que entende isso? Um diz uma coisa, outro diz outra e o último que fala sempre parece que tem razão. É tudo muito estranho, muito delicado. Mas o julgamento vai ser político”, disse a processualista em entrevista concedida à ConJur. Enquanto o país não adotar outro regime de governo, afirma, os problemas políticos e econômicos continuarão a paralisar o país. A solução? Passa pelo parlamentarismo.

Ou então, brinca, importar um tirano da China. A professora voltou há pouco das férias que passou no país e se disse impressionada. Em dez anos, viu cidades completamente refeitas, sem as favelas e os cortiços que havia visto da primeira vez que visitou as terras chinesas. Planejamento, segundo Ada Pellegrini, traria grandes avanços para os brasileiros.

Em meio à crise vivida pelo Brasil, a advogada e parecerista entende ser fundamental o ativismo judicial, diante da omissão dos demais poderes. “Hoje, o Judiciário é um elemento de equilíbrio entre os demais poderes”, afirma, ao relembrar a decisão do Supremo Tribunal Federal de permitir a interrupção da gravidez nos casos de feto anencéfalo. À época, tramitavam diversos projetos de lei no Congresso Nacional para regulamentar a questão, mas o Legislativo foi lento demais para resolver o problema dos cidadãos.

Ela entregou há pouco à editora o livro Ensaios sobre a processualidade – Fundamentos para uma nova teoria geral do processo, onde defende que a jurisprudência hoje em dia deve ter uma função criadora, ir além das interpretações da lei e da Constituição. É preciso acompanhar a mudança dos tempos, recomenda, antes de garantir: esse será seu livro mais polêmico.

Na conversa com a ConJur, Ada também fez críticas ao Judiciário – “Se o crime é daqueles que eles (juízes) não gostam, como tráfico, não reconhecem nulidade nenhuma, porque querem punir” –; à advocacia – “Quando vejo petições iniciais de 100 páginas eu também questiono: ‘Estão loucos?’” –; e ao Ministério Público – “O Ministério Público tem que descer do salto, esquecer essa história do promotor natural, onde cada um faz o que quer”.

Nascida em Nápoles, na Itália, chegou ao Brasil com a família aos 18 anos e aos 34 naturalizou-se brasileira. Dedicou-se à academia na Faculdade de Direito da USP, onde se tornou livre docente e onde deu aulas até a aposentadoria compulsória, aos 70 anos. Hoje em dia, dedica-se a elaborar pareceres e memoriais.

Da entrevista também participaram os jornalistas da ConJur, Mauricio Cardoso, Thiago Crepaldi e Claudia Moraes.

Leia a entrevista:

ConJur – Como o país chegou a esta crise?
Ada Pellegrini Grinover – Entendo que, enquanto o Brasil não adotar outro regime de governo, nada será solucionado. Trocar seis por meia dúzia não resolve nada. O presidencialismo, que concentra tudo no presidente da República, não funciona. É muito centralizador. O Parlamento também não funciona, porque num presidencialismo de coalização os partidos são a favor ou contra, ou seja, não é uma posição imune de influências, como deveria ser. Se não mudarmos para um parlamentarismo, o sistema não vai funcionar nunca.

ConJur – Não é grande demais a instabilidade de se poder trocar o presidente com mais facilidade?
Ada Pellegrini Grinover – É mais instável o governo, mas se o presidente não tiver voto de confiança, vai embora e escolhem outro. É maior a instabilidade, mas o trauma de um impeachment é muito pior, porque para tudo e o presidente é afastado no momento do recebimento da acusação – o que acho prematuro porque ainda não está condenado. Há muito tempo estou convencida de que os problemas do Brasil decorrem do regime de governo.

ConJur – O parlamentarismo conseguiria manter o país em movimento?
Ada Pellegrini Grinover – Sim, com ou sem governo, os países que seguem o parlamentarismo andam. Às vezes, andam melhor sem governo do que com. (risos)

ConJur – O nível dos deputados na votação do impeachment deixou muita gente chocada. A senhora entende que o parlamentarismo seria melhor para o país mesmo com o Congresso que temos hoje?
Ada Pellegrini Grinover – Sempre tem alguém bom, capaz de formar um governo. E se não for capaz, vai embora, escolhemos outro até acertar. O impeachment é muito grave, muito sério. Não se fala de outra coisa nesse país. Então, por pior que seja o Parlamento, sempre há alguém que sabe o que faz.

ConJur – A existência ou não do crime de responsabilidade faz diferença atualmente? Vemos na contagem de votos que é uma questão de partido, e não uma questão de Direito?
Ada Pellegrini Grinover – Sim, é uma questão política. A verdade é que, se continuarmos com o presidencialismo, deveria haver ao menos a previsão de um referendo renovatório. O presidente não está conseguindo governar? Quer tirá-lo do cargo? Fazemos o referendo. Se o povo não tem mais confiança no presidente, ele tem de ir embora. Por que ele tem de cometer um crime de responsabilidade para ser afastado? Outra coisa: quando você fala com qualquer estrangeiro, principalmente de países onde o regime é parlamentarista, ele não sabe o que é crime de responsabilidade, porque lá não tem, não é criminalizado. Eles não entendem. “Mas como é crime de responsabilidade se ela não roubou?”, questionam. É uma concepção difícil, precisa que ser do ramo para entender. Eu não sei se os decretos eram empréstimo ou se eram créditos. Quem é que entende isso? Um diz uma coisa, outro diz outra e o último que fala sempre parece que tem razão. É tudo muito estranho, muito delicado. Mas o julgamento vai ser político. E espero que realmente seja, porque se a presidente voltar, aí é que estamos perdidos.

ConJur – Aí a confusão se dá por completo.
Ada Pellegrini Grinover – São muito poucos hoje os países presidencialistas com o nosso modelo. Os Estados Unidos têm um parlamento forte, não deixam o presidente fazer tudo o que quer. Aqui, se a presidente tivesse pedido autorização para o decreto, você acha que o Congresso não autorizava? Claro que autorizava. Foi bobagem dela.

ConJur – E a pena para isso é o impeachment?
Ada Pellegrini Grinover – Não deveria ser. Agora, não é possível que uma só pessoa chefie todos os ministérios, a burocracia. Como pode um presidente da República ser chefe da burocracia? A burocracia é uma questão técnica. Não são necessários tantos cargos em comissão, poderíamos manter só o estritamente essencial e aproveitar o pessoal de carreira. São muitos gastos sem planejamento. Estou voltando da China. Vocês não imaginam o que é a China hoje. Em dez anos eles refizeram cidades inteiras. Beijing foi refeita. Eu conheci Beijing antes. Eram cortiços. Não sei quantas pessoas moravam num pequeno apartamento, com um banheiro comum, uma cozinha comum. Hoje não tem cortiço, não tem favela. Também fui para o interior da China e vi que todo mundo mora dignamente. Nós temos que importar um tirano. (risos) Não vou dizer um ditador porque é feio, mas um tirano provisório por 20 anos, fazer uma seleção entre os chineses.

ConJur – Vinte anos de provisório?
Ada Pellegrini – Ué, a nossa ditadura não durou isso? Quer dez anos? Em dez eles conseguem fazer tudo. É impressionante. Fizeram cidades novas! Eu não sei se pegaram aquelas pessoas e esconderam em um canto da China, mas andei pelo interior e vi pescadores, agricultores, todos com casas dignas. Não tem favela, não tem cortiço. Aqui não se planeja nada, não temos ferrovia. Queriam fazer e pararam no meio do caminho. O Minha Casa Minha Vida resolve a situação de quantas pessoas? Não tem planejamento, mas tem corrupção. É endêmica a corrupção nesse país.

ConJur – O sistema de financiamento de campanha é uma das razões para a corrupção no país?
Ada Pellegrini Grinover – Sem dúvidas, esse é um dos pontos. Quem financia uma campanha está esperando algum benefício como retorno, evidentemente. Mas, também, quem vai financiar as campanhas? Nós? Não há controle, não há fiscalização. Deixar à beira da falência uma empresa como a Petrobras, só com muito esforço.

ConJur – O Executivo está em crise, o Legislativo é omisso em relação às políticas públicas e o Supremo é obrigado a caminhar sobre ovos...
Ada Pellegrini Grinover – Caminhar sobre ovos? O Supremo tomou conta de tudo! Ele determina como que tem que ser o impeachment, determina se é válido ou não é válido...

ConJur – Mas não é um terreno perigoso? Como a senhora vê esse protagonismo do Judiciário?
Ada Pellegrini Grinover – Hoje o Judiciário é um elemento de equilíbrio entre os demais poderes. Até pelo fato de que os demais poderes são majoritários e o Judiciário tem mais propensão para julgar direitos de minorias, não é a vontade da maioria. Além de ser um fator de equilíbrio, o Judiciário tem tarefas que foram abertas com a Constituição de 1988. Naqueles princípios do artigo 3º da Constituição, os princípios fundantes do Brasil, tem questões que apontam para uma democracia diferente, que nós chamamos de democracia constitucional, de direito, ou democracia participativa, o desenvolvimento social. E no desenvolvimento social todos os poderes têm responsabilidades. Então, não adianta achar que o Judiciário não pode fazer o controle de políticas públicas. Pode e deve. Primeiro porque as políticas públicas estão inseridas no respeito à Constituição, portanto tem um controle de constitucionalidade. Segundo porque se os outros poderes se omitem, o Judiciário que é o poder de controle a posteriori, tem que agir. Mas o Elival da Silva Ramos, procurador-geral do estado de São Paulo, diz que o juiz não pode ser ativo.

ConJur – O ativismo judicial é muito criticado por ele.
Ada Pellegrini Grinover – Mas é uma loucura! O juiz atual tem que ser ativo, sim! Claro que tem que ter limites, que são a razoabilidade, a motivação, não pode se substituir ao administrador. Mas o juiz tem que ser ativo porque o Judiciário é protagonista do Estado de Direito. Ele é construtor do Estado de Direito e, se os outros poderes se omitem como acontece muitas vezes com as políticas públicas porque a administração não faz o que deveria fazer, a posteriori o juiz tem que intervir. O Judiciário está assumindo esse papel por omissão dos outros poderes. Por que foi o Supremo que teve que decidir sobre o aborto de fetos anencéfalos quando tinha 20 projetos de lei no Congresso dizendo a mesma coisa? Mas eles se divertem mais fazendo comissão parlamentar de inquérito ou fazendo o processo do impeachment... Então, a Justiça ocupa o espaço. E hoje a configuração do Judiciário é completamente diferente. O seu papel, a sua função é diferente.

ConJur – O que mudou?
Ada Pellegrini Grinover – Acabei de entregar à editora um livrinho de dez ensaios que vai se chamar Ensaio sobre a Processualidade – Fundamentos para uma nova teoria geral do processo, em que digo todas essas coisas que parece que ninguém tem muita coragem de dizer. Por exemplo, sobre a jurisprudência. A jurisprudência hoje tem uma função criadora. Não adianta dizer que é só interpretação. Primeiro eram as súmulas, aí veio a eficácia vinculante das ações constitucionais, agora veio a eficácia vinculante de julgados e de precedentes no Código de Processo Civil. Tudo está mudando. Agora reconheceram que a arbitragem é jurisdição. Está na nova lei [Lei 13.129/2015]. Foi uma luta. Diziam que não é jurisdição porque nasce de um pacto privado. E por que a justiça conciliativa não é jurisdicional? Mediação e conciliação judiciais não visam também o acesso à Justiça? Por que se fala tanto em acesso à Justiça e nunca se ligou o acesso à Justiça ao conceito novo de jurisdição?

ConJur – Essa via de auto composição é o futuro?
Ada Pellegrini Grinover – Há muita resistência. A Justiça não está fazendo audiência de conciliação porque diz que não tem mediadores e conciliadores. Então, é cultural. O juiz está acostumado ao processo contencioso e o advogado está tomando pé da arbitragem.

ConJur – Esta é a pior crise pela qual o país já passou?
Ada Pellegrini Grinover – Das crises que assisti desde que cheguei ao Brasil, em 1951, sim. Teve a crise do Getulismo, sem dúvida nenhuma, teve a crise do Jânio, mas não afetou tudo tão profundamente. É impressionante como tudo está parado. Nós tínhamos um nível de desemprego razoável, não era dos mais altos, agora está lá em cima. A renda das pessoas tem caído, assim como a confiança no país. Eu esperava que [o presidente interino Michel] Temer pudesse pelo menos inspirar mais confiança, mas não é o que está acontecendo. Ele ainda não conseguiu injetar segurança e esperança no país.

ConJur – É difícil passar segurança depois da queda de três ministros.
Ada Pellegrini Grinover – E sob suspeita de corrupção.

ConJur – Essa visão que temos hoje de que a corrupção está alastrada em todos os espaços do governo faz com que as pessoas queiram leis mais pesadas, uma Justiça mais dura. É uma solução para o problema?
Ada Pellegrini Grinover – A sociedade quer a pena de morte. Se fizermos uma pesquisa de opinião, é certo que as pessoas vão querer pena de morte, o que não adianta nada. Aumentar a punição também não adianta. Hoje tudo virou crime hediondo.

ConJur – E até o Supremo já admite a execução da pena antes do trânsito em julgado.
Ada Pellegrini Grinover – Fez muito bem.

ConJur – Fez bem?
Ada Pellegrini Grinover – Muito bem. A lei deve ser aplicada de acordo com as mudanças da realidade. No momento em que a Constituição de 1988 foi promulgada, ela precisava ser libertária, garantista – até exagerou neste ponto, porque criou tantos direitos que tudo foi constitucionalizado e pode ir para o Supremo. A situação era outra quando se interpretou como presunção de inocência a não possibilidade de prisão depois da sentença. Os processos penais não duravam tanto tempo, a criminalidade era outra. Não era a criminalidade econômica, mas a do ladrão de galinhas, do assassino passional.

ConJur – A criminalidade econômica não acontecia ou não era conhecida?
Ada Pellegrini Grinover – Eu acho que sempre aconteceu, desde a República. Quando Rui Barbosa, na Primeira República, foi ministro da Fazenda, dizem que já naquela época começou a corrupção. Não tenho esse fato comprovado, mas dizem que por ordem dele foi autorizada a importação de não sei quantos milhares de bidês da França. E foi aí que começou a nossa dívida externa. Então, acredito que crimes econômicos sempre existiram, só que agora temos mais transparência.

ConJur – Na época da Assembleia Constituinte, o crime econômico era mais às escuras? A Constituição de 88 não foi editada para uma realidade de combate ao crime econômico?
Ada Pellegrini Grinover – Não, não se estava combatendo o crime econômico. Fui advogada criminalista em um tempo que o crime econômico nem existia. Nunca vi crime organizado, máfia, organização criminosa, empreiteiras que fraudavam. Pode ser que sempre tenham fraudado, mas não tinha transparência nenhuma. A criminalidade era outra, a sociedade era outra, o tempo dos processos era outro. Hoje em dia, uma reclamação para o STF leva três anos para ser julgada. Então, como você vai esperar o trânsito em julgado para colocar alguém na cadeia? A realidade social mudou e, com isso, é preciso interpretá-la de acordo com a situação atual, e não de acordo com o que o legislador queria naquela época.

ConJur – A vontade do legislador já foi uma forma de interpretar a Constituição, não é?
Ada Pellegrini Grinover – Mas isso está completamente superado. As cláusulas pétreas! Uma Constituição pode ter cláusulas pétreas? Uma nova Constituição não pode dizer outra coisa? Mas voltando à decisão do STF sobre a execução da pena, trata-se de uma interpretação evolutiva. Leia Eros Grau, leia Luís Roberto Barroso sobre isso. O relator [ministro Teori Zavascki] fundamenta a decisão sobretudo no Direito Comparado, porque isso não existe em legislação nenhuma, e no princípio da proporcionalidade de um bem em relação a outro.

ConJur – Mas a norma não fala trânsito em julgado?
Ada Pellegrini Grinover – Fala.

ConJur – E isso não foi atropelar uma previsão constitucional?
Ada Pellegrini Grinover – Mas a norma não diz que é proibido prender até o trânsito em julgado. Diz que há presunção de inocência até o trânsito em julgado.

ConJur – Então o acusado pode ser preso mesmo que seja inocente?
Ada Pellegrini Grinover – Ele não pode ser preso em flagrante? Preso preventivamente? A Constituição nunca disse que não pode ser preso. Ela foi interpretada. Primeiro o Supremo entendeu que podia prender, depois vieram os garantistas, dizendo que não pode prender – eu mesma já sustentei essa tese. E agora mudou de novo a interpretação.

ConJur – A senhora sustentou essa tese quando tinha clientes presos?
Ada Pellegrini Grinover – Não. Defendi essa tese pouco tempo depois de a Constituição entrar em vigor e, naquela época, para mim, esse era o sentido. Mas hoje faço uma análise de jurisprudência evolutiva, de interpretação evolutiva. As situações mudam e você tem de interpretar a Constituição e as leis de acordo com a situação atual.

ConJur – E o processo precisa mudar? Ser mais curto, já que do jeito que ele está hoje demora muito para ser julgado?
Ada Pellegrini Grinover – São muitos os recursos, que estão previstos na Constituição, como o Recurso Especial, o Recurso Extraordinário. Está tudo na Constituição, não foi a lei processual que os previu. Aliás, estão fazendo um novo Código de Processo Penal que é péssimo.

ConJur – O que precisa mudar no Código de Processo Penal, na sua opinião?

Ada Pellegrini Grinover – Bom, a defesa deveria ter poderes para investigar, o que é permitido em vários países. As últimas reformas do CPP foram feitas pela comissão que eu presidi. Tem coisas que estão bem, como as medidas cautelares. Não sei se mantiveram no projeto que tramita no Congresso, mas é importante que tenha um juiz diferente para definir as medidas cautelares.

ConJur – Um juiz de instrução?
Ada Pellegrini Grinover – O juiz que determina as medidas cautelares não é aquele que vai julgar, porque aquele que determina as medidas cautelares já está com alguma ideia pré-concebida. Outra preocupação do CPP deve ser com o Habeas Corpus. Hoje, está sendo usado para tudo. A Defensoria Pública usa o HC para qualquer ato processual, não se recorre mais no processo penal. Os tribunais superiores estão atolados de Habeas Corpus, que parece ser hoje o único instrumento processual penal. Esse é o remédio que garante a liberdade, não é para trancar inquérito. A prisão preventiva também é uma questão importante no CPP, que precisa ser melhorada. Hoje prendem preventivamente e o acusado pode ficar lá pelo resto da vida. Há muitos casos em que a pessoa sequer é julgada. O sistema penal funciona muito mal. Tem também o fato de que o promotor não sabe mais acusar.

ConJur – Qual o problema da acusação?
Ada Pellegrini Grinover – O promotor se perde em minúcias que não têm a menor importância. Denúncias com 60, 80, 100 páginas que não dizem o que importa: qual é o fato imputado a cada um. Organização criminosa? Quem fez o que? É impressionante o número de denúncias de 100 páginas consideradas ineptas.

ConJur – E como resolver essa situação?
Ada Pellegrini Grinover – Essa é a parte mais delicada. Como acabar com a briga entre Ministério Público e Polícia? Quando presidi a comissão de reforma do CPP, não conseguimos aprovar essa parte da reforma, porque o Ministério Público queria tudo para si, a Polícia queria tudo para si e eles não conseguem trabalhar em conjunto. Agora o Supremo entendeu que o Ministério Público pode investigar, mas não estabeleceu nenhum critério para essa investigação, nem disse em quais casos, nem se é excepcional ou não. A influência do MP sobre um juiz é impressionante. É um absurdo o que acontece nas interceptações telefônicas, por exemplo.

ConJur – Por quê?
Ada Pellegrini Grinover – As autorizações não são fundamentadas, não têm prazo definido – o juiz vai prorrogando indefinidamente. Quando termina, o sigilo é levantado e a defesa é intimidade para falar sobre as interceptações, que são degravadas pela própria Polícia. Você não sabe como são degravadas nem se foram só as partes que interessaram para a acusação. A defesa teria que ouvir as gravações, mas como fazer isso se foram dois anos de interceptação e tem 30 dias para apresentar a defesa? É impossível. A Polícia não investiga mais, não sabe investigar! Começa com o grampo – e a lei diz que o grampo só é possível quando não há outra prova. Então, a defesa está prejudicada e a acusação está prejudicada por inépcia dos promotores que agora só querem saber de ação civil pública. Promotor não quer mais saber de acusação penal.

ConJur – Durante a operação satiagraha, que foi derrubada pela STJ em 2011, as interceptações telefônicas foram muito discutidas.
Ada Pellegrini Grinover – O STJ anulou o processo com base em um parecer meu.

ConJur – E o que a senhora argumentava em seu parecer?
Ada Pellegrini Grinover – Argumentei que houve um vício na investigação, porque não foi feita pelo órgão competente, que era a Polícia, mas pela Abin [Agência Brasileira de Inteligência]. Acho que contribuí para o decreto de prisão do delegado Protógenes Queiroz, o “grande herói da nação”. A operação foi uma arbitrariedade só. Não discuto o mérito, sou processualista, mas tem alguma coisa errada em uma investigação feita pela Abin a pedido da Telecom Itália.

ConJur – A senhora consideraria válidas como prova as gravações feitas pelo [o ex-presidente da Transpetro] Sérgio Machado com integrantes da cúpula do PMDB, onde discutiram a “lava jato”?
Ada Pellegrini Grinover – A gravação clandestina de conversa própria não tem regulamentação legal. Tem a construção da jurisprudência, que ainda é oscilante. Uma parte diz que segue o mesmo regime das interceptações e outros dizem que não, que se é de conversa própria pode utilizar como quiser. Não há regulamentação legislativa, então entendo que a gravação clandestina se sujeita ao mesmo regime da interceptação, que só pode ser utilizada sem autorização judicial se for em benefício próprio, não para acusar terceiros. Mas a jurisprudência ainda não está sólida.

ConJur – Ele está negociando um benefício, que é o benefício da delação premiada. Esse seria um benefício próprio válido?
Ada Pellegrini Grinover – Seria.

ConJur – A principal atividade do Ministério Público é denunciar. O que fazer para que esse trabalho seja bem feito?
Ada Pellegrini Grinover – Primeiro, o Ministério Público tem que descer do salto, esquecer essa história do promotor natural, onde cada um faz o que quer. Eles não têm de dar satisfação a ninguém, não têm de pedir autorização para nada, fazem as bobagens que quiserem. E eles só fazem cursos na Escola do Ministério Público, que são cursos dados em geral pelos próprios integrantes do MP. Então, não ouvem ninguém. É muito raro ter promotores em nossos cursos de mestrado e doutorado.

ConJur – A Constituição de 1988 deu poderes demais para o MP?
Ada Pellegrini Grinover – A Constituição deu poder para o Ministério Público, mas eles inventaram o princípio do promotor natural por conta própria. Esse princípio é um absurdo. Não pode existir uma instituição com tanto poder que não receba nenhuma orientação. De onde tiraram essa história de que podem fazer o que quiserem? Deve haver diretrizes, indicações do que é importante e do que não é importante. Um dos advogados que trabalha em parceria comigo me chama de “o terror do Ministério Público” (risos). Mas me dou muito bem com a maioria deles. Não são todos que trabalham assim.

ConJur – A senhora criticou denúncias de 100 páginas e consideradas ineptas. E como avalia petições enormes apresentadas pelos advogados?
Ada Pellegrini Grinover – Quando vejo petições iniciais de 100 páginas eu também digo: “Estão loucos?”. Petições com 50 preliminares, a maioria delas furadas. O advogado civil perde o foco, não sabe distinguir o que é importante do que não é, não sabe qual é o ponto fulcral. O juiz vai ler uma petição inicial de 150 páginas? Contestações de 300? A advocacia está mal. Tudo está mal: advocacia, Ministério Público, juízes, todas as carreiras jurídicas. Eu faço pareceres, tanto no processo civil como no processo penal, e também faço memorais, quando o caso está no tribunal. Um memorial tem de ser curto e grosso, não pode repetir o que você disse no recurso. De que adianta repetir o que está no recurso e entregar para o ministro ou para o desembargador? Tem que ser um resumo do resumo.

ConJur – Quantas páginas tem um memorial da senhora?
Ada Pellegrini Grinover – No máximo, seis páginas.

ConJur – E os seus pareceres?
Ada Pellegrini Grinover – Nos pareceres tenho que citar doutrina, então são maiores. Têm entre 30 e 40 páginas.

ConJur – Em média, quanto custa um parecer?
Ada Pellegrini Grinover – Um parecer no campo penal varia muito, porque tem o pobre coitado que não tem onde cair morto e está preso, e você faz quase de graça, e tem empresários. O meu preço é por volta de R$ 100 mil. No processo civil é por volta de R$ 120 mil. Dá muito trabalho fazer um parecer. Quando alguém me consulta sobre um parecer, eu aguardo toda a documentação chegar para formar a minha posição sobre o assunto. Eu primeiro examino e digo se acho viável ou não. O prestígio do parecerista está justamente nisso: trabalhar com teses em que ele acredita.

ConJur – A senhora disse que hoje o Supremo está menos garantista. O Judiciário em geral está menos garantista?
Ada Pellegrini Grinover – Acho que o problema é outro. Eu dou pareceres em processos, então não estou interessada nem no fato nem no direito material, e tenho encontrado nulidades flagrantes. E o que tribunal faz? Vai ver o crime. Se o crime é daqueles que eles [os juízes] não gostam, como tráfico, não reconhecem nulidade nenhuma, porque querem punir. Tenho sentido muito isso, encontrado vícios de incompetência. Saem pela tangente porque o crime é de tráfico.

ConJur – Tanto na segunda instância quanto no STJ, no Judiciário como um todo?
Ada Pellegrini Grinover – Principalmente no STJ. A 5ª Turma do STJ era considerada uma turma muito dura e a 6ª Turma era considerada mais garantista. Agora inverteu. Há um acirramento, um quase pré-julgamento em relação a determinados crimes. ConJur – É papel do Judiciário combater a corrupção?
Ada Pellegrini Grinover – Não, não é papel do Judiciário.

ConJur – É papel do Ministério Público?
Ada Pellegrini Grinover – O papel do Judiciário pode ser punir e do Ministério Público acusar, para que não aja impunidade. Mas o combate à corrupção é um problema de política criminal, não é nem do Ministério Público e nem do Judiciário. Não é papel deles. Aliás, quando o Judiciário se apega ao tipo de crime que ele acha pior para justificar o desrespeito ao devido processo legal, eu fico com raiva. Eles estão fazendo muito isso.

ConJur – A senhora acha que no processo da “lava jato” o devido processo legal tem sido atropelado em nome do combate à corrupção ou a um mal maior? Esse processo segue caminhos melhores do que a satiagraha?
Ada Pellegrini Grinover – Na satiagraha, a investigação estava toda errada. Na lava jato, o juiz é competente. Acontece que ele está com muitos processos. Ele virou o juiz universal anticorrupção. Desrespeita-se o foro, desrespeita-se o lugar do fato. “É corrupção? Vai para o [Sergio] Moro.” Não pode ser assim. Mas, para dizer a verdade, não conheço o processo a fundo.

ConJur – Essa ideia de mandar tudo para o juiz Sergio Moro pode gerar nulidade das condenações?
Ada Pellegrini Grinover – Pode, claro. Aliás, tem vários advogados que trabalham nesses casos que levantaram a incompetência. Está errado ele virar o juiz universal anticorrupção.

ConJur – Mas nada foi anulado. A senhora acredita que há a possibilidade de anulação?
Ada Pellegrini Grinover – Por incompetência territorial? A regra da competência está fixada na Constituição, que é onde se limita o princípio do juiz competente. O foro é determinado pela lei e a lei pode prever a uma série de coisas. Se se tratasse de justiça incompetente, aí seria um problema constitucional.

ConJur – No âmbito estadual e federal, por exemplo?
Ada Pellegrini Grinover – Sim. Conflito de competência entre a Justiça trabalhista e a comum, por exemplo.

ConJur – Isso geraria nulidade?

Ada Pellegrini Grinover – Até inexistência do processo. Mas se se trata de uma competência prevista na lei, a lei pode também expor a prorrogação, a prevenção, tudo o que quiser. Então, não sei porque estão mandando tudo para o juiz Sergio Moro. Acredito que seja pela prorrogação de competência. Para mim, não é o problema de juiz natural que torna inexistente ou nulo o processo.

ConJur – A senhora considera Sergio Moro um bom juiz?
Ada Pellegrini Grinover – Ele é um pouco precipitado. De vez em quando, pisa na bola, mas não é um mau juiz. Trabalha bem, só que às vezes se empolga, como todo jovem sob holofotes.

ConJur – Como na divulgação do telefonema da presidente Dilma [Rousseff] para [o ex-presidente] Lula?
Ada Pellegrini Grinover – Pois é, foi uma bobagem levantar o sigilo quando não havia provas do fato investigado. Pisou na bola. É difícil resistir quando se é jovem, com todos os holofotes em cima. Mas ele se penitenciou, pediu desculpas. Ele fez algumas bobagens, e essa não foi a única.

ConJur – Alguns advogados mais implicantes dizem que o juiz Sergio Moro é o novo Fausto De Sanctis.

Ada Pellegrini Grinover – Ah não! A sentença do juiz Fausto De Sanctis no caso da operação satiagraha foi uma loucura. Vocês lembram dessa sentença condenatória? As ilações que faz do comportamento extraprocessual de Daniel Dantas. Aquela sentença também tem mais de 300 páginas.

ConJur – A senhora falou sobre a forte influência do MP sobre o juiz nas interceptações. A razão dessa influência passa pelo duplo papel que o MP tem na Justiça, de fiscal da lei e de parte acusatória?
Ada Pellegrini Grinover – Não, não acho. Imagina na Itália, onde Ministério Público e juiz são intercambiáveis? Lá, quem faz um concurso para o Ministério Público pode ser juiz. Realmente, é muito sério. Mas aqui não, até porque são diferentes as funções que desempenha no processo penal e nos processos em que é fiscal da ordem pública. A questão é que o Ministério Público tem mais acesso ao juiz, fala no ouvido. E o advogado não tem esse contato direto.

ConJur – Porque na “lava lato” vemos que o Ministério Público age junto do juiz.

Ada Pellegrini Grinover – Esse é o perigo. A defesa se complica.

ConJur – O MP deveria fazer mais acordo na área penal?
Ada Pellegrini Grinover – Deveria! Diminuição da pena privativa de liberdade, escolha do procedimento, claro que deveria!

ConJur – E por que não faz? É uma cláusula pétrea da Constituição?
Ada Pellegrini Grinover – É. O devido processo legal diz que ninguém pode aceitar uma pena se não depois de um processo. Não se pode transigir em Processo Penal. Cláusula pétrea: ninguém pode aceitar uma pena sem o devido processo legal. Se eu sou denunciado por um crime com pena de 15 anos, na Itália posso fazer um acordo com o Ministério Público e aceitar uma pena de 7 anos. Aqui no Brasil, não.

ConJur – Seria um avanço conseguir fazer esses acordos?
Ada Pellegrini Grinover – Seria, lógico! Acho até que o princípio da oportunidade seria um passo adiante. Deixar de fingir que conseguimos investigar todos os crimes. A Polícia não leva adiante o inquérito, a prescrição vem de propósito. Seria bom que se deixasse escolher os crimes a punir.

ConJur – Temos chance a chegar a isso? Ou só daqui a 250 anos?
Ada Pellegrini Grinover – São coisas enraizadas na cultura. Dizem que não se pode permitir porque haverá ofensa ao princípio da obrigatoriedade. Mas não há ofensa quando o delegado está colocando na gaveta algumas investigações? Precisamos parar de fingir que existe o princípio da obrigatoriedade. Não existe. Poderíamos dar ao Ministério Público o poder de decidir se vale a pena ou não perseguir, com controles, claro.

ConJur – Os acordos de delação não conseguem, de certa forma, negociar a pena?
Ada Pellegrini Grinover – A delação é uma negociação. É uma redução da pena; mas não basta delatar, precisa comprovar que aquela delação levou à descoberta efetivamente de provas sólidas e depois o juiz é quem decide, quem aceita ou não a delação e pode diminuir a pena. Mas é uma forma, sim, de negociar.

ConJur – A senhora é a favor do maior uso de delações, como tem acontecido?
Ada Pellegrini Grinover – A delação é muito apropriada para os crimes econômicos, porque são muito difíceis de apurar.



Lilian Matsuura é repórter da revista Consultor Jurídico.

Marcos de Vasconcellos é chefe de redação da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 12 de julho de 2016, 8h32

terça-feira, 19 de abril de 2016

"Brasil está acabando com sistema de freios e contrapesos dos poderes"




Por Giselle Souza


No dia 17 de fevereiro, o Supremo Tribunal Federal alterou sua jurisprudência e passou a admitir a prisão de réus condenados em segunda instância. Uma semana depois um desembargador do Rio de Janeiro, ao manter a condenação de um réu, sugeriu: “Vamos pedir a expedição do mandado de prisão contra essa pessoa tendo em vista a decisão do Supremo”.

O episódio, no qual o magistrado tentou aplicar uma decisão que sequer era vinculante e mal tinha sido tomada pelo STF causou perplexidade a quem acompanhava a sessão, relata o advogado Rodrigo Brocchi — que presenciou a cena. Ele conta que outro julgador “mais iluminado” divergiu e o mandado acabou não sendo expedido.

Brocchi, que atua como advogado de defesa na operação “lava jato”, vê com preocupação as recentes mudanças no entendimento dos tribunais, feitas a pretexto de tornar mais efetivas as punições. Para o advogado, muitas mudanças representam um verdadeiro atropelo às garantias da Constituição.

Ele destaca como exemplo disso outra decisão do STF: a que permitiu órgãos da administração tributária pedir aos bancos informações sigilosas de contribuintes, sem a necessidade de autorização judicial.

“O procedimento é uma coisa muito importante no Estado Democrático de Direito. Sem ele, acabamos na história de que os fins justificam os meios, punindo-se da forma que quiser. É uma coisa maquiavélica”, alerta.

Leia a entrevista:

ConJur — O que o senhor achou da decisão do Supremo Tribunal Federal que autorizou a prisão a partir da decisão de segunda instância?
Rodrigo Brocchi — A Constituição não dá margem para interpretação: a presunção de inocência dura até o trânsito em julgado da decisão judicial. Se a execução de pena tem início antes do julgamento dos recursos nas cortes superiores, não houve o trânsito em julgado, então está a se violar uma norma constitucional.

ConJur — O senhor acha que o atual momento político e as denúncias da operação “lava jato” contribuíram para essa decisão?
Rodrigo Brocchi — Acho que não só a “lava jato”, mas a crise atual, com o suposto envolvimento de pessoas importantes da República, o que tem gerado o pleito da sociedade pela prisão daqueles, em tese, teriam praticado qualquer conduta criminosa. Acho que o Supremo vem refletindo esse apelo popular, o que é errado. Para fazer um paralelo, na decisão de 2009, que dizia que a execução da pena só podia ter início após o trânsito em julgado, o relator disse que “se começarmos a acabar com os direitos e garantias fundamentais com a justificativa de que temos que por fim a impunidade no país, devemos ir todos às ruas com porretes e fazer justiça com as próprias mãos”. Temos que aparelhar o Poder Judiciário e melhorar o trâmite dos processos para que se acabe com essa história de que a impunidade é culpa dos bons advogados, os recursos e da prescrição. É preciso melhorar o Judiciário e manter em pé os direitos e garantias fundamentais.

ConJur — Como diminuir a sensação de impunidade e cumprir à Constituição ao mesmo tempo?
Rodrigo Brocchi — Acho que a gente tem que aparelhar as instituições; ter mais juízes, mais serventuários e mais pessoas de administração no Judiciário para que o processo tenha um trâmite mais célere.

ConJur — Na sua avaliação, essa decisão vai aumentar o número de pessoas dispostas a fazer delações?
Rodrigo Brocchi — Acho que sim. E acho também que isso não vai se refletir apenas na operação [“lava jato”]. Um exemplo concreto disso vi aqui no [Tribunal de Justiça do] Rio de Janeiro, em que terminado o julgamento de uma apelação, o desembargador pediu a palavra e disse: “agora temos que pedir que seja expedido do mandado de prisão contra essa pessoa por causa da decisão do Supremo, da semana passada”. Houve um pavor generalizado. Um desembargador mais iluminado pediu a palavra e disse que “não dava para ser assim, que a decisão não tinha efeito vinculante”. Aquele desembargador ficou emudecido e outro que compunha o quorum acompanhou este que fez a intervenção.

ConJur — A repercussão foi imediata.
RodrigoBrocchi — Acho que sim. Esse dia mostrou que a tendência do Judiciário de, quando houver condenação em segunda instância, é determinar a prisão das pessoas.

ConJur — Diante da atual conjuntura, o senhor acha que o Brasil está caminhando para um estado de justiçamento?
Rodrigo Brocchi — Sim, e para um estado de justiçamento preocupante. Estava falando outro dia com a minha sócia [Maria Cláudia Napolitano], que o Brasil está em um momento em que acabou-se com o sistema de freios e contrapesos de Montesquieu. O Executivo está sem poder, o Legislativo também, e o Judiciário está se sobrepondo aos outros dois. Não há um equilíbrio entre eles e isso é preocupante.

ConJur — Como o senhor avalia a posição do Ministério Público nessa conjuntura?
Rodrigo Brocchi — Acho que o Ministério Público está exercendo a função dele, da maneira que acha mais adequada, na parte da relação processual que busca a punição de quem ele entende ser o culpado.

ConJur — Sobre a operação “lava jato”, o senhor acha que realmente tem havido vazamento seletivo?
Rodrigo Brocchi — Não consigo dizer em concreto, mas a sensação é de que há um vazamento seletivo, até por estratégia de atuação.

ConJur — E qual é o prejuízo disso pra quem ainda está sendo julgado?
Rodrigo Brocchi— Pré-julgamento. As pessoas são julgadas pela imprensa antes de terem um julgamento judicial.

ConJur — Recentemente, um advogado de Mato Grosso do Sul questionou o vazamento da delação feita pela cliente dele, por temer pela integridade física dela. Essa é uma preocupação real?
Rodrigo Brocchi — Sim. A lei, ao falar de delações, é expressa sobre a manutenção do sigilo e as medidas de proteção para a pessoa que faz a delação. Na própria “lava jato”, diversos interrogatórios são feitos sem a filmagem da pessoa, mas simplesmente com o áudio, justamente para que não haja exposição.

ConJur — Como o senhor avalia a alteração na Lei Anticorrupção, no ano passado, que permite que as empresas envolvidas em corrupção voltem a contratar com o poder público?
Rodrigo Brocchi — O espírito da Lei Anticorrupção é punir, mas não obrigatoriamente por fim às empresas. Acabar com as grandes empreiteiras vai gerar um problema social enorme, seja por causa do desemprego ou da execução de obras para o Estado. Então as modificações são boas. A lei é clara: você é obrigado a ressarcir qualquer dano causado ao erário. A primeira das empresas a firmar o acordo de leniência pode ser isentada do pagamento de multa, mas não do pagamento do prejuízo. Temos que punir e tentar fazer com que elas [as empresas] criem regulamentos internos e normas de compliance, mas mantendo-as em pé. Extingui-las, só em última análise. Impossibilitá-las de contratar com o poder público é quase que decretar a quebra dessas companhias.

ConJur — O acordo de leniência não suspende a investigação criminal. Mesmo assim vale a pena para as empresas?
Rodrigo Brocchi — Vale a pena. Quem parte para um acordo de leniência tem noção de que certamente vai ser envolvido em algum procedimento criminal. Então, pesa o que é melhor: esperar o procedimento criminal chegar ou se apresentar, fazer um acordo de leniência e conseguir salvar seus executivos. Sim, porque a Lei Anticorrupção prevê expressamente que os executivos envolvidos nos atos de corrupção serão inseridos nesse acordo.

ConJur — Como o senhor avalia o ambiente da advocacia criminal atualmente?
Rodrigo Brocchi — Difícil. Saiu na ConJur e na Folha de S.Paulo uma carta dos velhos advogados para os jovens, que dizia “o momento é duro, mas a gente precisa continuar a brigar; vocês não passaram por isso, mas nós passamos na ditadura, e a gente tem que brigar não só pelos nossos clientes, mas para retomar o Estado Democrático de Direito e as garantias que vem sendo tolhidas”. Acho que a mentalidade hoje é essa: a realidade é dura, mas vamos continuar a brigar.

ConJur — Os advogados têm sido alvo de ataques?
Rodrigo Brocchi — A opinião pública é sempre ruim com relação aos advogados criminais. Confundem os advogados com os réus. Acham que eles não têm direito à defesa e que por defendermos alguém que supostamente cometeu um delito, cometemos os delitos juntos. Isso tudo é um círculo vicioso do momento que a gente vive.

ConJur — Como o senhor avalia a carta publicada pelos advogados que atuam na “lava jato”?
Rodrigo Brocchi — Os advogados têm que se manifestar, a OAB tem que se manifestar.

ConJur — A OAB tem sido omissa?
Rodrigo Brocchi — Omissa é um termo muito forte, mas tinha que ser mais presente na defesa das prerrogativas. No Rio, a OAB é muito atuante, mas eu estou falando de ir em defesa das prerrogativas, até de um modo genérico, pelas coisas que vem acontecendo.

ConJur — A “lava jato” tem uma quantidade histórica de colaborações premiadas. A que isso se deve?
Rodrigo Brocchi — Falando em tese, o que pode acontecer é que novas coisas são descobertas e contrapostas com o que foi dito antes. Então, verifica-se que a verdade não foi dita por completo ou falsearam a verdade.

ConJur — O que você achou da decisão que declarou constitucional a lei que autoriza a quebra do sigilo bancário pela administração tributária?
Rodrigo Brocchi — Um absurdo, mais uma quebra de garantia fundamental. É inacreditável o que o Supremo vem praticando. Eu li o voto do ministro Celso de Mello e ele aborda de forma bem clara e explícita o absurdo de se quebrar essa garantia e o benefício que se está dando a um terceiro, no caso o fisco, para exercer alguma poder de execução contra nós, contribuintes.

ConJur — O senhor acha que isso pode se refletir em um aumento de denúncias de lavagem de dinheiro?
Rodrigo Brocchi — Pode ser que sim. A gente não sabe quais os limites disso, qual será a interpretação que eles vão dar a partir do momento em que tiverem acesso às nossas contas. É complicado, pois isso serve para qualquer um, ainda mais em um país igual ao nosso, em que há um crime para qualquer ato praticado. Certamente é reflexo dessa decisão do STF [que autorizou a prisão a partir da condenação na segunda instância].

ConJur — Qual é o risco da execução começar com a decisão da segunda instância?
Rodrigo Brocchi — Começar a executar a pena e antes do fim de trânsito em julgado, por si só, é uma injustiça. O procedimento é uma coisa muito importante no Estado Democrático de Direito. Sem ele, acabamos na história de que os fins justificam os meios, punindo-se da forma que quiser. É uma coisa maquiavélica.

ConJur — Essa tem sido a lógica adotada nas investigações no Brasil?
Rodrigo Brocchi — Não é a regra, mas em alguns isso acontece. O Supremo vinha anulando operações em que tinham isso, de que os fins justificavam os meios. Mas agora passou a ser preocupante a vulnerabilidade dos direitos e das garantias fundamentais em função do momento que vivemos.

ConJur — Os advogados têm sido muito criticados por só atacarem a nulidade e pouco o mérito das denúncias. É o momento de se repensar como as defesas são conduzidas?
Rodrigo Brocchi — Não. O exercício da defesa pelo advogado tem que passar tanto pelo mérito quanto pelo respeito ao procedimento. Para isso, temos que usar de todas as cartas que a legislação permite. Não dá para valorar se a defesa está ou não combatendo o mérito de forma direta, se está ou não sendo efetiva. Se há alguma nulidade a ser atacada, tem que ser mostrada.

*Texto alterado às 10h30 de 18/4.

Giselle Souza é correspondente da ConJur no Rio de Janeiro.

Revista Consultor Jurídico, 17 de abril de 2016, 9h37

segunda-feira, 11 de abril de 2016

"Possibilidade de juiz ponderar normas consagra o irracionalismo no novo CPC"




Por Sérgio Rodas


A ciência processual brasileira precisa libertar-se da influência excessiva do Direito italiano e abrir-se mais às influências jurídicas de outros países. Somente assim as leis evoluirão e o processo passará a funcionar bem no Brasil.

Essa é a opinião do juiz federal Eduardo José da Fonseca Costa e um dos objetivos da recém-fundada Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro), presidida por ele. A instituição foi fundada para renovar as formas de abordagem do Direito Processual, em todos os seus ramos. Dessa maneira, seus membros estudam novas abordagens da matéria, que incluem enfoques filosóficos, psicológicos, sociológicos e linguísticos, muitas vezes baseados em experiências internacionais.

Alguns desses estudos visam descobrir quais aspectos fazem com que o juiz, inconscientemente, perca a imparcialidade. Já foi descoberto, por exemplo, que o juiz que conduz a instrução é influenciado por ela, e acaba julgando o caso com base nessa experiência. Para mitigar essa influência na formação de convicção do magistrado, Costa defende que julgadores diferentes cuidem da instrução, do julgamento de liminar e da apreciação do mérito.

Infelizmente, o novo Código de Processo Civil não levou essas descobertas em conta, avalia o presidente da ABDPro. Ele afirma que a norma tem pontos positivos, como a obrigação de os juízes fundamentarem suas decisões, mas já entra em vigor “natimorto” em vários pontos, como o sistema recursal, o qual afirma ser pior do que o código anterior.

“Eles extinguiram os embargos infringentes, é verdade, mas transformaram-nos em um modelo oficioso, ou seja, qualquer decisão não unânime em órgão colegiado obrigatoriamente leva à convocação de outros julgadores. E houve um aumento do leque de aplicação dos recursos pré-existentes. O sistema recursal brasileiro no CPC de 2015 não difere muito do que vigia em Portugal medieval. Todos os recursos do novo CPC têm origem na baixa Idade Média do Direito Lusitano. Nós não evoluímos em matéria recursal”, analisa.

O juiz federal também critica a possibilidade de o magistrado ponderar normas, e não só princípios, o que garante ser “uma das coisas mais assustadoras que eu já vi na história legislativa brasileira”. “Ou nós interpretamos normas de uma maneira metonímica, tomando o gênero pela sua espécie, que é o princípio, ou nós vamos consagrar de uma vez por todas o voluntarismo, o decisionismo, o irracionalismo, e algumas animalidades ancestrais que nós achávamos que a civilização liberal já havia enterrado”.

Essas falhas do novo CPC, a seu ver, se explicam pela perda do protagonismo dos profissionais do Direito na elaboração de leis — uma vez que a norma foi, basicamente, uma autorregulação. Segundo Costa, os trabalhadores da área viraram as costas para a sociedade e passaram a se concentrar em minudências formais. Com isso, eles deixaram de lado as abordagens de outras ciências que poderiam promover um aprimoramento legislativo.

Em entrevista à ConJur, Eduardo José da Fonseca Costa também discutiu as propostas de implementação no Brasil de um processo penal no modelo norte-americano e apontou que o surgimento de regras procedimentais específicas para campos como Direito Constitucional e Direito Tributário demonstra que o CPC deixou de atender às necessidades dessas áreas.

Leia a entrevista:

ConJur — O Brasil possui uma tradição processual própria ou ela é apenas importada de outros países?
Eduardo José da Fonseca Costa — É uma tradição bastante colonizada, e uma colonização parcial, porque nós não temos um copismo da doutrina estrangeira e muito menos um copismo da doutrina da Europa Ocidental, nós temos um copismo, grosso modo, da doutrina italiana. Isso por contingências históricas da chamada Escola Paulista de Direito, que recebeu a influência de grandes autores, especialmente o Enrico Tulio Liebman. Tudo isso foi gerando certa aversão da Escola Paulista de Direito a autores brasileiros que mais afeitos às tradições norte-americana e austro-alemã, como foi o caso do Pontes de Miranda. Nós vivemos num mundo de globalização doutrinária do processo, e de globalização também das soluções legislativas, não sem razão o Brasil hoje adota um sistema de precedentes obrigatórios, isso é um fenômeno mundial. E nós estamos abrindo um pouco mais os olhos para a tradição dos países anglo-saxões, mas não só isso que é interessante, nós não só estamos mais permeáveis a soluções legislativas nesses países, nós estamos cada vez mais recebendo a forma como esses países também fazem a chamada ciência processual. A associação quer contribuir com o avanço da ciência processual e quebrar esse círculo de fé no italianismo processual, que tanto vem atravancando o bom desenvolvimento da ciência processual no Brasil.

ConJur— Como o senhor avalia o novo CPC?
Eduardo José da Fonseca Costa — O novo CPC tem muitos avanços, mas ele já é natimorto em vários aspectos. De bom, ele traz à atividade jurisdicional algumas injeções de democracia e republicanismo, especialmente em matéria de motivação de sentenças. Essa é, talvez, uma das regras mais polêmicas do novo CPC, que obriga os juízes a enfrentarem todos os argumentos e fundamentos trazidos pelas partes. Infelizmente, o Judiciário foi referendando entendimentos autodefensivos com o objetivo de gerar economia de trabalho, mas nós sabemos que o princípio da motivação das decisões foi sendo sabotado paulatinamente no Brasil. Então, a bem da verdade, o que o novo código faz é simplesmente colocar as coisas nos seus devidos lugares.

Outro ponto positivo é a contagem dos prazos por dias úteis, uma conquista justa da classe dos advogados, o advogado tem que ter fim de semana.

O que me preocupa no novo CPC é um certo agigantamento dos poderes do juiz. Os poderes de flexibilização procedimental, por exemplo, me parecem um pouco perigosos. Outro ponto perigoso é esse poder indiscriminado de iniciativas probatórias do juiz, que, não raro, acaba descambando para quebras de imparcialidade. Acho que o novo CPC poderia ser um pouco mais sintonizado com as novas conquistas em psicologia comportamental cognitiva, que demonstram, por exemplo, que o juiz que concede uma tutela provisória não pode ser o que vai proferir a sentença, porque ele tende a confirmar a liminar. Da mesma forma, o juiz que tem contato com a produção da prova oral não pode ser o da sentença, porque ele sentencia contagiado pela prova oral que colheu.

Existem várias descobertas da chamada análise econômico-comportamental do Direito que detectam e conseguem desenvolver técnicas para neutralizar essas quebras inconscientes de imparcialidade. Portanto, são descobertas que acabam referendando um modelo mais adversarial de processo. Nós estamos indo no sentido oposto, o código reforça um sistema mais inquisitorial, aumentando os fatores de quebra de imparcialidade do juiz por enviesamento mental. Isso mostra que os nossos legisladores não estavam sintonizados com o que há de mais recente no estudo de Processo Civil, Penal e Administrativo nos países anglo-saxões e em Israel, por exemplo. Outro atraso foi o sistema recursal, que é pior e mais amplo do que o de 1973. Eles extinguiram os embargos infringentes, é verdade, mas transformaram-nos em um modelo oficioso, ou seja, hoje qualquer decisão não unânime em órgão colegiado, obrigatoriamente, por impulso oficial do presidente da sessão, leva à convocação de outros julgadores. Existem os embargos infringentes de ofício. E houve um aumento do leque de aplicação dos recursos pré-existentes, hoje há o agravo interno, que é o agravo regimental com âmbito de aplicação ampliado, amplificado. O sistema recursal brasileiro no CPC de 2015 não difere muito do sistema recursal que vigeu na Portugal medieval. Todos os recursos do novo CPC têm origem na baixa Idade Média do Direito Lusitano. Nós não evoluímos em matéria recursal.

ConJur— Juristas, como Lenio Streck, criticaram a ponderação de normas, prevista no parágrafo 2º do artigo 489. Segundo eles, esse dispositivo dá margem a arbitrariedades por parte dos juízes. O que o senhor pensa disso?
Eduardo José da Fonseca Costa — O dispositivo dá mais poderes ao juiz do que Hitler tinha. E é uma das coisas mais assustadoras que eu já vi na história legislativa brasileira. A tradição da metodologia jurídica moderna acabou cunhando uma forma objetiva de formulação de juízos de ponderação, o chamado postulado da proporcionalidade. A proporcionalidade, grosso modo, é uma técnica que resolve colisões entre princípios, não entre regras ou entre regras e princípios. Isso porque princípios são normas de caráter finalístico que prescrevem estados desejáveis de coisas, embora num plano mais abstrato os princípios pareçam harmônicos entre si, no plano prático eles acabam mostrando-se muitas vezes não harmônicos, gerando as colisões. E aí se desenvolveu uma técnica para a ponderação, que é exame de proporcionalidade, pela qual procura-se conformar as duas finalidades sem que qualquer uma delas seja totalmente suprimida, geralmente preponderando-se um princípio sobre o outro. Esse dispositivo vai além disso, porque ele fala em normas, e norma é gênero, de que são espécies a regra e o princípio.

Ele permite ao intérprete mais afoito e desavisado fazer ponderação entre toda e qualquer norma, inclusive entre duas regras. As regras seguem uma outra lógica, elas obedecem uma lógica de tudo ou nada, ou a norma incide porque é válida ou se não incide, embora o seu suporte fático esteja concretizado, é porque ela é inválida. Então, não cabe num conflito entre regras juízo de ponderação, porque uma delas simplesmente é inválida, e precisa ter a sua invalidade decretada, num controle de constitucionalidade. Tudo é possível de ser feito se essa regra for inadvertidamente aplicada na sua letra fria. Ou nós interpretamos normas de uma maneira metonímica, tomando o gênero pelo seu princípio, pela sua espécie, que é o princípio, ou nós vamos consagrar de uma vez por todas o voluntarismo, o decisionismo, o irracionalismo, e algumas animalidades ancestrais que nós achávamos que a civilização liberal já havia enterrado.

ConJur— Um dos principais objetivos do novo CPC foi o de combater a morosidade judicial. O novo código vai ser bem-sucedido nesse aspecto?
Eduardo José da Fonseca Costa — Não. Eventualmente, num ponto aqui, outro ali, ele pode trazer alguma injeção de republicanismo e democracia. Mas, se há uma coisa que o Código não propiciará é celerização de processos, por várias razões. Em primeiro lugar, nenhum prazo do CPC de 73 foi diminuído — ou foram mantidos no tempo que estão ou foram ampliados. Por exemplo, os prazos recursais são todos de 15 dias, enquanto no CPC anterior eram de dez, à exceção dos embargos de declaração. Segundo fator, hoje os prazos se contam por dias úteis. Em terceiro lugar, porque o Código exige uma motivação mais detalhada, e isso é muito bom, mas também atenta contra a celeridade. Mas, veja, a gente precisa ter em mente que nem sempre o mais rápido é o melhor. Se justiça tardia é injustiça qualificada, justiça muito afoita é justiça desqualificada, porque o juiz precisa plasmar recursos cognitivos para decidir de maneira adequada, e quando você impinge ao juiz metas de produção, em tempos recordes, quando os juízes são avaliados por merecimento a partir da sua produção, isso tudo começa a pressionar os juízes a julgarem de uma maneira pior. O código dá uma refreada nesse ponto. Portanto, esse não é o código da celeridade processual. Talvez seja o código da duração razoável do processo, uma coisa distinta. Certamente, é um código que tenta primar por um cuidado maior com o tempo ótimo que o juiz tem que levar para sentenciar, e que vai obrigar os juízes a terem mais atenção e comedimento, que, ao fim e ao cabo, é uma virtude que todo o juiz deve ter.

ConJur — O novo CPC dá um grande peso para os precedentes dos tribunais superiores. Mas há especialistas, como o professor Nelson Nery, que avaliam que esse peso dado aos precedentes é inconstitucional, porque os tribunais não têm competência para criar instrumentos com peso de lei. O senhor concorda com essa crítica?
Eduardo José da Fonseca Costa — Eu concordo com essa crítica em parte. Existem duas correntes radicais nessa matéria, alguns que dizem que o sistema de precedentes obrigatórios é inconstitucional, porque permite ao Poder Judiciário produzir uma norma geral e abstrata, com o mesmo quilate de lei, e, portanto, seria necessária a edição de uma emenda constitucional para autorizar isso. Essa é a posição do professor Nelson Nery Júnior. Existe uma outra corrente, que diz que o sistema de precedentes obrigatórios no Direito brasileiro permite ao Poder Judiciário produzir essas normas gerais e abstratas de conduta, de modo que os precedentes que serão aplicados serão obrigatórios não só para os juízes e tribunais, como também para a própria Administração Pública. E isto seria plenamente constitucional, porque estaria sintonizado com princípios como a segurança jurídica, a efetividade da jurisdição e a coerência do ordenamento jurídico. Na minha visão, não é nem uma posição e nem a outra. A letra fria do novo Código afirma que os precedentes que ele arrola são obrigatórios apenas para juízes e tribunais. O que isso significa? Que esses precedentes são normas não de conduta, mas são normas para os juízes sobre a produção de outras normas, individuais e concretas. Nesse sentido, e só nele, o sistema é constitucional. Se o Poder Judiciário produzisse normas gerais e abstratas, ou oponíveis à Administração Pública, fora das hipóteses de súmula vinculante, e decisões em controle abstrato, o novo CPC seria inconstitucional, porque estaria violando a separação de Poderes.

ConJur— O juízo de admissibilidade dos recursos especial e extraordinário havia sido transferido para o Superior Tribunal de Justiça e para o Supremo Tribunal Federal. Porém, essa alteração gerou muitos protestos, e a regra anterior foi restabelecida. Qual dos modelos é melhor?
Eduardo José da Fonseca Costa — Eu concordo com a gritaria. Nós temos que entender aqui duas coisas: há um problema da lógica dos tribunais de superposição, e há um problema de praticabilidade. O segundo problema nos mostra que se o novo CPC fosse implantado com a nova regra, isso inviabilizaria o Supremo e o STJ. Não haveria servidores e estrutura suficiente para dar conta desse juízo único de admissibilidade, que faz um bom filtro e reduz em mais da metade a subida dos recursos excepcionais. Em segundo lugar, é da lógica desses tribunais que nem tudo que a eles é posto seja por eles julgado. Os tribunais superiores não são uma segunda corte de apelação.

É preciso cuidado no fio das questões para que só aquelas de maior repercussão social sejam enfrentadas e impostas de cima para baixo, porque o desejável, a regra, é que a uniformização de jurisprudência seja feita de forma amadora, lenta. E isso os leigos, às vezes, não entendem, porque se os tribunais uniformizam de maneira muito rápida o entendimento, eles podem deixar de apreciar argumentos e fundamentos que ainda não estão amadurecidos. Isso acontece muito no STJ, que às vezes, de maneira afoita, leva uma questão à sessão e a pacífica. Só que ainda estão surgindo casos na primeira instância com argumentos mais robustos e fundamentos mais bem estruturados, talvez por advogados mais astuciosos, que ainda não foram levados a conhecimento das instâncias superiores. Passam-se alguns anos, aquelas causas sobem a esses tribunais, e eles são surpreendidos por argumentos que até então eles não tinham enfrentado, e aí surgem os chamados overrulings, as superações de jurisprudência.

ConJur— O Congresso discute a reforma do Código de Processo Penal. O que precisaria ter no novo Código?
Eduardo José da Fonseca Costa — Para se ter um novo Código do Processo Penal é preciso um consenso maior. Nós temos aí um verdadeiro braço de ferro entre os que querem um sistema mais inquisitorial e os que desejam um sistema mais acusatório, e daí não se chega a consenso nenhum. E isso é uma pena, porque o CPP atual vigente é de 1941, o design legislativo obedece a uma ideologia fascista vigente naqueles anos e, portanto, é um código que não foi positivamente contagiado pelos valores da república e da democracia. Por outro lado, os tribunais superiores não fizeram uma releitura republicana e democrática do CPP à luz dos valores plasmados no texto constitucional de 1988. Em um novo CPP, seria preciso levar em conta estudos de psicologia cognitiva que vêm mostrando uma série de fatores de quebra inconsciente de imparcialidade de juízes criminais e de jurados. De acordo com essas pesquisas, o juiz que instrui o feito, mormente o feito criminal, e tem contato direto no interrogatório com o acusado, e com as testemunhas, não tem condições psíquico-cognitivas de proferir a sentença. E, desgraçadamente, no Brasil, nós estamos caminhando no caminho oposto.

Hoje nós hipervalorizamos o princípio da oralidade no processo penal, o princípio da imediatidade e o princípio da identidade física do juiz. Um juiz federal no Brasil hoje é um juiz de garantias no inquérito policial, ele faz o controle da constitucionalidade, da legalidade, desses atentados à direitos fundamentais por meio de quebra de sigilos bancários, fiscal, interceptações telefônicas e telemáticas. Esse mesmo juiz é quem recebe a denúncia, esse mesmo juiz é quem instrui, esse mesmo juiz é quem sentencia e não raro ele será o juiz da execução criminal. Ele já está contagiado, praticamente é praticamente um delegado fantasiado com toga, ele não tem mais isenção para julgar o que quer que seja. Nós deveríamos ter um juiz para cada uma dessas etapas do processo penal.

ConJur— O sucesso da delação premiada na operação “lava jato” fez com que muitas pessoas passassem a defender que o Brasil adotasse um modelo processual penal mais parecido com o americano. Esse sistema daria maior ênfase às negociações penais e conferiria mais poderes para o Ministério Público. O que o senhor pensa disso dessa ideia?
Eduardo José da Fonseca Costa — Esse é um dos temas mais difíceis do processo penal. Isso porque essa lógica eficienticista do processo penal americano, que institui o plea bargain, as colaborações premiadas das quais a delação é só um exemplo, funciona muito bem. São sistemas que se mostram altamente eficazes no desbaratamento da macrocriminalidade. O sucesso da delação premiada se explica pela teoria dos jogos, por uma razão muito simples: os lances são finitos e quem dá os primeiros lances tende a se beneficiar mais do que quem fica para o fim. Os últimos delatores tendem a pegar as penas maiores, por isso que ele funciona tão bem. Então, quando se atua dentro de um sistema processual penal eficienticista, fundado em delações, em colaborações e em consensualidade, transitamos em um limite tênue entre a eficácia e a quebra das garantias. Em que medida os arguidos e investigados na operação “lava jato” estão sendo obliquamente coagidos a colaborarem? Será que essa lógica da teoria dos jogos não cria de maneira velada uma espécie de pressão irresistível aos acusados? Esse é um debate difícil e que precisaria ser aprofundado antes de uma mudança radical como essa.

ConJur— Existem propostas para criar regras processuais específicas para ramos do Direito que seguem as normas do processo civil. Dessa forma, há projetos para a criação do Código Processual Constitucional e do Código de Processo Trabalhista. O que o senhor pensa dessa maior especificação dos processos?
Eduardo José da Fonseca Costa — Isso é absolutamente inevitável, porque nós sempre precisamos conformar o instrumento às suas finalidades. Não sem razão circula no Processo Civil o princípio da tutela jurisdicional adequada, porque os formatos processual e procedimental têm que estar sintonizados com as especificidades do caso concreto, com a natureza da relação de direito material controvertida. Existem situações litigiosas que exigem uma solução mais rápida do que outras. Por exemplo, um litígio envolvendo pensão alimentícia é emergencial em si próprio, então precisa de um procedimento mais sumarizado. Da mesma forma, quando demora-se muito para resolver um conflito possessório, tende-se a tornar mais agudo o conflito social, por isso que existem liminares singulares. Então, cada situação, cada relação de direito material pede um tempo específico, uma sequência procedimental específica, uma estrutura de fases própria. Então, não é sem razão que se fala hoje em sub-ramos do direito processual não criminal, como processo civil societário, processo tributário, processo trabalhista, processo civil econômico. Há também ideias de um Direito Processual Público. Então, a gente vive um movimento centrípeto e um movimento centrífugo no Brasil, a pretensa necessidade de um CPC para regular a generalidade dos processos, e subsistemas processuais para atender a demandas específicas de ramos específicos do direito material. De qualquer forma, tanto um movimento como o outro mostram que nós dependemos de subsistemas processuais, e que os sistemas processuais mais gerais se tornam obsoletos muito rapidamente.

O novo CPC vai virar uma colcha de retalhos em menos de cinco anos, ele já está sendo retalhado na vacatio legis. Isso é um fenômeno mundial. Eu sou daqueles que prefere soluções mais lentas pela mão da doutrina da jurisprudência a soluções rápidas e abruptas do legislador. Isso porque quando você lida com Direito Processual, você interfere na estrutura do Poder Judiciário. Por exemplo, as varas estão precisando parar de trabalhar para readequarem todos os seus modelos de despacho, decisão, e sentença ao novo código, e são milhares de resoluções, de minutas, de modelos. Isso toma um tempo absurdo dos juízes, e das secretarias e dos cartórios. Os juízes vão ter que reaprender o código, a citar os artigos de cabeça, a entender suas bases. Uma coisa interessante que existe na Europa são leis processuais civis temporárias experimentais. Assim, é editada uma lei de vigência temporária e técnicos coletam dados estatísticos para ver se ela funcionou bem ou não. Se funcionou bem, vira lei definitiva. Se funcionou mal, não se renova o prazo de vigência. Se tem dúvida, se renova por mais um período idêntico, e com isso se faz uma espécie de legislação mais científica, testada laboratorialmente na vida social. Muito do que está no novo Código poderia ser feito por esse meio, como o incidente de resolução de demandas repetitivas, como os precedentes obrigatórios, que são megaequipamentos processuais sofisticados, de difícil e polêmica manipulação que poderiam ser antes testados por leis extravagantes de vigência temporária. Então, esse fenômeno dos subsistemas processuais só mostra a inadequação de um novo código editado a toque de caixa.



Sérgio Rodas é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 10 de abril de 2016, 7h20

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