Mostrando postagens com marcador DIREITOS HUMANOS. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador DIREITOS HUMANOS. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 20 de junho de 2012

DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS: SISTEMAS REGIONAIS

Helio Bicudo



RESUMO
O texto discorre sobre a institucionalização dos sistemas de promoção dos Direitos Humanos, ao longo do século XX. Tomando a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, como base e ponto de partida, o articulista aborda as três principais vertentes dos sistemas de promoção desses direitos: a européia, a americana e a africana. A evolução de cada uma delas descrita analógica e epistemologicamente, de forma a salientar singularidades sem perder de vista as influências recíprocas ou mesmo as determinantes próprias do contexto espaço-social. Para finalizar, o articulista destaca a importância do Tribunal Penal Internacional no estabelecimento de uma justiça ecumênica. Concomitantemente, alerta para o perigo contido na ameaça de os EUA não o ratificarem.

ABSTRACT
The text underlines the institutional character acquired by the main systems to promote Human Rights in the twentieth century. Taking the Universal Human Rigths Declaration, of 1948, as the basis for analysis, the author brings up three different approaches to promote these rights: the European, the American and the African. The evolution of each of them is described using its procedure as a basic reference. Besides, an analogical analysis, brings to the fore singularities, without ignoring reciprocal influences dictated by particular contexts, though. The author stresses the importance of the International Penal Court, as a means to establish ecumenical justice. At the same time, he reminds the reader of the risks implicit in the possible non-ratification of the IPC by United States.

Declaração universal dos Direitos Humanos. O marco zero e os pactos subseqüentes.
OS SISTEMAS de promoção e proteção dos Direitos Humanos foram instituídos à medida que os Estados dos continentes europeu, americano e africano assumiam a relevância dos direitos humanos, como fundamento para a construção e a sobrevivência de um Estado Democrático.
É o que se pode ler nas atas dos trabalhos que, na Europa, nas Américas ou na África, levaram à elaboração das chamadas Cartas de Direitos Humanos. Depois, vieram as Convenções especificamente dirigidas à proteção e à defesa desses direitos, primeiro, mediante o funcionamento das instituições dos Estados-partes e, em seguida e subsidiariamente, falhando estas ou se tornando omissas, pelos sistemas regionais de defesa dos direitos humanos.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948 - declaração de princípios em forma solene, estava destinada, desde a sua origem, a ser complementada por outros textos. Assim se lhe seguiram, depois de difícil elaboração, os dois pactos relativos aos direitos do homem, adotados pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 16 de novembro de 1966. Posteriormente, tivemos o Pacto Internacional sobre direitos econômicos, sociais e culturais. O Pacto Internacional sobre direitos civis e políticos entrou em vigor em 23 de março de 1976. O Protocolo Facultativo, que se lhe seguiu, foi adotado no mesmo dia e nessa mesma data entrou, igualmente, em vigor. O Pacto foi ainda complementado por um segundo Protocolo Facultativo, de 15 de novembro de 1989, visando a abolir a pena de morte, o qual entrou em vigor em 11 de junho de 1991. O conjunto desses textos forma o que costumamos chamar de "carta internacional dos direitos do homem". Ela pressupõe uma unidade de inspiração e de conteúdo dos textos que, em realidade, não existiu.
Assim, os pactos de 1966 e dos anos seguintes traduzem outras preocupações além daquelas da Declaração Universal de 1948 e contêm uma inflexão da ideologia dos direitos do homem em busca de maiores espaços. Resta recordar que a Assembléia Geral das Nações Unidas contava, naquele ano, com 58 membros. Em 1966, esse número subiu para 122. A ideologia majoritária não pode, portanto, ser considerada a mesma.
Enquanto a Declaração Universal se esforça por conciliar concepções liberais e marxistas entre liberdades formais e reais, "esquecendo que se o nazismo ignorou as primeiras, é em nome das segundas que o estalinismo suprimiu a todas", os pactos consagraram um fenômeno de coletivização dos direitos do homem. A Declaração Universal é inteiramente voltada para a pessoa: os direitos humanos são, antes de tudo, os direitos do indivíduo e a Declaração é endereçada aos indivíduos e não aos Estados ("Todo o indivíduo, ou toda a pessoa, tem direito [...]"). Os pactos são dirigidos aos Estados e não aos indivíduos ("Os Estados se obrigam à [...]") e a dimensão social do indivíduo é a pedra de toque a ser considerada. O homem não pode encontrar a realização dos seus direitos senão no interior de uma sociedade livre de toda contenção externa (colonização) ou interna (opressão): o interesse do indivíduo se confunde com aquele da sociedade em que vive.
Os três sistemas hodiernos
Contamos, hoje, com três sistemas distintos, que possuem os mesmos objetivos, mas com práticas diversas. Todos eles, entretanto, buscando a preeminência dos Direitos Humanos, segundo as regras internacionalmente admitidas. Permitem, assim, que entidades instituídas pela vontade dos povos atuem para corrigir desvios no campo desses direitos, consentidos em ações ou omissões dos Estados, para restabelecer o Direito e a Justiça. A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, que, aliás, precede a Declaração Universal, tem como sujeito a pessoa humana ("Todo ser humano tem direito [...]"). Da mesma forma, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e os pactos e protocolos que se lhe seguiram, são endereçados aos Estados e não aos indivíduos ("Os Estados-partes nesta Convenção [...] Os Estados Americanos, conscientes do disposto na Convenção [...]).
Em verdade, a proclamação regional dos direitos do homem, circunscrita de início à Europa e à América, alcançando depois a África e até mesmo o mundo árabe-islâmico, é obra das organizações regionais concernentes: o Conselho da Europa, a Organização dos Estados Americanos, a Organização da Unidade Africana e a Liga dos Estados Árabes. Diga-se, de passagem, que o continente asiático apresenta a particularidade, contrariamente às outras regiões, de não ter adotado convenção regional alguma e mecanismo institucional algum destinado a promover e a proteger os direitos humanos, sobre uma base regional ou sub-regional.
Se olharmos para o nosso hemisfério, o que aqui se elaborou em nada difere daquilo que se debateu nos países-membros da União Africana. Esses países preocuparam-se com a concretização de um programa comum que obtivesse, no continente africano (respeitando, naturalmente, as grandes distâncias étnicas, ali existentes), a integração de seus povos na linha de um ideal comum de solidariedade. Destarte, erigiram a pessoa humana como a principal preocupação ética, acima dos governos ou das religiões ou mitos cultuados na região.
O sistema europeu
Do ponto de vista europeu, o Conselho da Europa e a Convenção Européia de salvaguarda dos direitos do homem e das liberdades fundamentais expressam a vontade de promover e defender a liberdade e a democracia, vontade essa que permeia o Estatuto do Conselho da Europa. Segundo preâmbulo desse Estatuto, os Estados signatários estão, sem dúvida, ligados aos valores morais e espirituais que são o patrimônio comum de seus povos e que estão na origem dos princípios de liberdade individual, de liberdade política e da preeminência do Direito, sobre os quais se funda a verdadeira Democracia. O artigo 3º do Estatuto precisa que todo membro do Conselho da Europa reconheça o princípio da preeminência do Direito e o princípio em virtude do qual toda a pessoa sob sua jurisdição deve gozar dos direitos do homem e das liberdades fundamentais. Esse liame estabelecido entre o respeito dos direitos do homem e o regime democrático aparece reforçado pela Convenção Européia, que entrou em vigor em 3 de setembro de 1953 e que se constitui no primeiro tratado multilateral concluído no quadro do Conselho da Europa.
A adesão, após 1989, dos Estados "pós-comunistas" ao Conselho da Europa, traz sua subordinação à prevalência do Estado de Direito, ao regime democrático e parlamentar "verdadeiro" e à garantia dos direitos do homem.
Contudo, o alargamento do Conselho da Europa operado em benefício de Estados como a Armênia, Azerbaijão, Bielo-Rússia, Bósnia-Herzegóvina e a Geórgia, que se mostram incapazes de respeitar o engajamento fundamental inscrito no aludido artigo 3º do Estatuto do Conselho da Europa, determina uma diminuição de seus padrões, circunstância que põe em causa a própria credibilidade do sistema europeu.
Anunciando que a União respeita os direitos fundamentais, como são garantidos pela Convenção Européia e que bem assim resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados-membros, como dos princípios gerais do direito consuetudinário, o tratado sobre a União Européia, de 7 de fevereiro de 1992, nada mais faz do que constitucionalizar a construção pretoriana operada pela Corte de Justiça das Comunidades Européias, em matéria de respeito dos direitos do homem.
O Tratado de Amsterdam, de 2 de outubro de 1997, que entrou em vigor em 1º de maio de 1999, traz uma revisão do Tratado da União Européia e daquele que institui a comunidade européia. Ele inscreve a questão dos direitos fundamentais em uma outra perspectiva. Em primeiro lugar, o Tratado da União Européia revisado, ao afirmar que a União está fundada sobre os princípios da liberdade, da democracia, do respeito aos direitos do homem e das liberdades fundamentais, como do Estado de Direito, princípios que são comuns aos Estados-membros, erige os três princípios (respeito dos direitos do homem, democracia, preeminência dos direitos) que formam "o patrimônio comum" de valores, segundo o Estatuto do Conselho da Europa e a Convenção Européia, considerados verdadeiros princípios constitucionais da União Européia, do que resulta que seu respeito se torna uma condição estatutária de adesão à União. Em segundo lugar, o Tratado de Amsterdam contém uma garantia dos direitos fundamentais que, até esse instante, fazia falta: a garantia jurisdicional e política. Ademais, o Tratado de Amsterdã procede à consolidação normativa dos direitos fundamentais.
O sistema europeu sofreu profunda modificação. Funcionando, anteriormente, com uma Comissão e uma Corte, com a emenda adotada pelo protocolo de 11 de maio de 1994, que entrou em vigor em 1º de novembro de 1998, passou a contar com apenas uma Corte, reestruturando-se os mecanismos originários. O protocolo 11 jurisdicionaliza o sistema de proteção, permitindo o ingresso direto das vítimas à Corte. Essa jurisdicionalização total do processo de proteção - necessariamente acompanhada pelo direito de qualquer indivíduo, que se encontre em um dos Estados-parte, a demandar diretamente contra os Estados ante um Tribunal internacional - entrou em vigor na Europa ao mesmo tempo em que ocorriam avanços substanciais no processo de unificação de alguns países, tais como a eliminação total de barreiras impositivas e a adoção de uma moeda única.
Entretanto, a incorporação dos países do Este ao sistema europeu determinou grandes tensões como conseqüência da grande avalanche de casos, que passaram a ser apresentados, a tal ponto que o Secretário Geral da Corte Européia, falando por ocasião dos atos comemorativos dos trinta anos da Convenção Americana de Direitos Humanos, celebrados em novembro de 1999, em São José da Costa Rica, assinalou que o sistema europeu de proteção e defesa dos Direitos Humanos encontrava-se em crise. Em verdade, já no seminário sobre o sistema interamericano de defesa e proteção dos Direitos Humanos, que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos fez realizar em Washington, em 1996, os participantes europeus questionavam a sabedoria de reduzir-se a flexibilidade do sistema europeu para abri-lo a tensões, até então, ignoradas. Valorizavam altamente o sistema dos órgãos em nosso hemisfério, que permite um filtro de petições, que de outro modo perturbariam o melhor funcionamento do sistema.
É certo que o mecanismo europeu de controle sofria, desde sua origem, de duas deficiências: sua complexidade tornava o procedimento de controle pouco visível para os peticionários; seu caráter híbrido, meio jurisdicional, meio político, afetava sua credibilidade. A verdade, entretanto, é que o sistema inicial adotado (Comissão, Corte, Comitê de Ministros do Conselho da Europa) não se adaptou ao volume de denúncias individuais apresentadas.
Vejamos: de 1955 (data de entrada em funcionamento da Comissão) a 31 de outubro de 1998, foram registrados 44.056 pedidos na Comissão, dos quais 5.006 no ano de 1988. Se a média anual de pedidos registrados é de 444, de 1975 a 1984, ela atinge 3.102, de 1990 a 1998; o ano de 1988 vê o limite de mil petições anuais ser ultrapassado sucessivamente, nos anos de 1993, 1995, 1996 e 1998, com duas, três, quatro e cindo mil petições, respectivamente. Segundo informa o professor Cançado Trindade, presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Corte Européia se vê, hoje em dia, às voltas com cerca de 26 mil demandas em diferentes níveis de processamento.
O protocolo suprime as cláusulas facultativas de aceitação do direito de recurso individual e da jurisdição da Corte e abre, de pleno direito ao indivíduo, o acesso ao órgão judiciário de controle. Em seguida, procede a uma unificação orgânica ao substituir os três órgãos de decisões existentes (Comissão, Corte e Comitê de Ministros do Conselho da Europa) por um só órgão - permanente - a Corte Européia dos Direitos do Homem.
Uma Câmara, constituída de três juízes, módulo ordinário de julgamento da Corte, passa a exercer as funções, precedentemente, atribuídas à Comissão: exame de admissibilidade, estabelecimento dos fatos, conciliação e decisão de mérito. O procedimento, cuja transparência é, todavia, relativa, é o seguinte: filtrada por um Comitê de três juízes (que, por unanimidade, poderá declarar a petição inadmissível), a petição individual será encaminhada a uma Câmara de sete juízes, que decidirá sobre sua admissibilidade e, depois de uma tentativa de conciliação, decidirá sobre o mérito. Essa decisão, porém, não é definitiva, pois uma das partes pode pedir que o processo seja enviado a uma grande Câmara, de dezessete juízes. Esse reexame está, porém, subordinado à aceitação de um colégio de cinco juízes e só poderá ter lugar, excepcionalmente, quando se tratar, por exemplo, de uma questão grave de interpretação ou de aplicação da Convenção.
A reestruturação, como se vê, deixa que subsista a diversidade funcional que existia (admissibilidade, conciliação, duplo exame do mérito) e não muda, fundamentalmente, o procedimento.
Essas alterações tiveram por conseqüência principal a exclusão do Comitê de Ministros como órgão de decisão. Ele continua a fiscalizar a execução das decisões da Corte, mas deixa a jurisdição do sistema de controle. Extingue-se a Comissão, ou seja, o órgão que permitia uma filtragem dos procedimentos, antes de considerá-los ou de submetê-los à Corte.
A Corte Européia conta, na sua organização atual, com 41 juízes e cerca de cinqüenta advogados. Uma estrutura que parecia atender aos reclamos de uma maior celeridade e eficiência está, entretanto, comprometida por um verdadeiro risco de explosão, acrescido pela extensão já mencionada da Convenção Européia aos países pós-comunistas, com a perspectiva de um formidável fluxo de novas demandas individuais, pois ela terá, doravante, cerca de 750 milhões de jurisdicionados virtuais.
O sistema americano
O continente americano nos dá o segundo exemplo de regionalização dos Direitos Humanos, no âmbito da OEA e da cooperação interamericana, ao instituir um mecanismo de proteção sofisticado, fortemente inspirado no modelo europeu. A qualidade do discurso de proclamação contrasta - deve-se afirmar - singularmente, com a situação real dos Direitos Humanos na América Central ou na América do Sul.
A carta constitutiva da OEA foi adotada em Bogotá, em 30 de abril de 1948, pela IX Conferência Internacional Americana (depois emendada pelo Protocolo de Buenos Aires, de 27 de fevereiro de 1967). O preâmbulo da Carta afirma que "o verdadeiro sentido da solidariedade americana e de boa vizinhança não se pode conceber senão consolidando, no continente e no quadro das instituições democráticas, um regime de liberdade individual e de justiça social baseado no respeito aos direitos fundamentais do homem". A carta prevê, por outro lado, a criação de uma Comissão Interamericana dos Direitos do Homem, órgão consultivo da OEA sobre a matéria.
A convenção americana relativa aos direitos do homem, de 22 de novembro de 1969, adotada pelos Estados-membros da OEA em São José (Costa Rica), entrou em vigor em 18 de julho de 1978, com o depósito do 11º instrumento de ratificação. Vinte e cinco Estados ratificaram a Convenção até 1º de julho de 1998. Hoje são 35 Estados. Convém ressaltar que os Estados Unidos e o Canadá não ratificaram até hoje a Convenção, questão que está na ordem do dia das reuniões, em sede das Américas, segundo o princípio da universalidade dos Direitos Humanos. É bem verdade que nos termos da Convenção de Viena sobre o direito dos tratados, os países signatários de um tratado, mesmo que não o tenham ratificado, devem abster-se de qualquer ato contrário a seu objeto e propósito, até que tenham decidido anunciar sua intenção de não tornar-se parte do tratado. No caso, apesar de os Estados Unidos da América não serem parte da convenção de Viena, o Departamento de Estado Americano a reconhece como texto básico, na área de tratados e atos processuais. Segundo a premissa de que a reserva é incompatível com o objeto e a finalidade de um tratado e que os Estados Unidos da América não são parte da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, o Departamento de Estado desse país entende que as normas da Convenção de Viena se constituem numa declaração do direito internacional costumeiro e, nesse caso, devem ser reconhecidas. Isto porque, segundo, ainda, a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, deve-se reconhecer a importância progressiva dos tratados como fonte do direito internacional e como meio do desenvolvimento pacífico e cooperativo entre as nações, quaisquer que sejam suas Constituições e sistemas sociais. Não é o caso, porém, do Canadá, que sequer firmou a Convenção Americana.
A convenção Americana reflete a mesma inspiração ideológica da Convenção Européia, quando afirma, em seu preâmbulo, que os direitos fundamentais do homem, não obstante o fato de pertencer a um dado Estado, repousam sobre os atributos da pessoa humana e que um regime de liberdade individual e de justiça social não pode ser estabelecido senão no quadro das instituições democráticas. Os direitos proclamados são similares e, sobretudo, o mecanismo institucional de proteção estava decalcado no então sistema europeu: a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na forma do que dispõe a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, é um órgão autônomo da OEA, que tem como função principal promover a observância, a defesa e a promoção dos Direitos Humanos e servir como órgão consultivo da OEA sobre a matéria. Ela se compõe de sete membros, eleitos a título pessoal, para um mandato de quatro anos, renovável por mais quatro, pela Assembléia Geral da Organização, dentre pessoas de alta autoridade moral, que se tenham destacado na área do conhecimento dos direitos humanos. A Corte é composta também por sete membros com as mesmas qualificações, com um mandato de seis anos (renovável por mais seis).
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos tem uma função quase jurisdicional, pois é ela que recebe as denúncias de violações que lhe são apresentadas pelas vítimas ou por quaisquer pessoas ou organizações não-governamentais, contra atos violatórios de direitos fundamentais por parte dos Estados ou que não tenham encontrado reconhecimento ou proteção por parte dos mesmos Estados. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos processa essas denúncias, procede ao seu exame e, depois de admiti-las, faz recomendações aos Estados e, ao final, decide se apresenta ou não o caso à Corte. Assim, a Corte só passa a decidir sobre os casos que lhe são apresentados pela Comissão ou por um Estado-parte.
A Comissão de Direitos Humanos da OEA é, ao mesmo tempo, um órgão ou etapa "processual" no sistema de petições individuais estabelecido sob a Declaração e a Convenção Americanas e um órgão de "vocação geral" na região americana, em matéria de Direitos Humanos. Nesse sentido, ela é uma mescla de Comitê de direitos civis e políticos do Pacto Internacional de 1966 e de Comissão de Direitos Humanos da Nações Unidas. Sua riqueza vem justamente do caráter parcialmente público e parcialmente judicial. A salvaguarda de sua imparcialidade e da correção de seu funcionamento é o caráter "supervisor" da Corte Interamericana.
Para os Estados que não aceitaram a cláusula de jurisdição obrigatória da Corte Interamericana, a Comissão é o único órgão de solução de litígios do sistema e deriva sua competência da carta da OEA e do estatuto da Comissão, além da Convenção Americana (para os estados que a ratificaram). Ela concentra, em um único órgão, a investigação dos fatos, a apreciação dos argumentos jurídicos e a imposição de sanções.
Assim, é fundamental para a vitalidade do sistema interamericano de Direitos Humanos, como a Comissão de Direitos Humanos asseverou na Assembléia Geral da OEA, que teve lugar na Guatemala, no mês de junho de 1999, e reiterou, ante a mesma Assembléia, realizada em Windsor (Canadá), em junho de 2000, o cumprimento pelos Estados-partes das sentenças da Corte e recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Os órgãos políticos da Organização devem cumprir com o objetivo central de assegurar o cumprimento das decisões dos órgãos de proteção. O fortalecimento do sistema não depende, pois, unicamente e nem se esgota no funcionamento dos órgãos de supervisão.
Em última instância, sua efetividade está vinculada à ação que os órgãos políticos estejam dispostos a empreender ante quantos ignoram suas obrigações internacionais. Os Estados e os órgãos apontados constituem-se na garantia coletiva do cumprimento das normas de direitos humanos. Passados, ainda, poucos dias da Assembléia de Windsor, em resposta a colocações feitas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos perante o Comitê de Direitos Políticos e Sociais da OEA, o representante dos Estados Unidos assinalou a conveniência de estabelecer-se um órgão encarregado de acompanhar o cumprimento das decisões e das recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
O sistema africano
Vejamos, em seguida, o sistema africano de proteção dos direitos humanos.
A Carta Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos foi adotada pela Assembléia dos representantes da Organização da Unidade Africana (OUA), em 27 de junho de 1981, em Nairobi, Quênia, tendo em vista a decisão 115 (inciso XVI) da Assembléia dos representantes, adotada em sessão ordinária, que teve lugar em Monróvia, de 17 a 20 de julho de 1979. A iniciativa visava a preparar um um draft preliminar para a elaboração de uma Carta Africana sobre os direitos do homem e dos povos, estabelecendo instrumentos para a luta contra o colonialismo e o racismo.
A Carta constitui um aporte importante ao desenvolvimento do direito regional africano e cobre uma lacuna essencial em matéria de direitos humanos. Ela entrou em vigor somente em 21 de outubro de 1996 com o objetivo de priorizar os direitos dos povos. Tais direitos são concebidos como um direito à independência e não como um direito à secessão, ao qual a prática da União Africana é totalmente contrária, em nome do princípio da intangibilidade das fronteiras da integridade territorial. As disposições da Carta relativas ao direito dos povos são também a expressão, a mais clara, da tendência moderna à coletivização dos direitos do homem. Sob esse aspecto, a Carta apresenta a singularidade de fazer coabitar conceitos aparentemente antagônicos: indivíduo e povo, direitos individuais e direitos coletivos, direitos da chamada "terceira geração" (direitos sociais, econômicos e culturais) e direitos clássicos (civis e políticos).
A Carta Africana criou, em seu artigo 30, uma Comissão africana do homem e dos povos. Trata-se de um órgão técnico independente, composto por catorze membros escolhidos por suas qualidades pessoais, encarregado da promoção e da proteção dos direitos do homem. Para esse efeito, a Comissão pode ser solicitada pelas faltas de um Estado às disposições convencionais, provocada por outro Estado ou por particulares.
No plano regional, a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos põe em prática um procedimento sumário e comunicações estatais que permitem a um Estado-parte a denúncia de violações da carta cometidas por outro Estado-parte.
O regimento interno da Comissão, adotado em 13 de fevereiro de 1988, distingue dois tipos de comunicação individual: a apresentada por um indivíduo que se pretende vítima de uma violação de um dos direitos enunciados pela Carta e aquela apresentada por um indivíduo da "Organização da Unidade Africana", alegando uma situação de violação grave ou massiva dos direitos do homem e dos povos. Esse sistema de comunicação não tem, realmente, por objeto, remediar violações individuais dos direitos do homem. A carta (art. 55) estabelece, nesse caso, que a denúncia constará de uma lista de comunicações similares, que é transmitida aos membros da Comissão, que indicarão quais deles deverão ser considerados. Ademais, a carta não prevê o tratamento individual de petições admissíveis.
Nos termos de seu artigo 58, a Comissão, assim como o acordo da Assembléia dos Chefes de Estado e da direção da Organização da União Africana, poderá promover estudos aprofundados, em decorrência de comunicações relativas a situações reveladoras da existência de violações graves ou massivas dos direitos do homem e dos povos. De outro lado, a Comissão poderá afirmar essa vocação de órgão protetor dos direitos individuais, à semelhança da evolução constatada na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O mecanismo, entretanto, é fortemente restritivo. Assim, as recomendações da Comissão não podem ser dirigidas diretamente aos Estados concernentes, mas devem ser feitas ao órgão supremo da Organização da União Africana, que decide da oportunidade de publicar as recomendações da Comissão (art. 59, § 3º). O órgão intergovernamental da Organização da União Africana desempenha, portanto, o papel de intermediário obrigatório e protetor da soberania estatal: a eficácia do sistema parece, assim, bastante duvidosa.
O protocolo adotado em Ovagadongou, em 9 de junho de 1998, já em vigor, trata da criação de uma Corte Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, cuja intervenção pode ser solicitada pelos indivíduos e pelas organizações não-governamentais, sob a reserva da aceitação prévia de sua competência pelo Estado-parte. A decisão da corte é revestida da autoridade de coisa julgada definitiva (art. 30 do Protocolo sobre a criação de um Tribunal Africano dos Direitos do Homem e dos Povos); o acompanhamento de sua execução é confiada ao Comitê de Ministros da Organização da União Africana (art. 29, n. 2, do mesmo Protocolo).
Três sistemas e um objetivo comum
Como se vê, os três sistemas têm um objetivo comum - a proteção e a defesa dos Direitos Humanos - que é alcançado segundo as peculiaridades de cada um. Não se trata aqui de concluirmos qual seja o melhor, mas de encontrarmos em todos eles a maior eficiência segundo o mandato que lhes é determinado. A plena jurisdicionalização do sistema será a solução?
Se o objetivo, buscado pelo Conselho da Europa, está encontrando dificuldades, dada a avalanche de solicitações que acorrem à Corte Européia, no nosso hemisfério, o sistema se ressente da imprescindível universalização e de um mecanismo que imponha, aos Estados-partes, o cumprimento das decisões da Corte e das recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Por outra parte, o sistema africano, implantado faz pouco tempo, terá sua eficiência comprovada no correr dos próximos anos.
Mas o que me parece fundamental é que, a par da universalização dos sistemas - o que ainda não aconteceu no caso das Américas e do Caribe - aperfeiçoando-se, com a experiência já acumulada as práticas na apuração das violações e responsabilização dos Estados e do cumprimento obrigatório das decisões e recomendações dos órgãos, guardando sempre o princípio de que o primeiro combate pela implementação dos Direitos Humanos deve ocorrer nos Estados-partes, mediante sua própria atuação, segundo os princípios que conformam o Estado de Direito Democrático, tenha-se em consideração que os sistemas assinalados são subsidiários e só atuam quando os Estados negam esses direitos fundamentais, que qualificam a cidadania de nossas mulheres, homens e crianças.
TPI - sob a espada de Dâmocles
Para completar o exame sucinto ora feito, dos sistemas regionais de defesa e proteção dos Direitos Humanos, valeria, ainda, menção ao Tribunal Penal Internacional. Ele foi criado pelo Estatuto de Roma, em julho de 1998, e entrou em vigor no dia 1º de julho de 2002.
O Tribunal em questão, com competência para julgar pessoas pelos crimes mais graves de transcendência internacional, tem caráter complementar das jurisdições penais nacionais. Ele surgiu depois das experiências dos Tribunais de Nuremberg e de Tóquio, adequadamente denominados tribunais dos vencedores e mais prosaicamente dos Tribunais instituídos para julgar os crimes praticados em Ruanda e nos territórios da antiga Iugoslávia. Trata-se, sem dúvida, de um relevante marco no progresso do estabelecimento de uma justiça mundial. Nada menos do que 76 países o subscreveram e ratificaram e se empenham, agora, na sua instalação. O Brasil já ratificou o Estatuto e depositou o instrumento de ratificação na Secretaria das Nações Unidas.
O Tribunal Penal Internacional encerra a promessa de um mundo no qual os responsáveis por genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade não mais restarão impunes. Seus autores serão submetidos à Corte Internacional, nos casos em que os Estados-partes não conseguirem ou não se dispuserem a submetê-los à Justiça. Cumpre assinalar, entretanto, que os Estados Unidos da América, por decisão de 6 de maio de 2002, anunciaram oficialmente que não pretendem ratificar o estatuto da Corte Penal Internacional e se consideram desobrigados de todos os ônus decorrentes de sua anterior adesão. A esse respeito, a União Européia observou que esse ato unilateral poderá ter conseqüências lastimáveis sobre a conclusão multilateral dos tratados e, de uma maneira geral, sobre o princípio da preeminência do direito nas relações internacionais.
Com esta consideração, de relevante oportunidade, a comunidade internacional tem a esperança de, num futuro próximo, segundo diálogo a ser aberto com os Estados Unidos, encontrar o caminho para abrigar a cooperação americana na inteira aplicação da justiça, alcançando a abrangência do Estatuto de Roma.
Bibliografia
ANKUMAH, Evelyn A. (1996). The African Commission on Human and Peoples' Rights - Practice and Procedures. Dordrecht, Martinus Nijhoff. [ Links ]
BELLO, Emmanuel G. (1985). "The African Charter on Human and Peoples' Rights - A Legal Analysis". Recueil des Cours de l'Académie du droit international (RCADI), V, vol.194, pp. 9-268. [ Links ]
BELLATI, M. (1984). "De Penélope à Antígona?". Projeto, n. 151, p. 34. [ Links ]
CANÇADO-TRINDADE, A. A. (1987) "Co-existence and Co-ordination of Mechanisms of Protection of Human Rights". RCADI, II, vol. 202. [ Links ]
CLEMENTS, L. J. (1994). European Human Rights - Taking a Case under the Convention. London, Sweet & Maxwell, pp. 40-64. [ Links ]
COHEN-JONATHAN, Gérard (1989). La convention européenne des droits de l'homme. Paris, Economica, pp. 31-102. [ Links ]
GROS ESPIELL, Hector. (1989). "La Convention américiane des droits de l'homme et la Convention européenne des droits de l'homme - analyse comparative". RCADI, VI, vol. 218, pp. 167 e ss. [ Links ]
HAMELENGUA, M. (1984). L'Organisation de l'unité africaine. Paris, Silex. [ Links ]
MACDONALD R. As. J., MATSCHER, F. e PETZOLD, H. (eds.). (1993). The European System for the Protection of Human Rights. Dordrecht, Martinus Nijhoff, pp. 605-620. [ Links ]
MATSCHER, Franz. (1997). "Quarante ans d'activités de la Cour européenne des droits de l'homme". RCADI, vol. 270, pp. 237-398. [ Links ]
MBAYE, Keba. (1992). Les droits de l'homme en Afrique. Paris, Pedone, pp. 217-254. [ Links ]
MONCONDUIT, François. (1965). La Commission européenne des droits de l'homme". Leyden, A. W. Sijthoff-Leyde. [ Links ]
OJI UMOZURIKE, U. (1997). The African Charter on Human and Peoples' Rigths. Dordrecht, Martinus Nijhhoff, pp. 67 e ss. [ Links ]
RIDEAU, Joël. (1997). "Le rôle de l'Union europénne en matière de protection des droits de l'homme". RCADI, vol. 265, pp. 9 e ss. [ Links ]
SECRETARIAT of the Council of Europe. (1970). Manual of the Council of Europe (Struture, Functions and Achievements). London, Stevens, Rothmans, pp. 266-276. [ Links ]
Hélio Bicudo é advogado, jornalista e vice-prefeito de São Paulo. Foi deputado federal entre 1991 e 1994; Membro-fundador da Comissão Justiça e Paz de São Paulo em 1972; Membro da Comissão Teotônio Vilela de Defesa dos Direitos Humanos em 1983; presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados em 1996, da Comissão Municipal de Direitos Humanos em 2002, do Centro Santo Dias de Direitos Humanos em 1998, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos-OEA em 2000. Atualmente, atua como Delegado para o Brasil da Organização Mundial contra a Tortura e Conselheiro da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança. É ainda autor de vários livros, dentre eles Cem anos de Direito e Justiça no Brasil.

domingo, 3 de junho de 2012

AS GERAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS

Terceira Geração

OS DIREITOS DOS POVOS OU DA SOLIDARIEDADE

O mundo convive, na proximidade do século XXI, com o paradoxo da crescente internacionalização dos direitos humanos, cada vez mais entronizados no direito interno estatal, e a flagrante escalada de novas formas de imperialismo, de dominação e de violação costumaz desses próprios direitos. Do domínio das armas ao controle econômico, dos boicotes ostensivos aos subornos de todo tipo, da especulação das empresas transnacionais à cumplicidade de oligarquias locais, das regras unilaterais de mercado ao peso das dívidas externas, do mega-protecionismo aos impedimentos de uma tecnologia autóctone – tudo conduz a uma realidade profundamente desigual entre as coletividades organizadas do planeta. E o lado fraco no jogo de interesses desta era pós-industrial, inegavelmente, são os países subdesenvolvidos, de industrialização periférica e economia centrada na exportação de matérias-primas (uns mais, outros menos).

A bissegmentação mundial entre países ricos (hemisfério Norte) e países pobres (hemisfério Sul) e o desnível entre eles existente, como se sabe, é um fato histórico relativamente recente. Em todas as sociedades civilizadas do mundo, o nível básico de vida foi praticamente o mesmo, até o Renascimento (séculos XIV-XV). A revolução comercial (mercantilista) acabou cavando diferenças em favor dos países que se dedicaram ao comércio externo e ao colonialismo. Com a Revolução Industrial (séculos XVIII-XIX), as sociedades industriais passaram a Ter, em relação às sociedades que permaneceram agrárias, vantagens cada vez mais aceleradas. E a nova Revolução Industrial, especialmente a sociedade terciária e informacional contemporânea, faz multiplicar essa vantagem, por um fator altíssimo, em benefício dos membros do restrito clube pós-industrializado.

Ao mesmo tempo, ao longo desse processo, sobressai toda uma tradição de lutas políticas e econômicas de cada povo e cada país pelo seu livre desenvolvimento, e que progressivamente passaram a Ter amparo jurídico internacional. Das batalhas anticolonialistas à guerra contra o poderio tecnológico-industrial, da resistência frente ao expancionismo personalista à oposição anti-imperialista – em nenhum desses momentos têm faltado contribuições e sacrifícios, a título pessoal ou coletivo, em prol da liberdade, da paz e da justiça social no plano internacional.

A saga societária para liquidar a opressão – qualquer que fosse sua forma ou pretexto – e pela afirmação soberana dos povos, tomou vulto no século XIX, com o direito de “autodeterminação dos povos” ou “princípio das nacionalidades”. Mais precisamente a partir de 1820, quando uma ordem de movimentos liberais irradiou-se pela Europa. Associados aos ideais de democracia, república ou monarquia constitucional, intensificaram-se os anseios e iniciativas de cunho nacionalista. E, ao contraditar-se o princípio do “legitimismo” – reacionária posição do Congresso de Viena (1815) para conservar o absolutismo -, formulou-se o “princípio das nacionalidades”: todo povo que se considerasse uma mesma nação (identidade ética-cultural) deveria constituir-se em Estado independente, livre do jugo estrangeiro; e, da mesma forma, as diversas parcelas de uma nação deveriam fundir-se num só Estado.

O direito de “autodeterminação dos povos”, pois, se forjou na crença da soberania popular, nascida nos embates ideológicos das revoluções burguesas, que vieram substituir o absolutismo feudal pelo Estado capitalista liberal. Segundo ela, todo poder emana do povo e, portanto, só ao povo cabe decidir sobre seu próprio destino, estribada em rico filão documental: Declaração de Virgínia – 1776 (art. 2º), Declaração francesa de 1789 (art. III), Declaração francesa de 1793 (arts. XXIII a XXVI). Já na época das revoluções socialistas e dos movimentos de libertação nacional, que são marcas registradas do século XX, a idéia de soberania popular ganha uma dimensão incomparavelmente maior e mais concreta, sendo exemplos: as transformações e reformas sócio-econômicas que se efetuam, a socialização de boa parte da economia, o surgimento de uma economia nacional independente – atualmente, a preocupação central da maioria dos países do Sul; indubitáveis tentativas, na ótica do especialista José MONTESERRAT Fº, de construir, por caminhos diversificados, “uma base material ampla, um patrimônio dinâmico e produtivo de toda a nação, capaz de elevar sensivelmente os padrões de existência, cultura, produtividade e participação de todos os setores da população ou, pelo menos, de sua maior parte” (O que é Direito Internacional, SP, Ed. Brasiliense, 1982).

Ao término da II Guerra Mundial, após a derrota dos Estados totalitários nazi-facistas, 51 países reuniram-se em São Francisco (EUA) e firmaram a Carta fundadora das Nações Unidas, em 26 de junho de 1945. Por via dessa Carta, o princípio da “autodeterminação” se estabeleceu em definitivo no Direito Internacional, pois faz parte dos propósitos da ONU “desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de igualdade de direito e de autodeterminação dos povos” (Artigo 1, alínea 2). Reconhecendo o princípio da “autodeterminação”, reafirmado em inúmeros documentos, o Direito Internacional rejeitou toda e qualquer idéia de estagnação de povos ou Estados e a defesa intransigente do “status quo” (situação vigente). Ademais, aceitou a tese de mobilidade histórica e progresso social, franqueando a possibilidade aos povos e países de, legitimamente, aspirar e galgar sempre mais elevados níveis de organização interna e desenvolvimento. Em outras palavras, cotejando tão somente o artigo 55, da Carta da ONU, e o art. XXVIII, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, é válido concluir que: a) os direitos econômicos, sociais e culturais são direitos do cidadão e dever do Estado; b) o Estado, absorvendo em si os direitos individuais e coletivos, passa a agente prestador dos direitos humanos, ao tempo em que também ele se torna beneficiário da nova ordem internacional que se preconiza para a realização de tais direitos. Todavia, conquanto seja responsável pela consecução de medidas que materializem os direitos econômicos, sociais e culturais, o Estado tem o direito de autodeterminar-se nos seus assuntos internos, sem qualquer ingerência externa. Ficam no ar as perguntas: todos os Estados dispõem dos recursos necessários para tornar efetivos os direitos de Segunda geração? Quantos Estados têm condições de se autodeterminarem nas relações externas? Onde a nova ordem recomendada?

Talvez seja oportuno descortinar a realidade mundial advinda depois da Última Grande Guerra: a) consolidação da hegemonia norte-americana no campo capitalista; b) constituição do sistema socialista internacional sob a liderança da URSS (cujo sistema-satélite recém-desintegrou-se); c) supressão do colonialismo; d) industrialização das periferias; e) formação e consolidação das corporações transnacionais (ou multinacionais); f) desenvolvimento da revolução científico-tecnológica baseada na contínua automação do processo produtivo.

Junto com a valorização do ideal democrático, ocorreu a divisão do mundo em dois blocos de poder – Estados Unidos (Ocidental capitalista) x União Soviética (Comunismo). Com estes, teve início a “guerra fria”, com a instalação de bases militares norte-americanas na Europa Ocidental, a teoria do “perigo comunista” e a venda de armamentos. Os soviéticos, por sua vez, também construíram sua bomba atômica e cuidaram de assistir a seus aliados. E a humanidade passou a viver não mais sob a ameaça de conflitos convencionais, de genocídios e matanças localizadas, mas sob o signo da destruição total.

Por outro lado, as novas relações internacionais desse pós-guerra apresentou novos autores, com o processo de descolonização da Ásia e da África e as lutas contra o racismo e o “apartheid”, ensejando inclusive a oficialização do movimento dos países não-aliados (não participação em blocos militares), através da célebre Conferência de Bandung (Indonésia), em 1955. Aliás, essa Conferência ratificou o princípio da “autodeterminação, que desde a Carta da ONU (1945) vinha servindo de base legal para a histórica campanha que fez soçobrar quase por completo o colonialismo. Nesse ponto, impõe-se um parêntese: é impossível negar que a breve história política desses povos, vindos de conquistar a independência, demonstra suficientemente que a autodeterminação de cada qual foi, em grande parte, fictícia. Faltavam-lhes, por certo, os meios para satisfazer as mínimas demandas da população, num sério questionamento aos solenes enunciados de direitos.

A par disso, o panorama mundial apresentou, nas duas últimas décadas, uma nova e complexa gama de situações, a influir na realidade e nos anseios do Terceiro Mundo. O risco da solução final, de um descomunal conflito nuclear “sem vencedores”, levou ao câmbio das regras da guerra fria pelas da coexistência pacífica. No bojo desse arranjo de conveniências – dos anos 70 para os 80 -, o conflito, a competição e a cooperação vieram operando no quadro de uma ampla confrontação industrial e tecnológica que, nos seus desdobramentos, mantiveram e ampliaram a repartição do mundo em dois segmentos de países: um desenvolvido (Norte) e outro subdesenvolvido (Sul). E mais,: a rápida modernização do planeta, o domínio da comunicação e da informação, o aumento da produtividade de uns poucos pela informatização (Japão, Estados Unidos e alguns países europeus), a relativa “Pax Americana” diante do colapso da URSS (hoje, CEI), a impraticabilidade de um desarmamento real e a formação de megamercados regionais, são alguns outros fatores a comprovar o agravamento do desnível Norte-Sul na presente década.

Essa rápida análise, por modesta que seja, revela uma nova etapa na evolução e no conceito de direitos Humanos. Assim, a terceira geração de direitos surge na paulatina conscientização, por parte das nações menos desenvolvidas, da necessidade de uma mudança de situação, com condição primordial ao alcance dos meios que permitam a plena vigência dos direitos humanos.

A indissociabilidade dos direitos individuais e coletivos, bem como a consciência de que sua fruição por inteiro é proporcional ao esforço conjugado do Estado, do indivíduo, dos grupos sociais e das diferentes nações, levaram os países pobres a encetar movimentos e reivindicações comuns, inclusive valendo-se de eventuais relações multilaterais, como ocorreu com a proposta de “patrimônio comum da humanidade” quanto aos recursos dos fundos oceânicos, defendida pelo “Grupo dos 77” – número originário do bloco dos países terceiro-mundistas, articulado dentro da ONU, nos anos 70.

Foi com esse espírito que, na Conferência de Argel, em 1976, um grupo de países do Sul proclamou a “Declaração dos Direitos dos Povos”. Nela propuseram a busca de “uma nova ordem política e econômica e internacional, em cujo contexto possa dar-se “o respeito efetivo dos direitos humanos”. E, no mesmo ano, a V Conferência de Cúpula dos Países Não-Aliados, em Sri Lanka (ex-Ceilão), definiu – com validade hodierna: “Só uma reestruturação total das relações econômicas internacionais, mediante o estabelecimento de uma nova ordem econômica internacional, permitirá aos países subdesenvolvidos alcançar um nível aceitável de desenvolvimento”.

Corroborando com tais assertivas, o “Simpósio de especialistas sobre o tema dos direitos de solidariedade e direitos dos povos”, convocado pela UNESCO, em San Marino (1984), concluiu que os direitos proclamados (através da ONU) são os direitos dos povos à sua existência, à livre disposição dos recursos naturais próprios, o direito ao patrimônio natural comum da humanidade, à autodeterminação, à paz e à segurança, à educação, à informação e à comunicação, a um meio ambiente são ecologicamente equilibrados. O corolário desses direitos todos vem a ser o direito ao desenvolvimento, “de cuja realização se deriva, com efeito, o respeito da maioria dos demais direitos e liberdades dos povos” (art. 38).

O tema do “direito ao desenvolvimento” tem originado debates e levantado muitas expectativas na conjuntura contemporânea. Ele é defendido por Z. HAQUANI como “um conjunto de princípios e regras no fundamento dos quais o homem, enquanto indivíduo ou membro do corpo social (Estado, nação, povo...) poderá obter, na medida do possível, a satisfação das necessidades econômicas, sociais e culturais indispensáveis a sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade”. E, K. M. BOYE afirma, quanto a esse direito, que os seus credores são os indivíduos, os povos e os Estados, enquanto os devedores se resumiriam na totalidade da comunidade internacional. A ONU, em algumas de suas resoluções, já incluiu o direito ao desenvolvimento nos direitos humanos. Por último, renomados estudiosos consideram-no, ao mesmo tempo, como um direito do Estado e um direito da pessoa humana. (Apud Celso D. de Albuquerque MELLO, Curso de Direito Internacional Público – 1º vol., 9ª ed., RJ, Ed. Renovar, 1992).

Para muitos, na sociedade internacional em que vivemos, caracterizada por uma verdadeira “revolução mundial” – composta de uma série de “revoluções contínuas” – criam corpo as exigências de novas medidas e mentalidades quanto à aplicação dos direitos humanos na perspectiva dos interesses coletivos. Dessa forma, a redefinição da ordem internacional, no interesse dos povos do Terceiro Mundo, aponta para os seguintes requisitos:

Reconhecimento do direito a um desenvolvimento livre de ingerências externas, que não implique em qualquer forma de dominação, hegemonia ou atrelamento, com rigoroso respeito à integridade territorial desses países e inviolabilidade de suas fronteiras;

Reconhecimento de plena soberania dos países do Sul sobre os seus próprios recursos naturais e atividades econômicas essenciais, também assegurando-se-lhes, de fato, a completa igualdade nas relações econômicas internacionais;

Criação de mecanismos internacionais para firmar uma redistribuição justa das receitas procedentes do intercâmbio econômico em favor dos países subdesenvolvidos. Isso inclui o direito de controlar as atividades e lucros das multinacionais, uma política democrática de preços das matérias-primas, e, a ampliação da ajuda financeira e técnica aos países atrasados/dependentes;

O predomínio da cooperação e da multipolaridade entre nações, sujeitando-se o exercício da soberania ao princípio da “função social”;

O direito a um meio ambiente saudável e ecologicamente equilibrado, o que questiona os modelos desenvolvimentistas adotados;

O direito à utilização do “patrimônio comum da humanidade”, ou seja, o acesso compartido dos povos aos recursos do alto-mar, dos fundos oceânicos, do espaço exterior e das regiões polares.

Assim, tais direitos dos povos ou de solidariedade podem e devem servir às transformações imprescindíveis na conjuntura mundial, conforme vão se consolidando como instrumento de moralidade política internacional, favorecendo o desenvolvimento de relações justas, equânimes, pacíficas e solidárias.


A PROTEÇÃO INTERNACIONAL

DOS DIREITOS HUMANOS


Os direitos humanos são cada vez menos matéria de jurisdição doméstica dos Estados Unidos, para cada vez mais interessar e obrigar a totalidade da vida internacional. A solidificação e a prática desses direitos, porém, se estribam em três premissas inconfundíveis: a sua entronização e respeito na ordem interna de cada país; a sua incorporação no direito internacional; e, a criação de instrumentos de controle que impunham a sua aplicação.

Na verdade, o problema de fundo dos direitos humanos, hoje em dia, não é tanto o de declará-los ou de encontrar argumentos para justificá-los – que existem, e muitos -, mas sim o de protegê-los. Vale dizer, a sua realização se situa no terreno político, e não filosófico.

O primeiro passo, taxativamente, foi a transposição desses valores basilares para as Cartas Políticas que se tornaram praxe com os movimentos revolucionários do século XVIII, fórmula com que se buscou conferir-lhes o máximo de eficácia. Assim, os direitos individuais (civis e políticos) e os direitos coletivos (econômico, social e cultural) foram, aos poucos, integrando os textos constitucionais ou a legislação positiva da maioria dos Estados. Contudo, a experiência tem demonstrado tanto no passado como no presente, que muito embora afirmadas e garantidas constitucionalmente, as liberdades públicas – assim nominadas a positivação, pelo poder estatal, das duas classes de direitos – não raramente se apresentam divorciadas da realidade do povo. Essa circunstância dicotômica, encontrada em muitos países – ontem ou hoje -, deve ser atribuída a um claro desvirtuamente da própria idéia de Constituição, ardilosamente perpetrada pela classe dirigente, mas que não invalida a contínua necessidade desse instrumento na efetivação dos postulados democráticos. Sobre esse tema (Constituição), sua importância e alguns desdobramentos, veja-se o capítulo Constituição e Cidadania.

Por outro lado, os desequilíbrios sociais impulsionados pela Revolução Industrial e os efeitos múltiplos das duas grandes guerras da primeira metade do século XX, sacudiram a consciência mundial e levaram – Estados , grupos sociais e indivíduos – a valorizar o tema dos direitos e garantias da pessoa humana, na evidência de que ninguém poderia Ter par ou desfrutar das liberdades enquanto perdurassem as estruturas sociais injustas. Portanto, a começar com a Carta das Nações Unidas (1945), a explicitação e a defesa dos direitos humanos ganharam relevo inusitado, cada vez mais merecendo a atenção e mesmo sendo objeto direto de inúmeras declarações e atos jurídicos internacionais (bilaterais ou multilaterais, celebrados por Estados ou Organizações).

Ora, o prévio reconhecimento do ser humano como sujeito de direito das normas internacionais é a condição “sine Qua non” para se discorrer sobre a proteção dos direitos básicos na ordem internacional (da Segunda metade do século) – sem desacreditar o acervo contributivo existente, de maneira especial o gestado no período entre-guerra (1919-1938). Nesse particular, a maior parte dos doutrinadores contemporâneos defende a posição de que são sujeitos de Direito Internacional: os Estados, as organizações externas, o próprio homem; isto é, cada ente que possuir direitos e deveres perante o regramento jurídico internacional. Para Celso de Albuquerque MELLO, comungando da orientação jusnaturalista, existem duas fortes razões para o homem ser considerado pessoal internacional: a) a própria dignidade humana, que leva a ordem jurídica internacional a lhe reconhecer direitos fundamentais e procurar protegê-los (O homem “é um fim em si mesmo” - J. Maritain); b) a própria noção de direito, “obra do homem e para o homem” (Ob. Cit. Pág. 624). De fato, com a democratização do DI, não se pode mais negar a personalidade internacional do indivíduo; o homem é tão pessoa internacional quanto o Estado, apenas a sua capacidade jurídica e de agir é bem mais limitada. Inclusive, é expressivo o fato de já se notar inúmeros autores que pregam um Direito Internacional dos Direitos Humanos como uma especificidade, porque ele é posto em movimento pelo indivíduo, enquanto o DI Geral o é pelo Estado. Assinale-se, outrossim, que a década de 80 foi caracterizada por um rico desenvolvimento dessa área jurídica, tanto na interpretação dos direitos fundamentais como na criação e florecimento de mecanismos mais eficazes para sua proteção.

A par disso, tornou-se necessária a instalação de instâncias ou mecanismos controladores da ação dos Estados, quer para fazê-los respeitar os direitos da população de seu território, quer para impedi-los a honrar os princípios do direito internacional. Esses organismos se classificam em universais e regionais, diferenciando-se de acordo com sua composição, seus objetivos e métodos de trabalhos e, por derradeiro, sua competência.

Nessa altura, a questão que se coloca para o Direito Internacional é que lhe falta o poder coercitivo, por não se vislumbrar mundialmente um órgão de controle direto e fiscalizador, com aptidão de exigibilidade sobre as ações violadoras de um Estado. Os atos dos sistemas (universais/regionais) de proteção existentes têm apenas um caráter moral, de repreensão ao Estado infrator e de alerta à comunidade internacional, intentando fazer cessar a violação. Em outras palavras, o Direito Internacional, contrariamente ao Direito interno, não tem governo nem polícia, e seus tribunais de justiça não têm jurisdição obrigatória, ou seja, eles só julgam e decidem se entre as partes envolvidas houver um acordo nesse sentido, aceitando o julgamento e a executoriedade da sentença que for lavrada.

Ademais, acabam se chocando os mecanismos de controle com o velho conceito limitado de soberania nacional, que tem como colorário o princípio da “não-intervenção” em assuntos de responsabilidade interna de cada Estado. Essa concepção irrestrita de soberania impede as ação efetiva dos organismos estabelecidos na sociedade internacional para a defesa dos direitos gerais da humanidade.

A dificuldade de punir os Estados transgressores, enquanto compreendidos os sistemas de proteção internacional como expressão exclusiva das conveniências estatais, tem levado não poucos experts” a denunciar uma diferença de tratamento nessa matéria motivada por uma compreensão bipartida dos direitos humanos. Assim, os direitos individuais (civis e políticos), institucionalizados há mais de trezentos anos, encontram-se amparados, dentre outros meios, pela faculdade que têm os particulares e os Estados de apresentarem denúncias de violação a órgãos internacionais (comissões ou tribunais especializados); das investigações pertinentes pode-se chegar à cessação coativa da ilegalidade e mesmo, à reparação dos danos causados. Os direitos coletivos (econômicos, sociais e culturais), entretanto, quiçá porque elaborados mais recentemente, gozam de menor arrimo, que consiste o mais das vezes numa espécie de controle político do cumprimento das obrigações assumidas pelos Estados; os organismos se cingem a fazer “recomendações” de caráter geral, pois boa parte das convenções não exigem que os países implementem de imediato tais direitos. O procedimento díspar dispensado a tais categorias de direitos, lamentavelmente para a população terceiro-mundista, foi reforçado pela própria Assembléia Geral da ONU, em 1966, quando aprovou dois Pactos Internacionais distintos: um sobre “Direitos Econômicos, Sociais e Culturais” e outro sobre “Direitos Civis e Políticos” – fórmula na época considerada mais propícia à vinculação dos Estados, sem indicar com isso uma ordem de precedência entre ambos os tratados.

Ao contrário do que pensam alguns, os direitos de segunda geração e os de terceira, não podem ser vistos como normas secundárias ou inferiores, esvaziadas de anteparos legais e abandonadas aos casuísmos dos governantes. E aos Estados se inviabilizou, nas últimas décadas, a possibilidade de esquivarem-se do compromisso/dever de defenderem e de proporcionarem o alcance dos direitos e garantias essenciais com a surrada cantilena de que os grandes instrumentos nesse campo encerram “efeitos unicamente morais”. Essas assertivas de há muito deixaram de ser polêmicas, dado o cunho imperativo que a ordem jurídica internacional decidiu conferir a tais direitos, percebidos no conjunto de suas três gerações. Senão vejamos:

Os sistemas de proteção dos direitos capitais, logrando superar a ortodoxa distinção entre os tratados (como instrumentos vinculantes) e as declarações (não obrigatórias), sujeitaram ao Estado aos dispositivos destas últimas. Em vista disso, a Carta das Nações Unidas (1945) contém postulados obrigatórios para os países, uma vez que os direitos do homem é uma das finalidades da ONU; o seu desrespeito ensejaria uma incongruência na própria sociedade internacional, já que os Estados-Membros poderiam violar um dos objetivos da referida organização. Por seu turno, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) – que inicialmente carecia de obrigatoriedade -, teve o seu conteúdo posteriormente incorporado ao direito consuetudinário através da prática dos Estados e dos organismos (universais ou regionais). A obrigatoriedade da Declaração Universal foi, afinal, reconhecida pela Ata Final da Conferência Internacional sobre Direitos Humanos, celebrada em Teerã (1968), ao aclamar que “a Declaração (de 1948) enuncia uma concepção, comum a todos os povos, dos direitos iguais e inalienáveis da todos os membros da família humana e a declara obrigatória para a comunidade internacional”. Além disso, a Declaração Universal tem sido aplicada reiteradamente pela Assembléia Geral em resoluções que condenam violações de direitos e tem exercido uma grande influência na legislação e nas constituições dos países, e inclusive utilizada por tribunais nacionais. Fechando esse ponto, tome-se a abalizada orientação do Juiz da Corte Internacional de Justiça, E. Jiménez de ARECHAGA, centrado em decisões daquele organismo, no sentido de que a norma que passou “a ser parte do corpus do Direito Internacional geral” (pela via consuetudiária) ... é tida como obrigatória ao Estado “automaticamente e independente de qualquer manifestação de consentimento, tanto expresso como emplícito, que este último tenha prestado” (Apud. Daniel O’DONNELL. In: “Proteccion Internacional de los Derechos Humanos”.

Por outro lado, não há qualquer fundamento válido para os Estados desconsiderarem a estreita interligação e interdependência de todos os direitos humanos. Pelo contrário, nas últimas décadas intensificaram-se as decisões e as recomendações sobre a executabilidade global dos direitos, precipuamente os de primeira e Segunda geração (individuais e coletivos). O veredicto irrecorrível nessa questão foi dado pela Conferência de Teerã (1968), quando a ONU, comemorando o 20º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamou: “Sendo indivisíveis os direitos do homem e as liberdades fundamentais, o gozo completo dos direitos civis e políticos é impossível sem o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais. Os progressos duráveis através da aplicação doas direitos do homem supõem uma política nacional e internacional racional e eficaz de desenvolvimento econômico e social”.

Apesar – e por causa – das dificuldades criadas pelo conceito de soberania absoluta do Estado no plano das relações internacionais, principalmente no tocante às prerrogativas fundamentais do ser humano, é alentador observar a multiplicidade dos mecanismos de proteção existentes a respeito, seja a nível geral ou regional. A partir da Carta das Nações Unidas (1945), podem ser destacados os seguintes documentos com tal destinação:

I. Tratados firmados sob os auspícios da ONU

(Declarações, Convenções, Pactos, Cartas)


1. Tratados Gerais:

* Declaração Universal dos Direitos do Homem – aprovada pela Assembléia Geral, reunida em Paris, no dia 10 de dezembro de 1948, (por 48 votos a favor e 8 abstenções)

* Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – aprovado pela Assembléia Geral, em 16 de dezembro de 1966 (105 votos a favor e nenhuma contra). Entrou em vigor no dia 30 de janeiro de 1976;

* Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos – também aprovado em 16 de dezembro de 1966. Entrou em vigor no dia 23 de março de 1976;

* Protocolo Facultativo relativo ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos – os dados são os números são os mesmos do Pacto já mencionado.


2. Tratados Específicos:

proteção da Mulher – Convenção sobre os Direitos da Mulher (1952 e 1963), Declaração sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher (1967), Declaração sobre a Proteção de Mulheres e Crianças nas Emergências e nos Conflitos Armados (1974), Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (1979);

Contra a escravidão e a discriminação – Convenção de Genebra sobre a Abolição da Escravatura (1953, 1956), Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravidão, o Tráfico de Escravas e práticas análogas (1956), Convenção da OIT pela eliminação da Discriminação (1951, 1960 e 1965), Convênio da UNESCO relativo à luta contra a Discriminação na Área Educacional (1960), Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial(1963), Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial (1965), Declaração da UNESCO sobre a Raça e os Preconceitos Raciais (1978), Declaração sobre a Eliminação de todas as formas de Intolerância e Discriminação fundada na Religião ou nas Convicções (1981);

Direito à vida, à integridade física e ao tratamento humano – Convenção sobre a Prevenção e a Punição do Crime de Genocídio (1948), Convenção de Genebra – de 1949 (“Art. 3 Comum”: garantias a toda pessoa que não participa ativamente da guerra), Declaração sobre a Proteção de todas as pessoas contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas e Degradantes (1975), Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis ou Degradantes (1984), Protocolo visando abolir a pena de morte (1990);

Proteção aos Trabalhadores – Convenção da Organização da Organização Internacional do Trabalho (OIT), dentre as quais: nº 87 – sobre a liberdade sindical e a proteção do direito à sindicalização (1948), nº 98 – sobre o direito de sindicalização e de negociação coletiva (1949), nº 105 – sobre a abolição do trabalho escravo (1957), nº 110 – sobre as condições de emprego e de trabalhadores nas plantações (1958), nº 141 – sobre as organizações de trabalhadores rurais (1975), nº 151 – sobre as relações de trabalho na administração pública (1976);

Direito ao Desenvolvimento – Declaração sobre a concessão de Independência aos Países e povos Coloniais (1960), Carta dos Direitos e Deveres Econômicos dos Estados (1974), Declaração Universal sobre a Erradicação da Fome e da Desnutrição (1974), Declaração sobre o uso do Progresso Científico e Tecnológico no Interesse da Paz e no Benefício da Humanidade (1976), Convenção sobre o Direito do Mar, de 1982 (oficializando o princípio do “patrimônio comum da humanidade”);

Outros assuntos – Convenções de Genebra sobre o Direito Humanitário (1949) e Protocolos Adicionais I e II (1977), Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados (1959), Convenção sobre a Imprescritibilidade de Crimes de Guerra e Crimes Lesa Humanidade (1968), Declaração dos Direitos dos Deficientes Mentais (1971), Declaração sobre os princípios fundamentais de Justiça para as Vítimas de Delitos e de Abusos de Poder (1985), Projeto de Declaração Universal dos Direitos Indígenas (1988), Convenção sobre os Direitos da Criança (1989).


II. Tratados firmados no Sistema Interamericano


* Cartada Organização dos Estados Americanos (OEA) – aprovada pela Nona Conferência Interamericana, reunida em Bogotá (Colômbia), no dia 30 de abril de 1948. Entrou em vigor em 13/12/1951 e foi reformada pelo Protocolo de Buenos Aires (1967);

* Declaração Americana sobre os Direitos e Deveres do Homem – aprovada pela Conferência de Bogotá, em 02 de maio de 1948 (antecedendo, portanto, a Declaração Universal da ONU;

* Carta Interamericana de Garantias Sociais – também assinada em Bogotá (1948), dispondo sobre direitos do trabalhador;

* Convenções Interamericanas sobre Concessão de Direitos Civis e de Direitos Públicos à Mulher – ambas em 1948;

* Convenção sobre Asilo Diplomático e Convenção sobre Asilo Territorial – ambas aprovadas na Décima Conferência Interamericana, realizada em Caracas (Venezuela), em 1954;

* Convenção Americana sobre Direitos Humanos, reunida em San José (Costa Rica), de 7 a 22 de novembro de 1969;

* Protocolo Adicional da Convenção Americana sobre Direitos Humanos na área de Direitos Humanos na área de Direitos Econômicos, Socais e Culturais – concluído em 1988, na cidade de San Salvador (República de El Salvador);

* Protocolo visando abolir a Pena de Morte – concluída em 1990.


III. Tratados firmados no Sistema Europeu e Africano


* Convenção Européia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais – aprovada pelo Conselho da Europa, no dia 4 de novembro de 1950, tendo entrado em vigor em 1953;

* Carta Social Européia – assinada em 1961, no âmbito do Conselho da Europa tratando dos “direitos coletivos”. Entrou em vigor em 1965;

* Protocolos Adicionais à Convenção Européia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais – aprovados pelo Conselho da Europa, dentre os quais: o de 1983, abolindo a Pena de Morte em tempo de paz; o de 1984 (Estraburgo), que amplia os direitos civis e políticos;

* Ata Final de Helsinque – aprovada pela Conferência sobre a segurança e a cooperação na Europa, em agosto de 1975, na cidade de Helsinque (Finlândia),. Assinada por 33 países europeus (lados Ocidental e Oriental), mais os Estados Unidos e o Canadá, a Ata possui uma sessão dedicada aos direitos humanos (nº VI);

* Carta Africana de Direitos do Homem e dos Povos – adotada pela Organização da Unidade Africana (OUA), em 1981, na cidade de Nairobi (Quênia). Ela enfatiza o “direito ao desenvolvimento” e os “valores africanos”.

Naturalmente, atuando como forças sócio-políticas e culturais a influir em matérias de tamanha magnitude, aparecem vários documentos não-governamentais e mesmo governamentais alternativos, de que são exemplos: a) Declaração Universal dos Povos – aprovada em Argel, no ano de 1976; b) Declaração de Princípios para a Defesa das Nações Indígenas e Povos do Hemisfério Ocidental – aprovada em 1977, na Conferência Internacional das Organizações Não-Governamentais; c) Declaração de Alma Ata – formulada pela Conferência Internacional (não-governamental) sobre Cuidados Primários de Saúde, reunida em Ala-Ata, em 1978; d) Textos conclusivos das diversas conferências do “Movimento dos Países Não-Aliados” – Belgrado (1961), Cairo (1964), Lusaka (1970), Argel (1973), Colombo (1976), Havana (1979), Nova Delhi (1983), Harare (1986); e) Sentenças do “Tribunal Permanente dos Povos”.

Com base em muitos desses instrumentos arrolados, criaram-se órgãos jurisdicionais em vários níveis, ou seja, tribunais especializados com o objetivo de tutelar internacionalmente os direitos humanos, importa registrar, sinteticamente, alguns deles:

Na área de abrangência da ONU – a “Comissão de Direitos Humanos”, criada pelo Conselho Econômico e Social (ECOSOC), em 1946; e, o “Comitê dos Direitos Humanos”, proposto pelo Pacto dos Direitos Civis e Políticos, de 1966. Também podem ser citados, enquanto promotores dos direitos e garantias elementares, os seguintes organismos especializados da ONU: UNESCO (sobre educação, ciência e cultura), OIT (sobre o trabalho), FAO (sobre alimentação e agricultura) e OMS (sobre saúde);

No âmbito do Sistema-Interamericano – a “Comissão Interamericana de Direitos Humanos”, estabelecida pela Carta da OEA (1948),com sede em Washington; e, a "Corte Interamericana de Direitos Humanos”, decorrente da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1967), sediada em San José (na Costa Rica);

Na Europa Ocidental – a Comissão Européia de Direitos do Homem” e a “Corte Européia de Direitos Humanos”, ambos criados através da Convenção Européia para a Proteção dos Direitos do Homem e Liberdades Fundamentais (1950).

Verifica-se, pois, que o tempo das meras proclamações já foi superado e que, ao lado da relação dos direitos e das garantias, a ordem jurídica internacional está, progressivamente, provendo os direitos humanos através de instâncias formais, e mesmo informais, de controle.

Mesmo assim, é forçoso reconhecer que, apesar das atenuações, o Direito Internacional continua sendo predominantemente interestatal. Mais grave, o DI se fundamenta no Estado soberano, e boa parte dos países ainda não baniu a arbitrariedade que se esconde no conceito absoluto de soberania, cuja tendência é levar aos Estados a determinarem unilateral e discricionariamente o alcance de suas obrigações e de seus direitos. eis, simplistamente, o foco maior dos obstáculos à plena eficácia das normas de direitos humanos.

A questão, ao meu ver, não reside tanto na dificuldade de se impor sanções em caso de inobservância daquelas regras, já que na ordem interna (ou seja, em cada país) as punições existem, e nem por isso desaparece o desrespeito aos direitos. indo mais longe, há quem ensine que a ordem jurídica não subsiste apenas por causa da sanção, e que, a longo prazo, a vigência da ordem jurídica será proporcional ao grau de aceitação e aceitabilidade da mesma. Nessa linha, o internacionalista Celso de Albuquerque MELLO, com a lucidez que lhe é peculiar, expõe que nas relações externas “é extremamente difícil se organizar uma sanção coercitiva. É suficiente lembrarmos o poderio das grandes potências. É de se perguntar, nesse sentido, o que adiantaria organizar um exército internacional” (Ob. Cit., pág. 79).

Logicamente, quanto mais se produzirem e se fortalecerem as instituições e mecanismos voltados à defesa de tais direitos, tanto mais se progredirá no escopo de conter a proeminência do Estado na vida Internacional, e, inclusive, de se ver as normas jurídicas aplicadas independentemente de sua incorporação ao direito positivo dos países. Daí, pois, a luta sem trégua para a efetivação do conteúdo de tantos e tão nobres textos, ou, na expressão de Ruben HERNÁNDEZ e Gerardo TREJOS, a necessidade de se buscar “garantir as garantias” (Apud René Ariel DOTTI, Os Direitos Humanos: História e Aventura”. In: Cadernos de Justiça e Paz – nº 6, Curitiba, CJP?PR, 1984). Essa luta diz respeito a toda a humanidade, e nela repousa o futuro desta. E a garantia, de que os direitos de todos e todos os direitos sejam reconhecidos e acatados, tem como ponto de partida a consciência e o interesse de cada um pelos seus próprios direitos, para daí projetar-se, numa longa espiral de participação individual e ações grupais, ao plano internacional, onde se expressa em movimentos interestatais ou não-governamentais e nas pressões da opinião pública.

No mundo de hoje, os Direitos Humanos representam, mais do que nunca, o horizonte dos povos. O trabalho em seu favor não fica mais fácil quando já se consegue identificar o “inimigo”, mas seguramente isso ajuda bastante. De outra parte, se os omissos prejudicam a caminhada, a ela pouco acrescentam os que só fazem lamentar os percalços quanto a prática dos postulados essenciais. A nível individual, os três primeiros mandamentos dos que desejam a paz e a justiça são: descruzar os braços, jamais perder a esperança e nunca caminhar sozinho. Mas somente se poderá avançar com consistência se predominarem relações pacíficas, justas e solidárias na sociedade internacional – não só da parte dos indivíduos, mas também dos grupos sociais, das organizações e dos Estados.

Para os povos do Terceiro Mundo, a luta está muito além do reconhecimento formal dos direitos e da necessária revisão do Direito Internacional, consagrador por excelência dos interesses das grandes potências. A luta se trava na fronteira da solidariedade, contra a opressão, a exploração econômica e a miséria. A ordem é não esmorecer e a meta é a instauração de uma nova ordem internacional, onde os direitos humanos não sejam só um símbolo, mas a prática benfazeja da felicidade para todas as pessoas e todos os povos.

Wagner D'Angelis

 

 

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...