Entre sábios, néscios, comunicação tautológica e o 'louco de palestra'
A revista Piauí publicou matéria hilária e gostosa retratando uma figura que persegue os palestrantes (e os colunistas de sites) de todas as áreas: o louco da palestra. Tem razão o articulista, jornalista André Czarnobai. Em palestras (e nas redes sociais) aparece todo tipo de louco. O clássico é o que “faz uma colocação” e toma conta da conversa. Ele quer mostrar que sabe...mais do que o palestrante e que o restante da malta presente. Em alguns casos, até sabe mais do que o conferencista.
No direito tem um clássico também: é o leitor de um livro só e que se considera “o especialista”. O palestrante está falando sobre teoria do direito e retrata, brevemente, o surgimento do sujeito da modernidade, para adentrar na questão do subjetivismo. O palestrante quer chegar no problema do protagonismo judicial, afinal, ele está falando sobre o direito, Bülow, Menger, etc. E o louco levanta e diz: mas Descartes não quis dizer isso... Ou o louco-de-palestra-especialista-em-Kant: o senhor falou do sujeito solipsista e nominou Kant. Ora, Kant não quis dizer isso... e blá, blá, blá, dez, quinze minutos. Esse nem era o ponto do palestrante, mas o louco tem os seus quinze segundos de glória. Há também o louco que conta um caso concreto. Um drama pessoal, sobre o qual quer a opinião (ou uma consulta!).
Aliás, o saudoso Ovídio Baptista da Silva, embora ainda aceitasse, no final de sua vida, alguns convites para fazer palestras, fazia-o cada vez mais raramente e com maior desconfiança. “Em geral, esses congressos não passam de encontros sociais”, dizia. Com razão. O incompreendido Ovídio falava que se sentia muitas vezes uma “ave rara”, que os alunos ouviam, apenas, como uma deferência, para, depois, voltarem a fazer o que sempre faziam. No seu excelente Paradigma Racionalista, há uma passagem hilária em que o processualista retrata o diálogo que estabeleceu com um professor que o convidava para palestrar numa faculdade qualquer. No fundo, o tal professor queria apenas aquilo: “exibir” o professor Ovídio para os alunos; para, depois, retomar a palavra e dizer: “bom, mas na prática” etc. Seja como for, o ponto central é: não se ouve o palestrante com a intenção sincera de levar em consideração sua fala, de ponderar sobre seus argumentos. Busca-se, no mais das vezes, apenas uma confirmação de seus pré-conceitos (no sentido vulgar, e não gadameriano, da expressão). Quem diz aquilo com que concordo tem razão, pois não?
Um repetitivo é o “entendedor de Kelsen”. Sempre aparece um expert em Kelsen. Ele, com pompa e circunstância, achega-se e diz: “ora, isso que você acabou de falar já foi superado por Kelsen, que, como todos sabem, separou o direito e da moral” (e quando você, pacientemente, explica que Kelsen não disse isso exatamente, ele diz que você não leu Kelsen devidamente...!). Ou, quando em alguma palestra defendo a aplicação da lei (no sentido do “mínimo é” de cunho hermenêutico), levanta um gaiato e contesta, com soberba: “Você então professa o positivismo kelseniano, que defendia interpretação literal?”. Fazer o que, então? O grande problema é que eles “tomam” a palavra. Tomam mesmo. E quando a devolvem, ela vem em frangalhos... E assim por diante. As dezenas de tipos de loucos de palestra estão muito bem retratados na revista Piauí.
Ao “especialista” em Kelsen, Hobbes ou Nietzsche (aliás, um bom exemplo de filósofo cuja obra se tornou “pop” pelos motivos errados) escapa a célebre observação do grande Dworkin, de que esses autores icônicos possuem obras tão importantes e grandiosas, tão disponíveis à interpretação, que “cada um de nós pode ter o seu próprio Kant” (cito de cabeça, está lá no final do Justice in Robes, se não me falha a memória). Isso significa que posso interpretar qualquer autor da maneira como melhor me aprouver? É claro que não. Dworkin, por todos!, é o primeiro a dizer que há leituras melhores do que outras, desde o plano literário até o jurídico. Sou contra imposturas e mixagens teóricas. Mas isso não quer dizer que não se possa construir o saber, que não se possa, portanto, avançar, a partir de uma leitura sincera e generosa de muitos destes grandes nomes. Somos todos anões; que bom que há gigantes em profusão com suas costas à nossa disposição, para que enxerguemos mais longe.
Nas redes sociais, à socapa e à sorrelfa...
Sabemos todos que essa praga se alastrou para as redes sociais. E de forma mais contundente, porque os loucos da internet perdem totalmente a sua timidez e jogam mais pesado do que pessoalmente nas palestras. Os olhos de censura que os assistentes lançam aos loucos de palestra não existem nas redes. Do anonimato, à socapa e à sorrelfa os loucos podem fazer os seus silly speeches (discursos bobos-tolos) ou epistemic discourses of hatred (discursos epistêmicos de ódio).
Há algum tempo nominei a proliferação dessa tipologia como o surgimento de um novo paradigma, a nesciontologia. Néscios de todo tipo reunidos sob um imaginário, um corpus de representações no interior do qual eles se movimentam e lançam diretrizes para o mundo. Alguns mandamentos nesciontológicos: a) fique contra o articulista a priori; b) Seja sempre contra ele; 3) Mostre seu repúdio; 4) Mesmo que ele escreva algo com o que você concorda, busque desconstruí-lo, palavra da moda inventada pelo publicitário João Santana, um dos criadores da neo-nesciontologia; 5) E vá no Google e ache uma palavra difícil para mostrar um milésimo de erudição.
E não é que eu não leve em conta os comentários que aparecem por aqui, não. Eu os leio, todos. Afinal, este é um espaço de diálogo. Construtivo. E, não fosse por (e com) vocês, eu passaria meu tempo fazendo outra coisa (sempre há um bom livro, um bom filme, uma boa pessoa com quem conviver, um bom vinho). É por isso que me impressiono e chateio, em doses parecidas, com a truculência de alguns comentaristas. Parece que, para alguns, a solução não é corrigir meus argumentos ou aprofundá-los, mas fazer com que eu pare de escrever. Isso é desconstrução. Você quer colaborar comigo (e a melhor forma de colaborar com alguém é apontar seus erros e fazer críticas pertinentes)? Seja bem vindo. Você quer apenas encher minha paciência, me destruir? Seja bem vindo também!, que o espaço aqui é democrático. Como se diz no interior do Rio Grande do Sul, quem corre por gosto não cansa.
Sigo. O louco nesciontológico lê o artigo ou coluna no site e retira um subsubsubtema para destilar sibilinamente a sua nescioverve: “— o articulista escreveu uma palavra em latim de forma equivocada”. Bingo! A vingança nesciontológica está posta. Suicide-se, articulista burro. Mais: Algum articulista escreve criticando uma prova de concurso mostrando que está equivocado cobrar dos concursandos a subleitura de um autor (leitura derivada, porque o correto seria indicar o autor da teoria e não um dos seus, por vezes, nem de longo melhor intérprete) e lá vem um integrante do novo paradigma nesciontológico para dizer: “— mas o edital previa isso”. Genial a crítica. Porque estava no edital, torna-se correto! Viva o edital! Delírio nas hostes.
O louco de coluna (derivação do louco de palestra) busca desqualificar os discursos sofisticados com frases do tipo “isso é filosofia; eu faço processo”; “isso é na teoria; na prática é outra coisa”. Ou “o articulista critica, mas não apresenta soluções”. Ou “o articulista usou palavras em outra língua”. Puna-se o articulista!
Isso sim é um troço que me incomoda: a ignorância propositiva. O sujeito não se contenta em não saber; é preciso que o “não saber” seja compartilhado entre todos. Se possível, imposto aos demais (imagine como seria um mundo governado por essa gente?). “Se eu não sei, ou se não consigo entender, é porque não é importante”, eis o lema.
Portanto, estamos em face de um novo fenômeno. Não está fácil escrever nos veículos pós-modernos. Tudo o que se escrever e que foge de seu horizonte de sentido é “bruxaria epistêmica”. Ele não entende e, em vez de simplesmente descartar, quer destruir. Colocar o articulista na fogueira. Burn! Burn! Eis a sentença! Um artigo ou coluna com alto grau de sofisticação... já se sabe: pouca leitura e poucos acessos. Já uma coluna sobre autoajuda para jovens estudantes... estoura; vira hit imediatamente. Sinal dos tempos.
Numa palavra:
Já contei essa, mas como sofro de LEER,[1] posso não ter sido claro. Einstein fez uma conferência contando a sua teoria da relatividade. Ninguém entendeu. Um cidadão levantou e pediu para ele ser mais simples. E Einstein atendeu. E assim por diante. Depois da quinta vez em que alguém pediu para ser bem simplesinho, Einstein contou novamente a sua “tese”. A malta levantou e disse: “— agora sim, entendemos”! E Einstein respondeu: “Pois é. Só que agora já não é mais a teoria da relatividade. É tudo menos ela”. E, digo eu: tem coisas que não dá para contar de outro modo ou simplificar. Por isso, quando você for para determinada palestra, leia antes sobre o autor; veja sua obra; se não gosta, não vá. É como o teatro. Você não vai ver uma peça representada por um ator de quem desgosta ou de um texto que lhe desagrada, certo? Pois conferências e palestras são assim. E se você só quer se divertir, vá assistir às palestras de professores neopentecostais, que fazem piada com qualquer coisa. Mas já não é uma conferência. É outra coisa. Compreendem?
Post scriptum:
E para quem acha que isso que eu acabei de dizer é abstração e coisa sem importância, desnecessária, invoco a máxima do filósofo Avicena”:
“Um sábio sabe a diferença entre o que é necessário e o que não é necessário; um néscio, não; então, bata-se nele até que ele diga em alto e bom som que “isso não é necessário”. Pronto: agora ele sabe a diferença”!
[1] Essa da LEER é sintomática. E acontece(u) (já mais de uma vez) em palestra de massa. Vou contando que “essa passagem do autor X já contei em outra palestra. Mas como sofro de LEER (Lesão por Esforço Epistêmico Repetitivo)..., estou absolvido”. E (h)ouve(-se) um silêncio constrangedor. A ironia (ou quiçá, anedota) não foi (é) entendida. Reexplico...e nenhuma reação. Maior mico. Mudo de assunto. Na palestra seguinte à minha, um professor neopentecostal conta que uma boa aplicação da Constituição é “aplicá-la” na cabeça do réu, para ele sentir o peso do direito... E a plateia delira. OK, penso. O mundo vai acabar mesmo. A fuga para as montanhas é um direito fundamental (ou um dever de... algo como has a duty).
Lenio Luiz Streck é jurista, professor, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 6 de novembro de 2014, 8h00
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