“Jurisprudência materializa o que é discutido na escola de magistratura”
A Escola Paulista de Magistratura quer fazer os juízes se dedicarem mais aos estudos. Percebeu que um dos maiores obstáculos para isso é que falta tempo aos operadores do Direito. Em São Paulo, não é só o volume de trabalho a dificuldade. Sair de um ponto da cidade para estudar em outro exige planejamento e paciência.
Uma das soluções encontradas pela escola foi inverter a lógica: ir até o juiz. Todas as aulas e palestras oferecidas pela EPM agora são gravadas em vídeo. Todos os juízes e desembargadores receberam uma senha para assistir online, a hora que puderem e quiserem, os cursos que lhe interessarem.
A escola investe também em cursos rápidos, focados em temas controversos e recorrentes no dia a dia das varas. “A grande riqueza da escola é unir a doutrina com a parte prática”, explica o diretor da EPM, desembargadorFernando Maia da Cunha, em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico. E não deixa de lado quem prefere o modelo tradicional. Há cursos de pós-graduação e também núcleos de estudo, criados exclusivamente para juízes e desembargadores.
Desde julho deste ano, não há mais cobrança de mensalidade. “Desde que assumimos a diretoria da escola, nos incomodava cobrar dos juízes. Queríamos isentá-los em 100%. Fizemos isso com uma decisão do Conselho Consultivo. Hoje, o juiz não paga nada para estudar na EPM. A escola é dos magistrados, existe em função dos magistrados”, afirma o desembargador.
Maia da Cunha foi escolhido para dirigir a escola em dezembro de 2013, no mesmo dia em que foi eleita a nova direção do Tribunal de Justiça de São Paulo. Além da missão de tornar os cursos mais acessíveis aos juízes, tem de cuidar da formação dos magistrados e servidores do Judiciário paulista.
Em agosto, o presidente da corte, desembargador Renato Nalini, inaugurou a EJUS, escola criada para formar e capacitar os servidores. A partir de agora, quem chega para trabalhar na corte recebe um curso para conhecer as suas funções e aprender um pouco sobre Direito.
Fernando Maia da Cunha nasceu em Bauru (SP), tem 63 anos e está na magistratura desde 1980. É bacharel pela Faculdade de Direito de Alta Paulista e mestre em Direito Comercial pela PUC-SP, instituição em que é professor convidado. No TJ-SP, integra a 4ª Câmara de Direito Privado e a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial.
Leia a entrevista:
ConJur — O senhor já disse que uma de suas prioridades é trazer o juiz de volta para a EPM. Por que houve esse distanciamento?
Maia da Cunha — O juiz tem um problema muito sério para frequentar a escola: o tempo. Nenhum juiz hoje, de qualquer vara, de qualquer câmara, tem tempo para muita coisa além da própria atividade jurisdicional. Isso acaba afastando o juiz do estudo, da leitura, da reflexão, do debate.
ConJur — E como pretende contornar essa situação?
Maia da Cunha — Uma das nossas tentativas tem sido ampliar o número de núcleos de estudo, que são exclusivos para magistrados.
ConJur — O que é um núcleo de estudo?
Maia da Cunha — Cada núcleo se organiza de uma forma. Não têm um objetivo pré-definido, podem ser simplesmente núcleos de discussões. O de Direito Empresarial, do qual participo, escolheu dez temas e convidou para discuti-los o melhor professor em cada área. Então, o professor vem até a escola para um encontro de três horas. Fala durante uma hora e debate o tema com os juízes no restante do tempo. Isso proporciona uma rica interação entre a doutrina e a jurisprudência.
ConJur — E ajuda na hora de decidir.
Maia da Cunha — A grande riqueza da escola é unir a doutrina com a parte prática. Toda lei, toda doutrina, todo estudo, toda reflexão, toda parte filosófica de qualquer ramo do Direito visa a prestação jurisdicional. Visa orientar que determinado direito seja aplicado desta ou daquela maneira no caso concreto. Somar esses dois lados é muito interessante para quem julga.
ConJur — Os núcleos duram quanto tempo?
Maia da Cunha — Dez meses, no máximo. Os encontros costumam ser mensais e os grupos são normalmente formados por cerca de 15 juízes. Alguns têm até 30. Ao final, os integrantes têm várias opções: escrever um trabalho sobre os temas discutidos, apresentar enunciados como sugestões de futuras súmulas, ou até editar um livro. Esta foi a opção do Núcleo de Direito Civil, na época em que participei. Dividimos os temas e escrevemos uma obra coletiva, que é o pensamento da magistratura paulista sobre o negócio jurídico. Há grupos que preferem escolha uma obra e estudá-la durante dois, três meses. Depois disso, convidam o autor para participar. Não há obrigação de apresentar trabalho. É uma reflexão que o juiz faz e que, evidentemente, vai se materializar no julgamento. Esses julgamentos formam jurisprudência e vão orientar, de modo geral, todos os juízes. É interessante e a escola existe para isso.
ConJur — O senhor tem um projeto de intercâmbio para juízes. Como isso seria feito?
Maia da Cunha — Já existe muito intercâmbio de juízes brasileiros, principalmente com os Estados Unidos. Tanto que, recentemente, criamos o Núcleo de Direito Comparado Brasil/Estados Unidos. É uma experiência muito rica, mas que, atualmente, não é compartilhada com os colegas. Eles vão às próprias custas. Não vão pela escola nem pelo tribunal.
ConJur — O curso seria pago pelo tribunal?
Maia da Cunha — Um dia o tribunal e a escola terão que discutir um sistema de escolha de juízes para intercâmbios, desde que haja um feedback para toda a magistratura. Vou levar essa proposta ao Conselho Consultivo da EPM. A ideia é que a escola possa enviar juízes para fazer cursos no exterior de interesse da magistratura brasileira e do Tribunal de Justiça de São Paulo. Por que a escola auxiliaria nos custos? Porque quando o juiz voltar, ele vai escrever sobre o que estudou, e gravar um vídeo sobre os principais pontos do curso. A escola promoveria um debate sobre o tema do curso de modo a que todos os magistrados pudessem se beneficiar do intercâmbio.
ConJur — Como seria feita a escolha dos juízes?
Maia da Cunha — É fundamental que haja aprovação do Conselho Consultivo, que os critérios de escolha sejam democráticos e definidos em edital. Esse é um dos papéis da escola. Penso que interessa à magistratura saber como, há 10 ou 15 anos, os países mais avançados lidaram com situações que estamos vivendo hoje. Conhecer a evolução dessas experiências seria útil para que possamos corrigir aqui, saber qual caminho tomar ou entender porque tomamos caminhos diferentes. Particularmente, penso que seria importante trazer a experiência de outros países. Gostaria de começar a conversar sobre isso na EPM neste segundo semestre.
ConJur — Como a EPM define a abertura de novos cursos? Quem participa dessas escolhas?
Maia da Cunha — Os cursos são oferecidos com base no que é mais necessário e no que há mais interesse. Cursos de pós-graduação em Direito do Consumidor, Civil, Processo Civil, Penal e Processo Penal sempre têm muita procura. Mas, como são de longa duração, temos de oferecer com certo espaço de tempo para que o número de alunos não seja muito reduzido.
ConJur — Os cursos para juízes e desembargadores na EPM são gratuitos?
Maia da Cunha — Desde a presidência do desembargador Ivan Sartori, em 2012, os cursos são gratuitos para os servidores. Mas não para os juízes. Eles pagavam 40% do valor do curso. E, desde que assumimos a diretoria da escola, nos incomodava cobrar dos juízes. Queríamos isentá-los em 100%. Fizemos isso com uma decisão do Conselho Consultivo no dia 3 de julho. Hoje, o juiz não paga nada para estudar na EPM. A escola é dos magistrados, existe em função dos magistrados.
ConJur — O orçamento da escola é suficiente para dar gratuidade a todos os servidores e juízes?
Maia da Cunha — Na média, os cursos quase que se pagam com os alunos que vêm de fora do tribunal e pagam a mensalidade integral. Na pós-graduação há pouca frequência de juízes. Trinta por cento das vagas são preenchidas por quem não é servidor nem juiz. A preferência é sempre dos juízes e servidores, porque, de forma direta ou indireta, eles ajudam a aprimorar o Poder Judiciário. Só abrimos vagas para terceiros quando há remanescentes. De qualquer forma, a escola possui dotação orçamentária destacada no orçamento do tribunal, o que permite seu funcionamento normal ainda que se destine exclusivamente aos magistrados e servidores.
ConJur — Então, o juiz não precisa mais pagar pelo curso e nem é obrigado a apresentar trabalho de conclusão nos núcleos de debate. Há mais alguma mudança que o senhor pretende fazer para atraí-los para a escola?
Maia da Cunha — Estamos investindo mais em cursos rápidos, de 30, 50 e 60 dias. Por serem mais curtos, concentram-se em temas controvertidos e despertam mais interesse. Nesses casos, o juiz também não precisa apresentar trabalho no final. Passamos a gravar todas as palestras, inclusive dos cursos de pós-graduação, o juiz pode escolher o que assistir quando quiser. Fizemos uma adequação no sistema e entregamos uma senha de acesso ao material da EPM para cada juiz. Por exemplo, eu só quero assistir duas palestras de algum curso porque são temas do meu dia a dia. Eu posso ligar o computador no final de semana, em casa, e assistir. Essa é mais uma opção para o magistrado.
ConJur — Há uma filial da EPM no interior ou os juízes têm acesso apenas aos cursos online?
Maia da Cunha — O interior também é prioridade da escola na nossa gestão. Tenho visitado os núcleos regionais para saber o que os juízes querem da escola. Uma dificuldade em relação aos cursos de pós-graduação é que o Conselho Estadual de Educação estabelece que devem ser presenciais. Portanto, devem ser feitos lá. Os núcleos de estudo podem ser criados em qualquer cidade ou região.
ConJur — Os cursos presenciais são mais procurados do que os online?
Maia da Cunha — Este é o pequeno dilema que estamos enfrentando atualmente. As inscrições presenciais equivalem a 30% dos inscritos a distância. Os cursos de curta duração têm entre 150 e 180 inscritos a distância e apenas 50 que vão pessoalmente. A dificuldade de deslocamento em São Paulo é uma das principais responsáveis por essa mudança.
ConJur — Recentemente, a EPM ganhou a nova atribuição de oferecer cursos de aperfeiçoamento aos juízes que se movimentarem na carreira. Como serão esses cursos?
Maia da Cunha — A formação continuada do juiz, instituída pelo provimento do Conselho Superior da Magistratura [Provimento 2.179/2014], se resume no seguinte: o mundo é outro. Há um mundo novo em comparação ao que se decidiu há 20 anos, nas relações sociais, na velocidade das informações. A formação continuada traz essas reflexões sobre as alterações que são fundamentais na vida do juiz. Ele precisa ser alguém do próprio tempo e o estudo continuado traz o juiz para mais perto desse mundo. Por exemplo, o juiz que muda de uma vara cível para uma criminal precisa, em vez de simplesmente sentar e interpretar a lei, saber o que se tem discutido na área penal, como os colegas têm decidido e quais são as suas fundamentações. O Direito Empresarial tem as suas implicações próprias, pede decisões rápidas, que podem influenciar na atividade econômica. Se o juiz se muda para a área da família precisa conviver com a nova realidade das mudanças familiares. A ideia não é ensinar Direito de Família. Isso ele sabe. A ideia é mostrar a evolução das controvérsias e dos julgamentos na área para a qual se mudou.
ConJur — O curso é de quanto tempo?
Maia da Cunha — É de 90 dias, bem espaçado, uma vez por semana. Serão a distância. Ele vai acessar os vídeos e ver os problemas que pode enfrentar nos próximos anos e como se tem feito para solucioná-los. As aulas serão dadas por juízes que há anos atuam com aquela especialidade e que vão contar como trabalham, como decidem, como chegaram a essas conclusões e quais as outras linhas de pensamento.
ConJur — Essas aulas já estão disponíveis para os juízes?
Maia da Cunha — Estarão disponíveis a partir de novembro. Por que novembro? Porque estamos em ano de eleição e até lá todas as promoções estão suspensas. Mas já escolhemos os coordenadores gerais de cada área: penal, cível, juizado especial, família, crime, violência doméstica, infância e juventude, empresarial, falência e recuperação. Há também um coordenador para as varas cumulativas, porque o juiz que vai assumir não terá tempo para fazer todos esses cursos. Faremos um curso específico para as varas cumulativas. É um pouco mais delicado, mas estamos selecionando pessoas preparadas para isso.
ConJur — O senhor fez mudanças no curso oferecido aos novos juízes?
Maia da Cunha — A EPM vem tentando, há muito tempo, trazer para o novo juiz a prática forense, a prática do dia a dia. No último curso, fizemos alguns ajustes para deixá-lo mais o mais prático possível. Pedimos aos juízes que fizessem críticas e sugestões e vamos aplicá-las nos próximos cursos. Convidamos três dos novos juízes para integrar a coordenação do curso, que é feita hoje pelo juiz Claudio Godoy. Estamos tentando melhorá-lo. Este é um trabalho da escola que já vinha e que deverá ser constantemente aperfeiçoado.
ConJur — Em agosto foi inaugurada a EJUS, a escola dos servidores. Qual é o seu principal objetivo?
Maia da Cunha — A Escola de Servidores é um grande atalho para o tribunal melhorar a prestação jurisdicional, melhorar o serviço público que presta à sociedade e passar a ter dela o respeito que merece. Vamos oferecer cursos aos novos servidores e também capacitação àqueles que já trabalham conosco. Não faz sentido que os novos cheguem e comecem a trabalhar sem qualquer orientação. A EJUS quer oferecer aos servidores o mesmo aprimoramento que estamos oferecendo aos juízes, do ponto de vista funcional. Quando o servidor tomar posse vai aprender qual é o trabalho dele. Vamos explicar, passo a passo, como se usa o processo eletrônico, quais são as suas funcionalidades. Eles também terão aulas de Direito básico. O escrevente não precisa ser bacharel, mas deve ter noções básicas de Direito para trabalhar com processos.
ConJur — Os cursos são obrigatórios?
Maia da Cunha — Sim, da mesma forma que acontece com os novos juízes. Os cursos de aperfeiçoamento também. A escola tem todo equipamento e espaço para oferecer os cursos da melhor maneira. Eles serão feitos à tarde, horário em que não há aulas da EPM.
Lilian Matsuura é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 28 de setembro de 2014, 07:13
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