quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Direito penal do fato ou do autor? A insignificância e a reincidência


Direito penal do fato ou do autor? A insignificância e a reincidência



Machado de Assis tem um conto chamado Suje-se gordo. Não tem vírgula, não. Não é “suje-se, Gordo”. Trata de um julgamento do qual se tira a seguinte lição: vá fundo na “maracutaia”. Tem de valer a pena. Se é para se sujar, suje-se gordo. Quem praticou pequeno delito, lascou-se; quem “sujou-se gordo”, deu-se bem. Essa é a moral da história do conto de Machado de Assis.

Relendo o conto, dou-me conta das discussões sobre os critérios para aferir o que é bem jurídico relevante em terrae brasilis. Historicamente o direito penal tem sido feito para os que não têm e o direito civil para os que têm. Já disse isso várias vezes (afinal, sofro de LEER – Lesão por Esforço Epistêmico Repetitivo): o Código Criminal de 1830 foi feito para pegar escravos, o de 1890, para pegar ex-escravos e seus filhos, e o de 1940 para proteger nitidamente a propriedade privada contra os ataques da patuleia, a ponto de dobrar a pena no furto nos casos de escalada, chave falsa, etc. Elementar isso, pois não?

O problema é que, em pleno Estado Democrático de Direito, ainda continuamos com essa atribuição liberal-individualista de sentidos ao que seja bem jurídico. Isso salta aos olhos quando comparamos os tipos penais do furto qualificado com crimes como sonegação de tributos e lavagem de dinheiro (poderia fazer um quadro comparativo, mas o espaço não permite).

A todo o momento isso volta à tona. A falta de uma filtragem hermenêutico-constitucional na legislação penal continua fazendo vítimas cotidianamente. E quem mais sofre são naturalmente os componentes do andar de baixo da sociedade.

Digo isso para retornar à discussão sobre o sentido do princípio que vem salvando, em determinadas circunstâncias, a teoria do bem jurídico no tocante aos crimes contra a propriedade, especialmente o furto. O problema é a falta de uma universalização de sua aplicação. Ou, mais do que isso, posso afirmar que o problema é a ausência do critério da igualdade na sua aplicação pelos tribunais.

Explico. Recentemente o Superior Tribunal de Justiça voltou a enfrentar a questão da aplicação da insignificância no crime de descaminho, considerando para tal o valor de R$ 10 mil (artigo 20, caput, da Lei 10.522/02) e/ou a Portaria 75 do Ministério da Fazenda que, em seu artigo 1º, inciso II, fixou o valor mínimo de R$ 20 mil para execução de dívidas tributárias.

A problemática veio à baila no AgR no Recurso Especial 1.4.657-RS (2014/07126-). O caso concreto não apresenta relevância para ser discutido, porque o valor ilidido não chegou a R$ 100. Entretanto, o que é importante voltar a discutir é a (ausência de uma) criteriologia utilizada pelo Poder Judiciário para dizer se uma conduta é insignificante penalmente ou não.

Minha questão, aqui, não é enfrentar e/ou criticar a aplicação analógica da Portaria 75 do Ministério da Fazenda (veja-se a decisão do TRF-3) ou o valor pela metade determinada pela Lei. Tampouco quero questionar a aplicação do favor legis para a sonegação de tributos prevista pela Lei 10.684/03, que estabelece que o pagamento do valor sonegado antes do recebimento da denúncia é causa de extinção da punibilidade. Também não quero discutir ofavor legis dado no artigo 168-A, parágrafo 2º do Código Penal a quem sonega contribuições da previdência... Igualmente não vou questionar a aplicação de uma jurisprudência generosa para quem paga o tributo sonegado mesmo após a sentença transitada em julgado (caso, por exemplo, de Marcos Valério que, no Recurso Especial 942.769/MG, o STJ decidiu pela extinção da punibilidade do crime de sonegação fiscal pelo pagamento de parcelas não recolhidas em momento posterior ao recebimento da denúncia, consagrando o entendimento que o pagamento do tributo a qualquer tempo enseja o fim da possibilidade de responsabilização penal). Não é isso que está em causa.

Mas, então, o que quero discutir? Simples. Quero colocar em xeque a isonomia, a igualdade e a República. Ou existe igualdade, isonomia ou não somos republicanos (na verdade, não somos, mas como sou um otimista “como se”, a partir da filosofia do als ob de Hans Vaihinger...). Como explicar que juízes e tribunais da República se negam a aplicar os mesmos critérios para os crimes contra o patrimônio sem violência, como o furto, a apropriação indébita e o estelionato?

Dois problemas sérios. O primeiro é não aplicar o favor legis da sonegação de tributos para quem devolve a res furtivae nos casos de furto, apropriação indébita ou estelionato. Por que o sujeito que sonega é mais cidadão que o que furta? Por que alguém que ataca o patrimônio do povo é melhor visto pelo establishment que alguém que mete a mão no patrimônio de um particular?

Segundo: por que alguém que pratica descaminho é mais bem visto que alguém que furta? Ou seja, por que para quem pratica descaminho o valor da insignificância chega a valores que a maioria da malta leva um ano ou mais para ganhar e para o furto R$ 200 já é muito? Aliás, se pensarmos em alguns setores do Judiciário e do Ministério Público, o tal principio da insignificância nem existe (ver aqui). A questão do modus aplicativo da insignificância mostra-se extremamente problemática. Veja-se, a esse respeito, o HC 101.998 (Rel. Min. Toffoli, 1ª Turma do STF, j. 23-11-2010), envolvendo furto de barras de chocolate, sendo que a 1ª Turma do STF entendeu que não incidia o princípio da insignificância ao caso porque o agente seria reincidente específico em crimes contra o patrimônio. Ali, houve nítida violação do Direito Penal do fato, aplicando-se o vetusto Direito Penal do autor, a despeito da inexpressiva lesividade da conduta ao bem jurídico tutelado (no caso, nove barras do chocolate diamante negroavaliadas em R$ 45).

Aqui, novamente temos de lembrar a questão fulcral: igualdade, isonomia e aplicação por integridade e coerência. De um lado, R$ 10 mil para descaminho; de outro, R$ 10 negado para furto (ou outros valores para furtos que não tratem de reincidência). Também os pequenos crimes cometidos contra o meio-ambiente são vistos com mais simpatia por setores do Poder Judiciário, como, por exemplo, a absolvição de pessoas que pescaram um peixe dourado (sete quilos) recentemente (ver aqui). Registre-se, desde logo, a correção da decisão do 3ª. Turma do TRF 1ª. Região. O difícil é entender a movimentação de toda a máquina pelo Ministério Público Federal para ver condenados 3 patuléus que, de caniço e samburá, foram pescar alguns peixes. Interessante: naquele Habeas Corpus do caso Valério acima relatado, o parecer do MPF foi a favor da aplicação do favor legis da lei da sonegação, mesmo contra legis, porque já transitada em julgado a condenação do contador do mensalão. Dois pesos, duas medidas...

Sigo. Fui o primeiro a aplicar isonomicamente a lei da sonegação de tributos e o furto sem prejuízo (já tratei disso em outra coluna). Fui também o primeiro a aplicar o favor legis da lei da sonegação para o estelionato:


ESTELIONATO. ÔNUS DA PROVA.
No estelionato, mesmo que básico, o pagamento do dano, antes do oferecimento da denúncia, inibe a ação penal. O órgão acusador deve tomar todas as providências possíveis para espancar as dúvidas que explodam no debate judicial, pena de não vingar condenação (Magistério de Afrânio Silva Jardim).

Lição de Lênio Luiz Streck: os benefícios concedidos pela Lei Penal aos delinquentes tributários (Lei 9.249/95, artigo 34) alcançam os delitos patrimoniais em que não ocorra prejuízo nem violência, tudo em atenção ao princípio da isonomia. Recurso provido para absolver o apelante. (BRASIL. TARS. 2ª Câmara Criminal. Apelação criminal nº 297.019.937. Relator: Amilton Bueno de Carvalho. Data do julgamento: 25 de Setembro de 1997). (íntegra aqui)

E isso lá nos anos 90 do século passado. Aliás, escrevi sobre isso já um ano após a Constituição de 1988.

Passados tantos anos, ainda não conseguimos encontrar um ponto de estofo para a aplicação equânime (falo da fairness dworkiniana) do critério-principio da insignificância. Penso que, para isso, temos que nos desvestir da velha dogmática jurídica, carcomida pelo paradigma liberal-individualista de bem jurídico.

Ainda estamos inseridos no imaginário que albergou o Código de 1940. Somos, portanto, a-históricos. Perdemos o trem da história. Vivemos do passado. A doutrina penal, em boa parcela, continua utilizando os exemplos de Caio, Mévio e Tício, onde a vigência é igual à validade e o patrimônio individual é mais importante que o patrimônio de todos. Afinal, o que é isto — a teoria do bem jurídico-constitucional? Eis uma boa pergunta a ser respondida.

Enquanto não encontrarmos uma resposta adequada, vamos continuar a aplicar a insignificância de modo ad hoc. Do mesmo modo, vamos continuar a aplicar favores legais para um grupo social e deixar de aplicar para a maioria, que frequenta o andar de baixo de nossa sociedade estamental.

Numa palavra e como retranca: entre Hobbes e Rousseau, torço pelo Hobbes F.C., portanto, não tenho ilusões com o direito penal, com a sociedade de bem estar, com a bondade humana, etc. Não sou nem minimalista, nem maximalista: apenas a favor de um direito penal e uma teoria do bem jurídico constitucionalmente adequados. Nisso está o tratamento equânime (fairness) dos bens jurídicos a ser penalizados; nisso está a forma republicana de aplicar a lei: se um sonegador pode receber benesses ao devolver o valor sonegado, por que razão o cara do furto não pode fazer o mesmo? Ou arrumamos isso ou temos de dar razão ao personagem do conto de Machado: suje-se gordo!

Post Scriptum : o STJ rompe com o tabu da reincidência
Leio que a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, seguindo o voto do relator, ministro Sebastião Reis Júnior, trancou — de forma acertada — ação penal em um caso de furto de chocolate vindo de São Paulo (ler aqui). O paciente era reincidente. Esse assunto ainda era tabu, tanto é que o Supremo Tribunal Federal afetou ao plenário a discussão da aplicação ou não do princípio da insignificância nos casos de reincidência. Aqui também quero dizer que fui o primeiro a defender a tese de que a reincidência tem de ser discutida, mormente em termos de ser ou não inconstitucional. Trata-se de um bis in idem e uma violação da secularização que deve haver, no direito penal, entre direito e moral. O Estado não pode punir a sua própria incompetência. E nem pode pretender “melhorar” o indivíduo. Direito penal não é para isso. Durante um considerável período, a 5ª Câmara do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) aplicava minha tese. Perdi recentemente no Supremo Tribunal. Mas, pelo jeito, deixei algumas sementes.

Não será dito, por óbvio, que a reincidência é, “em si”, inconstitucional. Mas pode ser que será dito — como já o foi pela 6ª Turma do STJ — que, em determinados casos, ela não se aplica. Como venho sustentando, toda aplicação de princípio no processo penal é uma hipótese de nulidade parcial sem redução de texto. Mas esse é um assunto para outra coluna. 

Post Scriptum II: a dialética do concreto e o direito
Efetivamente, tenho de estudar mais. Minha ignorância não tem limites. Por isso, leio de tudo. E como aprendo coisas... Há pouco, li no ConJur um artigo em que se fazia uma ode a um tal Princípio da Livre Interpretação da Norma em Concreto (ler aqui). Simplesmente incrível. Ao saber da “existência” desse princípio (mais um para minha coleção) — coisas que se descobre aqui no ConJur — fiquei pensando em, efetivamente, estocar alimentos. O que seria “livre interpretar a norma em concreto”? Confiar na sapiência e na cognição do juiz? No seu sentimento do “justo”? Na sua liberdade de dizer o que é justo? Por favor. O que mais os juristas descobrirão e inventarão? By the way, não resisto em contar: Lembro-me de uma brincadeira com as palavras. Meu professor de filosofia no mestrado na década de 80 mandou ler o livro A Dialética do Concreto, de Karel Kosik. Fui à livraria da universidade. Lá, o moço me disse: “ — Dialética do Concreto? Concreto, concreto... Hum, hum. Vá na parte da física. Ali tem tudo sobre concreto, asfalto, pedras”. Pois é. Interpretar livremente a norma em concreto deve ser algo parecido. Sim... In concreto!


Lenio Luiz Streck é jurista, professor, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.



Revista Consultor Jurídico, 9 de outubro de 2014, 8h00

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