terça-feira, 6 de novembro de 2012

O STF RECONHECE REPERCUSSÃO GERAL EM AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE QUE DISCUTE RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA

Luiz Cláudio Borges[1]
Entenda o caso
 
Em meados de 2004, J.B.P. (pai) procurou o escritório BORGES ADVOCACIA indagando se havia a possibilidade de reabrir a discussão em processo de investigação de paternidade, com sentença transitada em julgado e proferida há mais de 10 anos.
Após explicação pormenorizada a respeito do risco e da questão à parte, resolveu-se ajuizar uma ação negatória de paternidade na Comarca de Perdões [MG][2] e na contestação, como era de se esperar, o menor, J.A.L.P. alegou, preliminarmente, a violação à coisa julgada, o que, inicialmente, contou com o parecer favorável do representante do Ministério Público. Contudo, no decorrer da instrução processual, foram realizados dois exames de DNA, ambos com resultado negativo, excluindo a paternidade.
O juiz da Comarca de Perdões, Dr. Sérgio Luiz Maia, com parecer do Ministério Público pela relativização da coisa julgada em virtude dos exames, afastou o instituto e julgou procedentes os pedidos iniciais, para afastar a paternidade e todas as obrigações dela advindas.
Inconformado, o menor interpôs recurso de apelação para o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais e o Relator, Desembargador Dr. Antônio Hélio Silva, acolheu a preliminar de coisa julgada e extinguiu o processo, voto acompanhado pelos demais Desembargadores, Drs. Ameida Melo e Célio César Paduani.
Irresignado, J.B.P. interpôs recurso especial[3] para o Superior Tribunal de Justiça. No juízo de admissibilidade do TJMG o apelo fora conhecido e admitido, entretanto, ao chegar no STJ, o Ministro Sidnei Beneti, da 3ª Turma, relator do processo e em decisão monocrática, mesmo contra parecer do Ministério Público Federal, que opinava pelo provimento do recurso, negou-lhe seguimento, sustentando que o entendimento daquela Turma era no sentido de que "não cabe relativização da coisa julgada em ação negatória de paternidade".
O Ministro, muito embora tenha reconhecido a importância do tema, baseou-se no entendimento da Turma, no voto do Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, que em outro recurso, REsp n. 107.248/GO, DJ 7.5.1998, sustentava que a "existência de um exame de DNA posterior ao feito já julgado, com decisão transitada em julgado, reconhecendo a paternidade, não tem o condão de reabrir a questão com uma declaratória para negar a paternidade, sendo certo que o julgado está coberto pela certeza jurídica conferida pela coisa julgada."
Foi então, manejado um agravo regimental, que fora conhecido e, no mérito, sem divergência, negaram-lhe provimento.
Desta decisão, fundado na violação direta da Constituição da República em face da dignidade da pessoa humana, artigo 1º, inciso III, se interpôs recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal, que teve seguimento negado ao argumento de não haver preparo.
Novo agravo de instrumento foi manejado para demonstrar que o recorrente era beneficiário da justiça gratuita, tendo sido provido e admitido o recurso extraordinário, reconhecendo a repercussão geral.
Posteriormente, o STF entendeu ser o recurso repetitivo, e determinou que o feito fosse devolvido para o STJ a teor do que dispõe o art. 543-B do CPC. O recurso que foi o parâmetro para a devolução dos autos ao STJ foi julgado em 02/6/2011 e provido.
RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA - os fundamentos que culminaram na decisão do STF
Para contrapor a tese sustentada pelo Relator Ministro Sidnei Beneti, de que não cabe relativização de coisa julgada em ação declaratória negativa de paternidade, colacionou-se, no agravo regimental, uma decisão da Terceira Turma, da lavra da Ministra Nancy Andrighi - Resp 878954 (2006/0182349-0), DJ 28/5/2007.
Nesse acórdão, a Ministra expõe entendimento diametralmente diverso ao de seu colega de Turma, sustentando ser perfeitamente cabível a relativização da coisa julgada em ação negatória de paternidade, veja:
"[...].
Assim sendo, não pode prevalecer a verdade fictícia quando maculada pela verdade real e incontestável, calcada em prova de robusta certeza, como o é o exame genético pelo método DNA.
A indução a erro a que foi acometido o crédulo "pai" não lhe pode impor, ademais, o dever de assistir a criança reconhecidamente destituída da condição de filha.
E mesmo considerando a prevalência dos interesses da criança que deve nortear a condução do processo em que se discute de um lado o direito do pai negar a paternidade em razão do estabelecimento da verdade biológica e, de outro, o direito da criança de ter preservado seu estado de filiação, verifica-se que não há prejuízo para esta, porquanto à menina socorre o direito de perseguir a verdade real em ação investigatória de paternidade, para valer-se, aí sim, do direito indisponível de reconhecimento do estado de filiação e das conseqüências, inclusive materiais, daí advindas.
Merece reforma, pois o acórdão recorrido, para, com base no resultado do exame de DNA, certificando, de forma conclusiva, que o recorrente não é pai biológico da recorrida, conforme atestado pelo Tribunal de origem (fl. 91), julgar procedente o pedido formulado na ação negatória de paternidade."
Conclui-se, do aresto, que o progresso da ciência jurídica, em matéria de prova, está na substituição da verdade ficta pela verdade real. A coisa julgada, portanto, em se tratando de ações de estado, como no caso em análise, deve ser interpretada "modus in rebus".
Ressalte-se, aliás, que o instituto da coisa julgada não atinge as ações de estado.
Yussefe Sahid Cahali salienta que:
"Nos dias de hoje manifesta-se uma preocupação ostensiva e decisiva com a verdade da paternidade, procurando afirmar a filiação para seu reconhecimento conforme a verdade real, biológica, com vistas à mais eficiente proteção da pessoa do filho".
No âmbito atual das ações de investigação de paternidade ou de negação da paternidade e assim também naquelas que pesquisam na eventualidade, o vínculo de maternidade, é preciso atenuar os princípios que regem o instituto da coisa julgada. Não há mais espaço para impor esse conceito inflexível da coisa julgada e que deita sobre as demandas investigatórias ou negatórias de paternidade, que tinham suas raízes biológicas declaradas por sentenças com suporte exclusivos na atividade intelectual do decisor judicial, encarregado de promover a rígida avaliação dos tradicionais meios probatórios até então disponibilizados e vertidos para o ventre da ação parental. [4]"
Belmiro Pedro Welter, em seu artigo intitulado Coisa Julgada na Investigação de Paternidade, assinala:
"Dessa forma, de nada adianta canonizar-se o instituto da coisa julgada em detrimento da paz social, já que a paternidade biológica não é interesse apenas do investigante ou investigado, mas toda a sociedade, e não existe tranqüilidade social com a imutabilidade da coisa julgada da mentira, do engodo, da falsidade do registro público, na media em que a paternidade biológica é direito natural, constitucional, irrenunciável, imprescritível, indisponível, inegociável, impenhorável, personalíssimo, indeclinável, absoluto, vitalício, indispensável, oponível contra todos, intransmissível, constituído de manifesto interesse público e essencial ao ser humano, genuíno princípio da dignidade da pessoa humana, elevado à categoria de fundamento da República Federativa do Brasil (artigo 1º, II).
E esse direito natural e constitucional de personalidade não pode ser afastado nem pelo Poder Judiciário, nem pela sociedade e nem pelo Estado, porque, parafraseado Humberto Theodoro Júnior, se queremos uma sociedade de pessoas livres, não se pode colocar a segurança da coisa julgada acima da justiça da liberdade, porque um povo sem liberdade e sem justiça é um povo escravo, devendo ser entendido que mudou a época, mudaram os costumes, transformando-se o tempo, redefinindo valores e conceituando o contesto familiar de forma mais ampla que, com clarividência, pôs o constituinte de modo mais abrangente, no texto da nova Carta. E esse novo tempo não deve o Poder Judiciário, ao qual incumbe a composição dos litígios com olhos na realização da justiça, limitar-se à aceitação de conceitos pretéritos que não se ajustem à modernidade."
Demonstrou-se nos autos que, além de não existir nenhum vínculo sanguíneo entre as partes, advindo dos exames de DNA, nunca houve relação socioafetiva.
Para a Dra. Maria Berenice Dias, enquanto Desembargadora do TJRS, no julgamento da apelação cível n. 70011437662, Sétima Câmara Cível, DJ 01/6/2005, há que se acolher a nova pretensão para a realização do exame de DNA:
"EMENTA: NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. COISA JULGADA MATERIAL. CABIMENTO DE NOVA AÇÃO PARA COLHER EXAME DE DNA. PROVA DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA. A filiação socioafetiva se sobrepõe à verdade presumida e à verdade biológica. Tratando-se de direito indisponível, que diz com o estado de filiação, os preceitos da Constituição Federal devem se sobrepor ao instituto da coisa julgada. Impositiva a desconstituição da sentença para que seja reaberta a instrução, para realização da prova da filiação socioafetiva e do exame de DNA. Sentença desconstituída, por maioria."
No aresto a Desembargadora acrescenta:
"...
Conforme já sustentei na obra Manual de Direito das Famílias (Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2005, p. 364-5), [...] quando a ação for movida pelo pai, para desconstituição do vínculo da paternidade, reconhecido em anterior demanda investigatória, o objeto da demanda se torna complexo. Além de provar que não é o pai do réu (o que agora se torna possível através da realização do exame de DNA), é mister também que comprove não entreter com o filho que lhe foi impingido qualquer vínculo de convivência [...]. Não há como se manter um vínculo jurídico estabelecido de forma presumida e por indícios, sem qualquer respaldo probatório. Não havendo vínculo de qualquer ordem entre pai e filho, a não ser uma sentença que afirma um fato que não existe, esta inverdade jurídica não pode prevalecer [...]." Negrito do agravante.
O Ministério Público Federal, através do Subprocurador-Geral da República Dr. Washington Bolívar Júnior, opinou pelo conhecimento e provimento do recurso especial, com fundamento na seguinte ementa:
"RECURSO ESPECIAL - DIREITO DE FAMÍLIA - DIREITO CIVIL - INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE - COISA JULGADA - NÃO REALIZAÇÃO DE EXAME DE DNA - POUCA OU NENHUMA UTILIZAÇÃO À ÉPOCA - AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE - AJUIZAMENTO POSTERIOR - POSSIBILIDADE - BUSCA PELA VERDADE REAL - RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA - AÇÃO DE ESTADO - FINALIDADE SOCIAL DO PROCESSO - DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - PRECEDENTES.
•1- A irresignação merece procedência. Se ao tempo da investigação de paternidade que o recorrente se submeteu as técnicas de exame de DNA não eram muito conhecidas, e, portanto, de pouca ou nenhuma utilização na justiça, deve ser admitida a propositura de ação negatória de paternidade, mesmo após o trânsito em julgado no âmbito do antigo processo.
•2- A relativização da coisa julgada se justifica no presente caso, pois se trata de ação de estado, em que se deve dar prevalência à busca da verdade real, em atendimento à finalidade social do processo, bem comum, e dignidade da pessoa humana, mesmo que em detrimento da segurança jurídica das decisões judiciais, pois em referido conflito de valores, a verdade deve prevalecer.
•3- O Ministério Público Federal - MPF opina, preliminarmente, no sentido do conhecimento e, no mérito, no sentido do provimento do recurso especial, nos termos deste parecer."
O que se extrai é que não se pode dar caráter de imutabilidade às decisões judiciais quando versarem sobre ações de estado, seja em virtude de investigação, seja em negatória de paternidade. Neste sentido, o dispositivo do art. 467, do Código de Processo Civil não tem aplicabilidade irrestrita e absoluta, pelo contrário, sua relativização, sobretudo em ações de estado, é medida que se impõe e não afronta a segurança jurídica.
Nas razões recursais o recorrente aponta que a decisão do STJ violou diretamente a Constituição Federal. Demonstrou-se, ainda, que a coisa julgada e, consequentemente a segurança jurídica não pode sobrepor-se ao direito de saber sua origem, sob pena de violação da dignidade da pessoa humana.
O Ministro Celso de Mello, em 01/6/2011, admitiu o recurso extraordinário, entendendo que o tema da "superação da coisa julgada" em ações onde se discute a paternidade é passível de se reproduzir em múltiplos feitos[5].

Na análise da repercussão geral dos autos, o Ministro reforça a evolução do direito e consagra a decisão do Ministro Dias Toffoli nos autos do RE 363.889-RG/DF, que reconheceu existente a repercussão geral da questão constitucional em caso cujo objeto coincide, em todos os seus aspectos, com este.
O mérito do recurso extraordinário relatado pelo Ministro Dias Toffoli fora julgado no dia 02/6/2011, um dia após a análise dos pressupostos de admissibilidade do recurso em comento. Por maioria de votos, o Pleno do STF deu provimento ao recurso extraordinário para cassar a decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal.
Com essa decisão, o STF não só garantiu ao suposto filho daquele processo o direito de saber quem é seu pai, relativizando o instituto da coisa julgada, como também selou o destino do recurso extraordinário interposto por J.B.P., garantindo ao recorrente o direito de discutir a paternidade que lhe fora imposta por uma decisão transitada em julgado.
O colendo STF decide mais uma vez em consonância com a dignidade da pessoa humana.

                    

[1] Advogado, sócio da empresa BORGES ADVOCACIA, especialista em Direito Processual Civil e Direito Civil, Mestrando em Direito Constitucional e Democracia pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM) e professor de Direito Empresarial I e Direito do Consumidor pelo Centro Universitário de Lavras (UNILAVRAS).
[2] 0499.05.0930506-4
[3] 895545/MG
[4] [Reconhecimento do filho extramatrimonial. Livro de Estudos Jurídicos, Rio de Janeiro, IEJ, 1996, v. 7, p. 210-211]
[5] "DECISÃO: O Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o AI 715.423-QO/RS, Rel. Min. ELLEN GRACIE, firmou entendimento, posteriormente confirmado no julgamento do RE 540.410-QO/RS, Rel. Min. CEZAR PELUSO, no sentido de que também se aplica o disposto no art. 543-B do Código de Processo Civil aos recursos deduzidos contra acórdãos publicados antes de 03 de maio de 2007 e que veiculem tema em relação ao qual já foi reconhecida a existência de repercussão geral.
Esta Suprema Corte, apreciando o RE 363.889-RG/DF, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, reconheceu existente a repercussão geral da questão constitucional nele suscitada, e que coincide, em todos os seus aspectos, com a mesma controvérsia jurídica ora versada na presente causa.
O tema objeto do recurso extraordinário representativo de mencionada controvérsia jurídica, passível de se reproduzir em múltiplos feitos, refere-se à "Superação da coisa julgada para possibilitar nova ação de investigação de paternidade em face de viabilidade de realização de exame de DNA" (Tema nº 392 - www.stf.jus.br - Jurisprudência - Repercussão Geral).
Sendo assim, e pelas razões expostas, dou provimento ao presente agravo de instrumento, para admitir o recurso extraordinário a que ele se refere, impondo-se, nos termos do art. 328 do RISTF, na redação dada pela Emenda Regimental nº 21/2007, a devolução dos presentes autos ao Tribunal de origem, para que, neste, seja observado o disposto no art. 543-B e respectivos parágrafos do CPC (Lei nº 11.418/2006).
Publique-se.
Brasília, 01 de junho de 2011.
Ministro CELSO DE MELLO"
Fonte: Borges Advocacia

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