segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

CHEGOU A HORA DA CÂMARA ANALISAR POJETO DO NOVO CPC

 


Chegou a hora da Câmara analisar projeto do novo CPC

Por José Miguel Garcia Medina



No próximo dia 22 completam-se três anos de tramitação do projeto de novo Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados.[1] O texto-base do projeto já foi aprovado. Restam, agora, as votações sobre os destaques.[2] De acordo com a Agência Câmara Notícias, os destaques poderão ser analisados na sessão do próximo dia 17.[3]

O projeto tramita há muito tempo. Tendo em vista que a Câmara dos Deputados realizou muitas emendas, o projeto deverá retornar ao Senado Federal, casa iniciadora do projeto.[4]

Aqui na Coluna Processo Novo foram levantadas questões relevantes em torno das quais gira o projeto, como, por exemplo, a importância de haver uma nova compreensão dos sujeitos da relação processual,[5] a integridade da jurisprudência,[6] a fundamentação das decisões judiciais,[7] a preocupação com a “jurisprudência defensiva”,[8] etc. Sobre esses pontos, dentre tantos outros, o projeto de novo CPC apresenta importantes avanços.

Embora tenha participado da comissão que elaborou o anteprojeto,[9] tenho me manifestado, ao longo da tramitação do projeto no Senado Federal e na Câmara dos Deputados, a respeito de dispositivos que, creio, devem ser aperfeiçoados, tal como aqueles relacionados à configuração do prequestionamento[10] e à repercussão geral.[11]

Tenho insistido que os debates em torno do projeto não podem ser superficiais e que o discutamos com seriedade.Um dos pontos que merecem o devido cuidado, por exemplo, diz respeito ao efeito suspensivo da apelação.

Como observei em texto anterior desta Coluna,[12] o Código em vigor padece de grave incoerência.[13] Afinal, a decisão que concede liminar antecipando efeitos da tutela pode ser executada de imediato, pois o agravo de instrumento (recurso cabível, no caso) não tem efeito suspensivo automático (cf. artigos 273, parágrafo 3º, e 558 do CPC). A decisão que concede liminar — fundada, portanto, em cognição sumária — pode ser executada liminarmente, enquanto a sentença condenatória sujeita-se a apelação, recurso que, como regra, deve ser recebido com efeito suspensivo (CPC, art. 520), impedindo sua execução imediata.

O Código em vigor, assim, permite a execução imediata de uma liminar fundada em cognição sumária, mas não a execução de sentença fundada em cognição exauriente.

De acordo com o artigo 1.025, caput do projeto, na versão em discussão na Câmara dos Deputados,[14] “a apelação terá efeito suspensivo”. Mantém-se, assim, a incoerência da legislação em vigor. Melhor, segundo penso, é a regra correspondente prevista na versão aprovada pelo Senado Federal.[15] De acordo com o artigo 949 do projeto aprovado pelo Senado, os recursos, inclusive a sentença, não impedem a eficácia da decisão. Quanto à possibilidade de concessão de efeito suspensivo à apelação, previu-se que o mero protocolo no tribunal da petição que o requerer impede a eficácia da sentença, até que seja apreciada pelo relator.

Melhor mesmo, segundo pensamos, é a versão inicialmente aprovada pela comissão que elaborou o anteprojeto, mas que acabou não constando de sua versão final. Em reunião realizada nos dias 12 e 13.04.2010, foi aprovada pela comissão, por unanimidade, a seguinte redação: “O cabimento da apelação impede a execução da decisão impugnada, até que o Tribunal se manifeste a respeito do juízo de admissibilidade, ocasião em que poderá conceder o efeito suspensivo eventualmente requerido pelo recorrente”.[16] Tal não foi, contudo, a redação que acabou sendo registrada na versão final do anteprojeto.[17]

O texto aprovado inicialmente pela comissão que elaborou o anteprojeto, a meu ver, tem a vantagem de evitar o risco de sentenças manifestamente errôneas produzirem eficácia de imediato, mas permitem que, após manifestação do relator sobre a admissibilidade do recurso, sejam as sentenças desde logo executadas. Resolve-se, no caso, a polêmica, dispensando-se a necessidade de apresentação de requerimento autônomo diretamente no tribunal, para a atribuição de efeito suspensivo à apelação, enquanto esta tramita perante o juízo de primeiro grau. A apelação, assim, como regra, não teria efeito suspensivo, mas a eficácia da sentença dependeria de exame pelo relator sobre a admissibilidade do recurso. Andaria bem a Câmara dos Deputados, a meu ver, se incorporasse tal redação ao projeto.

É importante, de todo modo, que a Câmara dos Deputados delibere logo a respeito dos destaques, aprovando o que tivesse que ser aprovado, e rejeitando o que tiver que ser rejeitado. É lamentável ver projeto tão importante tendo sua análise sucessivamente adiada, tal como tem sido, nas sessões mais recentes. Que a Câmara dos Deputados conclua logo sua análise e o envie ao Senado Federal para apreciação das emendas, é o que se espera.



[1] O Projeto de Lei 8.046/2010 tramita na Câmara desde 22/12/2010 (cf. tramitação do referido projeto aqui). A partir de meados de 2011, referido projeto foi apensado ao Projeto de Lei 6.025/2005 (cf. tramitação do referido projeto aqui). Na página de tramitação deste projeto é possível acompanhar a evolução mais recente do Projeto.


[2] A relação dos destaques pode ser lida aqui.


[3] Cf. notícia publicada aqui.


[4] No Senado Federal, o Projeto de Lei tramitou sob o n. 166/2010 (cf. tramitação do referido projeto aqui).


[5] Cf. “Advogados têm direito a trabalhar com dignidade”, disponível aqui.


[6] Cf. “O que precisamos é de uma jurisprudência íntegra”, disponível aqui, “Jurisprudência não está, nem pode estar, acima da lei”, disponível aqui, e “Os caminhos percorridos pela jurisprudência do STF”, disponível aqui.


[7] Cf. “Precisamos de regra sobre fundamentação de decisões?”, disponível aqui, e “Fundamentação de decisões ainda não dá conta do básico”, disponível aqui.


[8] Cf. “Pelo fim da jurisprudência defensiva: uma utopia?”, disponível aqui.


[9] Os intensos trabalhos realizados pela referida Comissão podem ser conferidos aqui.


[10] Cf. “Câmara deve rever 'prequestionamento ficto' no CPC”, disponível aqui.


[11] Cf. “Deve caber repercussão geral sempre que houver divergência”, disponível aqui.


[12] Cf. “É um pássaro? Um avião? Não, é o 'superjuiz'!”, disponível aqui.


[13] Cf. também, a respeito, o que escreve Fernando Gajardoni: “Efeito suspensivo automático da apelação deve acabar”, disponível aqui.


[14] Disponível aqui, para download.


[15] Disponível aqui, para download.


[16] A ata da referida reunião está disponível aqui.


[17] Cf. artigo 908 da versão final do anteprojeto, disponível aqui.




José Miguel Garcia Medina é doutor em Direito, advogado, professor e membro da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto de Código de Processo Civil. Acompanhe-o no Twitter, no Facebook e em seu blog.

Revista Consultor Jurídico, 16 de dezembro de 2013

TST APROVA DUAS NOVAS SÚMULAS

 


Tribunal Superior do Trabalho aprova duas novas súmulas

O Pleno do Tribunal Superior do Trabalho aprovou na última quarta-feira (13/12) duas novas súmulas. Em uma delas, a Súmula 447, foi firmado o entendimento de que tripulantes e demais empregados que prestam serviços auxiliares e permanecem dentro de aeronave durante o abastecimento não têm direito ao adicional de periculosidade.

Na Súmula 446, ficou determinado que “a garantia ao intervalo intrajornada, prevista no art. 71 da CLT, por constituir-se em medida de higiene, saúde e segurança do empregado, é aplicável também ao ferroviário maquinista integrante da categoria ‘c’ (equipagem de trem em geral)”.

Alterações
A sessão do Pleno também aprovou a inclusão do item II à Súmula 288, sobre a complementação dos proventos da aposentadoria. O novo trecho determina que, nos casos em que há dois regulamentos de planos de previdência complementar, instituídos pelo empregador ou por uma entidade de previdência privada, o beneficiário opta por um deles e tal ato representa a renúncia às regras do outro.

A Súmula 392, que trata de dano moral e material em relação de trabalho, teve sua redação alterada. O novo texto afirma que “nos termos do artigo 114, inciso VI, da Constituição, a Justiça do Trabalho é competente para processar e julgar ações de indenização por dano moral e material, decorrentes da relação de trabalho, inclusive as oriundas de acidente de trabalho e doenças a ele equiparadas”.

Instruções normativas
O Pleno do TST também aprovou alterações em três instruções normativas. A nova redação do item X da AI 3/1993 determina que “não é exigido depósito recursal, em qualquer fase do processo ou grau de jurisdição, dos entes de direito público externo e das pessoas de direito público contempladas no Decreto-Lei n.º 779, de 21.8.69, bem assim da massa falida e da herança jacente”.

Já na Instrução Normativa 20/2002, foram alterados os itens I,V,VI e IX, revogados os itens IV e VII e incluídos o item VIII-A. Isso porque a Justiça do Trabalhou passou adotar a GRU no lugar da Darf para recolhimento de custas. Também foi revogado o parágrafo 2º do artigo 5º da Instrução Normativa 30/2007.

As novas súmulas e as alterações nas súmulas já vigentes devem ser publicadas por três vezes consecutivas no Diário Eletrônico da Justiça do Trabalho, de acordo com o artigo 175 do Regimento Interno do TST. Já as alterações das instruções normativas serão publicadas uma única vez. Com informações da Assessoria de Imprensa do TST.
 
Revista Consultor Jurídico, 16 de dezembro de 2013

EQUÍVOCOS EM PROJETO DA MEDIAÇÃO PODEM SER SANADOS

 


Equívocos em Projeto da Mediação podem ser sanados

Por Rêmolo Letteriello



O Diário do Senado Federal, de 23 de outubro passado, publicou o Projeto de Lei do Senado 434, de 2013, que dispõe sobre a mediação. O Projeto deriva da conclusão dos trabalhos da Comissão de Especialistas instituída pela Portaria 2.148, de 29 de maio de 2013, do Ministério da Justiça, para discutir o marco legal da mediação e conciliação no Brasil, com o objetivo de avaliar, debater e elaborar propostas para subsidiar os devidos ministérios e órgãos do governo federal, visando o aprimoramento e modernização da legislação sobre as formas adequadas de solução de conflitos.

Ao examinar o texto integral, constatamos a existência de alguns equívocos e outras impropriedades e incorreções, que podem ser sanados quando da tramitação da proposição. Pensando em tornar melhor as disposições do Projeto, a título de colaboração, encaminhamos ao seu autor, senador José Pimentel (PT-CE), um tanto de sugestões que reputamos pertinentes e oportunas sobre a matéria. As propostas de alterações das regras constantes do Projeto foram todas acompanhadas de justificativas que, seguramente, serão sopesadas e bem examinadas pelo autor e demais eminentes senadores.

As sugestões apresentadas são as seguintes:

No Capítulo I das Disposições Gerais, o parágrafo único do artigo 1°, ao definir a função do mediador, estabelece que ele “promove a comunicação” entre as partes, para prevenir o conflito e buscar o consenso. Sugerimos a substituição da palavra “promove” por “restaura”, porque, na verdade, na mediação, não se promove, não se provoca, não se dá início a uma comunicação entre os mediandos, mas se restaura, se restabelece a comunicabilidade perdida, perda que deu causa ao conflito.

O artigo 2° aponta, entre os princípios fundamentais da mediação, o “consensualismo”, expressão que, no nosso entender, deve ser substituída por “consensualidade”. É que “consensualismo” significa uma posição que seria adotada, no caso, pelos conflitantes, ao passo que a expressão “consensualidade” representa uma característica da mediação, sendo, portanto, o termo apropriado.

No Capítulo II — Dos Mediadores, o artigo 6° prescreve que o mediador “conduz o processo de comunicação”. É de se anotar que o mediador conduz o processo de mediação e não de comunicação; o facilitar da comunicação entre as partes é um dos atos de desenvolvimento da mediação que integra o seu procedimento e não o processo. Registra-se, também, que entre as atividades do mediador está a de eliminar a causa primordial do conflito, que se assenta, recorrentemente, na ausência de comunicação entre as partes, cumprindo-lhe, portanto, torná-la acessível para permitir, a partir daí, o desenrolar eficiente do procedimento com o estabelecimento de uma relação confortável entre os mediandos. Em vista disso, sugerimos que se estabeleça que o mediador “conduz o processo de mediação, abrindo os canais de comunicação entre as partes”.

O artigo 14 do Capítulo que cuida dos Mediadores (III) estabelece os “critérios” a serem preenchidos por aquele que pretende se cadastrar como mediador judicial. Propomos a substituição do vocábulo “critérios” por “requisitos”, justificando que critério admite apenas três sentidos: com relação a método pode significar modo, norma, preceito, regra, sistema, etc.; referentemente a parâmetro pode representar base, medida, padrão, fundamento, etc., e relativamente a discernimento pode exprimir bom senso, discrição, equilíbrio, juízo, ponderação, razão, etc. Nenhum deles tem aplicação na hipótese, de sorte que a denominação dos pressupostos para que uma pessoa seja apta a exercer a função de mediador judicial não há de referir-se a critério e sim a requisito que tem o significado de condição — condição para ser mediador.

Na regulamentação do Procedimento da Mediação (Capítulo IV), na Seção I — Disposições Gerais, o parágrafo 3° do artigo 18 do Projeto estatui que o dever de confidencialidade aplica-se às partes, seus advogados ou defensores públicos, bem como aos assessores técnicos e outras pessoas de confiança do mediador, não constando a exigibilidade daquele dever ao mediador. Por isso, oferecemos sugestão de se incluir a figura do agente mediador no rol daqueles que devem guardar confidencialidade do processo e de todo o sucedido no seu transcorrer, ajuntando que a confidencialidade é uma das normas éticas mais importantes na atuação do mediador, não fazendo sentido a omissão da sua pessoa na redação do aludido parágrafo.

O artigo 19 impõe às partes interessadas na mediação a obrigatoriedade de assinarem um “termo inicial de mediação”. A experiência tem demonstrado que a hipótese mais frequente é a do comparecimento de apenas uma das partes ao serviço de mediação, haja vista que as pessoas em conflito dificilmente se colocam em acordo para acorrerem a tal serviço. Lembramos, então, a necessidade de se acrescentar dois parágrafos ao artigo: o primeiro, prevendo a pressuposição da existência de um (a) único (a) interessado (a), caso em que a outra parte seria convidada ao comparecimento e, acedendo ao convite, receberia informações sobre o processo de mediação; e o segundo, anunciando as providências a serem tomadas no caso de aceitação da parte convidada.

O artigo 20, que relaciona o que deve conter o termo inicial da mediação, estatui, no inciso I, a obrigatoriedade de se registrar o nome, a profissão, o estado civil e o domicílio das partes e, se houver, de seu advogado ou defensor público. Ante a omissão da hipótese de as partes renunciarem à assistência daqueles profissionais, apresentamos proposta no sentido de também constar tal ocorrência no termo, justificando que, se a renúncia das partes à assistência de advogados ou defensores públicos, no processo da mediação, deve ser expressa, como inscrito no artigo 23, tal ato só pode ser registrado no termo da mediação.

Os incisos do artigo 24 anotam o conteúdo do termo final da mediação, assentando o IV, “a descrição dos direitos e das obrigações das partes, a declaração de tentativa infrutífe ra ou a descrição do consenso obtido pelas partes”. Ao propor mudança no texto, sugerimos a supressão da obrigatoriedade de se descrever os “direitos” das partes, justificando que o termo de acordo não deve fazer referência a direitos que os conflitantes possam ter, uma vez essa questão não é de ser agitada no procedimento da mediação. Como se sabe, o reconhecimento e a declaração de direitos são obtidos na esfera judicial. Na instância da mediação, o que se pondera são os interesses e posições dos mediandos, questões que não importam ao termo. Durante o procedimento da mediação, em nenhum momento se perquire sobre a existência de direitos das partes. Ainda com relação ao inciso IV, recomendamos acrescentar, no seu final, a descrição “das obrigações individuais contraídas”, posto ser necessário que se explicite as obrigações de cada mediado, particularizando os respectivos encargos, o que seria de vital importância e evidência palpável do que as partes convencionaram fazer. Finalmente, mostramos a conveniência de se remeter a expressão “declaração de tentativa infrutífera” da mediação para inciso autônomo a ser criado, nomeadamente, o VII, porquanto o registro de eventual mediação frustrada deve constar em dispositivo apartado daquele que trata da mediação bem sucedida, não fazendo sentido a previsão de dois resultados distintos num único inciso, como está no Projeto.

O artigo 25 diz que “O termo final de mediação tem natureza de título executivo extrajudicial e, quando homologado judicialmente, de título executivo judicial”. Propusemos a troca do vocábulo “natureza”, pela palavra “eficácia”, ponderando o seguinte: a natureza de um título executivo diz respeito a um documento com função de provar um direito subjetivo, ou a um ato jurídico, cuja validade depende do preenchimento de determinados requisitos. Essa simples sustentação justifica a objeção que se faz ao texto do artigo 21, uma vez que este pretende exprimir o efeito do acordo e não definir a sua natureza. Por isso, a expressão correta e adequada, do ponto de vista jurídico, é eficácia, que dá o sentido de aptidão, a permitir a instauração de uma execução extrajudicial ou de uma execução de sentença.

Na Seção II, que disciplina o Procedimento da Mediação Judicial, estabeleceu-se no artigo 26 a solicitação de mediação através de petição inicial que seria distribuída ao juízo e ao mediador. Fizemos objeção aos dois procedimentos, argumentando que a exigência de petição inicial atenta contra uma das características fundamentais da Mediação — a informalidade, que é uma das grandes vantagens desse método alternativo de resolução de conflitos. Lembramos que na mediação judicial existem duas modalidades, quais sejam, a pré-processual e a processual, sendo que a primeira, invariavelmente, é provocada pelas partes, em grande maioria, não assistidas por advogados ou defensores públicos e que têm a natural dificuldade de formular um pedido, especialmente quando dirigido a um órgão do Poder Judiciário. A outra modalidade, a processual, se inaugura ou por triagem das causas em tramitação e passíveis de mediação, ou quando remetidas pelo magistrado aos centros, núcleos ou unidades organizados para a realização de conciliação e mediação, sendo despicienda qualquer tipo de petição. Não haveria, então, distribuição ao juízo, mas encaminhamento do termo inicial (artigo 19) ao mediador que figurasse no quadro de mediadores judiciais.

Sugerimos, ainda, incluir-se no aludido artigo 26 dois parágrafos: o primeiro, para que se observassem as disposições do artigo 19 e seus parágrafos, uma vez que na mediação judicial também se faz necessário firmar o termo que consolida o início do Processo, e o segundo, para dar outra redação ao parágrafo único do Projeto, que prescreve: “Competem (sic) aos Tribunais a organização e a disciplina de funcionamento do órgão que agregará os mediadores”. Pensamos em ampliar e melhor definir a competência dos Tribunais, ponderando que as suas atribuições não devem alcançar apenas a regulamentação da organização e funcionamento do órgão que reúne os mediadores, mas também e principalmente o regramento do procedimento que, embora informal, deve ser minimamente estruturado.

O Projeto determina que, na hipótese de inexistência de consenso, o mediador lavre certidão a respeito, encaminhando-a, juntamente com a petição inicial, ao juízo (artigo 27, parágrafo 2°). A sugestão apresentada foi no sentido de se inscrever que nas duas modalidades de mediação (processual e pré-processual), o mediador determine a expedição do termo de mediação negativa, não lavrando, ele próprio, qualquer certidão ou termo. É que a tarefa de lavrar termos ou certidões compete aos servidores que atuam nos cartórios ou secretarias, e não ao mediador, que tem outras atividades e funções mais importantes a desempenhar no procedimento da mediação.

De outra sorte, ordena o parágrafo 3° do artigo 27 que, no caso de acordo, o termo respectivo “será encaminhado pelo mediador ao juízo que o homologará, desde que requerida a homologação por ambas as partes”. Apresentamos proposta para, alterando o texto, permitir que o requerimento de homologação seja feito por uma ou ambas as partes. A justificativa se assenta em que o pedido de homologação do termo de acordo é uma faculdade a ser exercida por qualquer das partes ou por ambas. É possível que um dos mediados não se interesse pela homologação, se conformando com a posse de um título executivo extrajudicial; isso, contudo, não será causa impediente para que a outra busque a homologação, a fim de possuir um título executivo com eficácia judicial e melhor se garantir em futura e eventual execução.

O artigo 28 prevê a possibilidade de isenção de custas processuais no caso de obtenção de consenso na mediação. Sugerimos o acréscimo da palavra “processual” após a expressão “mediação”. O dispositivo tem aplicação apenas na mediação processual, porquanto na pré-processual, não havendo processo, não há despesas.

O Projeto se dispõe a regular a Mediação Extrajudicial, na Seção III, do Capítulo IV, estatuindo o artigo 29 que “O convite para iniciar procedimento de mediação extrajudicial poderá ser feito por qualquer meio de comunicação”. Essa redação não condiz com o sentido daquilo que se busca normatizar, daí porque indicamos a substituição do texto por outro, invocando as disposições constantes do artigo 19, que cuidam do início da mediação, e dos parágrafos 1° e 2° (se aceitas as propostas que oferecemos a respeito), que tratam do convite, da aceitação da mediação e da firmação do termo inicial pela parte que, de início, não se interessou por ela.

Não pode prevalecer, também, a redação do parágrafo único do artigo 29 que estabelece que “será considerado rejeitado o convite para participar da mediação” se não houver resposta ao pedido, no prazo de trinta dias. Ora, o não comparecimento da parte convidada não resulta em se rejeitar o convite, mas em tornar prejudicada a tentativa de mediação. A rejeição do convite, como previsto no texto original, implica considerar em desenvolvimento um procedimento que, na verdade, sequer foi instaurado e que, se fosse, não poderia prosseguir, simplesmente, por falta da parte contrária. Entendemos que o dispositivo se torna mais lógico com a seguinte redação: “Se a parte convidada não atender à convocação, no prazo de trinta dias da data de recebimento, restará prejudicada a tentativa de mediação, consignando-se o não comparecimento no termo inicial a que se refere o art. 19”.

Sobre a conclusão do procedimento da mediação, fixou o Projeto, no artigo 31, a regra que sustenta que a mediação conclui-se com a obtenção do consenso por vontade de qualquer das partes manifestada a qualquer momento, ou pelo mediador, quando este reputar inviável o consenso. Apresentamos três sugestões para a necessária correção do artigo: a primeira, visando à substituição da expressão “por vontade de qualquer das partes manifestada a qualquer momento”, por “a que tiverem chegado as partes”, com a justificativa de que o acordo que finaliza a mediação concretiza-se quando há consenso de ambas as partes. Se um dos conflitantes resiste ou não adere às propostas apresentadas, por não satisfazer aos seus interesses, é evidente que não há consenso e, consequentemente, não há acordo, que é o principal objetivo da mediação. Por outro lado, não faz sentido a proposição de se concluir a mediação pela “vontade de qualquer das partes manifestada a qualquer momento”. É que existe um momento certo para a manifestação do consenso que leva ao acordo, momento esse que ocorre na fase final do procedimento; a segunda proposta foi a de acrescentar a conjetura da tentativa infrutífera de mediação como causa de conclusão do procedimento, ponderando que a malograda tentativa, que muito se verifica na prática, também deve constar ao lado das outras causas de encerramento do procedimento, caso contrário este permanece em aberto; e a terceira, no sentido de se eliminar a hipótese de conclusão da mediação quando o mediador reputar inviável o consenso. Sobre isso, justificamos que não é só a falta de consenso que motiva a conclusão do procedimento; outras causas como, por exemplo, o abandono ou a desistência do procedimento por uma das partes, antes mesmo da formulação das propostas, a concordância de todos os mediados no sentido de encerrar o processo, a tentativa mal sucedida de resolução do conflito etc., são também razões que justificam a finalização da mediação. Oferecemos, então, a seguinte redação para o artigo 31: “O procedimento de mediação conclui-se com a obtenção do consenso a que tiverem chegado as partes, quando frustrada a tentativa de mediação, ou pelo mediador, quando este entender que, por qualquer razão, a mediação restou prejudicada”.

São essas as propostas que apresentamos, de alterações de algumas disposições do Projeto de Lei do Senado 434, de 2013, todas elas fundadas nos conhecimentos retirados dos estudos sobre mediação e da experiência adquirida na prática da resolução de conflitos através do notável instituto. Esperamos que elas possam contribuir para o aperfeiçoamento do texto dirigido à formação de uma legislação que realmente garanta aos cidadãos o efetivo acesso ao extraordinário método alternativo de solução de disputas e de pacificação social, que é a mediação.


Rêmolo Letteriello é desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul e Mediador.
Revista Consultor Jurídico, 16 de dezembro de 2013

"A SUSEP ESTÁ LIMINTANDO O NEGÓCIO DE SEGUROS NO BRASIL"

 


"A Susep está limitando o negócio de seguros no Brasil"

Por Tadeu Rover






Há três décadas na área de seguros, o advogado Sérgio Barroso de Mello está receoso com os rumos do mercado de seguros no Brasil. Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico ele critica os rumos da Superintendência Nacional de Seguros Privados e afirma que ela está fechando um mercado que é crescente.

O advogado divide o tempo entre seu escritório, Pellon & Associados Advocacia, e a presidência do Comitê Ibero-Latino Americano da Associação Internacional de Direitos de Seguros (Cila/Aida), entidade que reúne esforços em defesa do estudo e a divulgação do direito de seguros e de suas matérias afins.

Em junho, Mello esteve à frente do Congresso do Cila/Aida. De lá trouxe novidades como a criação do tribunal arbitral para países latinos, batizado de Arias Latam (Tribunal Arbitral da Aida na América Latina). O tribunal está localizado na Universidade Católica do Chile, em Santiago. “Por estar em uma faculdade tem custos menores e está em um ambiente onde o Direito é o Direito Romano, como o nosso, o Direito positivo que privilegia a lei, as normas, e muito menos a jurisprudência”, explica Mello.

Formado em 1988 pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mello possui vasta experiência na área de seguros do Brasil e do Exterior. Além da experiência profissional, Mello conta também com especializações na área como o doutorado em Contrato de Seguro e Resseguro pela Universidade de Santiago de Compostela, Espanha.

Além do escritório e da presidência do Cila/Aida, Sérgio Melloatua como árbitro do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem. Também é professor de Direito e Previdência Complementar Privada do MBA em Previdência Complementar da UFRJ, da Cadeira Direito de Seguros e Resseguros MBAs da Universidade Cândido Mendes, da Fundação Nacional Escola de Seguros (Funenseg), da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da Pontifícia Universidade Católica de Belo Horizonte (PUC Minas).

Leia a entrevista:

ConJur — Quais são os principais problemas do seguro hoje em dia?
Sérgio Barroso de Mello — No seguro em si, nós temos um problema hoje que é o nosso órgão regulador. Nele há dois problemas. O primeiro é que a Susep, a Superintendência Nacional de Seguros Privados não é uma agência, e sim uma superintendência. Com isso não possui mandato e a cada um ano e meio ou dois anos troca o superintendente e muda a filosofia. Isso é muito ruim porque você perde o norte.

ConJur — E qual seria o outro problema?
Sérgio Barroso de Mello — A falta de profissionais que conhecem seguro com profundidade. Ao longo do tempo a Susep perdeu gente que tinha a memória do seguro, que se aposentou, e não absorveu profissionais com capacidade. Nos concursos são contratados basicamente atuários recém-formados, que nunca trabalharam em uma rotina de seguro, de resseguro ou mesmo junto a um corretor. Além disso falta treinamento. O investimento em treinamento é muito baixo. Com isso, nos últimos dois ou três anos começaram a estabelecer normas que criam padrões. Quando você cria padrão é fácil regular. Você tem uma receita, tudo que está fora dela é penalidade, multa.

ConJur — Quais as conseqüências dessa prática?
Sérgio Barroso de Mello — O mercado de seguro nacional e internacional é muito criativo e faz negócios de risco. A essência do segurador é a criatividade. Se você limita a sua criatividade, você limita o negócio de seguros. Quando esse órgão regulador cria padrões ele começa a impedir o mercado de produtos específicos para cada necessidade. A gente tem isso historicamente, a gente chama de seguros taylor made, feito especificamente para cada tipo de risco. A partir de agora a Susep começou a expedir várias circulares criando padrões. Isso é muito ruim porque ela proíbe uma série de práticas que são absolutamente salutares e a Susep não entendeu isso. O que acaba prejudicando os clientes.

ConJur — O senhor fala a partir de agora. Agora quando?
Sérgio Barroso de Mello — A Susep editou algumas normas pequenas em 2010 e 2011, mas a grande norma que mais assusta foi a Circular 437 de 2012. Ela trata dos seguros de responsabilidade civil, que entrou em vigor em junho. Era para ter entrado em vigor em dezembro do ano passado, mas a Federação Nacional de Seguros Gerais (FenSeg) e nós da Associação Internacional de Direito de Seguros (Aida) conseguimos a prorrogação por seis meses após apontarmos em um relatório uma série de circunstâncias ruins da circular. Existem alguns seguros de RC, de grandes segurados, que eram para ser renovados e que não estão podendo ser renovados devido a essa circular. Esses segurados estão tendo que comprar uma apólice com muito menos cobertura do que antes.

ConJur — Menos cobertura?
Sérgio Barroso de Mello — Os grandes prejudicados são os segurados. Porque não só no que diz respeito à RC, mas também quanto às outras modalidades que a Susep está padronizando, a Susep está impedindo essa criatividade para você dar certas coberturas.

ConJur — Pode dar um exemplo?
Sérgio Barroso de Mello — No seguro de RC, especialmente o D&O [sigla em inglês para Directors and Officers Liability Insurance] — que o executivo faz para cobrir uma responsabilidade dele, uma penalidade qualquer que ele venha receber por algum erro que cometeu — a Susep não deixa você cobrir mais multa. E isso não tem justificativa. A multa é da essência do seguro de RC. Isso está causando no Brasil uma crise de produtos específicos de seguro. O país vai perder prêmio de seguro, prêmio de resseguro, pois muitos segurados, multinacionais especialmente, vão contratar nas suas chamadas apólices guarda-chuva.

ConJur — Como funciona isso?
Sérgio Barroso de Mello — As grandes multinacionais têm o que eles chamam de programa mundial, que nada mais é do que uma grande apólice contratada na matriz. Você pega uma Volkswagen, por exemplo, está na Alemanha e ela contrata uma apólice gigantesca para o mundo inteiro. Só que ela estabelece uma franquia. Por exemplo, uma franquia de R$ 50 milhões para o Brasil, abaixo disso eles não cobrem. Então a Volkswagen vem aqui e contrata uma apólice de R$ 50 milhões. Isso já é feito há muito tempo e a tendência é que se amplie.

ConJur — E como que a Volkswagen daqui será indenizada?
Sérgio Barroso de Mello — É muito fácil. Acontece o sinistro e eles enviam técnicos, os reguladores e isso não passa pela Susep. Os advogados estrangeiros virão para acompanhar e vão entregar os relatórios para um segurador de fora. Para enviar o dinheiro eles fazem um aumento de capital social e pronto. O dinheiro entra aqui no Brasil como alteração societária. Essa é apenas uma das formas. Tem outras. Isso acontece muito, só que ninguém vê.

ConJur — Essa é a ponta de uma crise no mercado?
Sérgio Barroso de Mello — Exato.

ConJur — E só acabará com o fim da Susep?
Sérgio Barroso de Mello — Então, quando você me pergunta qual é o maior problema hoje no mercado, é a intervenção. Tem outra circular, a 458, que estabelece a proibição para contratação do que a gente chama de planos singulares. Essa proibição de você fazer os seguros específicos ou singulares é a morte do nosso mercado. Essa circular cria padrões: se você não fizer um seguro igual àquele que a Susep estabeleceu, com aquelas condições básicas, você não pode fazer outro. Como não poderemos mais cobrir, o cliente vai procurar seguradoras de fora. Essas circulares citadas são os dois maiores exemplos nefastos de perda de receita e de morte de uma boa parcela do nosso mercado de seguros. Todos vamos perder lamentavelmente.

ConJur — Essa criação de padrões é uma tendência da Susep ao longo dos anos ou é pontual da atual gestão?
Sérgio Barroso de Mello — A gente está vivendo o ápice de várias medidas equivocadas tomadas ao longo dos últimos 15 ou 20 anos, especialmente pela falta de gente capacitada, de treinamento, de uma norma mais perene transformando a superintendência em um órgão de regulação, propriamente dito, como uma espécie de agência, que pudesse ter mandatos bem definidos. Então, essas mazelas todas prejudicaram um setor que é pujante.

ConJur — Como você iniciou na área de seguros?
Sérgio Barroso de Mello — Estou no mercado há quase 30 anos. Comecei muito novo, logo no primeiro ano de faculdade comecei a estagiar em uma companhia de seguro onde eu fique 12 anos. Chamava-se Companhia Internacional de Seguros. Quando comecei lá pertencia à família Rocha Miranda. Depois o Naji Nahas comprou e, em março de 91, ela foi liquidada. Nessa época montei o escritório com o meu sócio, o Luís Felipe Pellon. No início éramos nós dois, um office boy e uma secretária. Hoje nós somos 480 pessoas, 160 advogados.

ConJur — Como o escritório cresceu tanto?
Sérgio Barroso de Mello — Quando comecei, o mercado de seguros era 0,7% do PIB, hoje é mais de 5% do PIB. Não teve ano que o mercado de seguro não crescesse menos de 10%. Agora essas restrições regulatórias são um tiro no pé. Isso vai prejudicar fortemente os prêmios de seguro e resseguro, cuja indústria hoje é muito forte e muito importante. Gera empregos, gera impostos. Vamos pegar só o exemplo do resseguro. Quando o mercado se abriu há cinco anos, o Instituto de Resseguros do Brasil (IRB) faturava de prêmio de resseguro de R$ 2,7 bilhões. Hoje, com cinco anos de mercado aberto, temos R$ 7 bilhões, entre seguradores locais, admitidos e eventuais.

ConJur — E não é um aumento de sinistro, é um aumento de cobertura.
Sérgio Barroso de Mello — Exatamente. É um aumento de produtos. A gente começou a ter uma serie de produtos — que chamamos de produtos de coberturas — que começou a ser oferecida ao mercado que não tinha antes. O D&O é outro exemplo. Quando o mercado de resseguros abriu todos os resseguradores trouxeram os seus produtos de D&O para o Brasil e começaram a vender. Com a concorrência, estima-se que os prêmios de D&O estão 40% abaixo do que deveria estar, o que é bom para o segurado. O recall é outro problema sério do mercado de seguros.

ConJur — Temos visto muito recall ultimamente. Por quê?
Sérgio Barroso de Mello — Você não tem um produto no Brasil de recall. Você tem os seguros de responsabilidade civil que garantem uma parte de recall. O que nós conseguimos vender é uma cobertura chamada recall. A Susep nessa circular ela fechou ainda mais essa cobertura. Na Europa, que é sempre uma referência, você tem os produtos de responsabilidade civil e de recall específicos. Você chega a ter apólices com 20 ou 30 laudas, muito bem definidas, com várias coberturas, para as diferentes situações: momento de recolhimento do produto, momento de reconstituição e o da reparação do dano. No Brasil, com esse fechamento pela circular 437, com padrões que diminuem a cobertura, os clientes vão procurar as seguradoras estrangeiras.

ConJur — Isso em um momento em que temos muitos casos de recall no Brasil.
Sérgio Barroso de Mello — Exato. No momento que aumenta a demanda por recall a Susep, que é o órgão regulador que deveria dar condições para todo mundo vender recall, diz: “Não. Não quero que você venda recall. Se vender, vende só com essa ou aquela cobertura.” Os clientes vão buscar esse mercado lá fora. Há uma demanda, o mercado precisa e a Susep não deixa o mercado oferecer.

ConJur — Qual a conseqüência disso no mercado?
Sérgio Barroso de Mello — Isso vai ocasionar uma crise, perda de receita, essa pujança toda de empregos, de geração de impostos. A arrecadação do governo cresceu junto com esse faturamento do mercado, que hoje é de R$ 7 bilhões. Também tem a geração de empregos. Antigamente você só tinha 600 empregados no IRB. Hoje, estima-se que você tem mais de 10 mil pessoas trabalhando diretamente com o resseguro. Então, um país tem que ter modelos que possam produzir um desenvolvimento adequado ao mercado. O que a gente vê no nosso mercado é a superintendência em uma visão contrária, na contramão de toda atividade econômica.

ConJur — Isso está relacionado com a política do governo federal?
Sérgio Barroso de Mello — Acredito que não está diretamente relacionada a política do governo. Hoje quem está no comando não está ligado ao PT propriamente dito, o que é perverso também. Quando você pega um órgão absolutamente técnico e coloca representantes da classe política e não da categoria, você pode criar o que está acontecendo, que é falta de compromisso com o negócio. Falta compromisso com a perenidade das regras que seriam suficientes para a gente ter um crescimento com consistência. O que eles estão fazendo é criar regras para fechar esse crescimento, em beneficio, infelizmente, dos países concorrentes.

ConJur — Existe um seguro para agente público no Brasil?
Sérgio Barroso de Mello — É o mesmo do agente privado, é o que a gente chama de D&O, para diretores e gerentes. Esse seguro foi montado para qualquer diretor ou gerente. Mas é claro que todo produto privado sempre é acessível em um primeiro momento pelas empresas privadas e se tornou um produto de grande importância — há casos em que na entrevista para determinados cargos você é questionado se possui seguro D&O. Esse sucesso na área privada começou a ser melhor visualizado pela área pública, os gestores públicos começaram a se preocupar com isso, especialmente gestores de economia mista, empresa pública de capital direto. Esses executivos começaram a buscar uma forma de contratar, alguns poucos até contrataram do seu próprio bolso, outros menores ainda a empresa pagou. Mas há uma discussão dentro do governo se é possível ou não que uma empresa pública pague o prêmio do seguro D&O. É uma discussão que, pelo que eu tenho acompanhado, tende a ser superada no sentido de confirmarem essa possibilidade. E se isto ocorrer a tendência é você ter também, em um curto espaço de tempo, apólices de seguro D&O para todos os gestores públicos, porque ela não faz distinção, o que cobre para o privado cobre para o público também.

ConJur — Não importa o tipo de empresa?
Sérgio Barroso de Mello — É a responsabilidade dele como gestor. Qualquer ato de gestão que não seja doloso, porque se for doloso é má-fé, aí não tem cobertura, mas qualquer ato de gestão que venha a causar um dano à sociedade, a terceiros, etc., ele está coberto.

ConJur — E no caso, por exemplo, de funcionário que causou um acidente de trabalho. Quando a culpa é provada do funcionário. Foi ele que não seguiu uma regra da empresa, a seguradora cobre isso?
Sérgio Barroso de Mello — Cobre e isso acontece muito. Um exemplo: um canteiro de obras em que a empresa oferece material de prevenção de acidentes, mas não fiscaliza. O ato de não fiscalizar foi o que gerou o não uso dos equipamentos.

ConJur — A culpa então é de quem não fiscalizou?
Sérgio Barroso de Mello — Isso. Mas é culpa e não dolo. Quer dizer, o segurado que não fez a fiscalização, ele não fez por quê? Porque ele esqueceu, porque ele não contratou. Ele não fez a fiscalização porque queria que o sujeito morresse. Então, não dá para negar a indenização, está coberto. O que o mercado está fazendo é estabelecer com os seus clientes linhas preventivas para evitar esses acidentes.

ConJur — Como assim?
Sérgio Barroso de Mello — Em situações como essas na área de engenharia há uma obrigação de se manter uma vigilância, uma fiscalização mais efetiva, sobre o uso, por exemplo, dos equipamentos de proteção e que evitam os acidentes. Com isso a gente estava indenizando bastante os acidentes, o que é bom, porque no fundo é o seguro contribuindo para que a população não perca vidas. Isso é muito bom, muito importante.

ConJur — E a questão da arbitragem no seguro, como que ela funciona? Em regra, o segurador pede uma cláusula arbitral?
Sérgio Barroso de Mello — A lei de arbitragem não permite que o segurador faça uma cláusula e obrigue o segurado. A lei de arbitragem exige, para que haja validade em uma cláusula arbitral, que o segurado assine nela com duas testemunhas. Mas poucos fazem. Em geral, apenas alguns grandes têm solicitado nos últimos anos uma cláusula compromissória.

ConJur — Por que apenas grandes clientes?
Sérgio Barroso de Mello — Motivados por dois aspectos fundamentais: o primeiro é que eles sabem que se tiver um litígio na Justiça com a seguradora vai durar no mínimo seis anos. Ninguém está disposto a esperar esse período todo. Uma arbitragem dura um ano, um ano e meio ou dois, no máximo. E segundo, a qualidade da decisão arbitral. Na Justiça comum seu processo é distribuído a um juiz que tem centenas de outros para julgar e que não tem uma estrutura funcional que o ajude a pesquisar. Esses juízes procuram resolver a maioria dos casos por questão de ordem processual de forma que passam ao lado do mérito. Quando tem que examinar o mérito eles demoram, porque é mais fácil enrolar. Ouvir testemunha, juntar documento, fazer a perícia, cada procedimento são meses e meses. Quando termina tudo isso bate aquela preguiça, o processo vai para a banca do juiz e fica lá no gabinete junto com um monte de processos. Ele olha o tamanho do processo e junto um monte de pequenos. Ele vai soltando os pequenos e aquele vai ficando. Quando finalmente pega para examinar, faz de maneira superficial. Não vai estudar cada documento, cada evidência de direito como deveria. Vai dar uma opinião singela no campo do Direito que vai prevalecer. Pode ver que as sentenças são todas assim, nenhuma dela vai dar profundidade no caso.

ConJur — E como funciona na arbitragem?
Sérgio Barroso de Mello — Se duas partes forem fazer uma arbitragem, cada uma vai nomear o seu árbitro. Se os dois não chegarem a um acordo a câmara nomeia um terceiro, porque tem que ser um número ímpar. Os árbitros escolhidos são aqueles profissionais que conhecem o problema que será decidido. Ele vai dialogar com você e com seus advogados na arbitragem em um nível muito mais elevado que o juiz. Em uma audiência arbitral você, advogado, tem que conhecer muito, sobre aquela matéria, porque está diante de um sujeito que conhece muito mais que você. Não adianta você querer usar filigranas, chicana forense, encher de celulose, fazer o que parece uma Disneylândia jurídica. Se você fizer isso na arbitragem é ruim para você e seu cliente.

ConJur — Podemos dizer que é uma decisão mais justa?
Sérgio Barroso de Mello — As relações na arbitragem são muito mais éticas. Não é justo e correto trabalhar, como na justiça, com essa chicana toda. Então temos uma relação mais correta, mais leal, entre advogados, partes e árbitros, mas exige alto nível. A consequência é uma decisão arbitral, normalmente, muito bem fundamentada. Você pode até perder, mas você vai ver que eles foram a fundo em todo caso. Não tem decisão sem qualidade. Você pode até discordar da tese, mas é uma tese que vai ser apresentada a você com uma série de elementos, de evidências, de apoio. Bem diferente de uma sentença.

ConJur — Mas depois desta sentença não há mais contestação.
Sérgio Barroso de Mello — De fato a decisão arbitral é única e ao decidir se fará ou não uma arbitragem é preciso ter consciência disso. A arbitragem é uma decisão só. O máximo que você pode fazer é o chamado embargo, mas ele serve apenas para corrigir erros materiais, o mérito não se altera.

ConJur — A arbitragem deveria ser mais utilizada?
Sérgio Barroso de Mello — Acho, mas é caro. Arbitragem não é um procedimento barato e por isso não é possível popularizar. Para se ter uma relação custo/beneficio boa você tem que partir de um caso de no mínimo de R$ 1 milhão, porque senão você acaba gastando muito entre honorários de advogado, árbitro, câmara e não compensa. Talvez esse seja o calcanhar de Aquiles da arbitragem, ela é cara. Mas tem esse custo porque é feita sob medida e é célere. O fato é que se você tem um caso grande vale a pena não vai ficar 10 anos esperando.

ConJur — Qual é exatamente o papel da Aida?
Sérgio Barroso de Mello — Nosso trabalho é intelectual. Nós fazemos um congresso anual e temos 15 grupos de trabalho temáticos que produzem leis e dão apoio aos legisladores. Nós damos apoio atualmente a quatro projetos, por exemplo, que estão no Congresso Nacional.

ConJur — E quem financia a Aida?
Sérgio Barroso de Mello — A fonte de receita é a anuidade que os advogados pagam e, eventualmente, a receita dos eventos. Uma característica interessante é que praticamente todos advogados que são sócios são concorrentes, porém, como a associação tem um objetivo bem acadêmico, a gente consegue conviver bem.

ConJur — Como é a composição da Aida?
Sérgio Barroso de Mello — A Aida é formada por advogados, juízes, estudantes, magistrados e professores do mundo inteiro. Sua sede fica em Londres, mas ela tem as chamadas sessões nacionais espalhadas por 92 países, entre eles o Brasil. Aqui a sede é em São Paulo e conra com cerca de 480 sócios. O Conselho Mundial da Aida tem 18 membros, eu sou o membro que representa os países de língua latina. A Aida mundial tem dois comitês, um de países latinos e um de países de outros idiomas. Esse comitê chama-se SILA, ele faz um congresso a cada dois anos de todos os países que falam português ou espanhol. A Aida tem ainda o que a gente chama de Arias, que é o Tribunal Arbitral da associação. Há tribunais em Londres, em Paris, em Nova York, em Sidney, na Austrália e no México.

ConJur — E agora tem um Arias ibero americano?
Sérgio Barroso de Mello — Tomamos essa decisão por perceber o aumento de litígios envolvendo seguro e resseguro em países latinos sendo levados para Londres, o que é muito caro, e que a Inglaterra é um pais que não tem a tradição do nosso Direito. Então escolhemos montar um Tribunal Arbitral no Chile por ser geograficamente o melhor ponto e porque é um país que tem uma tradição de arbitragem muito boa.

ConJur — Em caso de empresas, existe alguma tipo de seguro tributário? No caso da empresa receber uma multa do Fisco ou algo nesse sentido?
Sérgio Barroso de Mello — Essa é uma grande demanda do mercado, mas a Susep não está mais permitindo. Havia no seguro de Responsabilidade Civil a cobertura para multa, agora, sem a menor justificativa, a Susep não permite mais. Certamente essa é uma das coberturas que começará a ser comprada no exterior.

ConJur — Falta uma legislação no Brasil especifica para evitar esse tipo de ingerência da Susep?
Sérgio Barroso de Mello — Não. O que falta é o governo transformar a Susep em uma agência. A atividade de seguros é uma atividade com uma participação muito significativa no PIB. Não é mais possível a gente conviver com um órgão regulador que não tenha uma perenidade, e só uma agencia pode ter, porque são constituídas por lei com regras muito fixas. O mercado de seguros precisa disso, para ter mais tranquilidade, segurança jurídica e poder continuar crescendo.

ConJur — O resto não precisa mexer na legislação do seguro.
Sérgio Barroso de Mello — Não. Não há conflitos no Judiciário que não encontrem um amparo no Código Civil, que está em vigor há 10 anos e possui 50 artigos sobre seguros que deixa tudo muito bem definido. O que está ali regula perfeitamente as relações. Nós temos um player de normas que vão ao encontro do que se faz no exterior. São normas que vão ao encontro do direito, do seguro nos países mais desenvolvidos. Essas leis são muito parecidas com o nosso Código Civil, porque são os direitos fundamentais que precisam estar estabelecidos.

ConJur — O senhor falou do crescimento do mercado. Como é que fica para a advocacia a falta de gente que entende dessa área no Brasil?
Sérgio Barroso de Mello — Há 10 anos faltava, agora há muitos advogados que estão envolvidos com a operação. Nós tivemos nos últimos anos vários cursos de extensão, de pós graduação, vários advogados começaram a atuar mais no setor, a treinar, a ir para o exterior, aprender um pouco mais. A própria abertura do mercado de resseguros propiciou uma integração dos advogados brasileiros com os advogados estrangeiros, e isso fez com que houvesse uma troca de experiência. O número de profissionais hoje supre o mercado, não tem nem carência, nem excesso. Há um número razoável de advogados e há mercado para todos.

ConJur — Existe um tipo de seguro para jornalistas, para dano moral em caso de publicações?
Sérgio Barroso de Mello — A evolução dos seguros de Responsabilidade Civil estava indo em uma linha no chamado seguros de Responsabilidade Civil profissional. Hoje você tem seguro de advogados, de engenheiros, de arquitetos, de médicos, e uma das coisas que o mercado estava preparando era seguro para áreas de comunicações, dentre outras áreas. Que tipo de garantia? Basicamente todas as garantias relativas a um dano que você causa a terceiros com as medidas que você venha a adotar, matérias publicadas, etc., desde que não sejam dolosas. Só que a Susep com a circular cortou pela raiz esses produtos. Então, o produto não existe.

ConJur — E é possível eu contratar um seguro estrangeiro?
Sérgio Barroso de Mello — Isso é interessante. A Lei de Seguros diz que é possível você contratar um seguro no exterior quando o Brasil não tem aquele tipo de cobertura. Mas para isso você tem que seguir uma regrinha, de pelo menos buscar em cinco companhias de seguro diferentes um pedido de seguro e eles têm que dizer que não vendem o produto. Se você conseguir isso aí você pode contratar de fora. Eu não tenho dúvida, por exemplo, na área de comunicação essa é uma demanda que a cada momento aumenta. Esse aumento deveria resultar no produto no mercado, mas o mercado não consegue ter produto porque o órgão regulador não permite. Com isso, contratar no exterior é a saída.

ConJur — E no caso de advogado é a mesma coisa?
Sérgio Barroso de Mello — Advogado não. A gente já tinha um produto especifico para profissionais liberais que englobava advogado, médico, engenheiro, arquiteto... Você tem isso disponível no mercado. Mas são coberturas que tendem a se reduzir por conta dessas normas nefastas. Eu não sei nem como será nas renovações, porque muitas coberturas não vão mais poder ser concedidas como antes, como as multas.


Tadeu Rover é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 15 de dezembro de 2013

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

JURISPRUDÊNCIA DO DIREITO DO CONSUMIDOR EVOLUI NA FRANÇA

 


Jurisprudência do Direito do Consumidor evolui na França

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior




A Corte de Cassação francesa é um dos tribunais mais famosos do mundo. Encontram-se referências a seus julgados em quase todos os tratados e manuais de Direito Civil e de Direito Comercial, embora a corte também exerça competência sobre o Direito Penal e o Direito do Trabalho. Legitima sucessora do “Parlamento de Paris”, ganhou o nome de “Tribunal de Cassação”, nos termos da lei de 27 de novembro-1o de dezembro de 1790. Com Napoleão Bonaparte, em 1804, recebeu a denominação histórica de “Corte de Cassação” e converteu-se na mais alta jurisdição ordinária francesa nas matérias civis, comerciais, laborais e criminais. A concepção de um tribunal com poderes cassatórios espalhou-se pela Europa, juntamente com as tropas napoleônicas. Luxemburgo, Bélgica e Itália possuem cortes com perfil semelhante à Cour de Cassation francesa.

A Corte de Cassação divide-se em: a) uma Câmara Criminal (Chambre criminelle - “Crim.”) b) uma Câmara Trabalhista (Chambre sociale – “Soc.”); c) uma Câmara Comercial (Chambre commerciale -“Com.”); d) três Câmaras Civis (Première chambre civile – “Civ. 1re”); Deuxième chambre civile (“Civ. 2e”); Troisième chambre civile (“Civ. 3e”), assim especializadas: i) direitos pessoais, de família e dos contratos; ii) responsabilidade civil e seguridade social; iii) Direito Imobiliário e da construção. A Corte pode funcionar ainda com “câmaras mistas”. O “Primeiro Presidente da Corte de Cassação” é a maior autoridade da Corte e também referido elegante e solenemente como o “primeiro magistrado de França”. Sua escolha é atribuída ao presidente da República Francesa, de entre os juízes indicados pelo Conselho Superior da Magistratura.

Os franceses consideram que a Cassação é um tribunal de teses e não de fatos. Sua finalidade é estabelecer uma interpretação uniforme do direito ordinário para todo o território nacional, de modo a permitir que um súdito da República Francesa tenha sua vida, sua liberdade e seus bens considerados sob a óptica igualitária, um dos primados ainda hoje enaltecidos daquela sociedade. As decisões do tribunal tem fundamentos extremamente sucintos, o que é bem diverso da exaustiva fundamentação que hoje se encontra nos julgados brasileiros. Fala-se inclusive em uma “arte de interpretar os acórdãos da Cassação”.

No Direito Civil, a Corte de Cassação tem acórdãos históricos. A partir dos anos 1970-1980, esse tribunal mudou sensivelmente sua orientação nos casos envolvendo o Direito dos Contratos e passou a adotar uma postura mais favorável à proteção das partes mais fracas nas relações obrigacionais. É muito importante salientar essa mudança, pois, na segunda metade do século XIX e no início do século XX, a Corte de Cassação e o Conselho de Estado francês ocuparam polos antagônicos no debate sobre a revisão dos contratos.

Como já se teve a oportunidade de destacar alhures, os primeiros julgados sobre a revisão contratual em França deram-se no Conselho de Estado, como é exemplo o famoso caso do gás de Bordeaux (Compagnie générale d’éclairage de Bordeaux), julgado em 1916, no qual se admitiu a majoração do valor do gás comercializado pela companhia bordalesa, sob o argumento de que a invasão alemã das áreas produtoras de carvão implicou o aumento de 3 vezes do preço desse minério.

Antes disso, no entanto, a Corte de Cassação, em 6 de março de 1876, decidiu o também conhecidíssimo caso do Canal de Craponne, que é considerado um dos mais importantes precedentes de sempre daquele tribunal. A situação de fato era a seguinte: os Senhor Marquês de Galliffet celebrou em 1560 e 1567 um contrato para a Comuna de Pélissanne, que tinha por objeto a manutenção de um canal de irrigação e de abastecimento de água para a comuna. Passados três séculos, o Marquês de Galliffet reajustou o valor do arrendamento, considerando a brutal desvalorização das taxas pagas pelos comunais, que se converteram em ridículas e incompatíveis com os dispêndios do aristocrata. Em primeiro grau, o Senhor de Galliffet obteve ganho de causa, em 1875, no Tribunal de Aix, mas a Corte de Cassação, em um acórdão com fundamento em dois parágrafos, cassou o acórdão local e manteve o contrato em suas base originais, a despeito da alteração das circunstâncias. Segundo os juízes da Corte de Cassação, o art. 1.134 do Código Napoleão assegurava a prevalência e a incolumidade dos pactos, não havendo razões para o juiz colocar-se acima da vontade pretendida pelas partes.[1]

Uma área na qual a Corte de Cassação emprestou grandes serviços ao Direito Privado nos últimos 30 anos foi o Direito do Consumidor. A esse propósito, J. L. Gallet, conselheiro da Corte, elaborou uma completa análise da jurisprudência desse tribunal em matéria de relações de consumo, que foi traduzida (com grande qualidade) por Clarissa Costa de Lima e publicada na Revista de Direito do Consumidor, volume 87, página 13 e seguintes, de maio de 2013, com o título em português “A proteção do consumidor na jurisprudência da Corte de Cassação”. É com base nessa resenha da evolução dos julgados da Corte francesa que se desdobrarão os itens abaixo desta coluna:

1) Conceito de consumidor. Um dos problemas que o tribunal de cassação teve de resolver foi o relativo ao conceito de consumidor, o que é algo bastante simétrico ao que hoje enfrenta o Superior Tribunal de Justiça.[2] Segundo o estudo de J. L. Gallet, a Corte de Cassação deu uma interpretação mais ampla ao que seja um consumidor, de modo a açambarcar também as pessoas jurídicas, em face de cláusulas abusivas. No julgado Cass. Civ. 1.ª, 15.03.2005: Bull. Civ. I, n. 136, o tribunal assim se pronunciou:

“Se, segundo a decisão de 22.11.2001 da Corte de Justiça das Comunidades Europeias, a noção de consumidor, no sentido da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, em 05.04.1993, concernente às cláusulas abusivas nos contratos concluídos com os consumidores, visa exclusivamente as pessoas físicas, a noção distinta de não profissional, utilizada pelo legislador francês, não exclui as pessoas jurídicas da proteção contra as cláusulas abusivas”. [3]

Essa condição de “consumidor” também foi conferida a: a) um síndico de condomínio e um sindicato de condomínios (Cass. Civ. 1.ª, 01.03.2005: Bull. Civ. I, n. 64); b) uma associação. (Cass. Civ. 1.ª, 27.09.2005: Bull. 2005, I, n. 347). Desse modo, “esta tendência a estender o benefício da proteção além das pessoas jurídicas tem o condão de conduzir a Corte de Cassação a integrar as pessoas jurídicas na noção de consumidor cada vez que o texto aplicável não comporta nenhuma restrição (ex. regulamentação em matéria de venda de viagens ou pacotes: termo ‘consumidor’)”.[4]

2) Consumidor leigo e consumidor esclarecido. No Direito brasileiro, há uma presunção ampla de vulnerabilidade técnica, jurídica e econômica do consumidor, o que torna bem mais simples o tratamento da questão de seu conhecimento dos produtos ou dos serviços adquiridos ou contratados. Ainda de acordo com o conselheiro da Corte de Cassação, nos contratos de crédito, o tribunal criou uma diferenciação entre consumidor leigo e consumidor esclarecido. De tal modo, prestigiou-se o entendimento “que coloca a cargo do banco uma obrigação de advertência em relação ao consumidor não esclarecido, que consiste em chamar sua atenção sobre os riscos ligados a seu endividamento em relação a sua capacidade financeira (Cass. Ch. Mista, 29.06.2007: Bull. Civ. ch. Mista, n. 7 e 8”. De tal sorte que se estabeleceu uma presunção de “que o mutuário não é esclarecido, cabendo ao banco provar que ele o é ou que cumpriu seu dever de advertência”. A instituição financeira será tida como exonerada desse dever se o mutuário demonstrou comportamento desleal (Cass. Civ. 1.ª, 30.10.2007: 06-17003).[5]

3) Necessidade de alegação da abusividade da cláusula. O Superior Tribunal de Justiça, após longa polêmica, resolveu a questão da impossibilidade de conhecimento da cláusula abusiva de ofício pelo juiz, ao editar a Súmula 381: “Nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas”. J. L. Gallet, em seu texto, demonstra que essa é uma matéria bem polêmica em França, especialmente por conta das diretivas da União Europeia e das mudanças legislativas no direito interno. Ele cita algumas decisões da Corte no sentido de que “o desconhecimento das exigências do art. L. 311-9 do Código do Consumo, mesmo de ordem pública, só pode ser alegado na demanda da pessoa protegida por esta disposição; em consequência, viola este texto o juiz que, para denegar a demanda ao mutuante contra o mutuário após uma abertura de crédito, destaca de ofício a regularidade da renovação do crédito ao fim de cada período anual e julga depois que o mutuante não prova ter advertido o mutuário das condições de renovação da abertura de crédito” (Cass. Civ. 1.ª, 16.03.2004: Bull. Civ. I, n. 91)”.[6]

No entanto, como o conselheiro da Corte de Cassação anota, em seguida, “esta jurisprudência estava baseada tanto numa preocupação de neutralidade do juiz quanto no princípio dispositivo, mas não poderá ser mantida”. Tal se deve em razão “novo art. L. 141-4 do Código do Consumo, oriundo da Lei de 03.01.2008”, que dispõe: “O juiz pode suscitar de ofício todas as disposições do presente Código nos litígios resultantes de sua aplicação”.[7]

Esses três pontos, que dizem respeito mais proximamente com a realidade brasileira, demonstram que o Direito do Consumidor nacional tem enfrentado problemas bem similares a seu homólogo francês. E as soluções brasileiras não são inferiores às francesas, seja em seus resultados, seja em sua fundamentação teórica. Uma vantagem do estudo da evolução pretoriana está em se descolar da simples consulta aos textos legais, cuja atualização jurisprudencial pode lhes imprimir um colorido totalmente diferenciado. E é esse um dos papéis mais relevantes do Direito Comparado.
[1] Recomenda-se ao leitor, que está interessado no estudo desses casos e na evolução da jurisprudência (não só francesa) sobre a teoria da imprevisão e a alteração das circunstâncias, a leitura de: RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Revisão judicial dos contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006. Há também o excelente livro: KHOURI, Paulo R. Roque A. A revisão judicial dos contratos no novo Código Civil, Código do Consumidor e Lei n. 8.666/93 : a onerosidade excessiva superveniente. São Paulo: Atlas, 2006.
[2] Para um estudo atualizado desse tema, é também indicada a leitura de: RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz . Um “modelo de revisão contratual por etapas” e a jurisprudência contemporânea do Superior Tribunal de Justiça. In: LOPEZ, Teresa Ancona; LEMOS, Patrícia Faga Iglecias; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. (Org.). Sociedade de risco e Direito Privado: Desafios normativos, consumeristas e ambientais. 1 ed. São Paulo: Atlas, 2013, v. 1, p. 469-514.
[3] GALLET, J. L. A proteção do consumidor na jurisprudência da Corte de Cassação. Traduzido por Clarissa Costa de Lima. Revista de Direito do Consumidor, v. 22, n. 87, p. 13-30, maio/jun. 2013. item I.1.
[4] GALLET, J. L. Op. cit. loc. cit.
[5] GALLET, J. L. Op. cit. loc. cit.
[6] GALLET, J. L. Op. cit. loc. cit.
[7] GALLET, J. L. Op. cit. loc. cit.


Otavio Luiz Rodrigues Junior é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo).

Revista Consultor Jurídico, 20 de novembro de 2013

O ACESSO E FUNCIONAMENTO DA JUSTIÇA SERÁ TEMA DO PRÊMIO INNOVARE





Innovare estimula acesso e funcionamento da Justiça

Por Arnaldo Malheiros Filho



Sempre repito que a maior alegria que tenho por integrar a Comissão Julgadora do Prêmio Innovare é tomar, a cada ano, uma substanciosa lição de Brasil.

É impressionante a disseminação da iniciativa por todos os cantos do país, em boa parte graças ao valioso apoio das Organizações Globo. Profissionais do Direito de todas as partes inscrevem suas práticas (sim, o Innovare não contempla idéias ou projetos, mas somente práticas que sua auditoria verifique estarem em curso) e apresentam esforços para a solução de problemas que, muitas vezes, eu sequer sabia que existiam.

Há práticas sofisticadas, mas tenho especial encanto pelas simples, aquelas que com poucos recursos e muita vontade podem melhorar a Justiça.

A primeira prática a me impressionar particularmente era de um promotor de Goiânia, que a batizou de “Paili — Programa de Assistência Integral ao Louco Infrator”, destinado ao acompanhamento constante dos internados no manicômio judiciário local, não só na questão de execução da medida de segurança, mas também em aspectos civis, como interdição, registro de filhos e que tais.

No lançamento da edição relativa ao ano seguinte, um documentário da Globo mostrava um cidadão pobre dizendo que, não fora o Paili, ele ainda estaria mofando no hospício. A emoção marejou-me os olhos.

A Defensoria Pública tem se destacado em práticas de alto alcance. A do Pará foi premiada com um programa destinado à erradicação do escalpelamento. Nunca tinha ouvido falar do assunto. Nessa aula aprendi que na Amazônia o transporte barato que serve às populações ribeirinhas é feito por barcos precários, que não raro fazem água na caixa central onde fica o motor. O barqueiro, então, oferece gratuidade aos passageiros que ajudarem a remover a água com canecas e mulheres de cabelo comprido às vezes o têm enrolado no eixo do motor, sendo-lhes arrancado o couro cabeludo e, nos casos mais graves, até os olhos.

De tantos pedidos para assistência no recebimento do seguro obrigatório, os defensores públicos resolveram se empenhar para resolver o problema, em vez de buscar indenização. Foram ao Executivo e conseguiram uma regulamentação mais rigorosa do transporte fluvial, reduzindo o número desses acidentes.

Também da Defensoria do Pará veio uma prática ligada a assunto para mim desconhecido: Os soldados da borracha. Aprendi que, ao entrar na Segunda Guerra Mundial, o Brasil comprometeu-se a, no esforço de guerra, aumentar a produção de borracha. Seringais não faltavam, o que faltava eram braços. Camponeses nordestinos foram transferidos para a Amazônia e, ao final do conflito, ali abandonados na miséria. Mais de 40 anos após o fim da guerra é que foi instituída uma pensão para essas vítimas, mas poucas souberam disso ou a reivindicaram.

A Defensoria, então, passou a procurar descendentes deles para postular os atrasados a que seu ancestral tinha direito.

O CNJ foi premiado por seus mutirões carcerários. Bem, que nossos presídios mais se parecem chiqueiros, todos sabemos. Mas não sabíamos que a situação era tão grave. Desde presos amontoados em containers até os de pena cumprida “esquecidos” no sistema ou sem poder exercer seu legítimo direito à progressão de regime.

Propus à Comissão — e tive a alegria de ver a idéia aprovada — o gesto simbólico de concessão de menção honrosa à advocacia voluntária anônima. Ou seja, homenagear esses soldados desconhecidos que, na sombra e sem tocar trombeta (como, diz a Bíblia, fazem os hipócritas), doam seu tempo para assistir aos pobres, minimizando, na medida de suas forças, esse grave problema.

Mas a melhor atuação do CNJ no Innovare foi com a prática “começar de novo”, de assistência a egressos. É muito fácil abrir as portas da cadeia e despejar uma pessoa na rua. Mas, para onde ela vai? Sem qualificação para o trabalho, maculada, ela certamente vai voltar para o crime e para a cadeia, fazendo disparar a taxa de reincidência. Na ocasião em que apresentada, a prática já conseguira mais de mil vagas em cursos de capacitação profissional e mais de 700 colocações. Para as proporções do sistema carcerário brasileiro é pouco, mas é o começo.

O IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) obteve menção honrosa em razão de seus convênios com a Defensoria Pública paulista. Um deles era destinado ao patrocínio de pedidos de liberdade provisória para presos em flagrante sem advogado constituído. Através do outro, a Defensoria encaminha dez casos de júri por mês e o Instituto providencia profissionais para a defesa gratuita. Com isso se exerce a advocacia voluntária, sem qualquer possibilidade de captação de clientela, pois os assistidos são somente aqueles encaminhados pela Defensoria.

Na última edição, o prêmio da categoria advocacia foi para profissionais que se dedicam a “práticas colaborativas no Direito de Família”, ou seja, profissionais que, desde a contratação, declaram-se impedidos para o patrocínio de demandas judiciais. Sua tarefa é a construção de acordos, a fim de que separações se façam sempre de maneira consensual, desjudicializando esses conflitos.

Agora gostaria de falar de práticas menos elaboradas, mas de grande significado. Como exemplo poderia citar a juíza que passou a confiar a cegos — quase todos ex-bilheteiros de loteria — o trabalho de degravação de áudios de audiências judiciais, conseguindo dar-lhes uma ocupação digna, em tudo compatível com sua deficiência.

Poderia também falar do juiz que instalou um “totem” no pátio do presídio, para que os detentos tivessem acesso direto a informações processuais.

Outra prática simples premiada foi o “botão de pânico”, instrumento de alarme e localização destinado a garantir a efetividade de ordens judiciais de restrição em casos de violência doméstica. Se a pessoa impedida se aproximar, basta a vítima acionar o equipamento e uma equipe policial se deslocará ao local para evitar que a determinação seja violada.

Assim o Innovare vai dando sua aula de Brasil a quem o acompanha e estimulando a melhoria do acesso e do funcionamento da Justiça.




Arnaldo Malheiros Filho é advogado criminalista.

Revista Consultor Jurídico, 11 de dezembro de 2013

A PEC DO PELUSO PERDEU SUA ESSÊNCIA

 


Desvirtuada, PEC do Peluso vai a plenário do Senado

Por Felipe Luchete



Da ideia original presente na chamada PEC do Peluso só sobrou o nome. A Proposta de Emenda à Constituição 15/2011 será encaminhada para o plenário do Senado sem nada do que é defendido por quem deu origem a ela, o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal Cezar Peluso. Se a intenção inicial era definir o trânsito em julgado após decisões de segunda instância para evitar o longo caminho criado por recursos protelatórios, o texto atual diz apenas que órgãos colegiados e tribunais do júri poderão expedir mandados de prisão assim que decisões condenatórias em ações penais forem proferidas.

A nova redação surpreendeu o próprio ministro aposentado, que ficou sabendo da mudança pela ConJur e a considerou inconstitucional. O texto atual, aprovado no dia 4 de dezembro pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, foi elaborado pelo senador Aloysio Nunes (PSDB-SP).

Também conhecida como PEC dos Recursos, a proposta teve origem no Senado após declarações do então ministro sobre a demora de decisões judiciais serem cumpridas. Assim surgiu a PEC 15/2011, apresentada pelo senador Ricardo Ferraço (PMDB-ES). Ele modificava os artigos 102 e 105 da Constituição, que extinguia os recursos especiais e extraordinários e, no lugar, criava ações rescisórias especiais e extraordinárias. A mudança na nomenclatura tinha como objetivo encerrar o processo em decisões de segunda instância. Quaisquer tentativas de mudar as determinações no STJ e no STF, por exemplo, virariam uma nova ação.

Aloysio Nunes apresentou então um primeiro substitutivo, que Peluso considerou “perfeito”: as nomenclaturas continuavam as mesmas, mas os recursos não teriam mais poder de arrastar o trânsito em julgado. A definição passaria a ser definitiva a partir da segunda instância: prisões, pagamentos de indenizações ou quitação de dívidas trabalhistas seriam cumpridas imediatamente, ainda que recursos pudessem mudar a decisão no futuro.

O texto atual do senador, porém, mudou toda a proposta. Saíram todas essas questões, e a emenda passou a valer só para a área penal. Em vez de modificar os artigos 102 e 105, a proposta passou a alterar o artigo 96 da Constituição. “Eu não estava preocupado em prender ninguém, queria resolver um problema geral”, disse Peluso. Caso a PEC seja aprovada no Congresso e sancionada no futuro, é possível que o Supremo derrube a emenda por violar a garantia da presunção da inocência, diz o ministro aposentado, que hoje atua como advogado.

"Morreu na praia"
Para o ministro-chefe da Controladoria-Geral da União, Jorge Hage, a proposta, do jeito que foi modificada, não terá o efeito esperado. “Toda a discussão sobre mudanças na Justiça ficou reduzida naquele artigo, que autoriza o mandado de prisão. A ideia morreu na praia“, disse o ministro durante debate promovido nesta terça-feira (10/12) em São Paulo pela organização Transparência Brasil. No evento, a advogada Flávia Rahal Bresser Pereira, do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), disse que o processo não pode transitar em julgado após decisão do tribunal do júri, que é esfera de primeira instância.

Clique aqui para ler a proposta original do senador Ricardo Ferraço.
Clique aqui para ler o substitutivo, junto com o relatório, do senador Aloysio Nunes.
PEC 15/2011


Felipe Luchete é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 10 de dezembro de 2013

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

A DIMENSÃO HISTÓRICA DO DIREITO NO PENSAMENTO DE SAVIGNY

 


A dimensão histórica do Direito no pensamento de Savigny

Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy



Friedrich Carl von Savigny nasceu em Frankfurt, na Alemanha, e tinha dez anos quando os parisienses presenciaram a tomada da Bastilha[1]. Savigny combateu o legado jurídico da Revolução Francesa: não compreendia o conteúdo anacronicamente metafísico das premissas de igualdade, bem como não admitia o construído nada empírico do contrato social. Savigny era um clássico, e não um romântico. Negava Rousseau.

Protestante, apaixonado por arquitetura e pela literatura greco-romana, Savigny estudou Direito, História e Filosofia em Marburgo e em Göttingen. Foi professor catedrático na Universidade de Berlim, da qual também foi reitor, dando continuidade a tradição que remonta a Humboldt, no início do século XIX.

Francisco Sosa Wagner, catedrático na Universidade de León, nos narra que Savigny era extremamente vaidoso; em seu livro sobre a história da germanística jurídica Sosa Wagner lembra-nos uma anedota, na qual se dizia que Savigny não passava perto de um riacho sem olhar para a própria imagem refletida nas águas...

Ainda que tenha iniciado sua carreira de professor lecionando Direito Penal — escrevera uma tese sobre o concurso nos crimes chamados formais — Savigny ensinou Direito Romano, História do Direito e Metodologia Jurídica. Substancialmente, defendia que o Estado não cria o Direito. Este último é experiência espontânea de um povo. Por isso, o Direito é fato histórico, inerente a um grupo humano. Nesse sentido, continua Sosa Wagner, Direito e idiomas são expressões de uma mesma realidade cultural.

E porque o Direito é qualificado pela existência cultural de uma nação, não se poderia falar em um Direito novo. O Direito não nasce, persiste. O Direito é função perene e recorrente que surge e que se esgota em si mesma. Falaciosa, assim, a busca de regras abstratas para fatos concretos; seriam estes últimos que ditam aquelas primeiras.

Savigny era um inimigo da codificação. Repudiou o movimento que visava a sistematização do Direito Civil alemão, polemizando com Anton Thibaut. Para Savigny a codificação do Direito conduziria ao congelamento de uma latente e realizada experiência cultural e normativa.

Identificado como o maior nome da chamada escola histórica do direito, Savigny afirmava que nenhuma etapa histórica vive por si mesma; todo momento histórico é, necessariamente, a continuidade do passado.

Essa premissa orientou estudo de Savigny sobre o Direito romano na Idade Média. As regras de Justiniano foram absorvidas e incorporadas na experiência jurídica ocidental. Por isso, conclui-se com Savigny, o direito romano é um arranjo institucional vivo, ainda que aparentemente alterado. O monumento jurídico romano estaria para o direito contemporâneo como a língua do Lácio estaria para os falares neolatinos, a exemplo do português.

Savigny faleceu em 1861, nove anos antes da unificação da Alemanha, conduzida por Bismarck, para quem a unidade germânica seria construída na base do ferro e do sangue.

[1] Os dados biográficos de Savigny foram colhidos na obra de Francisco Sosa Wagner, “Maestros Alemanes del Derecho Público”, Madrid e Barcelona: Marcial Pons, 2005, pp. 135 e ss. Francisco Sosa Wagner é catedrático de Direito Administrativo da Universidade de León. Esse livro magistral, talvez a mais densa e importante obra de germanística jurídica já escrita, foi me apresentado pelo Professor Doutor João Rezende Almeida Oliveira, doutor em Direito Administrativo pela Universidade Complutense de Madrid, que advoga e leciona em Brasília. O presente texto é um resumo de excerto da obra de Sosa Wagner, ainda não traduzida para o português, e que é levado a público como uma homenagem ao Professor João Rezende.



Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pós-doutor em Teoria Literária pela Universidade de Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 24 de novembro de 2013

BARBOSA PEDE AJUDA PARA APERFEIÇOAR PROCESSO JUDICIAL ELETRÔNICO

 


Joaquim Barbosa pede ajuda do TJ-SP para aperfeiçoar PJe

Por Gabriel Mandel



Um discurso de dez minutos — para uma sala lotada — seguido por quase meia hora de cumprimentos, pedidos de foto e de autógrafo. Assim pode ser resumida a “primeira visita oficial ao Tribunal de Justiça de São Paulo” do ministro Joaquim Barbosa, presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça. Recepcionado pelo presidente eleito do tribunal — e corregedor-geral da Justiça — José Renato Nalini, Barbosa falou rapidamente sobre a importância do Processo Judicial Eletrônico para o Judiciário.

Após rápido discurso de abertura feito por Nalini, Joaquim Barbosa assumiu o microfone e afirmou que buscava, com sua passagem pelo TJ-SP, estreitar os laços entre o CNJ e a corte paulista. De acordo com ele, o tribunal deve ser “protagonista nas iniciativas e ações do CNJ”, por conta de seu tamanho e importância para o Judiciário nacional. Barbosa aproveitou e classificou os desafios do TJ-SP como “imensos e proporcionais à amplitude de suas responsabilidades”, o que inclui atuar com qualidade e em tempo razoável.

No que for possível, o CNJ ajudará a Justiça paulista a atuar de acordo com suas necessidades, garantiu o ministro, que citou estatísticas para justificar a importância de São Paulo — o TJ-SP, sozinho, responde por cerca de 37% dos casos pendentes no Brasil, afirmou. Colocando o Processo Judicial Eletrônico como chave para a prestação jurisdicional de qualidade e respeitando a razoável duração do processo, Joaquim pediu o “uso inteligente e racional da tecnologia da informação”. A prova dos avanços é a mudança que viveu desde sua entrada no STF, continuou ele. Há “cinco ou seis anos, já fazendo uso integral da tecnologia”, disse Barbosa, ele já vivenciou situações que seriam de dois mundos diferentes.

O ministro lembrou que, durante o VII Encontro do Poder Judiciário, promovido em novembro em Belém (PA), pediu aos presidentes e corregedores de tribunais para que canalizassem esforços para o desenvolvimento e aperfeiçoamento do PJe. Ele reforçou o convite ao futuro presidente do TJ-SP, José Renato Nalini, afirmando que magistrados deste tribunal têm participado do grupo de trabalho da implantação do PJe e muitos contribuíram para os bons resultados até aqui. Mas renovo o convite para intensificar e otimizar a colaboração entre o CNJ e o maior tribunal do país nesta busca para aprimorar e expandir o sistema judicial eletrônico”. Joaquim Barbosa citou como fundamental para um Judiciário nacional a convergência entre os sistemas de PJe “que engatinham aqui e ali, com níveis diferentes de avanço”, permitindo a comunicação e o uso de linguagem comum pelos tribunais.

Cerca de dez minutos após iniciar seu discurso, o ministro concluiu a participação no evento, sendo aplaudido por uma sala do Órgão Especial lotada por magistrados, desembargadores e servidores — alguns acompanharam a fala das galerias superiores da sala. Ao retomar a palavra, Nalini sentenciou: “convite feito, convite aceito” — apontando que o Tribunal de Justiça de São Paulo participará dos estudos necessários para o aperfeiçoamento do Processo Judicial Eletrônico. O atual corregedor disse que o tribunal está adiantado em relação a este aspecto, por conta da atuação de seus assessores, e classificou como “traumático” o modelo híbrido adotado atualmente, com processos físicos e digitais.

Celebridade
Encerrado o evento, uma grande fila rapidamente foi formada no meio da sala. Enquanto os principais nomes do TJ-SP cumprimentavam Joaquim Barbosa, quem acompanhou o evento — e mesmo alguns servidores que não estavam no 5º andar durante o discurso — formaram fila em busca de uma foto ou um simples aperto de mão do presidente do STF. Paciente, ele atendeu a todos, deixando fora da fila apenas os jornalistas que aguardavam uma eventual entrevista coletiva. O ministro passou mais de 25 minutos atendendo os fãs.

Percebendo que a imprensa não desistiria de obter uma entrevista, ele aproximou-se dos repórteres para dizer que nada falaria, e manteve o semblante sisudo quando ouviu a primeira pergunta, relacionada à Ação Penal 470, o processo do mensalão. Após ser questionado se falaria sobre o PJe, o ministro cedeu, e disse esperar que “em menos de dez anos”, todo o país esteja informatizado e integrado, já que cada tribunal adota um sistema com linguagem diversa dos demais. No entanto, a pergunta seguinte novamente teve o mensalão como tema. Isso foi suficiente para Joaquim Barbosa encerrar a rápida entrevista coletiva, deixando a sala do Órgão Especial por um espaço ao qual a imprensa não tem acesso.


Gabriel Mandel é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 9 de dezembro de 2013

DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DE PESSOA JURÍDICA PROTEGE DIREITO DE CÔNJUGE


Desconsideração inversa de PJ protege direito de cônjuge



A desconsideração inversa da personalidade jurídica poderá ocorrer sempre que alguém se aproveita de uma “máscara societária” para burlar direitos do cônjuge ou companheiro. O argumento foi usado pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça ao negar recurso de um empresário do Rio Grande do Sul que havia reclamado de ter a empresa responsabilizada em um caso envolvendo a ex-companheira.

A medida ocorre quando o juiz desconsidera a autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizá-la por obrigação do sócio. No caso julgado, o Tribunal de Justiça gaúcho reconheceu a possibilidade de desconsideração em um processo de dissolução de união estável ajuizado em 2009.

O empresário recorreu da decisão, alegando que o Código Civil permitiria somente responsabilizar o patrimônio pessoal do sócio por obrigações da sociedade, e não o contrário. Contudo, a ministra Nancy Andrighi, relatora do recurso especial no STJ, disse que a desconsideração inversa tem largo campo de aplicação no Direito de Família, em que a intenção de fraudar a meação leva à indevida utilização da pessoa jurídica.

A ministra afirmou que há situações em que o cônjuge ou companheiro esvazia o patrimônio pessoal e o integraliza na pessoa jurídica, de modo a afastar o outro da partilha. Assim, segundo a relatora, a medida existe para “afastar momentaneamente o manto fictício que separa os patrimônios do sócio e da sociedade para, levantando o véu da pessoa jurídica, buscar o patrimônio que, na verdade, pertence ao cônjuge (ou companheiro) lesado”.

Se o TJ-RS concluiu que houve ocorrência de confusão patrimonial e abuso de direito por parte do sócio majoritário, não cabe ao STJ fazer o reexame de fatos e provas, disse a ministra, porque a possibilidade é vedada pela Súmula 7 da corte. O voto da relatora foi seguido de forma unânime. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.

Clique aqui para ler o acórdão.
REsp 1.236.916

Fonte: Conjur

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

A VERDADE DAS MENTIRAS E AS MENTIRAS DA VERDADE (REAL)

 


A verdade das mentiras e as mentiras da verdade (real)

Por Lenio Luiz Streck



O filósofo Gerd Bornheim dizia, há muitos anos, tratando do pensamento filosófico em bases existenciais, que "nenhum questionamento pode ser digno de ser chamado filosófico se não se faz acompanhar de uma reflexão sobre as próprias condições de responder adequadamente ao que está sendo questionado. Mas isto supõe uma indagação prévia acerca da essência mesma do ato de interrogar ou questionar. 'Ninguém pode indagar o que sabe nem o que não sabe, porque não pesquisaria o que não sabe, pois já o sabe, nem investigaria o que não sabe, porque não saberia sequer o que deve ser investigado' (Platão, Menón, XV, 81-82), dizia Platão. Portanto, continua Bornheim, toda pergunta implica necessariamente a possibilidade da resposta (ao contrario ela não teria sentido) e a possibilidade de acesso à coisa mesma a fim de interrogá-la em seu aparecer originário. Acesso constituído pelo ser do ente compreendido como fenômeno. Assim, a acessibilidade do ente em questão abre previamente o âmbito onde ele é encontrável a fim de ser, precisamente, interrogado. A filosofia é, pois, nutrida pelo desejo de saber acerca do que torna possível a abertura desse âmbito sempre já aberto, antes de toda busca e procura, que dirige e pré-orienta o olhar que investiga e conhece. Boa lição para o que se escreve sobre a verdade no Direito...

Então, sigo. Vimos a parte I de “O Cego de Paris”, depois a parte II, “o retorno”, e, agora, a “parte final, a missão”. Sim, porque a aventura dos juristas em busca da verdade (real) é como caçar a arca perdida. Já vimos isso em Nucci; agora sigo com outros autores.

Antes de tudo, quero grifar os caminhos filosóficos que devem ser trilhados e conhecidos para chegar ao local da arca (e descobrir, talvez, que ela nem exista, pelo menos como os antigos e modernos pensavam). O sujeito da modernidade é descoberta de Descartes. Aquilo que se mostrava nos sofistas ou no nominalismo ainda não é “o sujeito”. Ainda na modernidade, Kant mostra a impossibilidade da apreensão da coisa em si. O que precisamos para compreender algo não vem da coisa (em si), mas da autonomia do sujeito, liberto do “mito do dado”, por assim dizer.

Talvez um dos grandes problemas tenha sido a incorporação desmesurada do antirracionalismo nietzschiano, raiz do pragmati(ci)smo que assola principalmente o Direito. Isto quer dizer que o jurista, longe de estar disposto ao real, dispõe ele para si, como que a repetir a sofista frase de Protágoras de que o homem é a medida de todas as coisas. No pragmati(ci)smo, a decisão particular passa a ser a medida de tudo... Daí o voluntarismo (vontade de poder) que tomou conta das correntes “críticas” do Direito. O que se diz sobre “a verdade” é fruto de tudo isso: da metafísica clássica, da filosofia moderna e das teses e teorias que buscaram ultrapassar aquilo que superou o objetivismo (realismo) pré-moderno. É nesse caldo de cultura que nos movemos.

Por isso, diz-se por aí, impunemente, por exemplo, que o processo criminal norteia-se pela busca da verdade real, que retira o juiz da posição de espectador inerte da produção da prova (sic) para conferir-lhe o ônus de determinar diligências ex officio, como inquisidor, sempre que necessário para esclarecer ponto relevante do processo (há vários livros, na verdade, muitos livros de processo penal que repetem isso). E há decisões de Tribunais, do STJ e do STF, afastando dispositivo do CPP com base... no “princípio da verdade real”. Incrível (no sentido de não crível).

Mas difícil mesmo é saber o que os autores e tribunais querem dizer com “a busca da verdade” ou até mesmo com enunciados como “não há verdades” ou “a verdade é relativa”... E a discussão sempre corre o risco de se tornar tautológica, bastando, para tanto, consultar a plêiade de manuais jurídicos à disposição nas livrarias de terrae brasilis.

No entremeio dessas posições sincréticas, uma pesquisa em autores mais ligados à teoria processual — e mais sofisticados — deveria, a toda evidência, trazer luz ao problema. Neste ponto, nada melhor do que nos focarmos na autoridade de Ada Pellegrini Grinover. O que ela diz? “O princípio da verdade real, que foi o mito de um processo penal voltado para a liberdade absoluta do juiz e para a utilização dos poderes ilimitados na busca da prova, significa hoje simplesmente a tendência a uma certeza próxima da verdade judicial: uma verdade subtraída à exclusiva influência das partes pelos poderes instrutórios do juiz e uma verdade ética, processual e constitucionalmente válida (...) e ainda agora exclusivamente para o processo penal tradicional, indica uma verdade a ser pesquisada mesmo quando os fatos forem incontroversos, com a finalidade de o juiz aplicar a norma de direito material aos fatos realmente ocorridos, para poder pacificar com justiça.”[1]

Já de pronto é possível perceber que a assertiva da acatada professora não consegue afastar a mixagem paradigmática que assola o processo, no mínimo desde a década de 40 do século XX. Com efeito, se, como diz Grinover, a verdade real foi (?) o mito de um processo penal voltado para a liberdade absoluta do juiz e para a utilização dos poderes ilimitados na busca da prova, então se está a tratar de uma “verdade” ligada a um juiz solipsista (subjetivista). De se notar que, ao contrário disso, a ideia de “verdade real” remete para um conceito de verdade em correspondência com a realidade, com a “coisa objeto do conhecimento”. Ilustrativa, nesse sentido, seria a imagem de um juiz que não passava (na verdade, ainda hoje é assim) de um juiz que era um produto mixado por dois modelos filosóficos (melhor dizendo, vulgatas de dois modelos): ao mesmo tempo em que “cava” a prova ao seu talante (sendo, assim, um subjetivista), utiliza-se, ideologicamente, do “mito do dado” para dar “pureza” ao “produto escavado”. Este me parece ser o busílis da questão.

Complexo, não? Entretanto, se, na sequência, a festejada processualista diz que ainda hoje, para o processo penal tradicional, o “princípio” (sic) da verdade real “indica uma verdade a ser pesquisada mesmo quando os fatos forem incontroversos, com a finalidade de o juiz aplicar a norma de direito material aos fatos realmente ocorridos”, então, neste caso, o famoso “princípio” é também um mecanismo de busca de “verdades ontológicas” (traduzidas pelo enunciado “fatos realmente ocorridos”, utilizada por Grinover). Ou seja, também Grinover não consegue se livrar dessa mixagem teórica. E da incerteza acerca do sentido do que seja “verdade real”.

Deixo, assim, assentada a minha perplexidade: se a verdade real é o contraponto da verdade formal, isso quer dizer que a primeira não tem limites procedimentais (formais). Óbvio isso, pois não? Ela, a verdade real, “vai além”... Por ela, o juiz “mergulha” diretamente em direção à “essência das coisas” (esse talvez seja o juiz do qual fala a professora Ada — e com o qual, obviamente, ela não concorda —, quando se refere a “um processo penal voltado para a liberdade absoluta do juiz e para a utilização dos poderes ilimitados na busca da prova”). Só que isso é inconciliável no plano dos paradigmas filosóficos que conformaram o mundo desde a aurora da civilização. Vejamos: não estou dizendo que a professora assume uma postura equivocada em termos do que seja a verdade. O que estou criticando é a descrição dos modelos feitos por ela, que não esclarecem o problema, mas, ao contrário, favorecem o sincretismo de modelos teóricos.

Sendo mais didático: esse sincretismo de paradigmas inconciliáveis acaba sendo communis opinium doctorum na doutrina, o que demonstra que o processo penal traiu a filosofia. E as raízes são antigas. Profundas. Afinal, essa problemática também aparece em trabalhos acadêmicos e de mais fôlego, como é o caso de Marco Antonio de Barros,[2] quando, ao mesmo tempo em que afirma ser a verdade “a adequação ou conformidade entre o intelecto e a realidade”[3] (que é, digo eu, a tese do objetivismo pré-moderno), sustenta que esta é fruto da inteligência humana, porque “moldada pelo juízo racional e não pela prova ou evidência que pode ser verídica ou falsa”. Diz, ainda, que, no plano da avaliação das provas, a “convicção do juiz é livre, submete-se à sua própria consciência; porém, a sua decisão deve ser fundamentada nas provas colhidas no curso do processo”.

Observe-se que a ressalva que Barros faz no sentido de que a decisão, embora “de livre convicção”, deva “ser fundamentada nas provas colhidas no curso do processo”, seria relevante, não fosse exatamente a (sua) contradição entre “a livre convicção” (espécie de solipsismo judicial) e a “fundamentação nas provas processuais”.[4] Quer dizer: segundo o autor, o juiz tem liberdade total para escolher para, depois, buscar a fundamentação daquilo que já decidiu?

Volto. E o faço para chamar a atenção para outra relevante circunstância, qual seja, a de que o conceito de Barros retrata, claramente, a junção (espécie de indevida fusão — unsachgemäße Verschmelzung) do paradigma metafísico-clássico (adaequatio intelectus et rei) e o da filosofia da consciência (adaequatio rei et intelectus), com a ressalva que faço com relação ao que seja “filosofia da consciência” na nota de rodapé número 4 (sugiro que o leitor pare aqui e leia a referida nota). Interessante anotar que, ao fim e ao cabo — e Barros é enfático nisso —, sempre prevalecerá a “livre convicção” ou “a vinculação à consciência do julgador” (daí, talvez, a ode ao “livre convencimento”...!). Mas, pergunto: Como assim, professor? Quer dizer que, no final, sempre prevalece a livre convicção... Mas, para que então serve a doutrina, a lei, o direito? Para que servem os professores? No fundo, é uma mixagem parecida com a que é feita por Nucci. Aliás, isso tudo explica os escopos processuais e o protagonismo judicial defendido pelo instrumentalismo processual. Trata-se do “fator Oskar Bülow”, que expliquei alhures, em outra coluna.

Mas continuemos: o triunfo do voluntarismo/relativismo fica claro na seguinte assertiva de Barros: “Cada uma tem a sua verdade, segundo a sua forma mentis, sob o influxo dos seus próprios interesses e das suas paixões. E é só pela experiência e controle crítico dos seus constantes pontos de vista ‘que se pode chegar àquela verdade do juiz’, que é depois aquela que vale para o ordenamento jurídico (op.cit., p.19). Veja-se, de novo, que Barros e Nucci andam muito próximos em suas análises. O que os une é, pois, esse relativismo e a aposta em atitudes pragmati(ci)stas. Na verdade, uma boa dose de niilismo, pois não?

A se acreditar nessa afirmação de Barros — autor, aliás, e faço a ressalva com justiça, que ocupa importante lugar na doutrina processual penal — estaríamos no reino do subjetivismo-voluntarismo (ou, quiçá, do ceticismo). Estaríamos também — e isso reforça a mixagem teórica — no suprassumo do relativismo. Partindo das palavras do autor, posso afirmar que, se-cada-um-tem-“a-sua-verdade”, se cada juiz obedece a “seus próprios interesses e as suas paixões”, ao fim e ao cabo tudo dependerá daquilo que esse “senhor dos sentidos” disser (quase um nominalista, pois não? — lembremos o personagem Humpty Dumpty, de Alice Através do Espelho, de Lewis Caroll). Ou um misto de solipsismo e ceticismo. O problema é que, como já alertava Heidegger, lá no início de Sein und Zeit, o cético sempre chega tarde.

O relativismo démodé da e na dogmática jurídica

O fator talvez mais inusitado que se projeta a partir de todo esse quadro é que, em nenhum aspecto, os argumentos da dogmática processual se aproximam das discussões contemporâneas sobre o conceito de verdade. Continuamos a discutir as questões a partir do modo como eram levadas a cabo no final do século XIX e início do século XX. Esse relativismo démodé, bem como essa profissão de fé em um caráter unitário da verdade, não atinge o ponto de estofo da questão que, no contexto atual, se situa no campo da linguagem. Como afirma Lorenz Puntel, um dos grandes filósofos contemporâneos, verdade quer dizer a revelação da coisa mesma (Sache selbst) que se articula na dimensão de uma pretensão de validade justificável discursivamente.[5] Isto só para iniciar a discussão, é claro.

Para ser mais incisivo: a história da Filosofia e, do seu modo peculiar, a dogmática jurídica sempre trabalharam a verdade como a relação entre um juízo ideal construído pelo sujeito sobre algo real, posto no mundo. Assim, ao centralizar na subjetividade (que é também um subsistente, como os objetos sobre os quais se fazem juízos, como bem expõe Heidegger nos volumes sobre Nietzsche), acaba-se limitando as possibilidades da verdade. Partindo desse paradigma, estamos sempre limitados a falar a verdade (fazer juízo é um exemplo) sobre representações ou conteúdos da consciência, ignorando a realidade na qual sempre estivemos inseridos.

Percebe-se, desse modo, a complexidade do problema e daquilo que se ensina cotidianamente nas salas de aula e se reproduz nos fóruns e tribunais. Vejamos: Não é implicância de minha parte. Isso não é assim por que eu quero que seja assim ou assado. Trata-se de uma questão paradigmática (portanto, minhas críticas aos autores, Nucci, Barros e Grinover, são pontuais e acadêmicas, em nada deslustrando a trajetória destes como juristas e sua contribuição na doutrina e nas práticas tribunalícias cotidianas).

O mundo é como é porque existem e existiram paradigmas filosóficos. Queiramos ou não. Achemos Kant ou Heidegger uns chatos ou herméticos. Digamos até bobagens como “para que serve essa coisa complicada que é a Filosofia...”. Ou coisas como “até a aula anterior, vocês estudaram o sexo dos anjos; agora vem o ‘degas’[6] aqui que vai ensinar Direito para vocês”, como faz, por exemplo, o protótipo do professor que se orgulha em desdenhar a Filosofia... A propósito, veja-se o problema que a ausência da Filosofia na discussão acerca do que é positivismo acarreta. Autores importantes discutem “casos fáceis” e “casos difíceis” como se não existissem paradigmas filosóficos. Como se, por exemplo, acreditar no positivismo exclusivo (ou excludente) não tivesse relação com a tese de que só há normas gerais... e como se isso não tivesse relação com o paradigma metafísico-clássico.

Claro que nem tudo está perdido. É evidente que há vários autores no campo processual penal que superam essa mixagem (refiro, nesse sentido, do campo processual penal, Miranda Coutinho, Lopes Jr., R. Casara, G. Prado, Flaviane Barros, Grandinetti, Pacelli, Giacomolli (cada um sob perspectivas diferentes das que eu trabalho); do campo processual civil, Nery Jr, G. Abboud, A. Hommerding e D. Nunes; no campo da teoria do processo, A. Bahia, J.L. Saldanha, Cattoni e F. Motta; no campo da teoria do direito, Tomaz de Oliveira, Marrafon, Morais da Rosa, Severo Rocha, M. Ramires, F.V. Luis, A. K. Trindade, W. Carneiro, C. Tassinari, para citar apenas estes). Portanto, a crítica aqui posta se refere a determinados setores do processo penal (que, em boa medida, pode ser estendido ao processo civil e aos demais ramos, como, por exemplo, o direito civil, paraíso dos voluntarismos e do pamprincipiologismo). Despiciendo repetir que minha crítica, que está também em outros textos, é absolutamente respeitosa.

Volto, assim, à estorinha do cego de Paris. É primavera e eu não posso vê-la? Aqui, no que tange à discussão da verdade (“real”?), nem de outro modo se pode contar isso. Não há como dizer de outro modo algo que é absolutamente ficcional. Não há como dar coloridos semânticos às lendas jurídicas que se forja(ra)m durante tantos anos.

Numa palavra: o que quis dizer nesta série de três colunas é que o Direito é um fenômeno complexo. Não faço objeções à produção de livros mais simplificados ou que procurem apenas descrever, de forma resumida, as principais concepções sobre determinados temas, por exemplo, a questão da verdade no processo... desde que isto “conste na embalagem”, por assim dizer. Trata-se, pois, de uma necessária advertência ao consumidor... Tudo deveria estar já na capa do livro, como na bula dos remédios ou nas carteiras de cigarro. E, a persistirem os sintomas... bem, o resto da frase deixo com os milhares de leitores destas mal traçadas linhas.

Sei que pode parecer antipático ficar fazendo críticas constantes ao que se diz por aí sobre o direito e, especialmente, a “verdade”. Mas acho que vale a pena arriscar. Acho que foi Hegel quem disse que a dor e o risco são a condição de possibilidade do filosofar!

A propósito de fazer críticas, li esta semana uma frase de Barbara Heliodora, crítica teatral, com 90 anos de idade, referida por Mauricio Stycer, da Folha: “As pessoas acham que o crítico tem prazer em escrever uma crítica dizendo que a coisa é ruim. Não. É uma tristeza”.

PS 1: estou estudando a possibilidade de um “Cego de Paris IV”. Nele, traria uma análise dos autores que, sob pretexto de criticarem os conceitos de verdade, produzem uma algaravia conceitual tão grave quanto o objeto criticado. Entretanto, não é tarefa fácil. Também não sei se é relevante. Em um universo em que domina a cultura standard...

PS 2: Soube outro dia da genial iniciativa sarcástica da criação da Igreja da Verdade Real no Facebook. Vou virar dizimista ou quiçá pleitear a minha ordenação sacerdotal.

*Coluna alterada às 16h10 do dia 28/11/2013 para acréscimo de informações.
[1] Cf. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório. Rio de Janeiro, Revista Forense, vol. 347, jul-set 1999, pp. 7 e segs.
[2] (A busca da verdade no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 286.)
[3] Observem que não é implicância minha, mas vejamos o que dizia Mirabete, no seu Processo Penal (Atlas, 1991): A verdade real surge quando “a ideia que (o juiz) forma em sua mente se ajusta perfeitamente com a realidade dos fatos.” O que é isto, senão a verdade no sentido da ontologia clássica? Como misturá-la com a verdade da metafísica moderna?
[4] Aqui faço, outra vez, um corte epistemológico para explicar que o que se tem visto no plano das práticas jurídicas nem de longe chega a poder ser caracterizada como “filosofia da consciência”; trata-se de uma vulgata disso. Em meus textos, tenho falado que o solipsismo judicial, o protagonismo e a prática de discricionariedades se enquadram paradigmaticamente no “paradigma epistemológico da filosofia da consciência”. Advirto, porém, que é evidente que o modus decidendi não guarda estrita relação com o “sujeito da modernidade” ou até mesmo com o “solipsismo kantiano”. Esses são muito mais complexos. Aponto essas “aproximações” para, exatamente, poder fazer uma anamnese dos discursos, até porque não há discurso que esteja “em paradigma nenhum”, por mais sincrético que seja.
[5] Cf. Wahrheitstheorien in der neueren Philosophie. Eine kritisch-systematische Darstellung. Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt 1978; Auflage 1993; Grundlagen einer Theorie der Wahrheit. W. de Gruyter, Berlin/New York 1990.
[6] Segundo o dicionário Priberam, “Degas” (quem vem do pintor Dégas) quer dizer a maneira de alguém se referir à própria pessoa: “o degas não vai a festa (eu não vou)”; Sujeito “importante”; contador de vantagens.


Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.

Revista Consultor Jurídico, 28 de novembro de 2013

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