Depois do longo
voto do ministro Gilmar Mendes, o ministro Luiz Edson Fachin pediu vista dos autos do recurso que discute a constitucionalidade de se tratar como crime a posse de drogas para uso pessoal. Até agora, só Gilmar votou, e pela inconstitucionalidade. Para ele, criminalizar a posse para uso “fere o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, em suas diversas manifestações”.Ministro do STF Gilmar Mendes votou nesta quinta (20) pela descriminalização do porte de drogas para uso pessoal.
Carlos Humberto/SCO/STF
Segundo o relator, “a criminalização da posse de drogas para uso pessoal conduz à ofensa à privacidade e à intimidade do usuário. Está-se a desrespeitar a decisão da pessoa de colocar em risco a própria saúde”.
A discussão envolve o artigo 28 da Lei 11.343/2006, chamada de Nova Lei de Drogas. O texto foi editado para diferenciar o tratamento dado ao usuário e ao traficante. Pelo que diz o dispositivo, é crime a posse de drogas para consumo pessoal, mas a pena é tratamento de saúde obrigatório, advertência verbal e prestação de serviços à comunidade.
O artigo foi incluído na lei como uma política de desencarceramento de usuários de drogas. No entanto, para o ministro Gilmar, o dispositivo é contraditório. A política de drogas brasileira, explicou, se baseia em iniciativas de
REDUÇÃO de danos e no tratamento da saúde de usuários. E o artigo 28 mantém o tratamento penal do usuário de drogas, afirmou o relator.
“Na prática, porém, apesar do abrandamento das consequências penais do porte de drogas para uso pessoal, a mera previsão de condutas referentes ao consumo pessoal como infração de natureza penal tem resultado em crescente estigmatização, neutralizando, com isso, os objetivos expressamente definidos no sistema nacional de políticas sobre drogas em relação a usuários e dependentes, em sintonia com políticas de
REDUÇÃOde danos e de prevenção de riscos já bastante difundidas no plano internacional”, diz o voto.
Construção da personalidade
O voto do ministro Gilmar Mendes se baseia no argumento da Defensoria Pública de São Paulo, autora do recurso. A alegação dos defensores paulistas é que o artigo é inconstitucional por violar o direito fundamental à intimidade e à privacidade. Também afirmam que criminalizar o uso de drogas viola o princípio da lesividade, segundo o qual só podem ser consideradas crimes condutas que afetem bens jurídicos de terceiros ou coletivos.
De acordo com o relator, o direito de personalidade “não está limitado a determinados domínios da vida”. Aplica-se, segundo o ministro, “a diferentes modos de desenvolvimento do sujeito, como o direito à autodeterminação, à autopreservação e à autoapresentação”. “Nossa Constituição consagra a dignidade da pessoa humana e o direito à privacidade, à intimidade, à honra e à imagem. Deles pode-se extrair o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e à autodeterminação.”
Gilmar Mendes também ressaltou que o artigo 28 parte de um espírito que permite “interferências indevidas” por parte do Estado, mas essa intromissão pode ser restringida pela “invocação do princípio da liberdade geral, que não tolera restrições à autonomia da vontade que não sejam necessárias para alguma finalidade de raiz constitucional”.
Mendes também aproveitou para rebater um argumento repisado pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, de que “não existe direito constitucional ao êxtase”. “Não chego ao ponto de afirmar que exista um direito a se entorpecer irrestritamente. Pode ser perfeitamente válida a imposição de restrições a determinadas substâncias, não havendo que se falar, portanto, nesse caso, em direito subjetivo irrestrito”, afirmou o ministro.
Audiência de custódia
Embora considere o artigo inconstitucional, o ministro Gilmar sugere que não haja
REDUÇÃO de texto. Isso para não causar um “vácuo regulatório” que permita a “errônea interpretação de que esta decisão implica, sem qualquer restrição, a legalização do porte de drogas para consumo pessoal”.
A intenção do voto do ministro, ele explica, é afastar a natureza penal das restrições ao porte de drogas para consumo. Por isso, a sugestão é que as sanções do artigo 28 da Lei de Drogas sejam transformadas em administrativas ou cíveis.
“Afastada a natureza criminal das referidas medidas, com o consequentemente deslocamento de sua aplicação da esfera criminal para o âmbito civil, não é difícil antever uma maior efetividade no alcance dessas medidas, além de se propiciar, sem as amarras da lei penal, novas abordagens ao problema do uso de drogas por meio de práticas maisconsentâneas com as complexidades que o tema envolve.”
O ministro propõe uma regra de transição de seis meses, um tempo que ele considera suficiente para que o Congresso edite lei sobre o assunto. Nessas regras está a obrigatoriedade de se apresentar o flagrado com drogas a uma audiência de custódia, para que o Judiciário decida como proceder.
Gilmar Mendes também oficia o Conselho Nacional de Justiça para, no prazo de seis meses, elaborar uma proposta de dar tratamento cível às sanções descritas no artigo 28 da Lei de Drogas.
Ônus da prova
Como a proposta do ministro é afastar do âmbito penal e levar ao cível a posse de drogas para uso, ele discute também a questão do ônus da prova. Segundo ele, há uma “zona cinzenta” entre tráfico e uso que são fundamentais para quem é preso em flagrante: pode ser condenado a 15 anos de prisão ou sair livre, embora sujeito às sanções do artigo 28.
Um dos motivos para essa confusão é a falta de critérios objetivos para diferenciar quem é traficante de drogas e quem é apenas consumidor. Gilmar explica que a Lei de Drogas define o crime de tráfico no artigo 33, e o artigo 28 é uma “regra especial” em relação ao 33.
Ou seja, a acusação não precisaria falar sobre finalidade da posse de drogas, já que o artigo 33 não fala nos objetivos de se portar drogas, fala apenas que “transportar, trazer consigo, guardar” drogas é crime. Disso, segundo Gilmar, resulta a “impressão falsa” de que é a defesa quem deve demonstrar que a finalidade da posse é uso e não tráfico.
No entanto, segundo o relator, essa interpretação conflita com o princípio constitucional da presunção da não culpabilidade. O ministro pondera que se os indícios apontam claramente para tráfico, “pode-se dispensar uma fundamentação explícita”. Seria o caso, por exemplo, da apreensão de toneladas de maconha. “Em casos limítrofes, contudo, a avaliação deve ser cuidadosa.”
“A finalidade é um elemento-chave para a definição do tráfico. A cadeia de produção e consumo de drogas é orientada em direção ao usuário. Ou seja, uma pessoa que é flagrada na posse de drogas pode, muito bem, ter o propósito de consumir. Seria incompatível com a presunção de não culpabilidade transferir o ônus da prova em desfavor do acusado nesse ponto. Dessa forma, a melhor leitura é de que o tipo penal do tráfico de drogas pressupõe, de forma implícita, a finalidade diversa do consumo pessoal. Sua demonstração é ônus da acusação.”
RE 635.659
Revista Consultor Jurídico, 21 de agosto de 2015.